Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
176/11.1SLPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AIRISA CALDINHO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
ELEMENTOS DO TIPO
Nº do Documento: RP20120926176/11.1SLPRT.P1
Data do Acordão: 09/26/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
II – Visa tutelar a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.
III - O bem jurídico protegido por este tipo legal é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde física, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoal, afectem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros.
IV – Trata-se de crime específico porquanto pressupõe que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos.
V - As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).
VI - Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 176/11.1SLPRT.P1
2.ª SecçãoCriminal
Varas Crminais do Porto
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Acordam, em conferência, na 2.ª Secção Criminal:
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I. No processo comum com intervenção de tribunal colectivo n.º 176/11.1SLPRT da 1ª Vara Criminal do Porto, foi proferida a seguinte decisão:
-“…
A) Absolver o arguido B… da prática, como autor material, do imputado crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152°, n°s 1, al. a) e 2 do C.P., ainda que convolado para um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152°, nos 1, al. b) e 2 do mesmo diploma legal.
B) Homologar a desistência de queixa apresentada pela ofendida C… quanto à prática pelo arguido de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143°, n°1 do C.P., e, consequentemente, julgar extinto o procedimento criminal contra aquele instaurado.
C) Não conhecer da prática de dois crimes de injúrias, ps. e ps. pelo art. 181°, n°1 do C.P., por falta de legitimidade do M.P. para instaurar o respectivo procedimento criminal, atenta a falta de constituição como assistente e dedução de acusação particular por parte da ofendida C….
D) Absolver o arguido B… da prática, como autor material, de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210°, n°1 do C.P.
…”
Inconformado com o assim decidido, recorre o Ministério Público, resumindo as razões do seu inconformismo nas seguintes conclusões:
- “…
1°) Na decisão agora objecto de recurso, o colectivo de Juízes dá como provado que:
A) O arguido e a ofendida em determinado período das suas vidas viveram em comunhão de habitação, mesa e cama e deste relacionamento nasceram dois filhos, ainda de menor idade;
B) Que já depois de terminado tal comunhão, o arguido insultou e agrediu a ofendida.
2ª) Os insultos são susceptíveis de integrarem um crime de injúrias, em relação ao qual a ofendida não pretendeu procedimento criminal, não se constituiu assistente nem deduzir acusação particular, pelo que, com este fundamento e com a concordância do M°P° foi o arguido absolvido.
3ª) Quanto ao crime de ofensa à integridade fisica, o colectivo de Juízes subsume a conduta do arguido ao crime de ofensa à integridade fisica simples, pelo que, homologa a desistência de queixa declarada pela ofendida.
4°) No entendimento do M°P°, tal desistência de queixa não é válida, nem relevante, pois o colectivo de Juízes para além dos factos que deu como provados, que efectivamente integram tal ilícito criminal deveria ter dado como provado, cfr. Depoimento da ofendida atrás transcrito, que a agressão foi levado a cabo na presença de um dos filhos menores do casal e que tal agressão foi meramente gratuita, uma vez que teve por fundamento retirar à ofendida um veiculo comum e que igualmente em comum havia sido decidido ficar para esta, por ser a única que tinha carta de condução e para transportar os filhos de ambos.
5°) E ao dar como provados estes factos, a conduta do arguido reflectiria a sua especial censurabilidade e perversidade e consequentemente integraria o crime de ofensa à integridade física qualificada, p.p. pelas disposições conjugadas dos art°s 146° e 132° n°2 al-b), ambos do C.P., cuja natureza pública impede a homologação de desistência de queixa declarada pela ofendida.
6°) Assim, deve a Decisão agora objecto de recurso ser substituída por outra que dê como provados os factos acima referidos, que subsuma tais factos ao art° 146° e 132° n°2 alb), ambos do C.P. e por via disso condene o arguido por este crime.
7°) Pois ao não ter dado como provados tais factos, bem como ao não ter subsumido os mesmos às supras normais legais, a Decisão objecto de recurso violou tais normais legais.”
O arguido respondeu pela improcedência do recurso.
