Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1857/15.6T8VNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NELSON FERNANDES
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
VISÃO GLOBAL DOS FACTOS
Nº do Documento: RP201704241857/15.6T8VNG.P1
Data do Acordão: 04/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL) (LIVRO DE REGISTOS Nº 256, FLS 35-38)
Área Temática: .
Sumário: I - O núcleo diferenciador entre contrato de trabalho e de prestação de serviços assenta na existência ou não de trabalho subordinado, sendo de conferir, dentro dos indícios de subordinação, particular ênfase aos que respeitam ao chamado «momento organizatório» da subordinação.
II - Impendendo sobre o autor que pretende ver reconhecida a existência de um contrato de um contrato de trabalho, de acordo com o regime decorrente do n.º 1 do artigo 342.º do CC, o ónus de alegar e provar os factos necessários ao preenchimento dos elementos constitutivos do contrato, estabeleceu o legislador, com o objectivo de facilitar essa tarefa, uma presunção legal, vulgarmente denominada de laboralidade, prevista no artigo 12.º do CT/2003.
III - Não sendo a redacção dada ao artigo 12.º do CT/2003 pela Lei n.º 9/2006 eficaz para atingir o fim pretendido – uma vez que não consagra quaisquer elementos relevantes que permitam qualificar, anda que presumidamente, a existência de um contrato de trabalho –, sendo essa a aplicável, impõe-se então ao julgador, afinal nos mesmos termos em que o fazia durante a vigência da LCT, a verificação do conjunto de indícios que tenha disponíveis no caso sobre a existência ou inexistência de subordinação jurídica, ponderando-os globalmente, tentando encontrar o seu sentido dominante, assim uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação 1857/15.6T8VNG.P1
Tribunal: Comarca do Porto, Instância Central, 5ª Secção Trabalho, V. N. de Gaia
Autora: B…
: C…
_______
Relator: Nelson Fernandes
1º Adjunto: Des. M. Fernanda Soares
2º Adjunto: Des. Domingos José de Morais

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I - Relatório
1. B…, residente em Vila Nova de Gaia, intentou acção emergente de contrato de trabalho, com processo comum, contra C…, com sede em Vila Nova de Gaia, pedindo que seja declarado que:
a) A relação contratual mantida entre as partes desde Janeiro de 2008 até Março de 2014 consubstanciou um contrato de trabalho;
b) O despedimento operado pela Ré foi ilícito e sem justa causa;
Com a consequente condenação da Ré a:
c) Reintegrar a Autora, com integral respeito pela sua retribuição, funções e antiguidade; ou, em alternativa, pagar-lhe a indemnização prevista no artigo 391º do Código do Trabalho, se por ela vier a optar, fixada com referência a 45 dias de retribuição por cada ano completo ou fracção de antiguidade;
d) Pagar-lhe uma sanção pecuniária compulsória de 500,00€, por cada dia de atraso na reintegração efectiva da Autora;
e) Pagar-lhe a quantia de 1.076,87€, a título de retribuição vencida nos 30 dias que precederam a propositura da acção; bem como todas as que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão;
f) Pagar-lhe a quantia de 20.821,03€, a título de retribuição de férias, subsídio de férias e subsídio de natal, vencidas desde a data da admissão até ao seu despedimento;
g) Tudo acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Alegou, em síntese, ter sido admitida em Janeiro de 2008 ao serviço da Ré, para exercer as funções de fisioterapeuta, sendo que, não obstante esta sempre ter gerido tal relação como sendo de prestação de serviços, a verdade é que a mesma correspondeu a um típico contrato de trabalho subordinado. Mais, refere que em 10 de Março de 2014 a Ré fez unilateralmente cessar o contrato, o que consubstancia um despedimento ilícito, para além de que é ela Autora detentora de uma série de créditos salariais sobre a Ré, designadamente a título de retribuição de férias, subsídio de férias e subsídio de natal.

1.1. Citada a Ré, realizada que foi a audiência de partes na qual não foi obtido acordo, veio posteriormente aquela a contestar, impugnando parcialmente os factos alegados pela Autora e alegando, por sua vez, e em síntese, que o contrato que celebrou com a Autora não era de trabalho mas sim de prestação de serviços, não tendo por essa razão esta direito a qualquer das quantias peticionadas. Concluiu, pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.

1.2. Respondeu a Autora, concluindo como na sua petição inicial.

1.3. Por decisão proferida nos autos, o valor da acção foi fixado em €22.397,90.

1.4. Foi proferido despacho saneador, enumerando-se de seguida os factos assentes e os que integrariam a base instrutória.

1.5. Prosseguindo os autos os seus termos subsequentes, realizada a audiência de julgamento, precedido de despacho sobre a matéria de facto, veio a ser proferida sentença, de cujo dispositivo consta:
“Nestes termos e com tais fundamentos, julgo a presente acção improcedente, por não provada, em consequência do que absolvo a Ré do pedido.
Custas pela Autora.”

1.5.1. O despacho sobre a matéria de facto tem o teor seguinte:
“QUESITO 1º: Não provado.
QUESITO 2º: Provado apenas que a Autora fazia a avaliação das várias situações que lhe eram apresentadas pelos utentes da Ré; ministrava os tratamentos de fisioterapia e avaliava a evolução clínica desses mesmos utentes.
QUESITO 3º: Provado apenas o que consta das respostas dadas infra aos artigos 4º) a 8º) da Base Instrutória.
QUESITOS 4º e 5º: Provados.
QUESITOS 6º e 7º: Provado apenas que no interior das instalações da Ré existia um aparelho de multicorrente, pertencente àquela (bem como os respectivos consumíveis, designadamente eléctrodos, cabos, esponjas e líquidos), que a Autora podia utilizar se assim o entendesse.
QUESITOS 8º e 9º: Provados.
QUESITO 10º: Provado apenas o que consta das alíneas E) e O) dos Factos Assentes.
QUESITO 11º: Provado apenas que a maior parte dos utentes da Ré eram atendidos pelos serviços de recepção desta; efectuavam aí a marcação da consulta de fisioterapia para a data designada por tais serviços de acordo com a disponibilidade da Autora; após o que eram tratados por esta.
QUESITO 12º: Não provado.
QUESITO 13º: Provado apenas que o mencionado em 11º) resultava da própria organização interna das clínicas da Ré.
QUESITO 14º: Provado apenas que na sequência do mencionado em O), a Autora prestava todos os esclarecimentos que lhe eram solicitados.
QUESITO 15º: Provado apenas que no exercício das funções mencionadas em C), a Autora não podia aplicar terapêuticas e utilizar materiais não aprovados pela Ré.
QUESITOS 16º e 17º: Não provados.
QUESITO 18º: Provado apenas o que consta das respostas dadas infra aos artigos 36º) e 37º) da Base Instrutória.
QUESITO 19º: Provado apenas o que consta da resposta dada infra ao artigo 35º) da Base Instrutória.
QUESITO 20º: Provado apenas que a Autora se ausentava do serviço vários dias por ano, com o intuito de gozar férias; dias esses que previamente comunicava à Ré.
QUESITO 21º: Provado apenas o que consta da alínea T) dos Factos Assentes.
QUESITO 22º: Provado apenas que nos anos de 2009 a 2013 as quantias mencionadas em I) constituíram o único rendimento da Autora.
QUESITO 23º: Provado apenas o que consta da resposta dada infra ao artigo 40º da Base Instrutória.
QUESITO 24º: Provado.
QUESITO 25º: Provado apenas que a Autora apenas podia exercer as funções mencionadas em C) dentro dos horários de funcionamento das clínicas da Ré.
QUESITO 26º: Provado apenas o que consta da resposta dada ao artigo 27º) da Base Instrutória.
QUESITO 27º: Provado apenas que o horário de atendimento dos doentes foi sempre definido por acordo entre a Autora e a Ré, de acordo com a disponibilidade daquela.
QUESITO 28º: Provado.
QUESITO 29º: Provado apenas o que consta da resposta dada ao artigo 11º) da Base Instrutória.
QUESITO 30º: Não provado.
QUESITO 31º: Provado apenas que o mencionado em O) se destinava a permitir à Ré ter conhecimento de como estava a decorrer a valência de fisioterapia.
QUESITO 32º: Provado apenas que a Autora e a D… podiam acordar livremente entre ambas a organização dos horários de exercício de funções, de maneira a que, durante as ausências de uma a outra assumia o serviço daquela, recebendo o respectivo pagamento.
QUESITO 33º: Não provado.
QUESITO 34º: Provado apenas o que consta da resposta dada ao artigo 27º) da Base Instrutória.
QUESITOS 35º a 37º: Provados.
QUESITO 38º: Provado apenas o que consta da resposta dada ao artigo 20º) da Base Instrutória; e que nos dias aí mencionados a Autora não recebia qualquer retribuição.
QUESITOS 39º a 42º: Provados.
QUESITO 43º: Não provado.”

