Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
205/13.4TVPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JUDITE PIRES
Descritores: APLICAÇÕES FINANCEIRAS
INSTITUIÇÃO DE CRÉDITO
VIOLAÇÃO DE DEVERES DO INTERMEDIÁRIO FINANCEIRO
ERRO NA FORMAÇÃO DA VONTADE
Nº do Documento: RP20150305205/13.4TVPRT.P1
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Deve ser desde logo, no despacho saneador, julgada improcedente a acção interposta por quem subscreveu aplicações financeiras com a intermediação de instituição de crédito – Banco demandado -, alegando a demandante factologia que se reconduz à invocação de violação de deveres por parte do demandado inerentes às suas funções de intermediário financeiro, designadamente, de informação, e, decorrente dessa violação, a existência de erro na formação da (sua) vontade, se não formula pedido ressarcitório contra o Réu, nem argui a anulabilidade do negócio, e antes se limita a pedir que o Banco intermediário seja condenado a desmobilizar todas as aplicações financeiras contratadas com a sua intervenção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 205/13.4TVPRT.P1
Comarca do Porto
Porto – Inst. Central – 1ª Secção Cível – J3

Relatora: Judite Pires
1ª Adjunta: Des. Aristides de Almeida
2º Adjunto: Des. José Amaral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I.RELATÓRIO
1. B…, residente na Rua …, …, Porto propôs acção comum com processo ordinário contra Banco C…, S.A., com sede na Rua …, nº …, ….-… Lisboa, pedindo que seja o Réu condenado a desmobilizar a totalidade das aplicações financeiras que a Autora possui naquele intermediário financeiro, sem perda de capital, juros vencidos e vincendos até à data da efectiva desmobilização.
Refere, para o efeito, que efectuou, sob sugestão e orientação do seu gestor de conta no então “Banco D…“, aplicações em produtos financeiros cujas características ignorava e que nunca lhe foram explicitadas ou explicadas, adiantando que sempre soube o aludido gestor (funcionário bancário do Banco Réu) que a Autora só aceitaria efectuar tais aplicações financeiras se não se tratasse de produtos com risco (de perda de capital) e, ainda, se se tratassem de produtos que poderiam ser «desmobilizados» em qualquer altura, mediante a sua vontade.
De acordo com a sua vontade, conhecida do Banco, alega a Autora que os produtos seriam sempre de capital garantido e sem carácter vitalício, na medida em que poderia a mesma promover a sua desmobilização a qualquer momento e de acordo apenas com as suas instruções, sendo que foi com tais características (capital garantido e livre desmobilização) que aceitou a subscrição dos ditos produtos financeiros e auferiu, inicialmente, «juros atractivos».
Acrescenta a Autora que, após ter ocorrido uma diminuição substancial de tais juros, interpelou o Banco para averiguar da sua causa, tendo então ficado ciente que a dita redução dos juros se ficara a dever a «descidas das taxas de juro do mercado (BCE)», motivo pelo qual, desconhecendo essa situação (que nunca antes lhe tinha sido referida e/ou explicada), solicitou ao seu gestor de conta informações mais concretas e detalhadas sobre os produtos que tinham sido subscritos, vindo, então, a ser-lhe enviado o documento junto a fls. 27 dos autos (doc. 2 junto com a petição inicial), sem lhe ter sido dada qualquer explicação sobre os ditos produtos e as suas características.
Perante tal documento, e uma vez que considerou insuficientes as informações que lhe foram prestadas, a seu pedido, pelo seu gestor de conta, deu a Autora instruções ao mesmo para que procedesse à venda urgente e imediata daqueles produtos, para que o dinheiro em apreço passasse a ficar imediatamente disponível. Apesar desta solicitação, o Banco permaneceu numa postura de silêncio e de falta de informação concreta sobre a situação do seu dinheiro.
Posteriormente, já em Outubro de 2008, na sequência das suas insistências, veio o então o “D…” a prestar-lhe as informações constantes dos documentos de fls. 28 dos autos (doc. 3 junto com a petição inicial), sem qualquer outra explicação/informação adicional relativamente aos ditos produtos financeiros e suas características.