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pela improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II. São as seguintes as questões suscitadas no recurso a merecerem apreciação, tal como elas emergem das conclusões:
- impugnação de matéria de facto;
- condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelos art.s 146.º e 132.º, n.º 2, al. b), do CP.
É a seguinte a fundamentação do acórdão recorrido:
- “…
3.1- FACTOS PROVADOS:
Discutida a causa, ficou provado com relevância para a decisão de mérito que:
1 - O arguido e a denunciante C… iniciaram uma relação amorosa em 2005, tendo começado a viver juntos, como um casal, em comunhão de cama, mesa e habitação naquele mesmo ano, situação que cessou no dia 11.03.2011, com a separação daqueles.
2 - De tal união, nasceram os menores D… e E… -respectivamente, em 18/09/06 e 16/02/10.
3 - No dia 24 de Março de 2011, cerca das 11.10 horas, no …, …, nesta cidade e Comarca do Porto, o arguido abordou a ofendida, que então ali se encontrava, ao volante da sua viatura automóvel Nissan … com matrícula "..-..-FG", estacionada naquela via pública, e, após abrir a porta da mesma, e enquanto trocavam insultos, chamando o arguido "puta" à C…, o arguido agarrou a ofendida e retirou-a, com fortes puxões e contra a vontade desta, do interior do veículo. Nesse acto, o arguido arranhou a orelha esquerda da C….
4 - Após, apoderou-se da única chave da dita viatura, que se encontrava na ignição, levando-a consigo.
5 - Da referida conduta do arguido resultou para a denunciante escoriação da orelha esquerda com 1 cm de comprimento e equimose na perna direita, com 2cm x 3cm, lesões que demandaram 7 dias para a cura, sem afectação da capacidade de trabalho geral.
6 - O referido veículo era propriedade comum do arguido e da denunciante.
7 - O arguido devolveu a chave da viatura à denunciante no dia 19.04.2011.
8 - No dia 28 de Maio de 2011, cerca das 12.15 horas, o arguido dirigiu-se à residência sita na … n. ° .., r/c Esq., nesta Cidade do Porto, onde a ofendida manteve domicílio conjuntamente com os dois filhos menores.
9 - Uma vez no interior daquela habitação, e na presença, pelo menos, do filho E…, o arguido e a denunciante C… começaram a discutir e a insultar-se mutuamente, chamando o primeiro "puta" a esta e ela "cabrão" ao arguido.
10 - A discussão iniciou-se pelo facto do arguido pretender levar consigo daquela casa objectos que dizia pertencerem-lhe, entendendo a queixosa que eram coisas de ambos.
11 - Com as referidas ofensas verbais que dirigiu à ofendida, nas duas sobreditas ocasiões, o arguido visou e logrou atingi-la na sua honra e consideração.
12 - De igual modo, e por via das supra descritas agressões físicas, o arguido previu a possibilidade de magoar e causar dores físicas a C… e, ainda, assim, não se inibiu de actuar pela forma como fez.
13 - O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com perfeita consciência de que, ao agredir e insultar a C…, praticava condutas ilícitas e criminalmente puníveis.
14 - O desenvolvimento psicossocial do arguido B… decorreu em meio urbano, na cidade do Porto, inserido na família de origem de condição sócio-económica deficitária, destacando-se a precariedade habitacional. Esta foi ultrapassada com o realojamento do agregado em habitação de renda social, inicialmente, no …, e, posteriormente, no … para um apartamento de tipologia mais adequada à família.
15 - A dinâmica intra-familiar foi marcada por episódios de violência conjugal que estariam, de algum modo, relacionados como consumo abusivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor.
16 - O percurso escolar do arguido caracterizou-se por elevado absentismo, problemas de comportamento e reprovações, situação que culminou com a interrupção da trajectória formativa aos quinze anos de idade, habilitado com o 6° ano de escolaridade.
17 - Posteriormente, não investiu em actividades de qualificação escolar e/ou profissional, não possuindo, a este nível, nenhuma experiência consistente.