2. Inconformada com o decidido apelou a Autora, apresentando as suas alegações, que remata com as seguintes conclusões:
“1) Objecto do recurso: o Tribunal de recurso deverá reapreciar a prova gravada e efectuar uma nova análise da questão jurídica debatida nos presentes autos.
2) A indicação dos concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida será efectuada, nos termos legais (art. 640º/2, a do CPC) por referência ao registo da gravação da audiência de julgamento.
3) Concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados:
4) A matéria do quesito 21º deveria ter sido julgada provada [“As partes acordaram que a R. pagaria à Autora uma retribuição mensal mista, composta por uma parte certa e por outra parte variável, calculada da seguinte forma: o trabalho executado pela Autora, dentro do horário de trabalho, seria pago a 10,00€ a hora, num mínimo mensal garantido de valor igual ao salário mínimo nacional (desde que a autora não faltasse)]. Esta matéria deverá ser julgada provada com base no depoimento da testemunha E… prestado no dia 11.02.2016, constante da gravação do julgamento, no registo de 12.32 até 13.50, que a confirma totalmente.
5) Atento o teor do referido depoimento, o Sr. Juiz a quo, ao não ter dado como provado o conteúdo do quesito 21º cometeu um erro de julgamento.
6) O Facto “ss” deve ser completado, esclarecendo-se que o pagamento era efetuado à A. independentemente do trabalho que tivesse realizado durante as horas registadas. Esta matéria deverá ser julgada provada com base no depoimento da testemunha F…, prestado no dia 10.03.2016, constante da gravação do julgamento entre o registo 9.29 a 10.39, que a confirmou totalmente.
7) Em resultado da alteração que aqui se requer, o conteúdo do Facto “ss” deverá passar a ser o seguinte: “As partes acordaram que a Ré pagaria à Autora a quantia de 10€00, por cada hora de exercício de funções, mediante o respectivo registo e independentemente do trabalho realizado”.
8) O conteúdo do facto “nn” deve ser corrigido eliminando-se, na parte final, a expressão “enquanto profissional a trabalhar por conta própria”. Efetivamente, esta expressão contém um juízo, uma avaliação, uma qualificação jurídico-legal, que a A. não aceita, e que ultrapassa a matéria dos factos, situando-se no domínio das conclusões jurídicas.
9) O contexto factual em que sucedeu a matéria do facto “nn”, foi demonstrado durante a audiência de julgamento, através do depoimento das testemunhas E… e G…, e também permite a eliminação da referida expressão, conforme decorre da gravação dos depoimentos das testemunhas, mais concretamente:
- E…, depoimento prestado durante o dia 11.02.2016, no registo de 15.15 a 18.15.
- G…, depoimento prestado no dia 11.02.2016, no registo 20.36 a 22.00.
10) Atento o exposto, quer por se considerar que se está perante uma conclusão, quer por resultar do depoimento das testemunhas E… e G…, deverá ser eliminada a parte final do Facto “nn”, passando o mesmo a ter o seguinte conteúdo: “Porém, nesse mesmo dia a Autora recusou celebrar o contrato de trabalho com a Ré, por não concordar com o vencimento proposto, cujo valor seria substancialmente inferior (devido aos descontos e demais deduções legais) àquele que mensalmente efectivamente estava a auferir.”
11) Por uma questão de cautela, e atentas as dúvidas levantadas pelo Sr. Juiz, e não obstante a evidente impertinência de tais dúvidas, requer-se ao tribunal de recurso que esclareça a matéria dos factos “p, q, r” no sentido de que a A. estava obrigada a cumprir os horários que acordou com a R..
12) A obrigatoriedade do cumprimento dos horários, por parte da A., foi detalhadamente confirmada e explicada ao Tribunal pelas testemunhas E… e G…, ambas ex-directoras da R., conforme resulta dos respectivos depoimentos:
- E…, depoimento prestado durante o dia 11.02.2016, no registo de 9.38 a 11.55;
- G…, depoimento prestado no dia 11.02.2016, no registo 9.45 a 13.15, e 18.20 a 19.01
13) Na situação que é objecto dos presentes autos, e atento o conteúdo do Capitulo IV, ponto 3º, desta alegação, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido, estão concretamente verificados todos os requisitos legais previstos no art. 12º do C.T. 2003, pelo que a A. beneficia da presunção de que o seu contrato é um contrato de trabalho.
14) Cabia à R. ilidir essa presunção, mas não o fez.
15) Sendo o contrato da A. um contrato de trabalho, como é, a R. não podia ter despedido a A. da forma como a despediu. O despedimento da A. é ilícito por não ter sido precedido do respectivo procedimento (art. 381º/c do Código do Trabalho).
16) As consequências da ilicitude do despedimento estão previstas nos artigos 389º a 392º do C.T.
17) A A. tem direito ao recebimento da indemnização prevista no art. 391º do C.T, pela qual optou, a ser fixada pelo Tribunal com referência a 45 dias de retribuição e diuturnidades por cada ano completo ou fracção de antiguidade, e tem igualmente direito a receber da R. as retribuições respeitantes aos 30 dias que precederam a propositura da acção, bem como as que se vencerem até à data da sentença final.
18) Considerando as retribuições pagas pela R., e calculando-se a média da retribuição variável (nos termos da 2ª parte, do nº3, do art. 261º do C.T.), e considerando o disposto nos artigos 263º, 264º, 245º e 239º, todos do C.T., a A. tem direito a exigir da R., porque esta nunca lhe pagou, as seguintes retribuições:
- férias e subsídio de férias referentes a 2008 – 1097,32€ (548,66 x 2)
- subsídio de natal referente a 2008 – 823€
- férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2009 – 1646€ (823€ x 2)
- subsídio de natal referente a 2009 – 993,13€
- férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2010 – 1986,26€ (993,13€ x 2)
- subsídio de natal referente a 2010 – 1130,62€
- férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2011 – 2261,24€ (1130,62€ x 2)
- subsídio de natal referente a 2011 – 1109,51€
- férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2012 – 2219,02€ (1109,51€ x 2)
- subsídio de natal referente a 2012 – 1235,37€
- férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2013 – 2470,74€ (1235,37€ x 2)
- subsídio de natal referente a 2013 – 1076,87€
- férias e subsídio de férias vencidas em 01.01.2014 – 2153,74€ (1076,87€ x 2)
- retribuição proporcional de férias, subsídio de férias e de natal proporcional a 2014 – 618,21€
19) A sentença recorrida violou o disposto no art. 12º do C.T. de 2003.
20) O presente recurso deve merecer provimento, anulando-se a sentença recorrida e julgando-se procedente os pedidos formulados na acção.
Termos em que deverá dar-se provimento ao presente recurso e, consequentemente, revogar-se a sentença recorrida, declarar-se a ilicitude do despedimento da A. e julgar-se a acção totalmente procedente.”

2.1. Contra-alegou a Ré, constando das suas alegações as conclusões seguintes:
“1. A decisão recorrida deve ser confirmada, pois não merece qualquer reparo, já que a mesma resultou de uma exaustiva produção de prova tendo o MM Juiz a quo feito uma valoração criteriosa, experiente e prudente das provas produzidas, incluindo as provas documentais trazidas pelas partes.
2. Autora e Ré acordaram que a Ré pagaria à Autora a quantia de €10,00 por cada hora de exercício de funções, não tendo sido estabelecido entre as partes qualquer acordo de pagamento de valor mínimo garantido, pelo que o quesito 21º da sentença deve manter-se como NÃO PROVADO, considerando-se apenas como provado o teor da alínea T) dos factos assentes.
3. Da conclusão anterior, resulta que deverá manter-se como provado o teor da alínea ss) dos factos considerados provados, conforme consta da sentença recorrida.
4. De resto, do conjunto da prova produzido em julgamento, resulta manifesto que a Recorrente efectivamente prestava serviços à Recorrida enquanto profissional liberal, trabalhando por conta própria.
5. A A. determinava de forma livre e autónoma o seu horário de atendimento aos utentes segundo a sua própria disponibilidade, pelo que devem manter-se como provados os factos vertidos nas alíneas p), q) e r) da douta decisão recorrida.
6. Na relação contratual estabelecida entre as partes – contrato de prestação de serviços - não se encontram verificados os requisitos previstos no artigo 12º do Código do Trabalho de 2003 o que impossibilita a aplicação do benefício da presunção impetrado pela Recorrente.
7. A cessação do vínculo que existiu entre a Autora e Ré, deu-se em consequência da rescisão do contrato de prestação de serviços, a qual opera no domínio do Direito civil, pelo que não há lugar ao cumprimento das formalidades que o Código do Trabalho impõe, logo, a Recorrida nada deve à Recorrente a título de indemnizações e demais créditos laborais.
Termos em que, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela Autora, mantendo-se a douta sentença recorrida, por tal ser de SÃ E INTEIRA JUSTIÇA!”

3. Conforme fls. 419/20, foi emitido parecer pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no sentido da improcedência do recurso.