Por esse facto, insistiu ela junto do mesmo Banco e gestor pelo envio de notas explicativas de tais produtos, o que este veio a fazer através dos documentos de fls. 29, 30 e 31 dos autos (docs. n.ºs 4, 5 e 6 juntos com a petição inicial), ficando ela então ciente que o seu dinheiro tinha sido aplicado num produto em que ficaria o dinheiro cativo pelo prazo de 10 anos e que o reembolso do mesmo não dependeria apenas da sua livre vontade (obrigações subordinadas D… 2005 e obrigações subordinadas E… 2004) e, ainda, em outro produto de natureza perpétua e com prazo de vencimento indeterminado (obrigações subordinadas perpétuas D… 2008).
Perante o exposto, ficando a Autora ciente de que o seu dinheiro tinha sido aplicado em produtos de “elevado risco“, “de natureza complexa“ e que não tinham liquidez, em 4.11.2008 interpelou, por escrito, o dito “D…” instruindo-o para proceder à venda urgente e imediata de toda a sua carteira de títulos e obrigações D…, conforme documento de fls. 32-33 dos autos (doc. 7 junto com a petição inicial), venda esta que o dito Banco não levou a cabo, antes se limitando a informá-la de que o estava a tentar fazer.
Diz a Autora que mesmo admitindo, a título de possibilidade, que possa ter assinado um qualquer prospecto de subscrição das aludidas obrigações, tê-lo-á feito sem lhe terem sido dadas pelo dito “D…” informações sobre as características e grau de risco do produto, sem lhe ter sido previamente disponibilizado qualquer documento informativo e explicativo da natureza de tais produtos e, em especial, dos riscos inerentes aos produtos em causa, sendo certo que, se conhecesse tais características, natureza e riscos associados, jamais os teria subscrito.
E ainda mesmo que a Autora tenha assinado os aludidos prospectos de subscrição dos produtos em causa, sustenta a mesma que nunca o dito “D…“ lhe enviou ou forneceu cópia dos mesmos quando para tal foi interpelado, não cumprindo, assim, os deveres de esclarecimento ao cliente do tipo de produto que estaria subscrito.
Por via de toda esta conduta do “D…“ nunca a Autora esteve em condições de, previamente, tomar consciência do tipo de produtos que lhe foram sugeridos pelo gestor de conta, nem dos riscos inerentes aos mesmos, o que a impediu de ter tomado uma decisão esclarecida e consciente dos riscos envolvidos com a subscrição em apreço, sendo certo que, tendo 74 anos, jamais efectuaria um qualquer investimento que envolvesse risco de capital ou um qualquer investimento «perpétuo».
Em função de todo o exposto, invocou a Autora a violação, por parte do aludido “D…” dos deveres de informação e esclarecimento perante ela própria, sua cliente, a violação do dever de adequação dos produtos subscritos ao perfil da cliente, ora Autora, a violação dos deveres de cuidado e protecção dos seus legítimos interesses, enquanto investidora não qualificada, postergando, ainda, os ditames da boa-fé, de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência, em oposição ao consignado nos arts. 304.º, 312.º, 312.º-A, 314.º, 314.º-A, 314.º-B e 317.º do Cód. dos Valores Mobiliários.
Por último, ainda, sustentou a Autora que o negócio celebrado com o aludido “D…” enferma de um vício na formação da vontade dela própria, uma vez que lhe não foram explicadas as condições de subscrição do negócio, o qual nunca teria sido concluído se tivesse conhecimento de todas as condições para a subscrição das aplicações financeiras em questão.
Citado, contestou o Réu, defendendo-se por excepção e por impugnação.
Por excepção, invocou (i) ineptidão da petição inicial, com fundamento na ininteligibilidade do pedido, além de contradição entre o pedido e a causa de pedir, (ii) ilegitimidade substantiva do Réu, alegando que, enquanto intermediário financeiro, não pode o mesmo ser chamado a efectuar o reembolso de obrigações, (iii) a impossibilidade/ilegalidade do pedido, não podendo o Réu, enquanto emitente, proceder ao reembolso específico das obrigações da Autora e não quanto às demais emitidas, sob pena de violação do princípio de igualdade de tratamento entre os credores obrigacionistas, (iv) extemporaneidade da acção, por ter a Autora, que, pelo menos em Outubro de 2008 tomou conhecimento dos factos que putativamente tivesse contratado com a sua vontade viciada, proposto a acção apenas em 14 de Março de 2013, muito para além do prazo de um ano de que dispunha para pedir a anulação do negócio, que, assim, resultou confirmado, (v) falta de alegação de pressupostos essenciais à procedência da acção, por não ter alegado qualquer dano concreto que haja sofrido, nem nexo de causalidade entre facto e dano, (vi) prescrição, por, tendo a subscrição das obrigações sido efectuada pela Autora, pelo menos, desde Outubro de 2008, e não tendo o Réu agido com dolo ou culpa grave, haver já decorrido o prazo de dois anos a se refere o artigo 342º do Código de Valores Mobiliários, (vii) ratificação do mandato e abuso de direito, por, alegando a Autora ter o Réu, através de um seu funcionário, agido no âmbito de uma representação sem poderes, ao emitir uma ordem de venda, a 04.11.2008, a mesma ratificou a representação putativamente abusiva, não podendo agora responsabilizar o Réu com base na responsabilidade civil, inexistindo ilícito contratual ou extracontratual para fundamentar a sua pretensão.