18 - Durante a adolescência, inseriu-se em grupos de pares do meio residencial, associado a práticas transgressivas, iniciando-se no consumo de estupefacientes, designadamente haxixe, comportamento mantido até ao momento actual.
19 - Ao nível afectivo, B… manteve um relacionamento amoroso com C…. Deste relacionamento nasceram dois filhos, actualmente com 5 e 2 anos de idade, revelando o arguido satisfação e envolvimento no acompanhamento educativo dos descendentes.
20 - Posteriormente, verificou-se a autonomização do casal, apesar de continuar a existir uma forte ligação afectiva, constituindo-se a família de origem da companheira do arguido um suporte relevante no quotidiano do agregado constituído.
21 – B… encontrava-se inactivo profissionalmente e a companheira exercia a profissão de empregada de refeitório, sendo a situação económica do agregado caracterizada como remediada.
22 - O agregado familiar era acompanhado pelo Instituto de Segurança Social, no âmbito da Medida de Rendimento Social de Inserção.
23 - No mês de Fevereiro de 2010 nasceu o filho mais novo do casal, continuando o agregado familiar a manter uma autonomia relativamente às famílias de origem.
24 - O agregado familiar continuava a beneficiar de apoio do agregado de origem de C…, residente numa habitação, tipologia T-3, localizado num bairro social da cidade do Porto. Relativamente à família de origem, o arguido refere sempre ter mantido uma ligação de proximidade, aparentando existir uma inter-ajuda permanente.
25 - No mês de Março de 2011, o casal optou por se separar, altura em que o arguido reintegrou o seu agregado familiar de origem.
26 - Ao nível profissional, o arguido permanece numa situação de inactividade, apesar de referir realizar com o progenitor tarefas indiferenciadas, sem qualquer vínculo, nem regularidade.
27 - Manifesta alguma imaturidade pessoal e mantém um posicionamento caracterizado por uma certa inércia para inverter a sua situação de inactividade profissional. Remete a solução da sua inactividade profissional para as estruturas convencionais onde se encontra inscrito, aguardando por respostas.
28 – B… refere que continua a beneficiar da prestação do Rendimento Social de Inserção, que se encontra anexo ao seu núcleo familiar constituído. Assim, a ex-companheira disponibiliza do montante total que aufere 130E para o arguido.
29 - A manutenção/sustento do arguido é assumida pelo agregado familiar de origem, em que a progenitora é o elemento que mantém uma actividade profissional estruturada e regular.
30 - O arguido e a ofendida retomaram a relação nos finais de Dezembro de 2011, passando a viver juntos, na habitação da ofendida, mantendo no entanto o contacto com os progenitores do arguido, visitando-os diariamente.
31 - A Câmara Municipal … atribuiu uma habitação social à ofendida e progenitora daquela, no …, …, casa …
32 - No que concerne ao consumo de estupefacientes, designadamente haxixe, B… menciona que este tem sido muito reduzido, sendo esporádico desde há alguns meses.
33 - O arguido é caracterizado pela ex-companheira positivamente no desempenho do papel de pai, continuando a existir alguma partilha das tarefas educativas e dos cuidados necessários a prestar aos descendentes, verbalizando que a relação do casal decorre actualmente de forma muito positiva.
34 - O quotidiano de B… é gerido em função de tarefas necessárias ao bem-estar dos filhos, designadamente a condução ao infantário e em convívio com a família e amigos.
35 – B… encontra-se inscrito no Instituto de Emprego e Formação Profissional e em empresas de trabalho temporário.
36 - Na zona de residência dos progenitores não foram transmitidas informações negativas face ao arguido.
37 - No âmbito do processo n° 654/08.0PIPRT da lª Vara Criminal do Porto, o arguido, por crimes de violação de domicílio, ofensas à integridade física, ameaças e um crime de furto, foi condenado em 3 anos e 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período sujeita a regime de prova, com trânsito em julgado em 13/04/2011. No âmbito do processo atrás referido, foi-lhe realizado cúmulo jurídico com o processo 562/04.3PCMTS do 1° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Matosinhos tendo-lhe sido mantida a suspensão da execução da pena de prisão com regime de prova pelo período de 3 anos e 5 meses.