3.1. Respondeu a Apelante ao sufragado em tal parecer, no sentido de não ser aplicável o entendimento nesse plasmado.
*
Corridos os vistos legais e nada obstando ao conhecimento do mérito, cumpre decidir.
*
II – Questões a resolver
Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso (artigos 635º/4 e 639º/1/2 do Código de Processo Civil (NCPC) – aplicável “ex vi” do artigo 87º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho (CPT) –, integrado também pelas que são de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas com trânsito em julgado, são as seguintes as questões a decidir: reapreciação da matéria de facto; juízo sobre o mérito no que se refere à qualificação ou não do contrato como de trabalho.
*
III – Fundamentação
A) De facto
O tribunal recorrido deu como provados os factos seguidamente transcritos:
“a) A Ré é uma Instituição Particular de Solidariedade Social, que entre várias valências é responsável por dois Centros de Dia para idosos, uma Farmácia Social e ainda várias Clinicas Médicas para assistência a idosos. (A)
b) A Autora é fisioterapeuta. (B)
c) A Ré é proprietária de duas clínicas médicas, sitas em … e em …, Vila Nova de Gaia. (C)
d) Os horários de funcionamento das Clínicas da Ré são os seguintes:
- …: segunda a sexta-feira, das 07:30 às 20.30 horas; Sábado: das 07:30 às 13:30 horas;
- …: segunda a sexta-feira, das 09:00 às 12:00 horas; e das 15:00 às 20:00 horas. (X)
e) A partir de Fevereiro de 2008, a Autora exerceu funções de fisioterapeuta nas clínicas médicas mencionadas em c). (C)
f) A Autora fazia a avaliação das várias situações que lhe eram apresentadas pelos utentes da Ré, ministrava os tratamentos de fisioterapia e avaliava a evolução desses mesmos utentes. (2º)
g) A Autora fazia massagens aos utentes da Ré, utilizando os gabinetes, as marquesas, os consumíveis (papel de marquesa, pomadas, gel, água, etc) e as toalhas pertencentes à Ré. (4º)
h) A Autora ministrava tratamentos de ultra-sons aos utentes da Ré, utilizando os gabinetes, as cadeiras, o aparelho de ultra-som e os consumíveis pertencentes à Ré. (5º)
i) No interior das instalações da Ré existia um aparelho de multicorrente, pertencente àquela (bem como os respectivos consumíveis, designadamente eléctrodos, cabos, esponjas e líquidos), que a Autora podia utilizar se assim o entendesse. (6º e 7º)
j) No interior das instalações da Ré, a Autora administrava exercícios para recuperação física aos utentes da Ré, utilizando os aparelhos da Ré, designadamente: o tapete rolante, a bicicleta estática, a cadeira de quadricípite, a gaiola de “Rocher”, os alteres, as bandas elásticas, a tábua de “Freeman”, o espaldar, as escadas, as bolas de pilates e as roldanas. (8º)
k) No exercício das funções mencionadas em e), a Autora não podia aplicar terapêuticas e utilizar materiais não aprovados pela Ré. (15º)
l) Quando a Autora iniciou o exercício das funções mencionadas em e), a Ré tinha ao seu serviço uma outra fisioterapeuta, de nome D…. (L)
m) No período compreendido entre 02 de Janeiro de 2012 e 10 de Setembro de 2012 a D… não exerceu funções para a Ré. (M)
n) Em 10 de Setembro de 2012, a Ré celebrou um contrato de trabalho com a D…. (N)
o) A fisioterapeuta D… sempre exerceu para a Ré as mesmas funções que a Autora, antes e depois do mencionado em n). (9º)
p) Inicialmente, as partes acordaram que a Autora cumpriria o seguinte horário:
- na clínica de …:
três manhãs por semana, entre as 09:00 e as 13:00 horas;
- na clínica de …:
De segunda a sexta-feira, entre as 15:00 e as 20:00 horas. (P)
q) Durante o período mencionado em m), a Autora cumpriu o seguinte horário:
- das 09:00 às 20:00 ou 20:30 horas, com almoço das 12:00 às 13:00 horas, permanecendo na clinica de … da parte da manhã, e na clinica de … da parte da tarde, de segunda a sexta-feira. (Q)
r) A partir de Novembro de 2013, as partes acordaram que a Autora cumpriria o seguinte horário:
- das 15:00 às 20:00 horas, de segunda a sexta-feira, em …. (R)
s) O pagamento dos serviços de fisioterapia era realizado pelos utentes junto dos serviços administrativos da Ré, que emitem o respectivo recibo em nome da Ré. (D)
t) A maior parte dos utentes da Ré eram atendidos pelos serviços de recepção desta; efectuavam aí a marcação da consulta de fisioterapia para a data designada por tais serviços de acordo com a disponibilidade da Autora; após o que eram tratados por esta. (11º e 29º)
u) O mencionado em t) resultava da própria organização interna das clínicas da Ré. (13º)
v) Era a Autora quem definia o número de sessões que o doente iria necessitar para concluir o respectivo tratamento. (24º)
w) Era a Autora quem definia (e pedia) também ela própria, quais os instrumentos e produtos que necessitava que a Ré adquirisse para poder realizar os tratamentos nos utentes. (Y)
x) A Autora apenas podia exercer as funções mencionadas em e) dentro dos horários de funcionamento das clínicas da Ré. (25º)
y) O horário de atendimento dos doentes foi sempre definido por acordo entre a Autora e a Ré, de acordo com a disponibilidade daquela. (26º e 27º)
z) Por vezes, a Autora também agendava tratamentos que efectuava nas clínicas da Ré, nos intervalos em que sabia que não tinha outra marcação, para doentes que com ela contactavam directamente, sem que do facto tivesse dado o prévio conhecimento à funcionária da recepção. (28º)
aa) A Autora e a D… podiam acordar livremente entre ambas a organização dos horários de exercício de funções, de maneira a que, durante as ausências de uma a outra assumia o serviço daquela, recebendo o respectivo pagamento. (32º)
bb) A Ré apenas pedia à Autora para avisar a Ré quando não pudesse comparecer, para que as recepcionistas pudessem desmarcar (e remarcar) antecipadamente os tratamentos que estavam previstos para o período de ausência daquela. (35º)
cc) Se porventura não houvesse marcação de tratamentos, a Autora não teria que se deslocar para as instalações da Ré, e esta nada lhe tinha de pagar. (39º)
dd) A Ré controlava as horas prestadas pela Autora, inicialmente através da assinatura de um livro próprio; e, posteriormente, através de um mecanismo electrónico. (S)
ee) O mencionado em dd) destinava-se apenas a registar o número de horas durante as quais os serviços eram prestados. (36º)
ff) Só assim os serviços administrativos da Ré conseguiam aferir, no final de cada mês, o número total de horas a serem pagas à Autora. (37º)
gg) A Autora estava obrigada a informar a direcção da Ré acerca de todo e qualquer episódio anómalo que sucedesse com os utentes; de qualquer reclamação que lhe fosse dirigida pelos utentes; bem como do estado de conservação do material e das falhas e carências de material. (E)
hh) Periodicamente, a direcção questionava a Autora acerca da forma como estava a decorrer a sua actividade. (O)
ii) Na sequência do mencionado em hh), a Autora prestava todos os esclarecimentos que lhe eram solicitados. (14º)
jj) O mencionado em hh) destinava-se a permitir à Ré ter conhecimento de como estava a decorrer a valência de fisioterapia. (31º)
kk) Em várias ocasiões a Autora interpelou a Ré quanto à natureza do contrato celebrado entre ambas. (U)
ll) As interpelações mencionadas em kk) consistiram em a Autora questionar a Ré acerca da possibilidade da sua integração no quadro de pessoal da instituição, através da correspondente celebração de um contrato de trabalho. (40º)
mm) Em 30 de Março de 2012 a Ré anuiu ao pedido da Autora, chegando inclusive a requerer junto do Instituto da Segurança Social, I.P. a inscrição daquela como sua trabalhadora, com efeitos a partir de 01 de Abril de 2012. (41º)
nn) Porém, nesse mesmo dia a Autora recusou celebrar o contrato de trabalho com a Ré, por não concordar com o vencimento proposto, cujo valor seria substancialmente inferior (devido aos descontos e demais deduções legais) àquele que mensalmente efectivamente estava a auferir enquanto profissional a trabalhar por conta própria. (42º)
oo) Na sequência de uma das interpelações mencionadas em kk), a Ré enviou à Autora uma carta, datada de 14 de Maio de 2013, através da qual, entre outras coisas, lhe comunicou que:
“(…) Em resposta à sua carta sem data entregue p.m.p. na secretaria desta Associação, informamos que em reunião de direcção realizada em 14/5 p.p., foi decidido que Embora o lamentemos, não poderemos aceder às suas pretensões.
Esta direcção tem direcionado toda a sua conduta no sentido de reverter a péssima saúde financeira que herdámos, tem-se feito um esforço titânico nesse sentidos e gradativamente começamos, lenta, mas paulatinamente a conseguir alguns dos nossos desideratos.
Não podemos entretanto, dar um passo em falso, um só que seja, que possa destruir todo este trabalho que encetámos.
Como bem sabe, a fisioterapia é um departamento deficitário e para podermos aderir à sua pretensão, iríamos sair do trilho que acima descrevemos. Como por certo compreenderá a sua pretensão trazer-nos- ia despesas acrescidas de grande significado, e neste momento incomportáveis para nós.
Estamos como também sabe, a tentar a legalização da fisioterapia e posterior tentativa de estabelecermos convenção com a A.R.S., tudo faremos para o conseguir e estamos convictos que o vamos conseguir, esse é um desiderato a que nos propomos e poderemos nessa altura rever esta nossa posição, que de momento serve acima de tudo o estabilizar a nossa saúde financeira, até há pouco periclitante.
Somos uma direcção que quer cumprir escrupulosamente com os nossos colaboradores e por isso temos que ser rigorosos com os gastos, porque disso depende o futuro desta instituição. (...)”. (V)
pp) Na sequência de outra das interpelações mencionadas em U), a Ré enviou à Autora uma carta, datada de 13 de Dezembro de 2013, através da qual, entre outras coisas, lhe comunicou que:
“(...) Cumpre-me informar v. Exa., que na reunião de direcção do passado dia 9 do Corrente mês, tal como ficou prometido, o seu assunto foi devidamente aflorado, tendo ficado decidido não efectuarmos qualquer alteração ao modelo de laboração vigente e que já Lhe foi devidamente explicado em carta enviada no passado dia 14/05/2013.
Como é do Vosso inteiro conhecimento, está esta direcção muito empenhada em regularizar todo o passivo herdado, não existindo possibilidades de momento de onerar mais a debilitada situação financeira da Instituição.
A Direcção da C… está certa da vossa boa compreensão sobre este delicado assunto e da inoportunidade do mesmo no momento actual. (...)”. (W)
qq) A Autora ausentava-se do serviço vários dias por ano, com o intuito de gozar férias; dias esses que previamente comunicava à Ré. (20º)
rr) Nos dias mencionados em qq) a Autora não recebia qualquer retribuição. (38º)
ss) As partes acordaram que a Ré pagaria à Autora a quantia de 10,00€, por cada hora de exercício de funções. (T e 21º)
tt) Durante todo o período em que a Autora exerceu funções para a Ré, esta pagou àquela as seguintes quantias mensais:
- 2008:
Fevereiro: 958,50€
Março: 330,00€
Abril: 945,00€
Maio: 725,50€
Junho: 800,00€
Julho: 922,50€
Agosto: 660,00€
Setembro: 1.031,50€
Outubro: 1.000,00€
Novembro: 865,00€
Dezembro: 815,00€.
- 2009:
Janeiro: 700,00€
Fevereiro: 660,00€
Março: 1.000,00€
Abril: 950,00€
Maio: 1.000,00€
Junho: 900,00€
Julho: 1.300,00€
Agosto: 600,00€
Setembro: 1.614,23€
Outubro: 1.095,00€
Novembro: 1.200,00€
Dezembro: 898,33€.
- 2010:
Janeiro: 1.030,00€
Fevereiro: 1.015,00€
Março: 1.275,00€
Abril: 1.145,00€
Maio: 1.175,00€
Junho: 550,00€
Setembro: 2.837,50€
Dezembro: 2.640,00€.
- 2011:
Maio: 4.461,66€
Junho: 972,50€
Julho: 1.172,50€
Agosto: 602,50€
Setembro: 920,00€
Outubro: 1.090,00€
Novembro: 1.075,00€
Dezembro: 1.080,00€.
- 2012:
Janeiro: 1.407,50€
Fevereiro: 1.462,50€
Março: 1.260,00€
Abril: 1.300,00€
Maio: 964,50€
Junho: 1.222,50€
Julho: 1.520,00€
Agosto: 1.255,00€
Setembro: 1.110,00€
Outubro: 1.295,00€
Novembro: 1.007,50€
Dezembro: 1.020,00€.
- 2013:
Janeiro: 1.165,00€
Fevereiro: 1.115,00€
Março: 1.150,00€
Abril: 1.277,50€
Maio: 667,50€
Junho: 742,50€
Julho: 1.082,50€
Agosto: 940,00€
Setembro: 720,00€
Outubro: 1.297,50€
Novembro: 1.385,00€
Dezembro: 1.380,00€.
- 2014:
Janeiro: 1.297,50€
Fevereiro: 1.087,50€
Março: 582,50€. (I)
uu) Nos anos de 2009 a 2013 as quantias mencionadas em tt) constituíram o único rendimento da Autora. (22º)
vv) Os pagamentos mencionados em tt) foram efectuados contra a emissão pela Autora dos denominados “recibos verdes”. (J)
ww) Quando a Autora iniciou o exercício das funções mencionadas em e), a outra fisioterapeuta, de nome D…, agia então em conformidade com o mencionado em vv). (L)
xx) No final de cada ano, a Ré emitia as respectivas declarações de rendimentos para efeito de IRS - Categoria B. (Z)
yy) A Ré nunca pagou à Autora qualquer quantia a título de férias; nem de subsídio de férias; nem de subsídio de natal. (K)
zz) No dia 11 de Março de 2014 a Ré enviou à Autora uma carta, datada de 10 de Março de 2014, junta a fls. 88 e 89 dos autos e cujo teor aqui dou por integralmente reproduzido, através da qual, entre outras coisas, lhe comunicou que:
“(…) Na última reunião havida entre a Direcção da Associação e os seus colaboradores do serviço de Fisioterapia - na qual V. Ex.a esteve presente -, dado o excelente trabalho desenvolvido naquela área, foi-lhes comunicado o propósito de proceder ao alargamento daqueles serviços à Clínica Médica desta Instituição sita em …, estando a decorrer as providências necessárias para o efeito. Na senda desse objectivo, foi-lhes igualmente transmitida a expectativa desta Direcção em continuar a contar com a V/ colaboração para o efeito.
Daí que, foi com grande consternação, que este órgão tomou conhecimento no final da semana passada, da instalação/ abertura do Gabinete de Fisioterapia naquela freguesia de … onde, conforme se publicita, V. Ex.a efectua serviços de Fisioterapia, Osteopatia, Estética, Massagem de Recuperação e Mesoterapia.
Tal informação, foi-nos transmitida por uma associada - utente das nossas clínicas -a quem V. Ex.a terá entregue o panfleto cuja fotocópia se anexa, no momento em que lhe ofereceu os seus serviços; facto que tem vindo a confirmar-se através de associados que nos comunicam as diferentes formas de divulgação que está a ser feita, inclusive por via da internet.
A Associação é uma instituição particular de solidariedade social sem fins lucrativos que, através da quotização dos seus associados, prossegue no interesse destes e das suas famílias, fins de auxílio recíproco de natureza social, cujas receitas revertem para sustento das várias valências. O respeito, a lealdade, a independência e sigilo profissionais são princípios basilares da relação de confiança que esta entidade estabelece com os profissionais das várias áreas que lhe prestam serviços.
Entendemos por isso que V. Ex.a, ao instalar um gabinete particular de fisioterapia na mesma área geográfica/ freguesia da nossa clínica médica de …, visando servir o mesmo público alvo que frequenta esta Instituição, estabeleceu concorrência directa com esta Associação, onde aliás, continua a efectuar tratamentos aos nossos utentes, dando origem a um conflito de interesses que compromete de forma irremediável a confiança que em si foi depositada.
Por conseguinte, na defesa dos superiores interesses desta Associação, não podemos permitir que esta situação continue, pelo que somos forçados a colocar termo a prestação de serviços que nos vincula, com efeitos imediatos, o que por esta via efectivamos. (…)”. (F)
aaa) A carta referida em zz) foi recebida pela Autora no dia 12 de Março de 2014. (G)
bbb) A partir do dia 12 de Março de 2014 a Autora não exerceu mais funções para a Ré. (H)
ccc) Na data mencionada em bbb), a Autora exercia outra actividade para além do mencionado em C), num estabelecimento que ela própria abriu ao público em …. (AA)”
***
B) Discussão
1. Reapreciação da matéria de facto
1.1. Em sede de recurso, vem a Apelante impugnar a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Dispõe o n.º 1 do artigo 662.º do NCPC, que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
Nestes casos, deve porém o recorrente observar o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, no qual se dispõe:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.».
Nas palavras de Abrantes Geraldes, “(…) a modificação da decisão da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1.ª instância”[1]. Contudo, como também sublinha o mesmo autor, “(..) a reapreciação da matéria de facto no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.º não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente de forma concludente as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que implicam decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter”[2].
Tendo por base os supra citados dispositivos legais, teremos de considerar que a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação, tendo que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância – pois que só assim poderá ficar plenamente assegurado o duplo grau de jurisdição[3] –, muito embora não se trate de um segundo julgamento e sim de uma reponderação, não se basta com a mera alegação de que não se concorda com a decisão dada, exigindo antes da parte que pretende usar dessa faculdade, a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efectivamente, no caso, foram produzidos, sem limitar porém o segundo grau de sobre tais desconformidades, previamente apontadas pelas partes, se pronunciar, enunciando a sua própria convicção – não estando, assim, limitada por aquela primeira abordagem pois que no processo civil impera o princípio da livre apreciação da prova, artigo 607.º, nº 5 do CPCivil[4].
Do exposto resulta, assim, que o cumprimento do ónus de impugnação que se analisa, não se satisfazendo como se disse com a mera indicação genérica da prova que na perspectiva do recorrente justificará uma decisão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, exige que o mesmo concretize quer os pontos da matéria de facto sobre os quais recai a sua discordância quer, ainda, que especifique quais as provas produzidas que, por as ter como incorrectamente apreciadas, imporiam decisão diversa, sendo que, quando esse for o meio de prova, se torna também necessário que indique “com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respetiva transcrição”.
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se, desde logo, que a Recorrente, indica quais os factos que pretende que sejam decididos de modo diverso e, quando é o caso, a redacção que deve ser dada, como ainda os meios probatórios que na sua óptica o impõem, incluindo, no que se refere à prova gravada em que faz assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua exacta identificação e localização, podendo concluir-se, pois, que cumpriu o ónus estabelecido no citado artigo 640.º, sem prejuízo do que resultar, infra, da apreciação a efectuar.