Por impugnação, o Réu nega a essencialidade dos factos articulados pela Autora, sustentando, nomeadamente, ter o mesmo, através dos seus funcionários, agido de acordo com a vontade da Autora e com as instruções por esta transmitidas, tendo sido à mesma prestados, por diversos funcionários do Réu, todas as informações que esta solicitava sobre investimentos que pretendia efectuar, ou que estes lhe fornecessem alternativas, sendo ela quem decidia os investimentos que efectuava, dando ordens em conformidade, e depois de um período de maturação sobre a informação que lhe era facultada.
Replicou a Autora, para defender a improcedência das excepções deduzidas pelo Réu, concluindo como na petição inicial e pedindo a condenação deste como litigante de má fé.
Convidado o Réu a responder à réplica da Autora, veio aquele a fazê-lo, para defender não ter litigado de má fé.
Após os articulados e apresentados pelas partes os respectivos requerimentos probatórios, foi designada audiência prévia no decurso da qual foi proferida decisão que, conhecendo da ineptidão da petição inicial suscitada pelo Réu, julgou a mesma improcedente, e, concluindo que “…ainda que a Autora viesse a demonstrar toda a factualidade por si alegada, jamais poderia, em termos substantivos, ser acolhida a sua aludida pretensão/pedido”, julgou a acção improcedente e absolveu o Réu do pedido contra si formulado pela Autora.
2. Não de conformou a Autora com a decisão proferida, que julgou improcedente a acção por si interposta, absolvendo do pedido o Réu, dela interpondo recurso para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“1. O despacho do meritíssimo Juiz “a quo” julgou a presente acção improcedente devido a uma “inconcludência” jurídica.
2. Que na opinião do Meritíssimo resulta do facto da Recorrente basear a sua causa de pedir da subscrição de determinados produtos financeiros, sem observância das disposições legais estipuladas no Código de Valores Mobiliários.
3. E como tal, a violação destes preceitos legais, apenas conferiria o direito à Recorrente a uma indemnização a ser prestada pelo intermediário financeiro, aqui Recorrido, nos termos do disposto no art. 304º-A daquele diploma legal.
4. Contudo, a aplicação do art. 304º-A apenas se prende com uma questão de responsabilidade civil do Intermediário Financeiro.
5. E não com a validade do negócio jurídico propriamente dito.
6. O facto da Recorrente pedir a desmobilização das obrigações financeiras, não é incompatível com o facto de a mesma situação puder ser pedida também uma indemnização com base na responsabilidade civil do intermediário financeiros, nos termos do art. 304º-A.
7. Ou seja as duas situações coexistem, não sendo alternativas.
8. As “realidades” previstas nos dois artigos, isto é no regime previsto no Cód. Civil e o regime previsto no CVM, são completamente distintas, uma vez que uma se refere ao negócio propriamente dito, neste caso – à subscrição do produto financeiro, no caso do art. 304º da CVM, diz respeito à responsabilidade civil do intermediário financeiro.
9. A seguir o raciocínio do Douto despacho recorrido, o negócio manter-se-ia sempre válido e “inatacável”, independentemente da responsabilidade do intermediário financeiro!
10. Sem prescindir, a Nulidade é do uma excepção quo é do conhecimento oficioso, e como tal, o Meritíssimo Juiz a quo, ou entendia que tinha factos para considerar o negocio valido ou nulo e nesse caso deveria conhecer da excepção no despacho recorrido, ou entendia que não tinha elementos suficientes e nesse caso deveria deixar prosseguir o processo para julgamento.
