Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
21386/17.2T8PRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOAQUIM MOURA
Descritores: AVAL
RESPONSABILIDADE DO AVALISTA
PREENCHIMENTO ABUSIVO
GARANTIA AUTÓNOMA
Nº do Documento: RP2020112321386/17.2T8PRT-A.P1
Data do Acordão: 11/23/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado, então, sendo o aval prestado a favor do subscritor, o acordo de preenchimento do título concluído entre este e o portador impõe-se ao avalista.
II – Está firmado na jurisprudência o entendimento de que o avalista pode excepcionar o preenchimento abusivo do título se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe, então, o ónus de alegação e prova, pois de uma excepção material se trata.
III - Um dos traços essenciais da garantia autónoma é o de que o garante responsabiliza-se perante o credor (no contrato-base), não pelo cumprimento da obrigação do devedor (garantido), mas sim pelo cumprimento de uma obrigação própria (emergente da garantia prestada).
IV - Os únicos limites à autonomia da garantia bancária face à obrigação principal do devedor são os que decorrem dos princípios gerais do Direito, reconhecendo-se ao garante a possibilidade de recusar o pagamento, apenas, quando a solicitação do beneficiário se traduza numa fraude ou num abuso de direito, desde que manifestos.
V – Sendo o contrato de garantia bancária, em relação à embargada/recorrente, res inter alios acta, são inoponíveis ao credor cambiário as vicissitudes próprias dessa relação extra-cartular ou subjacente.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 21386/17.2T8PRT-A.P1
(Embargos de executado)
Comarca do Porto
Juízo de Execução do Porto (J5)

Acordam na 5.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto

IRelatório
B…, devidamente identificada nos autos, veio, por apenso aos autos de execução ordinária para pagamento de quantia certa que, sob o n.º 21386/17.2T8PRT, correm termos pelo Juízo de Execução do Porto, Comarca do Porto, em que figura como co-executada, e em que é exequente “C…, S.A.”, deduzir oposição, por embargos, à execução, com os seguintes fundamentos:

Aceita que a exequente, ora embargada, é dona e legítima portadora da livrança que serve de base à execução, subscrita por “D…, Unipessoal, L.da”, na qual deu o seu aval à subscritora, mas dela não constavam o valor e data do respectivo vencimento, presumindo que tais elementos foram apostos pela embargada, pelo que os impugna.
Nessa altura, era gerente da “D…, Unipessoal, L.da” (depois transformada em sociedade por quotas e, entretanto, declarada insolvente), mas só o era formalmente, pois o verdadeiro e efectivo gerente era o co-executado E…, que negociava por conta da sociedade, designadamente com as instituições de crédito, e foi nesse contexto que subscreveu o pedido de garantia bancária junto com o requerimento executivo como documento n.º 2, «desconhecendo a embargante os termos em que tal sucedera, e o alcance que o mesmo teria».
A solicitada garantia bancária, no valor de € 79.936,92, veio a ser prestada pela embargada, estando o escrito que a titula datado de 02.10.2006, e a beneficiária era a “F…, S.A.”, com quem a “D…, UNIPESSOAL, L.DA” celebrara um contrato de utilização de loja (loja n.º ..) no Centro Comercial denominado “G…”.
No entanto, foi a uma entidade (“H…, S.A.”) diversa da beneficiária da garantia que a embargada terá pago o valor garantido.
Consequentemente, haverá de concluir-se que a obrigação que a embargada pretende ver cumprida não é exigível, porquanto a sociedade “D…, Unipessoal, Lda.” em momento algum celebrou um contrato de garantia bancária em que fosse beneficiário da mesma a sociedade “H…, S.A.”.
A embargada, enquanto garante, tinha o dever, de recusar o pagamento da soma objecto da garantia, por se tratar de um caso de solicitação irregular, já que a mesma foi formulada por pessoa que não o beneficiário da garantia junta sob o documento n.º 2 com o requerimento executivo.
Acresce que a petição executiva seria inepta porque a exequente não especifica em que se baseia para exigir os juros usurários que reclama (30%).
A julgar-se devida qualquer quantia, aos executados só poderão ser cobrados juros à taxa de 4% e a contar da data da interpelação para cumprimento.

Por despacho de 23.01.2018, foram os embargos, liminarmente, recebidos e, notificada a exequente, veio esta apresentar contestação, alegando, em síntese:

A embargante reconhece que celebrou o contrato aqui em causa e que, para titulação do financiamento, respectivos juros e demais encargos dele emergentes, subscreveu, juntamente com outros avalistas, a respectiva livrança caução, ficando o Banco autorizado a preenchê-la livremente em conformidade com um pacto de preenchimento.
Não restam dúvidas de que a ora embargante aceitou o acordo de preenchimento de livrança estabelecido no contrato, autorizando, expressamente, o preenchimento da livrança (nomeadamente quanto à data de vencimento e ao montante em dívida) que assinou e entregou em branco para garantia e segurança do cumprimento das responsabilidades assumidas, em caso de incumprimento, livrança que veio a ser preenchida nos seus precisos termos e devidamente apresentada a pagamento.
A embargante não é sujeito da relação jurídica estabelecida entre o avalizado e o exequente e, como avalista que é, jamais pode opor ao portador da livrança os meios de defesa que competiriam à subscritora avalizada, que não o próprio pagamento.
A embargante já tinha conhecimento da taxa de juro aplicável, nomeadamente através das cláusulas constantes do Doc. 2 junto com o requerimento executivo (6.º parágrafo do contrato pedido de garantia bancária) e pelas cartas recebidas, não tendo nunca contactado o ora embargado para qualquer esclarecimento sobre a mesma e por isso é estranho que venha agora questioná-la.
A livrança foi preenchida para acautelar o crédito da ora embargada e em obediência aos critérios contratualmente estipulados entre as partes, razão pela qual configura um título executivo plenamente válido, nos termos do disposto no artigo 703.º do C.P.C.
Concluiu pela total improcedência da oposição.
*
Dispensada a audiência prévia, fixou-se em € 129.173,42 o valor da causa e proferiu-se despacho saneador, no qual se julgou improcedente a invocada ineptidão do requerimento executivo por alegada falta de causa de pedir, foi identificado o objecto do processo e foram enunciados os temas de prova, admitidos os requerimentos probatórios e programados os actos da audiência.
Realizou-se a audiência final, em duas sessões, após o que, com data de 28.11.2019, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Assim, em face de todo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a oposição à execução por embargos de executado deduzida pela executada B…, determinando-se, em consequência, o prosseguimento da ação executiva intentada pela exequente C…, SA, mas apenas para pagamento da quantia de € 79.936,92, acrescida dos juros à taxa de 30% desde 08/09/2017 até 29/09/2017, sendo a partir desta última data contados à taxa legal de 4% sobre a referida quantia, até integral pagamento».
Inconformada, almejando a total procedência dos embargos, a embargante interpôs recurso de apelação, com os fundamentos explanados na respectiva alegação, que condensou nas seguintes conclusões:
………………………………
………………………………
………………………………

A embargada/recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como apelação (com subida imediata, nos próprios autos de embargos e com efeito devolutivo).
Dispensados os vistos, cumpre apreciar e decidir.

Objecto do recurso
São as conclusões que o recorrente extrai da sua alegação, onde sintetiza os fundamentos do pedido, que recortam o thema decidendum (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil) e, portanto, definem o âmbito objectivo do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso. Isto, naturalmente, sem prejuízo da apreciação de outras questões de conhecimento oficioso (uma vez cumprido o disposto no artigo 3.º, n.º 3 do mesmo compêndio normativo).
Como decorre do antecedente relatório, o título que serve de base à execução de que estes autos de embargos são apenso é uma livrança na qual interveio a embargante/recorrente dando o seu aval à subscritora ou emitente e, como evidenciam as conclusões que ficaram reproduzidas supra, a recorrente defende que a obrigação exequenda é inexigível (logo, falta um título válido e eficaz) porque a exequente/embargada não cumpriu o contrato de garantia bancária que está na base da emissão da livrança.
A questão a apreciar e decidir traduz-se, então, em saber que meios de defesa poderá a embargante, enquanto avalista da livrança, opor à exequente, concretamente, se pode invocar a relação jurídica negocial que subjaz à emissão da livrança – o contrato de garantia bancária – para sustentar a inexigibilidade da obrigação exequenda e, consequentemente, a falta de título executivo válido.