1.2. Por referência às suas conclusões, extrai-se que a Recorrente pretende: que se considere provada a matéria do quesito 21.º; que seja completado o facto «ss» da matéria provada; a correcção do facto “nn”, por eliminação de parte do mesmo; que seja esclarecida a matéria dos factos «p», «q» e «r».
Analisemos pois cada um dos indicados pontos.

1.2.1. Quesito 21.º e facto «ss» dos factos provados.
Pretende a Recorrente que o indicado quesito seja tido como provado.
Nesse quesito perguntava-se:
“As partes acordaram que a Ré pagaria à Autora uma retribuição mensal mista, composta por uma parte certa e por uma parte variável, calculada da seguinte forma: o trabalho executado pela Autora, dentro do horário de trabalho, seria pago a 10,00€ a hora, num mínimo mensal garantido de valor igual ao salário mínimo nacional (desde que a Autora não faltasse)?”
Como meios de prova a Recorrente indica o depoimento da testemunha E…, prestado no dia 11.02.2016, constante da gravação do julgamento, no registo de 12.32 até 13.50, sustentando que esse depoimento confirma totalmente a prova do facto que pretende.
Por sua vez, em sentido contrário se pronuncia a Recorrida, sustentando que a valoração positiva do depoimento daquela testemunha não encontra qualquer reflexo nos autos quando cotejado com os documentos dos autos e depoimentos das demais testemunhas, assim, por um lado, tendo em consideração que durante o seu depoimento aquela testemunha revelou um forte ressentimento (pré-existente) contra a Ré e, por outro, porque directamente contrariado pelos depoimentos das testemunhas H…, I…, D… e F….
Da decisão recorrida fez-se constar sobre a relevância dada a cada uma das testemunhas o seguinte:
- S…, fisioterapeuta, a qual disse ter apresentado “curriculum” junto da Ré, após o que durante cerca de duas semanas frequentou as instalações da mesma, em …, observando as práticas ali efectuadas.
O seu depoimento não adquiriu qualquer relevância para o tribunal, uma vez que para além do reduzido tempo que permaneceu nas instalações da Ré, admitiu que nunca esteve nas mesmas em simultâneo com a Autora.
- E…, fisioterapeuta, que trabalha para a Ré desde 2012, depois de ali ter exercido a sua actividade durante vários anos, como prestadora de serviço.
O seu depoimento acabou por assumir enorme importância, dada a evidente razão de ciência de que a mesma dispõe sobre os factos que constituem o objecto da presente acção.
Não obstante, ela não conseguiu, a espaços, deixar de evidenciar alguma má vontade e ressentimento para com a Autora, reveladores de que as relações entre as duas não serão actualmente as melhores; pelo que o Tribunal não pode deixar de apreciar parte das suas afirmações com algumas reservas e condicionalismos.
- J…, auxiliar de geriatria, trabalhou para a Ré como recepcionista da clínica de … entre 2008 e 2013, altura em que foi despedida. Na sequência do despedimento, intentou uma acção de impugnação de despedimento contra a Ré, no âmbito da qual celebrou uma transacção.
Além disso, fez parte da anterior direcção da instituição, embora não consiga precisar qual o específico cargo que ocupou.
Talvez por todo este circunstancialismo, acabou por revelar sempre alguma parcialidade a favor da Autora (ou contra a Ré), pelo que o seu depoimento tem de ser necessariamente interpretado com bastantes reservas.
- K…, fisioterapeuta, trabalhou para a Ré desde 2009 a 2013, altura em que, por vontade própria, denunciou o contrato de trabalho que mantinha com a instituição.
Foi indiscutivelmente a testemunha que maior fidedignidade mereceu ao tribunal, prestando um depoimento absolutamente imparcial, coerente e esclarecedor, limitando-se a responder objectivamente às perguntas que lhe iam sendo colocadas sem revelar qualquer necessidade de favorecer uma ou outra das partes.
- L…, recepcionista da Ré desde o ano de 2010, nunca conseguiu disfarçar uma evidente ansiedade e necessidade de defender a posição da sua entidade empregadora, o que naturalmente lhe retirou quase toda a fidedignidade e relevância que o cargo que ocupa lhe poderia proporcionar.
- G…, técnica de farmácia, foi vogal da anterior direcção da Ré, destituída em 2012. Admitiu expressamente manter ainda hoje um forte ressentimento contra a instituição.
Provavelmente por isso denotou sempre uma enorme parcialidade, embora neste caso a favor da Autora.
O seu depoimento foi, por isso, objecto de muitas reservas por parte do Tribunal.
- E…, Técnica Oficial de Contas, foi a presidente da anterior direcção da Ré, destituída (como já referi supra), em Março de 2012. Quando inquirida, tinha a correr termos neste mesmo Tribunal um processo judicial contra a instituição.
Revelou as mesmas limitações da testemunha anterior, embora de forma ainda mais exacerbada, não conseguindo nunca disfarçar o ressentimento e a má vontade para com a Ré e mostrando-se sempre muito mais opinativa do que descritiva.
Esclarecedor de tal postura, foi o facto de apesar de a testemunha ter afirmado várias vezes que a Autora era trabalhadora da Ré, tal como a D… (contra a qual teceu também uma série de considerações negativas), não ter conseguido explicar a razão pela qual foi a direcção por ela presidida que contestou a acção judicial intentada por aquela fisioterapeuta, defendendo a tese exactamente oposta, isto é, a da existência de um contrato de prestação de serviços (cfr. fls. 234 e seguintes dos autos).
O seu depoimento não mereceu, por isso, grande credibilidade ao tribunal.
- M… e N…, respectivamente mãe e marido da Autora, prestaram depoimentos curtos e praticamente restritos a um quesito da Base Instrutória.
Não obstante, e apesar dos laços familiares com a Autora, revelaram coerência e objectividade.
- I…, vogal da actual direcção da Ré, apresentou sempre a tendência para opinar a favor da instituição, transparecendo no seu depoimento algumas imprecisões e incongruências que não puderam deixar de criar limitações à respectiva fidedignidade e relevância.
- H…, presidente da direcção da Ré entre 2001 e 2010, padeceu das mesmas limitações da testemunha anterior.
- F…, escriturária da Ré desde 2008; P…, recepcionista da clínica de … desde 2008; e Q…, escriturária da Ré desde 2010, conseguiram todas, não obstante o vínculo laboral que mantêm com a instituição, prestar depoimentos essencialmente isentos e descomprometidos, não caindo na tentação de proceder à manifestação de juízos de valores ou opiniões e procurando responder com objectividade às perguntas que lhes foram colocadas.
Os seus depoimentos foram, por isso, úteis ao tribunal.”
De seguida, na mesma decisão, a propósito da fundamentação da resposta ao quesito 21.º consta o seguinte:
“No que concerne à retribuição auferida pela Autora, a D… afirmou desconhecer a existência de qualquer acordo entre as partes no sentido de a Autora ter sempre garantido o pagamento de um valor equivalente ao salário mínimo nacional. Em complemento, referiu até que ela própria recebeu algumas vezes valores mensais inferiores àquele.
Idêntica posição - de desconhecimento da existência de um acordo entre as partes – foi assumida pela testemunha F….
É certo que a E… confirmou a existência daquele acordo.
Porém, e em primeiro lugar, admitiu que não teve qualquer intervenção directa no mesmo; esclarecendo depois que o seu conhecimento de tal realidade resulta de a mesma lhe ter sido reportada, à data da contratação da Autora, por um membro da direcção, cuja identidade não esclareceu, em virtude das funções de TOC que então exercia.
Não posso deixar de salientar, contudo, que esta versão está em contradição com aquilo que a própria Autora afirmou, em sede de declarações de parte, no sentido de que tal acordo foi firmado directamente com a E….
Também o N… confirmou a existência daquele mesmo acordo. Porém, baseou a sua afirmação naquilo que lhe teria sido transmitido pela própria Autora, o que não constitui razão de ciência válida.
Ao invés, o I… e o H… negaram peremptoriamente a existência de qualquer acordo.
Face a todo este circunstancialismo, apenas resta responder negativamente ao artigo 21.º da Base Instrutória.”
Ora, apreciando, não podendo deixar de ter-se presente que “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto” – n.º 5 do artigo 607.º do CPC –, deixando-se consignado que este Tribunal procedeu à audição integral dos depoimentos das testemunhas indicadas quer pela Recorrente quer pela Recorrida sobre este aspecto do recurso, a conclusão a que se chega é, manifestamente, a de que não assiste razão à Recorrente sobre a prova do aludido facto, sendo que se acompanham integralmente as razões que se fizeram constar da fundamentação da sentença e que são bem elucidativas dessa conclusão, assim quer quanto à credibilidade que possa merecer (no caso, não merecer) o depoimento da testemunha indicada pela Recorrente, quer também, infirmando claramente essa prova, os depoimentos das testemunhas indicadas pela Recorrida – bastando ver as passagens das gravações transcritas nas alegações para se chegar com facilidade a esse resultado, assim referentes à testemunha E… sobre a Ré (incluindo relacionamento actual com a Ré: a pergunta sobre se saiu a bem da direcção da Ré, aquela respondeu não senhor Juiz, “sabe bem que não”), como depois, infirmando esse, das testemunhas H…, que presidiu a direcção da Ré desde o ano 2001 até 2010 (tendo sido durante esse período que foi estabelecida a relação com a Autora, foi peremptório em afirmar que não foi garantido um valor mínimo, tendo sido apenas estabelecido o valor de dez euros à hora; no mesmo sentido os depoimentos das testemunhas I…, D… e F….
Pelo exposto, sem prejuízo da apreciação a efectuar seguidamente improcede o recurso nesta parte.