38 - No âmbito do processo n° 660/09.7 PWPRT, da 3ª Vara Criminal do Porto, o arguido foi condenado por um crime de resistência e coação sobre funcionário, num ano e seis meses de prisão, suspensa por igual período sujeita a regime de prova; a DGRS já elaborou o respectivo plano de reinserção social; o acórdão transitou em julgado a 5 de Dezembro de 2011. Até ao momento e no âmbito do acompanhamento a que está sujeito, B… tem assumido um posicionamento de adesão e minimamente adaptado às orientações veiculadas.
39 - No âmbito do processo n°668/09.2 PSPRT, da 4ª Vara Criminal do Porto, o arguido encontra-se a ser julgado pela prática do crime de furto qualificado, sendo que a próxima sessão está agendada para o dia 22 de Fevereiro de 2012.
40 - O arguido sofreu anteriormente as condenações judiciais transitadas em julgado constantes do certificado de registo criminal junto a fls. 106 a 119, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3.2 — FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se apurou, com relevo para a decisão final, que:
1 - No decurso do ano de 2009, ocorreram diversos atritos entre o casal, levando a uma ruptura e subsequente reconciliação. No entanto, e a partir de data imprecisa do principio do ano de 2011, e por via de regra no interior do supradito domicílio familiar, o arguido começou a insultar recorrentemente a ofendida, chamando-lhe quase todos os dias "puta" "vaca" e "badalhoca".
2 - No dia 11 de Março de 2011, pelas 10.30 horas, na presença dos filhos menores, e no interior do domicílio familiar, o arguido afirmou à ofendida: "estou farto de ti", "vai-te embora, não te quero mais", "não vales nada", "fodo-te toda", "parto esta merda toda", "não te quero ver mais à frente", "os meninos ficam comigo aqui e tu vais sozinha".
3 - No circunstancialismo de tempo e lugar mencionados no n°3 do ponto 3.1, o arguido desferiu um soco na cabeça da ofendida, chamou-lhe "vaca" e desferiu-lhe também uma bofetada na face; e apoderou-se da dita viatura, conduzindo-a para parte incerta.
4 - As referidas agressões do arguido causaram à ofendida edema no nariz, com equimose.
5 - No circunstancialismo de tempo e lugar mencionados nos n°s 8 e 9 do ponto 3.1, o arguido atingiu a ofendida com soco na boca, causando-lhe dores, e chamou-lhe "vaca"
6 - Com as ofensas verbais que dirigiu à ofendida, o arguido visou e logrou, ao longo do tempo, de modo gratuito, enxovalhar profundamente a ofendida.
7 - Com as afirmações que lhe fez, anunciando-lhe a intenção de a magoar fisicamente, o arguido quis intimidar a ofendida e fazê-la temer pela sua saúde e integridade física.
8 - O arguido tinha perfeito conhecimento de que a viatura em apreço, que fez coisa sua do modo descrito, levando-a para parte incerta, não lhe pertencia, sendo propriedade da ofendida C….
3.3 — MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO:
A ofendida C…, advertida nos termos do art. 134°, n°s 1, b) e 2 do C.P.P., não quis prestar depoimento sobre os factos constantes da acusação alegadamente ocorridos durante a coabitação, que cessou, segundo a mesma, em 11 de Março de 2011.
Sobre tal factualidade nenhuma outra prova atendível foi produzida.
Fundou-se o Tribunal no teor do depoimento daquela testemunha, que se afigurou isento e credível, no que concerne à factualidade dada por provada nos nºs 1 a 10.
C… esclareceu que o veículo mencionado na acusação era propriedade de ambos, tendo sido adquirido na constância da união de facto com o dinheiro dos dois. Era ela que usava a viatura, visto o arguido não ser titular de carta de condução. Só existia uma chave do veículo.