11. No entanto entendeu o meritíssimo juiz que a nulidade só é aplicável nos termos do disposto no art. 294º in fine do Cod. Civil, só será aplicada se outra solução não resultar da Lei.
12. E dado, que tal como já referido supra, o Meritíssimo entende que no caso concreto apenas seria de aplicar o regime estipulado no art. 304º-A do CVM, considera que não deveria ser aplicado o regime da nulidade.
13. Contudo, e por todos os argumentos já expostos, os dois regimes podem coexistir uma vez que se referem a realidades distintas, e assim sendo, deverá entender-se que a excepção da nulidade deveria ter sido conhecida pelo Juiz.
Nestes termos e, nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, dando provimento ao presente recurso e revogando o despacho recorrido, farão como sempre, inteira e sã Justiça!”.
O apelado apresentou contra-alegações nas quais pugna pela confirmação da decisão recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II.OBJECTO DO RECURSO
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se existem ou não fundamentos para se ter julgado no despacho saneador, improcedente a acção interposta pela apelante com fundamento em que, mesmo a demonstrar-se toda a factualidade por ela alegada, em termos substantivos a sua pretensão nunca poderia ser acolhida.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
São relevantes à apreciação do objecto do recurso as incidências processuais narradas no relatório introdutório.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Tendo a Autora proposto contra o Réu acção judicial formulando pretensão de que seja este condenado a desmobilizar a totalidade das aplicações financeiras que a mesma Autora possui naquele intermediário financeiro, sem perda de capital, juros vencidos e vincendos até à data da efectiva desmobilização, e tendo o Réu, em sede de contestação, invocado a ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade do pedido formulado ou, assim não se entendendo, por contradição entre o pedido e a causa de pedir, concluiu-se na decisão aqui escrutinada que não ocorria o vício convocado.
Entendeu, com efeito, a referida decisão ser perceptível o pedido formulado pela Autora, interpretando a “desmobilização” das aplicações financeiras por ela clamada com o sentido de ter a Autora como desígnio último “…ver ser-lhe restituído/reembolsado (por via de uma conduta do Banco Réu – a desmobilização/resgate/cessação das ditas aplicações financeiras) as quantias aplicadas nas mesmas, acrescidas dos juros vencidos e vincendos” e que “não existe uma situação de contradição lógica entre o pedido e a causa de pedir (e, portanto, não existe uma situação de ineptidão), mas existe antes uma verdadeira situação de inconcludência jurídica, na medida em que da causa de pedir invocada pela Autora, e ainda que ela se viesse a demonstrar integralmente a final, não seria possível, de um ponto de vista legal-substantivo, extrair a pretensão/pedido por si formulado contra o aqui Banco Réu”, juízo no qual assenta a decidida improcedência da acção, com a consequente absolvição do Réu do pedido contra si formulado pela Autora, que recursivamente se insurge contra tal entendimento.
Não nos deteremos na questão da ineptidão da petição, afastada do objecto deste recurso, mas somente na indagação se da factualidade exposta pela Autora naquele articulado podia ser extraído o efeito jurídico por ela visado ou se, ao invés, ainda que apurando-se positivamente todos os factos integradores da causa de pedir por ela convocada a improcedência da pretensão formulada seria o desfecho incontornável da acção.
Como suporte factual da pretensão que deduz na acção, sustenta a Autora ter realizado, por sugestão e por orientação do seu gestor de conta do então Banco D…, aplicações em produtos financeiros cujas características ignorava, das quais nunca foi informada. Acrescenta que aquele gestor de conta, funcionário do Banco Réu, sempre soube que a Autora só aceitaria efectuar aquelas aplicações financeiras se os produtos não comportassem risco de perda de capital e se os mesmos não possuíssem carácter vitalício, isto é, desde que pudesse ser promovida a sua “desmobilização” por vontade da Autora e mediante as suas instruções nesse sentido.
Alega, assim, a Autora que foi na convicção de que se tratavam de produtos com capital garantido e de livre “desmobilização” que aceitou subscrever as aplicações financeiras sugeridas pelo funcionário do Banco Réu.
Como destaca a decisão impugnada, na análise que efectua à factologia invocada pela Autora e que traduz a causa de pedir da acção que propõe contra o Réu, “os fundamentos fáctico-jurídicos que estribam, que fundamentam a sua pretensão (ou seja a causa de pedir) perante o Banco Réu reconduzem-se às duas seguintes hipóteses.