Ainda relacionado afinal com a resposta dada ao quesito 21.º, pretende a Recorrente que o «facto ss» seja complementado, com base no depoimento da testemunha F… – prestado no dia 10.03.2016, constante da gravação do julgamento entre o registo 9.29 a 10.39, referindo que a confirmou totalmente –, passando a ter a seguinte redacção:
“As partes acordaram que a Ré pagaria à Autora a quantia de 10€00, por cada hora de exercício de funções, mediante o respectivo registo e independentemente do trabalho realizado”.
Tal facto – que resulta da alínea T) dos factos assentes e da resposta dada pelo Tribunal a quo ao quesito 21.º: “Provado apenas o que consta da alínea T) dos Factos Assentes” – tem a redacção seguinte:
“ss) As partes acordaram que a Ré pagaria à Autora a quantia de 10,00€, por cada hora de exercício de funções.”
Desde logo, esta invocação só poderá ser entendida como subsidiária à apreciação da questão anterior, referente à prova do quesito 21.º. De facto, caso aquela procedesse, a redacção a dar teria de ser por referência a essa resposta positiva e não, afinal, à que resultou, ou seja, como se disse, de “provado apenas o que consta da alínea T) dos Factos Assentes”.
Ainda assim, porque não obteve a Recorrente provimento no recurso quanto à resposta positiva que pretendia que fosse dada ao quesito 21.º, vejamos se ocorre fundamento para que nessa resposta se inclua a menção que pretende, ou seja, “mediante o respectivo registo e independentemente do trabalho realizado”.
Ora, desde logo, não refere a Recorrente, assim por referência à base instrutória elaborada ou ainda aos articulados, onde foi invocada tal factualidade, o que lhe incumbia fazer.
Depreendendo-se que tal facto teriam resultado da discussão da causa em audiência, a verdade é que esta nem sequer o refere expressamente, como não refere, também, a sua natureza.
Fazendo no entanto uma breve abordagem à propósito da distinção entre factos principais, factos essenciais, factos complementares e factos instrumentais, pode dizer-se que os primeiros são todos aqueles que têm de integrar a causa de pedir ou o fundamento das excepções peremptórias invocadas, sendo que, englobando eles os factos essenciais e os factos complementares, como escreve Miguel Teixeira de Sousa[5], “os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na acção ou na excepção” e os “complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa acção ou dessa excepção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte”. Trata-se afinal daqueles, a que supra se aludiu já, cujo ónus de alegação impende sobre as partes. Por sua vez, diversamente, serão factos instrumentais “aqueles de cuja prova se pode inferir a demonstração dos correspondentes factos principais", sendo que, relativamente a estes, a alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º do CPC expressamente prevê a possibilidade de oficiosamente o tribunal os atender, ainda que não tenham sido alegados pelas partes, no momento oportuno.
Depois desta nota, debruçando-nos sobre a pretensão da Apelante, há que fazer referência, mesmo face ao regime processual civil, aos poderes atribuídos ao juiz no processo laboral face ao que resulta do citado artigo 72.º do CPT – que incluem os emergentes da regra geral do aludido artigo 5.º do CPC e permitem ao juiz atender aos factos essenciais ou instrumentais que resultam da discussão da causa, mesmo que não tenham sido articulados.
Dispõe o artigo 72.º do CPT, na parte relevante para a apreciação, o seguinte:
“1 - Se no decurso da produção da prova surgirem factos que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve ampliar a base instrutória ou, não a havendo, tomá-los em consideração na decisão da matéria de facto, desde que sobre eles tenha incidido discussão.
2 - Se for ampliada a base instrutória nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respectivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias. (...)”.
Ora, não fazendo a Recorrente apelo, como se disse, a factos que diga que tenha invocado nos articulados, enquanto factos novos, para poderem ser atendidos seria necessário que o Tribunal a quo tivesse usado da faculdade prevista no citado n.º 1 do artigo 72º do CPT, se porventura os considerasse relevantes para a boa decisão da causa.
E não foi esse o caso, como decorre dos autos, não tendo pois o Tribunal a quo feito uso do citado preceito legal, sendo que, acrescente-se, nem sequer tal questão foi levantada pelas partes, pelo que não compete a este Tribunal, aqui e agora, em sede de recurso, tomar esses factos em consideração, e deste modo, dar os mesmos por provados, sob pena de violação do princípio do contraditório (nº 2 do citado artigo) – só ao Tribunal a quo, no uso do poder/dever conferido pelo aludido artigo 72º do CPT, tendo ocorrido discussão sobre a mesma, se fosse esse o caso, competia considerar provada tal factualidade[6]. O mesmo afirmámos em recente Acórdão, de 16 de Janeiro de 2017, cujo sumário, nesta parte é o seguinte: «Os poderes atribuídos no n.º 1 do artigo 72.º do CPT quanto à consideração dos factos não alegados pelas partes são exclusivos do julgamento em 1.ª instância, tendo ocorrido discussão sobre esses factos, não competindo ao tribunal de recurso tomar esses em consideração, e deste modo, dar os mesmos por provados, sob pena de violação do princípio do contraditório (nº 2 do mesmo artigo).»[7]
Do exposto resulta, em conformidade, a exclusão da apreciação nesta sede do supra citado facto e, nessa medida, o consequente não atendimento do recurso nessa parte.