IIFundamentação
1. Fundamentos de facto
Delimitado o thema decidendum, atentemos nos factos considerados provados:
1 - O exequente C…, SA, intentou a ação executiva de que estes autos são apenso contra os executados I…, E… e B…, dando à execução a livrança apresentada com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;
2 - A referida livrança foi subscrita, em branco, pela sociedade D…, Unipessoal, Lda, e avalizada pelos executados B…, E… e I…, para garantia do cumprimento das obrigações decorrentes da celebração do contrato de pedido de garantia bancária, datado de 02/10/2006, no valor de € 79.936,92, constante do documento apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido;
3 - No referido pedido de garantia bancária foi indicada como beneficiária F…, SA, destinando-se a mesma “a garantir um ano de Remuneração Mínima e Despesas Comuns ao abrigo do Contrato de Utilização à primeira solicitação”, designadamente “o bom pagamento Rendas/Alugueres” da loja nº .. do Centro Comercial G…, sito na Rua …, nº .., ….-… Porto;
4 - Do clausulado do referido pedido de garantia bancária consta ainda, para além do mais, que “Fica bem entendido que esse Banco, no caso de vir a ser chamado a efectuar qualquer pagamento em virtude da garantia que agora solicitamos, não poderá apreciar da justiça ou direito de reclamação do beneficiário, limitando-se a efectuar tal pagamento por nossa conta e sob nossa inteira responsabilidade (…) Todas as quantias desembolsadas pelo Banco ao abrigo do presente contrato serão por nós devidas na data em que o Banco realize tais pagamentos, vencendo juros moratórios desde essa data à taxa mais elevada praticada pelo Banco para as operações activas, podendo o Banco proceder à capitalização de juros, sem prejuízo de execução imediata da dívida assumida por este”;
5 - Da garantia bancária nº ……, emitida pelo exequente (então com a designação de K…, SA) a favor de F…, SA, por conta e a pedido de D…, Unipessoal, Lda, “como utilizador no contrato de utilização de loja em Centro Comercial por um período determinado relativo à loja nº .., do Centro Comercial denominado “G…”, foi feito constar, para além do mais, que “Este Banco pagará, no prazo de 3 (três) dias úteis após a recepção do primeiro pedido, as importâncias que lhe venham a ser solicitadas, por escrito, pela beneficiária desta garantia, não tendo de cuidar da justeza ou conformidade com o disposto no citado Contrato de utilização, e sem necessidade de qualquer procedimento judicial, administrativo ou de qualquer outra ordem, podendo a beneficiária indicar ao Banco, até à interpelação para pagamento, terceiro que se lhe substitua como beneficiário da presente garantia”;
6 - A referida garantia bancária foi elaborada com base em minuta fornecida pela entidade beneficiária da mesma;
7 - A executada B… assinou o referido pedido de garantia bancária e a livrança dada à execução com perfeito conhecimento das obrigações que a título pessoal estava a assumir;
8 - Nessa altura a referida executada tinha a sua conta bancária no balcão de … do C…, SA, bem como a O…, Lda, sendo a gestora de conta comum;
9 - Em 23/12/2015, a coberto da referida garantia bancária, o exequente pagou à sociedade H…, SA, na qualidade de gestora do “Centro Comercial G…”, a quantia de € 79.936,92, da qual foi dada a quitação constante do recibo apresentado com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, declarando ainda a referida sociedade que “como mais nada tenhamos a receber do referido Banco por força da dita garantia que devolvemos, por este meio damos completa e inteira quitação”;
10 - Em 08/09/2017, o exequente remeteu à executada a carta apresentada com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, comunicando-lhe o preenchimento da livrança pelo valor de € 128.979,62 e interpelando-a para proceder ao respetivo pagamento até ao dia 29/09/2017, data do vencimento da livrança;
11 - Em 06/10/2017, o exequente através do seu mandatário judicial remeteu à executada a carta apresentada com o requerimento executivo, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, interpelando-a para proceder ao pagamento da quantia de € 128.979,62, no prazo máximo de dois dias, sob pena de instauração imediata da competente ação judicial;
12 - Em 15/10/2017, procedeu-se à diligência de abertura de propostas no âmbito do processo de insolvência da sociedade O…, Lda, o qual corre os seus termos sob o nº 3976/16.2T8VNG, pelo Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia, Juiz 1, destinada a venda do estabelecimento comercial de farmácia denominado L… (anterior G…) com todos os elementos que o integram e o alvará, tendo-se a mesma frustrado por as propostas apresentadas não cumprirem o requisito do valor mínimo, pelo que não foram aceites;
13 – E… e B…, identificados como primeiro outorgante e segundo outorgante, respetivamente, subscreveram o documento datado de 07/04/2006, intitulado “acordo de contrapartidas”, cujo contudo aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual foi consignado, para além do mais, que “Sempre que seja solicitado ao Segundo Outorgante a prestação de garantias, pessoais ou reais, por qualquer entidade terceira, bancária ou outra, o Primeiro Outorgante compromete-se a prestar aval ou outra garantia idónea equivalente, de natureza solidária”;
14 - A O…, Lda [inicialmente designada D…, Unipessoal, Lda] foi registada na Conservatória do Registo Comercial do Porto em 24/11/2005 com o capital social de € 5.000,00 constituído por uma única quota pertencente a M…, a quem foi atribuída a respetiva gerência;
15 – Em 07/04/2006, a mencionada M… renunciou ao cargo de gerente da referida sociedade, tendo o respetivo ato sido registado em 17/05/2006, data em que foi igualmente registada a transmissão da aludida quota no valor de € 5.000,00 a favor de B…, assumindo esta igualmente o cargo de gerente (cfr. certidão apresentada com o articulado de oposição, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido);
16 - Apesar de formalmente titular da quota social no valor de € 5.000,00 e da atribuição do cargo de gerente da sociedade O…, Lda, a executada B… nunca foi proprietária da aludida quota nem exerceu de facto as funções de gerente, limitando-se a assinar o que lhe era solicitado por E…, sendo este quem, de facto, era titular da referida quota e desempenhava as aludidas funções;
17 - A referida discrepância justificava-se pelo facto de o mencionado J… e a esposa I… serem proprietários de outras farmácias e, nessa altura, a legislação vigente não permitir que uma pessoa fosse titular de mais de uma farmácia;
18 – E… subscreveu a declaração datada de 17/12/2010, apresentada com o articulado de oposição, cujo conteúdo aqui se dá por integralmente reproduzido, através do qual declarou que B… nunca exerceu de facto a gerência da sociedade D…, Unipessoal, Lda, tendo apenas emprestado o seu nome, declarando ainda assumir todas as responsabilidades decorrentes dos contratos assinados pela mesma no que aos negócios da sociedade disserem respeito, assumindo igualmente todas as responsabilidades decorrentes da gerência e titularidade assumidas por parte da mesma em nome da sociedade perante qualquer instituição financeira;
19 - Na decorrência da assinatura desta última declaração, E… solicitou ao exequente C…, SA, a desoneração da executada B… em relação às obrigações assumidas no âmbito de outros contratos bancários, o que foi aceite, não o tendo feito em relação ao contrato de pedido de garantia bancária, datado de 02/10/2006, no valor de € 79.936,92;
20 - Ao aperceber-se desta última omissão, o referido E… solicitou ao exequente que o pedido de desoneração da executada B… fosse extensivo também às obrigações decorrentes deste último contrato, o que foi recusado;
21 - Por ato registado na Conservatória do Registo Comercial do Porto em 23/12/2010, após a divisão da quota social de € 5.000,00 em duas quotas no valor unitário de € 2.500,00, a executada B… cedeu uma das quotas a E… e, a outra, a I…, tendo ainda renunciado à gerência da sociedade O…, Lda, tendo estas funções passado a ser exercidas pelo sócio E…;
22 - Durante todo o tempo em que foi formalmente titular da referida quota e gerente da O…, Lda, a executada B… foi apenas funcionária desta sociedade exercendo as funções de diretora técnica, cumprindo horário de trabalho e auferindo somente o vencimento correspondente à sua categoria profissional, sendo a gestão da mencionada sociedade efetuada exclusivamente por E…, o que era do conhecimento dos funcionários do balcão de … do banco exequente;
23 - Após ter recebido a carta que lhe foi enviada pelo mandatário do exequente, datada de 06/10/2016, a executada B… foi falar com a gestora de conta, N…, a qual lhe disse que, quanto a este contrato, não tinha sido apresentado qualquer pedido de desoneração da mesma por parte de J…;
24 - Até agora, o exequente nada recebeu por conta do crédito reclamado no âmbito do processo de insolvência da O…, L.da, não havendo perspetiva de recebimento de qualquer quantia.