Mais referiu que o arguido, ao actuar do modo descrito, alegava que o carro também era seu, devolvendo-lhe a chave em 19.04.2011.
Daí que, considerando tal circunstancialismo fáctico, o Tribunal não ficou convencido de que a intenção do arguido fosse apropriar-se, em proveito exclusivo próprio da viatura em questão, mas antes de que actuou para fazer "gala" dos seus "direitos" sobre o mesmo e irritar, contrariar, a denunciante, de quem se havia separado há pouco tempo.
Ainda nas certidões dos assentos de nascimento de fls. 50 a 55 e relatório pericial do INML (Porto) junto a fls. 15 a 18 do Apenso 404/11.3PIPRT.
A matéria fáctica dada por não provada sob os n°s 3 a 5 do ponto 3.2 não foi confirmada ou foi negada pela depoente.
O tipo de linguagem ofensiva dirigida pelo arguido à ofendida nos dias 11.03.2011 e 28.05.2011 não deixa dúvidas, pelas regras de experiência comum, atento o clima de confronto entre ambos criado nessas situações, quanto ao facto de o arguido ter pretendido e conseguido atingir esta na sua honra e consideração, como ele sabia que sucederia ao proferir tais insultos.
Contudo, não se deu por provado que o arguido ao actuar do modo descrito naquelas duas ocasiões, em que dirigiu insultos à sua ex-companheira, tivesse por desiderato, de modo gratuito, enxovalhá-la profundamente.
Isto porque, como adiantado pela C…, o arguido agiu num contexto de exaltação e troca de insultos entre ambos, movido ainda por factores subjectivos - não justificativos, acrescente-se - que, no seu entender, lhe concediam razão para levar objectos de casa e apoderar-se das chaves do veículo, privando a ofendida do seu uso.
Embora o objectivo querido pelo arguido ao puxar a denunciante à força para fora do veículo fosse o de se apoderar das chaves do mesmo, não podia aquele desconhecer — como não desconhecia - que ao actuar da forma descrita poderia magoar aquela, como veio a suceder, não se inibindo, ainda assim, de adoptar a respectiva conduta.
No que tange aos factos referentes às condições sociais e pessoais do arguido, teve-se em conta o relatório social de fls. 120 a 126, bem como o depoimento da testemunha C….
No que concerne aos antecedentes criminais do arguido, fundou-se o tribunal no teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 106 a 119.
4 — APRECIAÇÃO DE DIREITO:
Vem o arguido acusado da prática, como autor material e em concurso real, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152°, nºs 1, al. a) e 2 do C.P., e de um crime de roubo, p. e p. pelo art. 210°, n°1 do mesmo diploma legal.
- Do imputado crime de maus tratos:
Primeiramente, cabe referir que, salvo melhor entendimento, a indicação das normas jurídicas aplicáveis na qualificação do crime operada pelo Ministério Público no douto libelo acusatório enferma de lapso.
Na verdade, tendo a acusação imputado ao arguido um tipo de crime ali baseado na execução reiterada e duradoura de condutas entendidas como tipificadoras, desde o princípio de 2011, de maus tratos sobre pessoa que com ele mantinha, ou tinha mantido (após a cessação da união de facto, em 11.03.2011), uma relação análoga à dos cônjuges, o regime penal aplicável terá de ser o vertido no art. 152°, n°1, al. b) - e não al. a) - e n°2 do C.P., na redacção conferida pela Lei n° 59/2007, de 04.09, onde se prevê o crime de violência doméstica.
Nos termos do n°1, al. b) do aludido preceito legal, "quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos fisicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação...
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal".
Se o agente praticar o facto contra menor, na presença do mesmo, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos — n°2 do referido normativo legal.
Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2011, processo n° 170/10.OGAVLC.P1, disponível em www.dgsi.pt., "no ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma "tutela especial e reforçada" da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar fisico e psíquico da vítima".
O sobredito aresto seguiu, nesta parte, a tese proposta por Nuno Brandão, in "A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica", Revista Julgar, 12 (Especial), p. 9-24, segundo a qual "o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo" (pág. 18).