1.2.2. Facto «nn» dos factos provados.
Tal facto, que resulta da resposta «provado» dada ao quesito 42.º, tem a redacção seguinte:
“nn) Porém, nesse mesmo dia a Autora recusou celebrar o contrato de trabalho com a Ré, por não concordar com o vencimento proposto, cujo valor seria substancialmente inferior (devido aos descontos e demais deduções legais) àquele que mensalmente efectivamente estava a auferir enquanto profissional a trabalhar por conta própria.”
Pretende a Recorrente que eliminada a expressão “enquanto profissional a trabalhar por conta própria”, por comportar esta “um juízo, uma avaliação, uma qualificação jurídico-legal, que a A. não aceita, e que ultrapassa a matéria dos factos, situando-se no domínio das conclusões jurídicas.” Sustenta, ainda, que o contexto factual em que sucedeu a matéria do facto “nn”, foi demonstrado durante a audiência de julgamento, através do depoimento das testemunhas E… e G…, e também permite a eliminação da referida expressão, conforme decorre da gravação dos depoimentos das testemunhas, mais concretamente: - E…, depoimento prestado durante o dia 11.02.2016, no registo de 15.15 a 18.15. – G…, depoimento prestado no dia 11.02.2016, no registo 20.36 a 22.00.
Por sua vez, entende a Recorrida que, correspondendo o teor da resposta integralmente ao quesito 42º, a expressão “enquanto profissional a trabalhar por conta própria” não constitui um juízo de valor, mas sim, uma parte da premissa do facto que ali foi exposto e como tal – antes de ser julgada – poderia ter sido considerada como verdadeira ou falsa, sendo que no caso, depois de julgada, resultou provada e portanto, passou a ser uma premissa portadora da verdade que resultou da livre apreciação pelo Tribunal do universo da prova (inclusive documental) que foi produzida nos autos e que se traduz no facto provado nn) – concluindo que ao retirar aquela expressão da alínea em crise, o Tribunal a quo estaria a criar uma ambiguidade inaceitável.
Apreciando, não temos dúvidas em concluir que nesta parte assiste razão à Recorrente, esclarecendo-se que, no âmbito dos poderes da Relação no que diz respeito à apreciação da matéria de facto, acentuados com a Reforma de 2013 do Código de Processo Civil – artigo 662.º –, não obstante diga-se a revogação com a mesma reforma do anterior artigo 646.º (em que se previa que no julgamento da matéria de facto ter-se-ão por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito, solução que como é entendimento doutrinário e jurisprudencial se aplica, por analogia, às respostas que constituam conclusões de facto, designadamente quando as mesmas têm a virtualidade de, por si só, resolverem questões de direito a que se dirigem – ver Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2°, 605), deve continuar a entender-se, como se afirma entre outros no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Setembro de 2014[8], que, constituindo a possibilidade de eliminação de factos conclusivos equiparados a questões de direito uma prerrogativa dos tribunais superiores de longa tradição doutrinal e jurisprudencial, esta pode ser exercida mesmo que não esteja prevista expressamente na lei processual.
Estando em causa a questão de saber quais são os limites ao poder do juiz de 1.ª instância na fixação da matéria de facto e qual a distinção entre matéria de facto e de direito, uma das mais controversas da doutrina processualista e que mais problemas de fronteira coloca, escreve-se no citado Acórdão a esse respeito (excluindo-se aqui as notas de rodapé):
«O problema da distinção entre questões de facto e de direito tem sido tratado principalmente a propósito da linha de demarcação entre a competência dos tribunais de instância e a competência do Supremo Tribunal de Justiça, a qual está restringida a matéria de direito.
No caso vertente, coloca-se o problema de saber se o Tribunal de 1.ª instância pode introduzir na matéria de facto juízos de valor ou expressões conclusivas e se a Relação tem poder para eliminar estas expressões da matéria de facto fixada pelo tribunal de 1.ª instância. O Supremo Tribunal de Justiça assume aqui um papel de sindicância sobre os poderes da Relação para alterar factos: admite-se que censure quer a forma como usa esses poderes, ao abrigo do art. 712.º do CPC, quer a sua recusa em usar os poderes atribuídos por esse preceito. Tem-se entendido, também, que está dentro dos poderes cognitivos deste Supremo Tribunal considerar como não escritas as respostas que excedam o âmbito das questões de facto formuladas e verificar se as instâncias exorbitaram ou não nas respostas dadas, embora se admita respostas restritivas ou explicativas.
Na formulação de Alberto dos Reis, «a) É questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior; b) É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei»..
Segundo Karl Larenz, a “questão de facto” reporta-se ao que efectivamente aconteceu, enquanto a “questão de direito” se identifica com a qualificação do ocorrido em conformidade com os critérios da ordem jurídica.
Existe, contudo, um continuum entre matéria de facto e matéria de direito e não uma oposição absoluta entre ambos os conceitos, pois na concreta aplicação do direito acaba por verificar-se uma correlatividade entre ambos os elementos.
Há que partir, portanto, da unidade do caso jurídico decidindo e dos problemas jurídicos por si colocados, devendo distinguir-se dois tipos de questões: uma que se refere aos dados pressupostos pelo problema concreto – questão de facto – e outra que tem a ver com o fundamento e o critério do juízo e com o próprio e concreto juízo decisório – questão de direito. Na matéria de facto concorrem não apenas dados empíricos, mas todos os pressupostos objectivos do problema colocado, por exemplo, elementos sócio-culturais e até jurídicos.
Contudo, a tradição do nosso pensamento jurídico, no seguimento de Alberto dos Reis, considera que a actividade do juiz se circunscreve ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo, apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos. Continua o autor, afirmando que «tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é actividade estranha e superior à simples actividade instrutória».
Se na resposta a determinado quesito houver matéria de facto e matéria de direito, deve aproveitar-se a decisão na parte relativa à primeira e considerar-se não escrita na parte relativa à segunda.
Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados.
Para Teixeira de Sousa, «A selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica (cfr. STJ – 13/12/1983, BMJ 332, 437).
Abrantes Geraldes defende que “devem ser erradicadas da condensação as alegações com conteúdo técnico-jurídico de cariz normativo ou conclusivo, a não ser que, porventura, tenham simultaneamente uma significação corrente e da qual não dependa a resolução das questões jurídicas que no processo se discutem”.
Em consequência, devem ser eliminadas da matéria de facto, quer a matéria de direito, quer a conclusão de facto ou expressões conclusivas que traduzam juízos de valor e que excedam a resposta de facto.
Os juízos ou conclusões de facto situam-se numa zona intermédia entre os puros factos e as questões de direito e encontram-se incluídos na legislação como parte integrante da hipótese legal de numerosas normas jurídicas, podendo nuns casos aproximarem-se mais de uma questão de facto e noutros de uma questão de direito.
Como se tem defendido na jurisprudência deste Supremo Tribunal, «A linha divisória entre matéria de facto e matéria de direito não é fixa, dependendo em larga medida dos termos em que a lide se apresenta. A nível do julgamento da matéria de facto só são proibidos os juízos conclusivos que impliquem a apreciação e valorização de determinados acontecimentos à luz de uma norma jurídica» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 23-09-1997, Processo n.º 151/97, Relator: Conselheiro Sousa Inês). O que num caso pode ser facto ou juízo de facto, noutro pode ser juízo de direito.
A natureza conclusiva do facto pode ter um sentido normativo quando contém em si a resposta a uma questão de direito ou pode consistir num juízo de valor sobre a matéria de facto enquanto ocorrência da vida real. No primeiro caso o facto conclusivo deve ser havido como não escrito, nos termos do art. 646.º, n.º 4 do CPC. No segundo, a solução depende de um raciocínio de analogia entre o juízo ou conclusão de facto e a questão de direito, devendo ser eliminado o juízo de facto quando traduz uma resposta antecipada à questão de direito.»

Sobre a mesma questão podem ver-se também, de entre outros, os Acórdãos do mesmo Tribunal[9] de 29 de Abril de 2015 e 28 de Janeiro de 2016, como também o recente Acórdão de 15 de setembro de 2016, em que se reafirma que, «pese embora não se encontrar no Novo CPC preceito legal que corresponda ao art. 646º, nº 4, do anterior CPC, que impunha, como consequência, para as respostas sobre matéria de direito que as mesmas fossem consideradas “como não escritas”, actualmente o Juiz não fica dispensado de efectuar “o cruzamento entre a matéria de facto e de direito”, evitando formulações genéricas, de cariz conceptual ou de natureza jurídica que definam, por essa via, a aplicação do direito, como acontece quando os referidos conceitos se reportam directamente ao objecto da acção.»
Ora, vista a expressão utilizada – «enquanto profissional a trabalhar por conta própria» – à luz dos indicados critérios, sem esquecermos que é objecto do processo precisamente a qualificação da relação da Autora como de contrato de trabalho ou como prestadora de serviços, a mesma não traduz um facto da sua acepção naturalística, envolvendo antes, diversamente, um juízo conclusivo e mesmo de direito que, sendo objecto de discussão na acção, não pode considerar-se como facto, dependendo essa qualificação do juízo que possa ser realizado posteriormente tendo por base os factos provados.
Do exposto resulta, pois, que essa expressão deve considerar-se não escrita, ficando o ponto «nn» da factualidade provada, com a seguinte redacção:
“Porém, nesse mesmo dia a Autora recusou celebrar o contrato de trabalho com a Ré, por não concordar com o vencimento proposto, cujo valor seria substancialmente inferior (devido aos descontos e demais deduções legais) àquele que mensalmente efectivamente estava a auferir.”

1.2.3. Factos «p», «q» e «r».
Pretende a Recorrente que, “por uma questão de cautela, e atentas as dúvidas levantadas pelo Sr. Juiz, e não obstante a evidente impertinência de tais dúvidas”, este Tribunal de recurso “esclareça a matéria dos factos “p, q, r” no sentido de que a A. estava obrigada a cumprir os horários que acordou com a R..”
Ora, em primeiro lugar, estando a análise neste momento apenas no âmbito da reapreciação da matéria de facto, a essa se cinge, não se podendo confundir factos com a apreciação que, sobre esses, é realizada na sentença, assim as dúvidas a que alude a Recorrente.
Por outro lado, as alíneas da factualidade a que se alude não resultaram sequer de resposta do tribunal a quo no âmbito do julgamento sobre a matéria de facto e sim, noutros termos, de factualidade assente face à posição das partes nos seus articulados e que, enquanto tais, passaram para os factos assentes aquando da elaboração, na fase de saneamento, do correspondente despacho.
Por último, ainda que porventura se não levantassem as referidas dificuldades, relembra-se de novo o que anteriormente afirmámos – em 1.2.1. – a propósito do âmbito de intervenção do Tribunal de recurso quanto a factos novos quando o Tribunal recorrido não tenha feito uso do artigo 72.º do CPT, sendo que, também nesta parte, a questão não foi levantada pelas partes perante aquele Tribunal, pelo que não compete ao Tribunal de recurso tomar esses factos em consideração, e deste modo, dar os mesmos por provados, sob pena de violação do princípio do contraditório.
Do exposto resulta, sem necessidade de outras considerações, a exclusão da apreciação nesta sede do supra citado facto e, nessa medida, o consequente não atendimento do recurso nessa parte.