2. Fundamentos de direito
Não tendo a execução por base uma sentença ou requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, o executado pode deduzir oposição com os fundamentos especificados no artigo 729.º do Cód. Proc. Civil (naturalmente, na parte aplicável) e, ainda, quaisquer outros que lhe era lícito deduzir como defesa em processo de declaração (artigo 731.º do mesmo diploma legal).
O primeiro aspecto a realçar é o seguinte: a recorrente não impugnou a decisão sobre matéria de facto e, não se descortinando motivo para uma intervenção oficiosa deste Tribunal ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 2, do CPC, haverá que ter por definitivamente assentes os factos atrás enunciados e, com base neles, perscrutar as soluções jurídicas mais adequadas e, em particular, se aquelas por que se bate a recorrente devem prevalecer sobre as que estão plasmadas na sentença recorrida.
Importa, também, que fique claro[1] que, se um instrumento de garantia bancária emitido por um banco, em abstracto, pode ser considerado título executivo[2], no caso concreto não vale como tal porque a obrigação que reconhece é de pagamento de uma quantia em dinheiro ao respectivo beneficiário, sendo o banco o obrigado ou devedor.
A execução baseia-se numa livrança, que foi emitida (subscrita), em branco, por D…, Unipessoal, L.da, à qual deram o seu aval, entre outros, a aqui embargante B… que, como se constata pela simples inspecção do título, no seu verso, apôs, pelo seu próprio punho, a sua assinatura imediatamente a seguir aos dizeres “dou o meu aval à subscritora”.
Frequentemente, aos contraentes não convém, por razões várias (mas quase sempre relacionadas com o desenvolvimento da relação subjacente), estabelecer, de imediato, uma obrigação cambiária, limitando-se a criar as condições para a emissão futura de uma letra de câmbio ou de uma livrança.
Exigências mínimas para que tal aconteça são, por um lado, que o instrumento (letra ou livrança) contenha, desde logo, a assinatura de, pelo menos, um dos obrigados cambiários e, por outro, que, com a sua entrega, o legítimo portador seja investido em poderes de preenchimento dos elementos em falta (normalmente, o montante e a data de vencimento). Para tanto, o adquirente imediato do título e o subscritor (geralmente, o aceitante na letra de câmbio e o emitente na livrança) definem as condições de preenchimento e obrigam-se a respeitá-las através de um pacto que, frequentemente, é reduzido a escrito, mas que pode, simplesmente, resultar das circunstâncias do negócio[3].
Da matéria de facto provado consta que a livrança foi subscrita, em branco, pela sociedade D…, Unipessoal, L.da e avalizada pelos executados B…, E… e I…, não havendo referência expressa a acordo de preenchimento. No entanto, também está assente que a livrança visava assegurar o reembolso ao banco embargado do que este pagasse (até ao montante de € 79.936,92) ao beneficiário da garantia bancária contratada com D…, Unipessoal, L.da em 02.10.2006, acrescido de juros moratórios à taxa mais elevada praticada pelo Banco nas suas operações activas.
Como é bom de ver, o preenchimento completo da livrança só estaria justificado se e quando fosse accionada a garantia bancária pelo respectivo beneficiário, o que veio a verificar-se no final do ano de 2015 (o pagamento da quantia de € 79.936,92 efectuado pelo banco a coberto da garantia bancária ocorre em 23.12.2015), embora só cerca de dois anos depois a exequente/embargada tenha preenchido completamente a livrança, pelo que é legítimo inferir que existiu, ainda que não formalizado, um pacto de preenchimento. Aliás, a recorrente refere a existência do pacto, ainda que para imputar à embargante/recorrida a sua violação porque esta não teria respeitado o estipulado do contrato de garantia bancária (conclusão XXVI).
A assinatura da embargante/recorrente surge na livrança na qualidade de representante (na altura, era sócia gerente) da subscritora D…, Unipessoal, L.da e, como se assinalou, também intervém, a título pessoal, avalizando a subscritora.
Já na subjacente, a intervenção da embargante/recorrente ocorre, apenas, enquanto legal representante da mandante (da garantia bancária) e, portanto, não se verifica a situação que J. H. Pinto Furtado (ob. cit., 155) afirma ser corrente: «…para conseguirem acrescentar à garantia de obrigação cambiária uma garantia da relação subjacente, usam os bancos fazer intervir os avalistas também na subjacente, criando assim, paralelamente ao aval, uma fiança sobre obrigação assumida na relação fundamental».
É, pois, enquanto avalista que importa determinar que obrigações contraiu a recorrente e que meios de defesa pode invocar contra a exequente (legítima portadora da livrança).
O regime jurídico da livrança é moldado pelas normas relativas às letras de câmbio, pois que, como decorre do artigo 77.º da L.U.L.L., são aplicáveis às livranças grande parte das disposições relativas às letras, designadamente as respeitantes ao aval.