A primeira hipótese reporta-se à violação pelo Banco “D…” do conjunto de deveres que sobre ele impediam, enquanto intermediário financeiro (ou seja enquanto instituição de crédito que possibilita, através dos seus respectivos funcionários, em especial o gestor de conta, ao investidor não qualificado a negociação e aquisição de valores mobiliários no mercado), perante a aqui Autora, enquanto cliente e investidora em valores mobiliários (…).
A segunda hipótese reporta-se já aos vícios da vontade na formação do negócio jurídico de subscrição das aplicações financeiras em apreço, sustentando, neste âmbito, de forma singela e conclusiva, a Autora que não lhe foram devidamente explicadas as condições de subscrição do negócio, sendo certo que nunca ela o teria concluído se tivesse conhecimento de todas as condições de subscrição das ditas aplicações financeiras”.
Comece-se, então, pela análise da designada primeira hipótese:
O mercado de valores mobiliários é definido pela oferta (assegurada pelas entidades emitentes) e procura (por quem investe) desses valores.
Trata-se de um mercado em que os contactos não ocorrem directamente entre aqueles operadores económicos, mas antes através da intermediação de determinados agentes especialmente qualificados que, mediante contrapartida económica, prestam, por conta dos emitentes ou dos investidores, serviços que se traduzem em transacções específicas daquele mercado mobiliário.
De entre os agentes que desempenham essas funções de intermediação financeira destacam-se “as instituições de crédito e as empresas de investimento que estejam autorizadas a exercer actividades de intermediação financeira em Portugal”[1].
Compreendem-se nas actividades de intermediação financeira os serviços de investimento em valores mobiliários, em que o intermediário recebe, transmite e executa ordens dessa natureza por conta alheia[2].
Actuando por conta alheia, o intermediário financeiro age em nome e no interesse do seu cliente, repercutindo-se na esfera deste as consequências, quer positivas, quer negativas, das operações de investimento efectuadas por sua conta.
A justificar essa actividade do intermediário financeiro, e a montante da mesma, encontram-se os designados negócios de cobertura, que o Código de Valores Mobiliários trata como contratos de intermediação e cuja regulamentação se acha plasmada nos artigos 325º a 334º do aludido diploma.
O acórdão da Relação do Porto de 03.07.2008[3], citando Gonçalo André Castilho dos Santos - “A Responsabilidade Civil do Intermediário Financeiro Perante o Cliente”, Almedina, págs. 75 e seguintes – salienta: “o art. 304.º destaca cinco princípios que se impõem ao intermediário financeiro:
- da protecção dos legítimos interesses dos clientes;
- da eficiência do mercado;
- da observância dos ditames da boa fé (de acordo com elevados padrões de diligência, lealdade e transparência);
- da recolha de informação sobre a situação financeira, experiência e objectivos dos clientes;
- do segredo profissional – ibid., p. 76.
Os princípios mencionados podem assumir a função de assegurar a integração da lacuna de previsão ou de estatuição, ou ainda, caso se tenham como princípios materiais, em que se pressupõe a concretização do valor neles ínsito ulteriormente a operar pela regra, permitir já um grau genético de concretização, no sentido de uma regulamentação material definida – ibid., p. 77.
Portanto, apesar de se não tratar de deveres, excepção feita ao segredo profissional, que é cumulativamente um dever, na área dos valores mobiliários a sofisticada evolução dos mercados ultrapassa a actualização das fontes legais e mesmo regulamentares, pelo que, mesmo que não exista norma expressa a orientar o intermediário financeiro na resolução do conflito de interesses com o cliente, o princípio da protecção dos legítimos interesses deste (art. 304.º/1) não deixará de estabelecer um dever de conduta a adoptar – ibid., p. 79-80.
A referência ao princípio da boa fé tem como consequência que se apliquem ao direito dos valores mobiliários, ainda que com ajustamentos, os conceitos doutrinários e as decisões jurisprudenciais sobre esse tema – ibid., p. 81.
Quanto aos deveres propriamente ditos, a estrutura normativa dirige-se, mais do que a disciplinar o acesso á actividade de intermediário financeiro, a assegurar a sua correcta ordenação ao interesse preponderante e à tutela do cliente-investidor – ibid., p. 82.