2. Da qualificação do contrato.
Como resulta das suas conclusões, a Recorrente, para além de fazer incidir o recurso na alteração da matéria de facto, considera – assim suas conclusões 13 e 14 – que estão concretamente verificados todos os requisitos legais previstos no artigo 12º do C.T. 2003, beneficiando assim ela da presunção de que o seu contrato é um contrato de trabalho, presunção que a Ré não ilidiu.
Assim não o entende a Recorrida, pronunciando-se em sentido contrário, no que é acompanhada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no parecer que elaborou.
Fez-se constar da sentença recorrida, nesse âmbito, o seguinte:
“(...) Para a resolução da questão principal que agora se nos coloca, impõem-se tecer três considerações preliminares.
A primeira, que não posso deixar desde logo de vincar, é que a catalogação de um contrato como pertencendo a um determinado tipo, necessária para determinar qual o regime jurídico que se lhe deve aplicar, é uma operação lógica subsequente à interpretação das declarações de vontade das partes e dela dependente e constitui matéria de direito sobre a qual o tribunal se pode pronunciar livremente - vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02/02/88, in Boletim do Ministério da Justiça 374, 435 - sem estar vinculado à denominação adoptada pelos contraentes.
Assim sendo, o nome com que as partes tenham eventualmente baptizado o acordo celebrado poderá apenas, e quando muito, servir como mais um elemento, entre vários outros, a ter em conta no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das declarações de vontade, sendo bem possível que a conclusão atingida não coincida com o nomen utilizado pelas partes.
Na verdade, como refere Inocêncio Galvão Telles, in Colectânea de Jurisprudência, Ano XVII, 2º, 27, “a não adequação da designação adoptada pelas partes à real natureza do contrato pode resultar de circunstâncias várias, ou de equívoco ou ignorância ou de o objecto de defraudar a lei, procurando enquadrar o negócio num modelo que não é o seu, para, através do uso da denominação específica de outro e da confusão assim estabelecida, tentar daí extrair consequências jurídicas favoráveis às partes ou a uma delas e que não são compatíveis com a índole e regime do negócio efectivamente desejado. Em qualquer dos casos, o regime a observar, em última análise, será o do próprio tipo negocial que vier a diagnosticar-se através das operações de interpretação e qualificação, afastando-se todas e quaisquer soluções para que apontasse a incorrecta denominação usada pelas partes, mas que não sejam conciliáveis com a espécie contratual realmente celebrada”.
Impõe-se sempre, portanto, e como elemento essencial, proceder a uma interpretação da actividade negocial das partes, tendo por elementos de trabalho a vivência concreta e efectiva da relação contratual estabelecida.
Depois, importa ter presente que, de acordo com o disposto no artigo 342º do Código Civil, é ao trabalhador que incumbe o ónus de alegar e provar os elementos que integram a existência de um contrato de trabalho, na medida em que estes são constitutivos do direito que ele vem invocar a juízo.
Como tal, e no caso presente, é sobre a Autora que recai o ónus de convencer o tribunal sobre a natureza laboral do contrato celebrado com a Ré.
Por último, há que ter em consideração que a relação contratual entre as partes teve início em Janeiro de 2008, ou seja ainda em plena vigência do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei nº 99/2003, de 27/08 (entrado em vigor no dia 01/12/2003); e veio a extinguir-se em Março de 2014, quando vigorava já o actual Código do Trabalho, aprovado pela Lei nº 07/2009, de 12/02.
Impõe-se, por isso, determinar qual a legislação aplicável ao caso dos autos.
Ora, o artigo 7º nº 1 da Lei nº 07/2009, de 12/02 (nos exactos termos já anteriormente consagrados pelo artigo 8º da Lei nº 99/2003, de 27/08), dispõe expressamente que ficam sujeitos ao regime introduzido por este diploma os contratos de trabalho celebrados ou adoptados antes da entrada em vigor do mesmo, salvo quanto às condições de validade e aos efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento.
Tal como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 13/07/2010 (que embora reportado ao preceituado no Código do Trabalho de 2003, tem inteira aplicação ao Código do Trabalho de 2009), que pode ser consultado in www.dgsi.pt, “o Supremo Tribunal de Justiça tem entendido que a qualificação de uma relação contratual como de trabalho deverá ser aferida face ao normativo em vigor à data em que se constituiu (cfr., por todos, Acórdão de 14.01.09, in www.dgsi.pt, Processo nº 08S2278) e, concretamente sobre o artigo 12º do CT/2003, tem-se também pronunciado no sentido de não ser ele aplicável a relação contratual iniciada em data anterior à da entrada em vigor do referido Código se, da matéria de facto provada, não se extrair que as partes, a partir de 01.12.2003, hajam alterado os termos da relação jurídica firmada em data anterior – cfr., neste sentido, os doutos Acórdãos de 18.12.08, 14.01.09 e 05.02.09, todos acessíveis in www.dgsi.pt (…) 13/02/2008 (Processo n.º 356/07), 10/07/2008 (Processo n.º 1426/08, ambos da 4.ª Secção); (…) e 24.11.08, in www.dgsi.pt”.
Com base neste entendimento jurídico - que subscrevo integralmente – então a questão da qualificação jurídica do contrato que constitui o objecto da presente acção deverá ser decidida com recurso ao regime previsto no Código do Trabalho de 2003, vigente à data da celebração do mesmo pelas partes.
Não obstante, tendo em consideração as especificidades próprias da matéria com que nos deparamos, afigura-se-me importante e essencial proceder a uma breve dissertação teórica sobre a evolução histórica da noção de contrato de trabalho e da sua diferenciação prática relativamente ao contrato de prestação de serviços.
3 - O artigo 10º do Código do Trabalho de 2003 (tal como, com ligeiras alterações de redacção, sucedia antes com o artigo 1º do Decreto-Lei nº 49 408, de 24/11/1969 (LCT); e se mantém actualmente com o artigo 11º do Código do Trabalho de 2009) definia o contrato de trabalho como “aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas”.
Ou seja, o Direito do Trabalho é o ramo do direito que regula o trabalho subordinado, ou não autónomo.
Como salienta Monteiro Fernandes, in “Direito do Trabalho”, 8ª Edição, página 110, “o Direito do Trabalho não recobre todo o trabalho, nem mesmo todas as modalidades em que alguém beneficia da força de trabalho de outrem, mas ocupa-se apenas da prestação de trabalho numa relação de subordinação jurídica”.
Como tal, a relação jurídica laboral caracteriza-se, essencialmente, pela existência de subordinação jurídica. Esta, por seu lado, reconduz-se à possibilidade de determinação da actividade do trabalhador, mediante ordens, directivas e instruções; e ao dever de obediência deste no que concerne à execução e disciplina da prestação do trabalho fixadas pelo empregador, titular do poder directivo e disciplinador dessa prestação.
Como completa ainda Monteiro Fernandes, in ob. cit., páginas 104/105, a subordinação jurídica consiste “numa relação de dependência necessária da conduta pessoal do trabalhador na execução do contrato face às ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do mesmo contrato e das normas que o regem. Só reconhecendo à entidade patronal um poder conformativo da prestação, se torna possível que esta canalize a actividade do trabalhador para a prossecução dos seus objectivos”.
Em consequência, é ao credor - o empregador - que cabe programar, organizar e dirigir a actividade do devedor - o trabalhador. A ele incumbe não apenas distribuir as tarefas a realizar, mas ainda definir como, quando e com que meios as devem executar cada um dos trabalhadores.
Ou seja, o que distingue verdadeiramente o contrato de trabalho é o estado de sujeição do trabalhador relativamente ao empregador, consubstanciado na possibilidade de aquele, a cada momento, poder ver ser concretizada por este a sua prestação em determinado sentido – vide Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito do Trabalho”, página 535.
Acresce ainda que o estado de sujeição na relação de natureza laboral e que exprime a subordinação jurídica, pressupõe também a existência de um dever de obediência e a sujeição ao poder disciplinar do empregador – vide ob. citada, página 127.
Daí que o artigo 121º nº 1 d) do Código do Trabalho de 2003 (tal como o artigo 20º nº 1 c) da LCT; e o artigo 128º nº 1 e) do Código do Trabalho de 2009), consagre expressamente como deveres do trabalhador que este deve “cumprir as ordens e instruções do empregador em tudo o que respeite à execução e disciplina do trabalho, salvo na medida se mostrem contrárias aos seus direitos e garantias”.
A violação deste dever de obediência constitui, por isso, elemento potencialmente impulsionador da efectivação do poder disciplinar da entidade patronal.
4 - Aqui chegados importa não olvidar que, tal como já referi supra, de acordo com o disposto no artigo 342º do Código Civil, é ao trabalhador que incumbe o ónus de alegar e provar os elementos que integram a existência de um contrato de trabalho, na medida em que estes são constitutivos do direito que ele vem invocar a juízo.
Porém, é sabida a dificuldade prática na delimitação do que é um contrato de trabalho em contraponto ao trabalho autónomo, em que a actividade é exercida sem dependência jurídica (e que pode configurar uma extensa panóplia de figuras jurídicas, como um contrato de prestação de serviços, de mandato ou de agência; sem falar em contratos inominados ou mistos; ou até de um contrato de estágio).
No que respeita concretamente à distinção entre um contrato de trabalho e um contrato de prestação de serviços, importa desde logo ter em consideração que este último se encontra expressamente definido no artigo 1 154º do Código Civil como aquele pelo qual uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
Daqui resulta, logo à partida, que o contrato de prestação de serviços pode ser gratuito, ao contrário do contrato de trabalho, que é sempre oneroso.
Contudo, este critério remuneratório é absolutamente insuficiente para poder servir de base fundamental à distinção que se pretende efectuar, uma vez que o contrato de prestação de serviço pode envolver, e normalmente envolve, também retribuição – neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/09/1990, in Boletim do Ministério da Justiça, 399, 405.
Assim, a forma prioritária de proceder à distinção entre os dois tipos de contratos é através do recurso ao critério da subordinação.
Com efeito, como flui da análise das definições legais dos dois contratos, constata-se que a supra mencionada relação de sujeição/subordinação que se assume como característica essencial da relação jurídico-laboral, encontra-se ausente no contrato de prestação de serviços.
Ao contrário, o objecto da prestação de serviços é o resultado do trabalho, sem que para tanto um dos contraentes esteja sujeito à autoridade e direcção do outro - vide, neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/01/2002, in “Acórdãos Doutrinários”, 491.
Como consequência óbvia desta realidade, e como refere Pedro Romano Martinez, in "Trabalho Subordinado e Trabalho Autónomo", “Estudos do Instituto de Direito de Trabalho”, Volume I, página 276, “no contrato de prestação de serviços uma das partes proporciona à outra certo resultado, enquanto no contrato de trabalho presta a sua actividade”.
E aqui entramos já noutra forma possível de distinção entre os dois tipos de contratos, que tem na sua génese a diferença entre prestações de resultado e prestações de meios. Com efeito, no contrato de trabalho a obrigação é de meios; enquanto no contrato de prestação de serviços tem-se em vista, por via de regra, a obtenção de um certo resultado.
Efectivamente, o contrato de trabalho aproxima-se bastante da locatio conductio operarum do direito romano: uma das partes - o trabalhador - obriga-se a colocar e a manter à disposição da outra - a entidade patronal, empregador ou entidade empregadora - a disposição da sua força de trabalho. O objecto do contrato é a actividade do trabalhador, que a entidade patronal organizará e dirigirá no sentido de alcançar um resultado. Para tal é necessário que disponha de meios que lhe permitam a optimização deste factor de produção (que se insere na sua organização produtiva), o que implica inevitavelmente a submissão do trabalhador à sua autoridade e direcção.
Todavia, ocorrem situações em que o fornecedor da força de trabalho mantém o controlo da aplicação dela, apenas se obrigando a proporcionar à outra parte um determinado resultado. E o que sucede na locatio conductio operis, figura embrionária daquilo a que o legislador civil português de 1966 chamou de contrato de prestação de serviço.
No domínio dos trabalhos preparatórios do actual Código Civil, escreveu Inocêncio Galvão Telles, in “Contratos civis”, Boletim do Ministério da Justiça 83, 171: “o que se pretende exprimir com o uso do singular é (a exemplo da fórmula latina «opera») o carácter concreto da actividade prometida, que é olhada no seu resultado, e não em si, como energia laboradora que a outra parte orienta em conformidade com os seus fins”.