A função do aval é a de garantir o cumprimento pontual da obrigação cambiária ou cartular do avalizado[4]. Mas se, para uns, é uma garantia pessoal que «apresenta os traços da fiança»[5], para outros, «o carácter autónomo do aval, de certo modo, descaracteriza-o como uma verdadeira garantia pessoal, pois o avalista passa a responder – solidariamente com o avalizado – como devedor de uma obrigação própria»[6].
Como ensinava o Professor Antunes Varela[7], durante muito tempo, houve na doutrina e na jurisprudência uma forte tendência para equiparar o regime do aval à fiança, mas, com a entrada em vigor da Lei Uniforme relativa às Letras e Livranças, essa posição conheceu uma alteração substancial por virtude do disposto no artigo 32.º deste diploma.
Nos termos deste preceito, «o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada», o que é dizer que o avalista fica na situação de devedor cambiário perante aqueles subscritores em face dos quais o avalizado é responsável, e na mesma medida em que ele o seja.
É pacífico o entendimento de que, ao contrário do que acontece na generalidade dos casos de fiança, a responsabilidade do avalista não é subsidiária da do avalizado. É, isso sim, uma responsabilidade solidária e o avalista não goza do benefício da excussão prévia[8].
Os avalistas são solidariamente responsáveis para com o portador e este a todos pode demandar, individual ou colectivamente (artigos 32.º e 47.º da L.U.L.L.).
Se a medida da responsabilidade do avalista é a do avalizado, então, sendo o aval prestado a favor do subscritor, como é o caso, o acordo de preenchimento do título concluído entre este e o portador impõe-se ao avalista.
Decorre do artigo 32.º da L.U.L.L. que o avalista pode opor ao portador do título a nulidade do acto do aval por vício de forma e está sedimentado na doutrina e na jurisprudência o entendimento de que pode, ainda, invocar o cumprimento da obrigação cambiária, ou seja, o pagamento do valor do título avalizado.
Fora destas duas situações, mantém-se a garantia do aval e não releva para os contornos da responsabilidade do avalista qualquer situação que ponha em causa ou altere a fisionomia da obrigação fundamental.
Como se discorreu no acórdão desta Relação de 08.09.2020 (www.dgsi.pt)[9],
«A relação fundamental e a relação cambiária mantêm-se autónomas, independentes, não se comunicando as vicissitudes da primeira à segunda. A dependência do aval relativamente à obrigação fundamental é meramente formal por a lei reportar o aval a uma obrigação formalmente existente.
Daqui resulta claramente que o aval, facilitando a circulação do título de crédito e potenciando a confiança, garante o pagamento do crédito cambiário, e não o crédito emergente da relação fundamental.
Por isso se afirma que o avalista não garante que o avalizado pagará a dívida emergente da relação fundamental; ele responde perante o credor cambiário pelo pagamento da obrigação cambiária incorporada no título emancipado da obrigação fundamental.
O aval convoca duas obrigações distintas, encabeçadas por sujeitos distintos: a obrigação emergente da relação fundamental e a obrigação cartular.
Como corolário do princípio da autonomia, a obrigação cartular mantém-se imune às vicissitudes da relação fundamental, podendo sempre o credor cambiário intentar acção contra o avalista e outros obrigados cambiários, nos termos ao artigo 47.º LULL, ex vi artigo 77.º.
Sendo alheio à relação fundamental que se estabeleceu entre o subscritor da livrança (…) e a embargada, e destacando-se o aval daquela relação, o avalista, em regra, não se pode prevalecer dos meios de defesa que assistem ao devedor».
Isso mesmo se extrai da seguinte passagem da fundamentação do AUJ n.º 4/2013, de 11.12.2012 (in www.dgsi.pt):
«Do que ficou dito supra, o avalista não se obriga perante o avalizado mas sim perante o titular da letra ou da livrança, constituindo uma obrigação autónoma e independente e respondendo, como obrigado cartular, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança. A circunstância de ocorrerem vicissitudes na relação subjacente não captam a virtualidade de se transmitirem à obrigação cambiária pelo que esta se mantém inalterada e plenamente eficaz, podendo o beneficiário do aval agir, mediante acção cambiária, perante o avalista para obter a satisfação da quantia titulada na letra. A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz ou faz seguir que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. A relação cambiária constituída permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Os efeitos da obrigação cartular assumida pelo avalista destacam-se da obrigação subjacente».
Em suma, a autonomia e a abstracção do acto cambiário que é o aval impede o avalista de opor ao portador do título as excepções derivadas da relação causal existente entre este e o devedor principal.
Além das duas situações, já mencionadas, que constituem excepções a esta regra, está firmado na jurisprudência o entendimento de que o avalista pode excepcionar o preenchimento abusivo do título se ele próprio interveio no pacto de preenchimento, cabendo-lhe, então, o ónus de alegação e prova, pois de uma excepção material se trata[10].