Sobressai, por exemplo, o dever que impende sobre os intermediários financeiros de prestarem assistência aos seus clientes, o que decorre de os mercados se terem aberto ao grande público, sem conhecimentos específicos na área. Tendo-se passado de um princípio de neutralidade do intermediário financeiro para uma obrigação de colaboração com o cliente, nomeadamente alertando-o para riscos inerentes à operação a desenvolver, bem como recomendando-lhe determinadas estratégias de investimento (art.s 304.º/3 e 312.º/2 sobre o princípio da idoneidade, que impõe ao intermediário financeiro que adapte as informações, recomendações e advertências ao cliente à experiência, conhecimentos e perfil de risco deste) – ibid., p. 83-84.
Atenta a diversidade entre investidor e intermediário financeiro, este como profissional do mercado, não há fundamento para que se estabeleça uma igualdade formal civilística entre as partes, por sobressair a tendencial debilidade do cliente individual e a experiência profissionalizada do intermediário financeiro, com estrutura organizativa, humana e técnica e orientado por um escopo lucrativo – ibid.
Em termos de responsabilidade civil do intermediário financeiro, o art. 304.º-A dispõe que os deveres respeitantes ao exercício da actividade que venham a ser violados tanto podem provir da lei como de regulamentos.
Assim, entre os deveres a observar, estão:
- (…) o de prestar, relativamente aos serviços que ofereça, que lhe sejam solicitados ou que efectivamente preste, todas as informações necessárias para uma tomada de decisão esclarecida e fundamentada, de modo a que esteja assegurada a completude, verdade, actualidade, clareza, objectividade e licitude dessas informações (art.s 312.º/1, 312.º-A a 312.º a 312.º-G e 7.º/1) – ibid., p. 88 a 94.
O autor que vimos seguindo entende ser possível uma arrumação dos deveres identificados em torno da conduta que é requerida aos intermediários financeiros nas suas relações com o cliente, agrupando os demais deveres à volta da actividade do intermediário financeiro.
Naquele grupo cabem o princípio da boa fé, com os deveres acessórios de diligência, de lealdade e de transparência.
A conduta diligente, por força do art. 304.º/2, é integrada por um elevado padrão de diligência nas relações com todos os intervenientes no mercado, não sobressaindo apenas na vertente da pontualidade do cumprimento da obrigação, mas quanto à delimitação do conteúdo da mesma (art.s 330.º e 331.º) – ibid., p. 95 a 109”, entendimento de que também partilha, no essencial, a decisão recorrida.
No mercado de valores mobiliários a informação constitui elemento nuclear nas relações entre o intermediário financeiro e o investidor. E entende-se que assim seja face à complexidade do universo bolsista e às suas sucessivas mutações, o que pressupõe que o investidor não qualificado tenha de recolher informação para tomar uma posição esclarecida quanto às opções de investimento junto de quem esteja habilitado a facultar-lha.
Neste contexto, o principal obrigado a fornecer essa informação, em função da relação negocial para o efeito estabelecida com o cliente, é o intermediário financeiro, devendo a informação por ele prestada ser “completa, verdadeira, actual, clara, objectiva e lícita”[4].
Com as alterações ao Código de Valores Mobiliários introduzidas pelo Decreto-Lei nº 357-A/2007, de 31 de Outubro o dever de informação no âmbito da intermediação financeira foi reforçado, como resulta da redacção do artigo 312º do referido Código e aditamento ao mesmo dos artigos 312º-A a 312º-G, embora esse dever de informação já resultasse dos artigos 312º e 304º, nº3, na sua versão original, determinando este último normativo, na versão actualmente em vigor, que “na medida do necessário para o cumprimento dos seus deveres na prestação do serviço, o intermediário financeiro deve informar-se junto do cliente sobre os seus conhecimentos e experiência no que respeita ao tipo específico de instrumento financeiro ou serviço oferecido ou procurado, bem como, se aplicável, sobre a situação financeira e os objectivos de investimento do cliente”.
A lei[5] estabelece uma presunção de culpa quando ocorram danos por violação desse dever de informação.
A violação desse dever, se geradora de danos para o investidor, faz incorrer o intermediário financeiro na obrigação de indemnizar os mesmos, tal como decorre do artigo 304º-A do CVM: “os intermediários financeiros são obrigados a indemnizar os danos causados a qualquer pessoa em consequência da violação dos deveres respeitantes ao exercício da sua actividade que lhe sejam impostos por lei ou por regulamento emanado de autoridade pública”.