No crime de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível fisico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual — cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2010, processo n° 179/08.3GDSTS .P1, in www.dgsi.pt.
O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é, assim, primordialmente, a saúde da vítima, entendida nas suas vertentes de saúde fisica, psíquica e mental, visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoal, afectem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros.
E a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152° als a) e b) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos; não porque estejamos perante um fenómeno novo ou recente, mas antes porquanto actualmente vinga uma maior e mais ampla consciencialização acerca da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, o que os faz encarar como um problema de dimensão social I.
Estamos perante um crime específico, porquanto pressupõe que o sujeito activo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos. O sujeito passivo ou vítima só pode ser a pessoa que se encontre, para com o agente ou sujeito activo, numa relação de coabitação conjugal ou seja cônjuge.
As condutas típicas preenchem-se com a inflicção de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações).
Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).
A este propósito urge ter presente a jurisprudência que já antes da alteração legislativa de 2007 considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido — cf., a título exemplificativo, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 13.06.2007, in www.dgsi.pt, do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.1997, CJSTJ, III, 235, e de 17.10.1996, CJSTJ, IV, 170, da Relação de Évora de 23.11.1999, CJ, V, 283 e de 25.01.2005, CJ, I, 260, e da Relação do Porto, de 12.05.2004, Recurso 6422/03-4a Secção.
Neste sentido também o Acórdão da Relação do Porto de 06.10.2010, processo n° 296/08.0PDV19G.P1, in www.dgsi.pt.
Importa aquilatar nessas situações se o comportamento único do agente reveste, ainda assim, uma certa gravidade, traduzindo crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária da sua parte, a ponto de constituir causa justificativa da dissolução do vínculo conjugal, por comprometer a possibilidade de vida em comum.
O conjunto de acções típicas que integram o ilícito criminal em apreço, uma vez analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são cometidas, constituirão maus tratos quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou em estado de agressão permanente.
Tais comportamentos integram o conceito legal de "maus tratos" quando geram uma situação consubstanciadora de um padrão comportamental associado a uma perigosidade típica para o bem-estar fisico e psíquico da vítima.
O que justifica a punição mais severa do agente através deste tipo legal de crime numa situação de concurso aparente com as ofensas à integridade fisica simples, é precisamente o desprezo do agressor pela dignidade pessoal da vítima, enquanto revelador de um pesado desvalor de acção que agrava a ilicitude material do facto — Cf. Nuno Brandão, ob. cit., p. 18.
Como referido no aludido Acórdão da RP de 28.09.2011 - citando também Nuno Brandão e o Ac. da RG de 17.05.2010, relator Cruz Bucho - "o importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão fisica de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima. Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do art. 152°, do CP. Se não, a situação integrará a prática de um ou vários crimes de ofensas à integridade física simples, do art. 143°, do CP".
E acrescenta-se, " a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da pessoa (vítima) tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão (em sentido lato) constitua uma situação de "maus tratos". E estes (maus tratos) só se dão como verificados quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global do facto e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar fisico e psíquico da vítima".
A agravação do n°2 do art. 152° funda-se no propósito legislativo de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica com vítimas menores ou ocorridos diante de menores, por se considerar que os menores são vítimas "indirectas" dos maus tratos contra terceiros quando eles têm lugar diante dos menores. Por outro lado, o legislador quis também censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a acção do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas — cf. Paulo Pinto de Albuquerque, "Comentário do Código Penal", anot. 13 ao art. 152°, p. 406.
Volvendo ao caso vertente, diremos que os provados episódios de ofensas corporais cometidas pelo ora arguido sobre a sua ex-companheira e os insultos que, em duas distintas ocasiões lhe dirigiu, não são, em nossa opinião, suficientes para integrarem o predito conceito de "maus tratos" por não representarem um potencial de agressão que supere a protecção oferecida pelos também tipificados crimes de ofensa à integridade fisica simples e de injúria, previstos, respectivamente, pelos artigos 143° e 181° do CP2.