No acórdão de 09.03.2020, desta Relação e desta mesma Secção (Des. Manuel Fernandes)[11], foi-se mais longe e admitiu-se a invocação, como meio de defesa, de excepções fundadas em relação extra-cartular em que o avalista tenha participado e que interfira nas condições de preenchimento do título[12].
Vejamos, pois, se é essa a situação dos autos.
A recorrente sustenta que sim, que «O Banco garante estava vinculado a aferir da legitimidade de quem reclama o pagamento da garantia bancária, por força das regras emanadas pelo próprio contrato de garantia, o que, naturalmente, evidencia que, neste conspecto, o dito Banco, aqui Recorrido, não fez cumprir com as mesmas, ou pelo menos, disso não fez prova nos autos, ainda que esse ónus sobre si incidisse (artigo 342.º do C.C. (conclusão XXIV) e «se a livrança apresentada como título executivo foi subscrita, designadamente, pela Embargante/ Recorrente, enquanto forma de garantia de reembolso do valor necessário à satisfação da quantia paga por via da garantia prestada, ainda assim flui do exposto que a Embargada/Recorrida preencheu a livrança dada à execução com violação do clausulado entre as partes, e portanto, com violação do respectivo pacto preenchimento» (conclusão XXVI).
A relação cartular, em qualquer das suas modalidades, por regra, tem na sua base uma outra relação jurídica que vincula cada um dos sujeitos (a resultante de um contrato de compra e venda, de um mútuo, de um contrato-promessa, etc.). Na realidade, via de regra, quem subscreve uma livrança, aceita uma letra de câmbio ou emite um cheque e assume a respectiva obrigação, fá-lo porque já se vinculou por efeito de uma relação jurídica anterior: a obrigação causal, subjacente ou extra-cartular.
No caso sub juditio, o que subjaz à emissão da livrança dada à execução é, como referido, uma relação jurídica resultante de um contrato de garantia bancária.
Interessa-nos aqui a garantia em sentido estrito[13] ou garantia autónoma, também designada por garantia bancária por ser, vulgarmente, conferida por entidades bancárias, embora, por vezes, assumam esse papel entidades seguradoras.
Estamos perante um negócio jurídico atípico «produto da liberdade contratual»[14] que o Professor Menezes Cordeiro[15] define como sendo, “no essencial”, um contrato celebrado entre o interessado (o mandante) e o garante, a favor de um terceiro (o garantido ou beneficiário), embora, por vezes, seja configurado como um contrato celebrado entre o garante e o beneficiário, apesar de ser do mandante que o garante recebe a comissão.
Na definição do Professor Galvão Telles («Garantia bancária autónoma», in O Direito, ano 120.º, III-IV, 1988 (jul/dez.), página 283), «A garantia autónoma é a garantia pela qual o Banco que a presta se obriga a pagar ao beneficiário certa quantia em dinheiro, no caso de alegada inexecução ou má execução de determinado contrato (o contrato-base), sem poder invocar em seu benefício quaisquer meios de defesa relacionados com esse contrato».
Podemos, então, identificar três relações jurídicas distintas:
1) a que existe entre os sujeitos da obrigação garantida, tendo por fonte um contrato (o chamado contrato-base), a que o garante é alheio;
2) a que emerge de um contrato celebrado entre o devedor da relação principal e um garante, por força do qual este se obriga, mediante retribuição, a prestar uma garantia ao credor daquela relação, salvaguardando o seu direito a ser reembolsado imediatamente pelo devedor;
3) a que se estabelece com a celebração do contrato autónomo de garantia propriamente dito, tendo por sujeitos o beneficiário (sujeito ativo) e o garante (sujeito passivo).
Volvendo ao caso concreto, temos que a “D…, Unipessoal, L.da” tinha instalado o seu estabelecimento na loja n.º .. do “Centro Comercial G…” ao abrigo de um contrato, denominado “contrato de utilização”, celebrado com a entidade gestora do centro comercial (então, a “F…, S.A.”), estando obrigada a pagar, como contrapartida dessa utilização, a renda e despesas comuns.
Esse era o contrato-base e, provavelmente, satisfazendo uma exigência da entidade gestora daquele centro comercial, a “D…, Unipessoal, L.da” solicitou ao então “K…, S.A.” uma garantia que assegurasse o bom pagamento das rendas e despesas devidas pela utilização da referida loja durante o período de um ano.
O K… anuiu a tal solicitação, aceitando prestar essa garantia mediante remuneração, ou seja, assumindo a posição de garante, com direito a reembolso do que viesse a pagar ao beneficiário e juros moratórios à taxa mais elevada praticada para as operações activas.
Cumprindo o convencionado, o K… emitiu a garantia bancária n.º …… (junta com o requerimento executivo como documento n.º 2), a favor de “F…, S.A.”.
O texto da garantia é fundamental para determinar o seu alcance e por isso importa reproduzi-lo aqui, na íntegra:

«K…

F…, SA,
… – SANTA MARIA DA FEIRA

GARANTIA BANCÁRIA N.º ……

O K…, SA, (…), vem prestar a F…, SA, por conta e a pedido de “D…, UNIPESSOAL, L.DA”, (…), como utilizador no contrato de utilização de loja em Centro Comercial por um período determinado relativo à loja nº .., do Centro Comercial denominado “G…”, uma garantia bancária até ao valor de EUR. 79.936,92 (setenta e nove mil, novecentos e trinta e seis euros e noventa e dois cêntimos), correspondente a um ano de Remunerações Mínimas e Despesas Comuns, responsabilizando-se dentro da citada importância, por fazer a entrega de quaisquer quantias que se tornem necessárias ao abrigo do citado Contrato de Utilização.
O Banco reconhece expressamente que a obrigação assumida por via desta garantia é rigorosamente distinta e independente das obrigações que garante e nada poderá opor à beneficiária desta garantia, logo que desta receba interpelação para pagamento.
Este Banco pagará, no prazo de 3 (três) dias úteis após a recepção do primeiro pedido, as importâncias que lhe venham a ser solicitadas, por escrito, pela beneficiária desta garantia, não tendo de cuidar da justeza ou conformidade com o disposto no citado Contrato de Utilização, e sem necessidade de qualquer procedimento judicial, administrativo ou de qualquer outra ordem, podendo a beneficiária indicar ao Banco, até à interpelação para pagamento, terceiro que se lhe substitua como beneficiário da presente garantia.
O valor desta garantia é, pois, de Eur. 79.936,92 (Setenta e nove mil, novecentos e trinta e seis euros e noventa e dois cêntimos), podendo ser actualizado anualmente por mera comunicação escrita da beneficiária desta garantia, e só será cancelada quando a beneficiária nos comunicar por escrito que cessam todas as obrigações do utilizador, decorrentes do contrato de Utilização de Loja em Centro Comercial acima referido.
Lisboa, 25 de Outubro de 2006»

Tal como decorre, expressamente, do texto da garantia, o pagamento da quantia a que o garante se obrigou operaria logo que o beneficiário a pedisse e é isso que caracteriza a garantia autónoma à primeira solicitação (on first demand).
Um dos traços essenciais da garantia autónoma é o de que o garante responsabiliza-se perante o credor (no contrato-base), não pelo cumprimento da obrigação do devedor (garantido), mas sim pelo cumprimento de uma obrigação própria (emergente da garantia prestada).
Como explica o Professor A. Menezes Cordeiro (ob. cit., 610), «A função da garantia autónoma não é, pois, a de assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro. Por isso, perante uma garantia autónoma à primeira solicitação, de nada servirá vir esgrimir com argumentos retirados do contrato principal: a garantia tem fins próprios, auto-suficientes, servindo, nas palavras de GALÃO TELLES, como um simples sucedâneo dum depósito em dinheiro».
A doutrina e a jurisprudência reconhecem a possibilidade de o garante recusar o pagamento, mas apenas quando a solicitação do beneficiário se traduza numa fraude ou num abuso de direito, desde que manifestos.
São esses os únicos limites à autonomia da garantia bancária face à obrigação principal do devedor.
A recorrente não teve intervenção, a título pessoal, no pacto de preenchimento da livrança e o contrato de garantia bancária é, em relação a si, res inter alios acta. Daí a inoponibilidade das vicissitudes próprias dessa relação extra-cartular ou subjacente ao credor cambiário.
Ainda assim, a recorrente vem invocar a garantia autónoma para se opor à execução, alegando que o garante estava obrigado «a aferir da legitimidade de quem reclama o pagamento da garantia bancária» e, não o tendo feito, não cumpriu as regras dela emanadas, incorrendo em violação do pacto de preenchimento da livrança «enquanto forma de garantia de reembolso do valor necessário à satisfação da quantia paga».
É certo que foi à sociedade “H…, SA”, actual (pelo menos, à data do pagamento) gestora do “Centro Comercial G…”, e não à sociedade que no texto da garantia bancária figura como beneficiária, que o Banco garante pagou a quantia de € 79.936,92, da qual foi dada quitação, declarando, ainda, a referida sociedade nada mais ter a receber do referido Banco por força da dita garantia, que devolveu. Mas, ao contrário do que defende a recorrente, não vemos qualquer violação das regras da garantia nessa actuação do garante.
Em primeiro lugar, porque, como expendem Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte (ob. cit., pág. 137), “o credor beneficiário da garantia pode livremente ceder o crédito garantido a terceiro e, conjuntamente, transmitir ao cessionário a garantia».
Por outro lado, o próprio texto da garantia (que é o que para aqui importa) prevê, expressamente, a possibilidade de a beneficiária indicar ao Banco garante, até à interpelação para pagamento, terceiro que se lhe substitua como beneficiário da garantia.
Não está provado que a beneficiária tenha efectuado essa indicação nos termos previstos no texto da garantia. Mas daí não se pode extrair o facto contrário, ou seja, que a beneficiária não indicou ao garante que passaria a ser “H…, SA” a beneficiária da garantia. Aliás, da circunstância de ter sido dada quitação e de se ter devolvido a garantia com a declaração de nada mais ter a receber do Banco garante é legítimo inferir que foi cumprida aquela estipulação.
Diversamente do que defende a recorrente, tendo o exequente a seu favor a literalidade, autonomia e abstracção do título cambiário uma vez este preenchido, não tem que alegar e provar que efectuou o preenchimento com respeito absoluto pela autorização dada.
É uniforme o entendimento, na doutrina como na jurisprudência, de que, nos casos em que os avalistas podem opor ao portador da livrança avalizada em branco o desrespeito pelo acordo de preenchimento (quando foram intervenientes no pacto), é ao obrigado cambiário demandado que cabe fazer a demonstração de que o título emitido em branco foi depois preenchido em desconformidade com a vontade dos intervenientes no pacto, competindo-lhe alegar e provar, oportunamente, os factos integradores dessa excepção peremptória ou de direito material.
Basta que não se demonstre que o pacto de preenchimento foi incumprido (como é o caso) para que a oposição, com esse fundamento, necessariamente, improceda.