A responsabilidade dos intermediários financeiros pressupõe a verificação dos pressupostos gerais da responsabilidade civil, ou seja, o facto ilícito, a culpa, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano, sendo que a culpa se presume quando tenha ocorrido violação do dever de informação, como já se adiantou.
Tal como faz notar a decisão sob recurso, do quadro factual invocado pela Autora “emerge […] que aquando da realização das operações negociais firmadas entre as partes, o referido “D…“ não terá cumprido integral e cabalmente os aludidos deveres de protecção dos legítimos interesses do seu cliente, mormente os deveres de actuação de boa fé, de evitar ou reduzir conflitos de interesses, de dar prevalência ao interesse do cliente e bem assim, em particular, o dever de fornecer completa e cabal informação de todos os elementos necessários a uma ponderada, esclarecida e fundamentada decisão da Autora sobre os produtos financeiros em apreço, deveres esses que sobre ele impendiam enquanto intermediário financeiro, violando, dessa forma, os comandos normativos estabelecidos nos já citados arts. 304.º, n.ºs 1, 2 e 3, 305.º, n.º 1, 309.º, n.ºs 1 e 3, e 312.º, 312.º-A, 312.º-B, 312.º-C, 312.º-E, 314.º, n.º 1 e 317.º do aludido CMV”.
A configurar-se a alegada factualidade, e dela resultando danos para a Autora, seria a mesma passível de fazer incorrer o Réu, enquanto intermediário financeiro incumpridor daqueles deveres, em responsabilidade civil.
Resta saber se o efeito ou consequência jurídica decorrente dessa responsabilidade se adequa à pretensão formulada pela Autora.
Acompanhamos o entendimento sufragado na decisão impugnada quando refere que “no âmbito específico das regras jurídicas do CVM e no que tange à violação das suas regras, é a própria lei quem expressamente impõe sanção diversa da nulidade.
(…) em caso de inobservância dos referidos normativos do CVM por parte do intermediário financeiro, é a própria lei que estabelece como consequência jurídica do desrespeito dessas normas, na justa medida em que violam direitos subjectivos do investidor, não a nulidade da operação ou negócio jurídico, mas antes a responsabilidade civil do intermediário”.
Concluindo a mesma decisão que “ainda que se venha a ter por demonstrada a violação dos deveres de conduta que impendiam sobre o Banco enquanto intermediário financeiro e alegados pela Autora, a respectiva consequência ou efeito jurídico, no que concerne ao estrito domínio do relacionamento jurídico entre as partes, será apenas e só a responsabilidade civil do demandado pelos prejuízos causados, assim se afastando, claramente, a sanção de invalidade/nulidade que a Autora erroneamente sustenta.
Significa isto, portanto, que a consequência que a lei liga à violação das referidas regras jurídicas impostas ao intermediário financeiro não é, pois, a nulidade das ajuizadas operação negociais mas antes uma consequência de cariz ressarcitório tendo como fonte a responsabilidade civil (contratual) do Réu enquanto intermediário financeiro”.
Assim, mesmo a comprovar-se o circunstancialismo fáctico convocado pela Autora como passível de traduzir violação dos apontados deveres por parte do Réu, a consequência a extrair dessa actuação infractora seria unicamente de natureza ressarcitória.
Porém, como também destaca a mesma decisão, não só não é esse o efeito/consequência reclamada pela Autora – que se limita a formular pedido no sentido de “desmobilização” das aplicações financeiras cuja subscrição foi intermediada pelo Réu, em momento algum formulando pretensão indemnizatória -, como aquela omite a invocação de qualquer dano, patrimonial ou não, susceptível de reparação, decorrente da alegada violação dos deveres de informação por parte do demandado.
Com fundamento no mesmo alegado incumprimento pelo Réu do dever de informação que tinha para com a Autora, invoca esta a existência de vício de erro na formação da (sua) vontade, por não ter sido devidamente esclarecida sobre as características dos produtos financeiros que subscreveu, negócio que, alega, não teria concluído se tivesse sido esclarecida acerca dos mesmos, designadamente dos riscos que lhe estavam associados. Nesta invocação se concretiza a segunda hipótese delineada na decisão recorrida, em função da interpretação da factologia articulada pela Autora, nos termos já antes mencionados.