Primeiramente, cumpre considerar pouco graves, do ponto de vista objectivo, tais ofensas (física e moral) cometidas.
Ademais, não se pode olvidar que a sua perpetração inseriu-se num período temporal muito próximo da ruptura da coabitação do "casal" e, portanto, em que as respectivas relações se apresentavam anormalmente tensas e difíceis.
No que tange às ofensas corporais, importa atender ainda a que o agente actuou com dolo eventual (cfr. art. 14°, n°3 do CP), ou seja uma forma menos intensa do dolo, não sendo sua intenção directa ou primordial magoar fisicamente a ofendida.
Por outro lado, se é certo que o arguido dirigiu injúrias à ofendida C…, também o é que o fez num contexto em que ocorreu troca de insultos (de idêntica gravidade) entre ambos.
Finalmente, o arguido dirigiu insultos à mãe do seu filho E…, na presença deste menor, mas ele, pela sua tenra idade à data dos factos (tinha 1 ano e 3 meses), teria diminuta ou inexistente capacidade cognitiva para compreender o conteúdo negativo das palavras insultuosas trocadas entre os seus progenitores.
Aqui chegados, urge ter presente que a ofendida C… declarou em audiência de julgamento pretender desistir das queixas apresentadas contra o arguido, não desejando a continuação do procedimento criminal contra ele instaurado, sendo que o arguido aceitou tal desistência (cfr. acta da audiência de fls. 127/9).
Em conformidade, urge homologar as preditas desistências de queixas e declarar extinto o procedimento criminal instaurado contra o arguido, dado que o crime de ofensas à integridade física simples, atenta a sua natureza semi-pública, e o crime de injúrias, de natureza particular, necessitam da existência de queixa do ofendido e permitem, até à publicação da sentença em 1ª instância, que haja desistência da mesma, com a consequente extinção do procedimento (cf. arts. 49° a 51° do C.P.P. e 113°, 116°, 117°, 143°, n°2, 181° e 188°, todos do C.P.)”
O recorrente pretende que o tribunal a quo devia ter dado como provado o seguinte:
“… a agressão foi levado a cabo na presença de um dos filhos menores do casal e que tal agressão foi meramente gratuita, uma vez que teve por fundamento retirar à ofendida um veiculo comum e que igualmente em comum havia sido decidido ficar para esta, por ser a única que tinha carta de condução e para transportar os filhos de ambos.”
A suportar tal pretensão, o recorrente indica o depoimento de C…, que transcreve.
Analisando o teor do depoimento citado, no concreto excerto respeitante àquilo que o próprio recorrente designa, na sua transcrição, de “Situação do carro”, constatamos que em nenhum momento a depoente refere que estava presente um dos filhos menores do casal, nem isso lhe foi perguntado.
Por outro lado, o recorrente traz à colação um facto que foi dado como provado e que se continha na descrição do que, na acusação pública, consubstanciava o crime de roubo imputado ao arguido e de que ele foi absolvido por carência de elemento subjectivo.
Temos, assim, que o único facto relevante para o enquadramento jurídico-penal que o recorrente pretende seria o de se tratar da ex-companheira do arguido, o que, só por si, não revela a especial censurabilidade ou perversidade que o crime agravado exige e o recorrente não alvitra outros que devidamente fundamentem tal agravação.
Com os factos provados, entre os quais, o que vem referido no recurso, o tribunal a quo entendeu estar-se perante um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art. 143.º do CP. Não merece reparo esse entendimento e o recorrente nada alega que o refute.
Admitindo o referido crime desistência de queixa, nada obstava à homologação dela formulada pela ofendida, também aqui nada se nos oferecendo dizer.
Em conformidade com o expendido, o recurso só pode improceder.
III. Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso, confirmando-se o acórdão recorrido.
Elaborado e revisto pela primeira signatária.

Porto, 26 de Setembro de 2012
Airisa Maurício Antunes Caldinho
António Luís T. Cravo Roxo