III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os juízes desta 5.ª Secção Judicial (3.ª Secção Cível) do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por B… e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo da recorrente (artigo 527.º, n.os 1 e 2, do Cód. Processo Civil).

(Processado e revisto pelo primeiro signatário).

Porto, 23 de novembro de 2020
Joaquim Moura
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
________________
[1] Clarificação que se justifica pelo teor da conclusão II das alegações da recorrente.
[2] Cabendo na previsão da alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC
[3] Segundo J.H. Pinto Furtado, Títulos de Crédito, Almedina, 2000, pág. 146, «A letra em branco deve ser preenchida de harmonia com os termos convencionados pelas partes (acordo expresso) ou com as cláusulas do negócio determinante da sua emissão (acordo tácito)».
[4] O artigo 30.º da L.U.L.L. define o aval como o acto pelo qual alguém garante o pagamento da letra (ou livrança, ex vi artigo 77.º do mesmo diploma) por parte de um dos seus subscritores.
[5] J.H. Pinto Furtado, ob. cit., 154.
[6] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, Almedina, 4.ª edição, pág. 114.
[7] “Das Obrigações em Geral”, vol.II, 4.ª edição, pág. 468.
[8] Cfr., por todos, Ferrer Correia, “Lições de Direito Comercial”, Vol.III, Letra de Câmbio, 1975, pág. 214.
[9] Relatado pela Sra. Desembargadora Dra. Márcia Portela.
[10] Assim, o acórdão do STJ de 19.06.2019, de que destacamos a seguinte passagem: “conforme é hoje posição pacífica da jurisprudência, encontrando-se o título nas relações imediatas (sem entrar em circulação) e tendo o mesmo avalista outorgado no pacto de preenchimento (configurando-se, assim, uma relação tripartida, entre o portador, o subscritor/aceitante e o avalista), como ora sucede, ao avalista é reconhecida legitimidade para efeitos de arguição da excepção de preenchimento abusivo, ainda que lhe caiba, naturalmente, em conformidade com a regra geral prevista nos artigos 342º, n.º 2 e 378º, do Cód. Civil, a alegação e prova dos factos concretos que fundamentam esta excepção material contra o portador do título)».
No mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do mesmo STJ de 11.02.2010 e de 13.04.2011 e o acórdão da Relação de Coimbra de 03.03.2020, todos disponíveis em www.dgsi.pt
[11] Disponível em www.dgsi.pt
[12] As duas primeiras proposições do sumário com que o acórdão foi publicado são do seguinte teor:
I - Em princípio, o avalista da subscritora de uma livrança posiciona-se fora das relações imediatas que se estabelecem entre o emitente desta e a subscritora, encontrando-se apenas numa relação de imediação com a subscritora avalizada.
II - Mas já estará naquelas relações imediatas, podendo defender-se com os vícios da relação fundamental perante o credor-emitente-portador da livrança, se, tendo assinado o título em branco, for envolvido por esse emitente no pacto de preenchimento, ou com ele participar numa relação extra-cartular que interfira nas condições para esse preenchimento.
[13] Por contraposição a garantias bancárias em sentido amplo que abrange a fiança e o penhor bancários, as cartas de conforto e outras garantias prestadas por entidades bancárias.
[14] Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, ob. cit., pág. 118.
[15] Manual de Direito Bancário, Almedina, 1998, pág. 608.