Ao erro sobre os motivos subjaz uma ideia inexacta sobre a existência, subsistência ou verificação de uma circunstância, presente ou actual, que era determinante para a declaração negocial, ideia inexacta essa sem a qual a declaração negocial não teria sido emitida nos termos em que o foi. Quer o simples erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quer o dolo, só geram anulabilidade do negócio quando forem essenciais para a formação da vontade da parte que o invoca.
Ao contrário da nulidade, a anulabilidade do negócio, consequência prevista para aquele vício na formação da vontade, não é de conhecimento oficioso, o que implica que tenha de ser arguida por quem dela pretenda aproveitar-se, devendo fazê-lo no prazo do ano subsequente à cessação do vício que lhe serve de fundamento, sob pena de este se considerar sanado[6].
Ora, no caso aqui em debate não arguiu a Autora qualquer anulabilidade do negócio celebrado, como expressamente refere a decisão impugnada: “…é a própria Autora quem, na sua réplica, exclui expressamente a arguição de um qualquer erro ou dolo na subscrição das aplicações financeiras em causa e excluiu a arguição da consequente anulabilidade – vide arts. 27.º a 29.º da réplica da Autora, a fls. 193 dos autos.
Desta forma, excluindo a Autora a arguição de qualquer anulabilidade por vício na formação do negócio em apreço e sendo certo que, como se sabe, a anulabilidade sempre carece de ser invocada pelo respectivo interessado e não pode ser conhecida «ex oficcio» – vide art.º 287.º, n.º 1 do Cód. Civil -, nenhum relevo assume, em sede de causa de pedir da presente acção, a alegação contida nos já citados arts. 93.º a 95.º da petição da inicial”.
E compreende-se, de alguma forma, que a Autora se tenha abstido de arguir a anulabilidade do negócio em causa face aos efeitos tipificados no artigo 289º, nº1 do Código Civil, pois tendo inicialmente auferido, como ela própria reconhece, “juros atractivos” com as aplicações que subscreveu, certamente seria para ela mais vantajoso limitar-se a pedir, como o fez, que fosse o Réu condenado a desmobilizar a totalidade das aplicações financeiras que a mesma possui naquele intermediário financeiro, sem perda de capital, juros vencidos e vincendos até à data da efectiva desmobilização.
Se pretendia a Autora pôr em causa a validade e subsistência do negócio financeiro celebrado com a intermediação do Banco Réu, com fundamento num alegado erro na formação da vontade, devia fazê-lo, no prazo peremptório de que dispunha para o efeito, atacando esse negócio através da arguição da sua anulabilidade e sujeitando-se aos efeitos dessa anulação. O que claramente não fez.
Assim, não encontrando sustento a tutela jurisdicional por ela reclamada na factualidade que invoca para a fundamentar, é com acerto que a decisão recorrida conclui que “ainda que a Autora viesse a demonstrar toda a factualidade por si alegada, jamais poderia, em termos substantivos, ser acolhida a sua aludida pretensão/pedido” e com esse fundamento determina, logo no despacho saneador, a improcedência da acção e a absolvição do Réu do pedido contra ele formulado.
Não merecendo, por conseguinte, qualquer censura a decisão recorrida, é de manter a mesma, com a consequente improcedência da apelação.
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Síntese conclusiva:
- Deve ser desde logo, no despacho saneador, julgada improcedente a acção interposta por quem subscreveu aplicações financeiras com a intermediação de instituição de crédito – Banco demandado -, alegando a demandante factologia que se reconduz à invocação de violação de deveres por parte do demandado inerentes às suas funções de intermediário financeiro, designadamente, de informação, e, decorrente dessa violação, a existência de erro na formação da (sua) vontade, se não formula pedido ressarcitório contra o Réu, nem argui a anulabilidade do negócio, e antes se limita a pedir que o Banco intermediário seja condenado a desmobilizar todas as aplicações financeiras contratadas com a sua intervenção.
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Nestes termos, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a sentença recorrida.

Custas: pela Autora/Recorrente.

Porto, 05 de Março de 2015
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
José Amaral
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[1] Artigo 293º, nº1, a) do Código dos Valores Mobiliários.
[2] Artigos 289º, nº1, a) e 290º, nº1, a) e b) do CVM.
[3] Processo nº 0832863, www.dgsi.pt.
[4] Artigo 7º, nº1 do CVM.
[5] Artigo 314º, nº2 do CVM, na sua redacção original e artigo 304-A, nº2, na sua versão actual.
[6] Artigos 286º, 287º e 288º do Código Civil.