Assim, os dois tipos contratuais (trabalho e prestação de serviço) distinguem-se fundamentalmente quanto ao seu objecto: a actividade, no contrato de trabalho, e o resultado de uma actividade, no contrato de prestação de serviço.
No dizer de Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, IIº Volume, 2ª Edição, Coimbra, 1988), “enquanto que no contrato de trabalho um dos contraentes se obriga a prestar ao outro o seu trabalho, a prestação de serviço tem por objecto o resultado do trabalho e não o trabalho em si, e, para chegar a esse resultado, não fica o obrigado sujeito à autoridade e direcção do outro contraente”.
Ou, voltando a citar Inocêncio Galvão Telles, in ob. cit., página 165, “o único critério legítimo está em averiguar se a actividade é ou não prestada sob a direcção da pessoa a quem ela aproveita, que dela é credora”.
O trabalho é autónomo no primeiro caso e subordinado no segundo. E assim é a subordinação ou a autonomia na execução do contrato o que permite traçar a linha de fronteira entre a área do contrato de trabalho e a do contrato de prestação de serviço. Neste não há - nem faria sentido que houvesse, atento o seu objecto - qualquer referência à autoridade e direcção de outrem.
Não obstante, também este critério pode não ser suficiente para, só por si, conseguir lograr alcançar o resultado pretendido. Desde logo, porque é manifesto e evidente que todo o trabalho conduz a um resultado e que qualquer resultado não existe sem trabalho.
Daí que Giuseppe Ferraro, in “I Contrato di Lavoro”, Pádua, 1991, página 11, apele também à tendencial perpetuação do vínculo laboral, face à duração limitada da obrigação que emerge do contrato de opera: este é cumprido no momento em que o resultado, que constitui o seu objecto, é alcançado.
Além disso, importa ainda não olvidar que, como escreveu Giuseppe Pera, in “Diritto del Lavoro”, Pádua, 1980, páginas 388-389, “a subordinação em concreto, ou seja a possibilidade para o dador de trabalho de dirigir a actividade do trabalhador subordinado, é condicionada pelo tipo específico de trabalho estabelecido no contrato. Neste sentido, o grau de subordinação efectiva reduz-se progressivamente consoante se passe de um trabalho menos qualificado a um mais qualificado, de um trabalho comum, manual ou corrente a um especializado e implicando progressivamente técnicas mais ou menos elevadas”.
Face a tudo o exposto, resulta que ao julgador podem surgir sérias dificuldades em qualificar uma dada situação concreta que se situe numa zona cinzenta entre o âmbito do trabalho subordinado e o do trabalho autónomo.
5 - Para a resolução destas dificuldades, no regime anterior - o da LCT, de 24/11/1969, - a jurisprudência e a doutrina desenvolveram um método indiciário: considerava-se a subordinação como um conceito tipo, susceptível de se revelar por uma série de indícios, que mais não são do que características do trabalho subordinado.
Assim, entre os indícios de subordinação apontavam-se geralmente os seguintes (cfr. Por todos, Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito do Trabalho”, Coimbra, 1994, página 532):
a) o lugar do trabalho pertence ao empregador ou é por ele determinado;
b) o horário de trabalho é estabelecido pelo empregador;
c) a prestação de uma actividade em si mesma;
d) a sujeição do trabalhador à disciplina da empresa;
e) a organização do trabalho pelo recebedor deste;
f) uma retribuição certa, com referência a um determinado período de tempo;
g) a propriedade dos instrumentos de trabalho pertencer ao empregador;
h) a existência de outros trabalhadores subordinados ao mesmo empregador.
Igualmente Maria do Rosário Palma Ramalho, in “Direito do Trabalho”, Parte II – Situações Laborais Individuais, 3ª edição, páginas 43 e 44, enuncia uma série de indícios, designadamente:
a) a titularidade dos meios de produção ou dos instrumentos de trabalho;
b) o local de trabalho;
c) o tempo de trabalho;
d) o modo de cálculo da remuneração;
e) a assunção do risco da não produção dos resultados;
f) o facto de o trabalhador ter outros trabalhadores ao seu serviço;
g) a dependência económica do trabalhador;
h) o regime fiscal e o regime de segurança social a que o trabalhador se encontra adstrito;
i) a sujeição do trabalhador a ordens directas ou a simples instruções genéricas e o controlo directo da sua prestação pelo credor;
j) a inserção do trabalhador na organização predisposta pelo credor e a sua sujeição às regras dessa organização.
Analisando toda esta panóplia de indícios sugeridos pela doutrina, verifica-se que os mesmos podem, em termos sistemáticos, dividir-se entre internos e externos.
Os indícios internos são, por exemplo, a vinculação a horário de trabalho; a prestação da actividade em local definido pelo empregador; a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo mesmo; a retribuição em função do tempo; a obediência a ordens; a sujeição à disciplina da empresa; o pagamento de férias, subsídio de férias e de Natal; e a inserção na organização produtiva.
Já como indícios externos, temos, entre outros, a exclusividade de empregador; a inscrição nas Finanças como trabalhador dependente; o tipo de declaração de IRS; e o registo na Segurança Social.
De salientar que a valoração de tais índices teria de ser efectuada globalmente e atendendo às circunstâncias concretas em que a prestação era realizada.
Com efeito, exigia-se que tais indícios fossem claros, precisos e conclusivos. É que podia bem suceder que com eles se confundissem certas vinculações contratuais que, atenta a natureza do resultado contratado, teriam pleno cabimento no contrato de prestação de serviço, pois, conforme se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/11/1989, in Boletim do Ministério da Justiça, 391, 388, nada obsta a que neste contrato possa haver ordens ou instruções, desde que estas se dirijam ao objecto do resultado a alcançar e não à forma de o atingir.
É o que sucede, por exemplo, no mandato e na empreitada, modalidades típicas do contrato de prestação de serviço: o mandante pode dar instruções genéricas ao mandatário (cfr. artigo 1161º nº 1 do Código Civil); o dono da obra pode fiscalizar a execução dela (cfr. artigo 1209º nº 1 do Código Civil).
6. Entretanto, com a aprovação do Código do Trabalho de 2003, o Legislador, reconhecendo expressamente esta dificuldade de, em concreto, traçar uma fronteira definida entre os dois tipos de contrato supra enunciados, optou por consagrar uma presunção, vertida no artigo 12º de tal diploma, nos termos do qual se presumia existir contrato de trabalho sempre que, cumulativamente, se verificassem as cinco situações concretas nele taxativamente previstas.
Assim, se é certo que continuou a ser ao trabalhador que incumbia o ónus de provar que celebrou um contrato de trabalho, por tal consubstanciar matéria constitutiva do seu direito; não é menos verdade que, a partir da aprovação do Código do Trabalho de 2003, passou esse mesmo trabalhador a poder beneficiar da presunção legal aí consagrada no artigo 12º (desde que lograsse provar os respectivos elementos constitutivos), o que teria como consequência inverter o ónus da prova, passando então a caber ao empregador a alegação e prova de que o contrato celebrado entre as partes não consubstanciava um contrato de trabalho.
Não obstante, tal norma veio mais tarde - pouco mais de dois anos depois - a ser alterada pela Lei nº 09/2006, de 20/03, passando a ter a seguinte redacção: “Presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”.
Ora, basta uma simples análise superficial a esta norma para se concluir, tal como se defendeu nos Acórdãos da Relação do Porto de 02/11/2009 (proferido no âmbito do processo nº 553/07.2TTMAI.P1) e de 13/07/2011, publicado in www.dgsi,pt; que esta redacção dada ao artigo 12º do Código do Trabalho de 2003 pela Lei nº 09/2006, de 20/03 se limita a indicar os elementos definidores da noção legal de contrato de trabalho enunciada no artigo 10º do Código do Trabalho.
Como se escreveu nos dois Acórdãos agora citados, “o legislador andou hesitante quanto ao modo como regular a presunção de laboralidade”, em consequência do que acabou por publicar uma redacção absolutamente ineficaz para atingir o fim pretendido, uma vez que não consagra quaisquer elementos relevantes que permitam qualificar, anda que presumidamente, a existência de um contrato de trabalho – nesse sentido, vide Paula Quintas e Hélder Quintas, in “Código do Trabalho Anotado e Comentado”, 2009, página 84.
Dessa forma, mesmo sob o regime do Código do Trabalho de 2003, mais não restou ao julgador que continuar a aplicar o “método indiciário”, exactamente nos mesmos termos em que o fazia durante a vigência da LCT.
Ou seja, independentemente da consagração desta presunção legal no Código do Trabalho de 2003, continuará sempre a ser boa prática, tal como sucedia no regime anterior, recorrer à verificação, em cada caso, de um conjunto de indícios da existência ou inexistência de subordinação jurídica, particularmente nas situações, como a dos autos, em que as partes divergem quanto à qualificação do contrato.
Assim sendo, será com base nessas premissas que a questão aqui em discussão será analisada e apreciada. (Abro aqui um parêntesis, apenas para deixar expressamente consignado a aprovação do Código do Trabalho de 2009 voltou a introduzir relevantes alterações em todo este sistema legal. Contudo, na sequência daquilo que já antes referi quanto ao diploma legal aqui aplicável, desnecessário se afigura procedermos a qualquer exposição, mesmo que sucinta, do novo regime legal dali resultante).
6 - Aqui chegados, cumpre então aplicar todos estes princípios normativos ao caso concreto que se nos depara.
E devo desde logo começar por frisar que a solução a dar ao mesmo não é simples nem linear.
Com efeito, ficou provado nos autos que a partir de 2008 a Autora passou a exercer funções de fisioterapeuta em duas clínicas pertencentes à Ré.
Porém, analisando toda a factualidade demonstrada nos autos, verifica-se que a mesma não é uniforme nem permite conduzir a uma conclusão inequívoca quanto à natureza do contrato celebrado entre as partes e que esteve na origem daquele exercício de funções. Ao invés, tanto existe uma panóplia de factos susceptíveis de consubstanciar indícios da existência de um contrato de trabalho; como uma série de outros factos, já indiciadores da celebração de um contrato de prestação de serviços.
Senão vejamos.
7 - Em primeiro lugar, sabemos que a Autora exercia as suas funções nas instalações da Ré, mais propriamente nas clínicas de que esta é proprietária, sitas em … e em …, utilizando os respectivos gabinetes e marquesas nos mesmos existentes.
Além disso, a maior parte do material utilizado pela Autora na execução de tais funções – designadamente os consumíveis; as toalhas; o aparelho de ultra-som; o tapete rolante; a bicicleta estática; a cadeira de quadricípite; a gaiola de “Rocher”; os alteres; as bandas elásticas; a tábua de “Freeman”; o espaldar; as escadas; as bolas de pilates e as roldanas – pertenciam à Ré e eram-lhe fornecidos por esta.
A Autora estava integrada na organização das duas clínicas da Ré, tendo de exercer a sua actividade dentro dos horários de funcionamento das mesmas; e em interacção com o respectivos serviços administrativos.
A Autora estava obrigada a prestar informações à Ré acerca de todo e qualquer episódio anómalo que sucedesse com os utentes; de qualquer reclamação que lhe fosse dirigida pelos utentes; bem como do estado de conservação do material e das falhas e carências do mesmo material. Além disso, ela era periodicamente questionada pela direcção da Ré acerca da forma como estava a decorrer a sua actividade; e não podia aplicar terapêuticas e utilizar materiais não aprovados pela Ré.
A Autora gozava férias.
Por último, a Autora auferiu sempre uma quantia pecuniária fixa de 10,00€ por cada hora de serviço; que durante bastante tempo foi a sua única fonte de rendimento.
Ora, todos estes factos podem objectivamente ser considerados como indícios internos da existência de um contrato de trabalho, uma vez que conduzem no sentido de concluir que a Autora estava vinculada a um poder de subordinação e de direcção da Ré.
8 - Não obstante, existem também, e por outro lado, toda uma série de factos que permitem concluir em sentido oposto.
Assim e para começar, resulta absolutamente evidente que ao longo de todo o tempo que exerceu funções para a Ré, a Autora nunca recebeu desta, em contrapartida, uma determinada quantia mensal fixa e certa.
Pelo contrário - e apesar de sabermos já que os honorários pagos à Autora terem sido sempre num valor horário fixo de 10,00€ - os montantes mensais por ela auferidos nunca foram iguais, antes variando sempre dentro de intervalos muito elevados.
A título de exemplo, basta atentar no ano de 2012 para concluir que os honorários da Autora variaram entre um valor mínimo de 964,50€, em Maio; e um valor máximo de 1 520,00€, em Julho, o que corresponde a uma diferença de 559,50€.
Ora, esta factualidade assume enorme relevância para uma outra questão, que é a de saber se a Autora estava ou não obrigada ao cumprimento de algum horário fixo.
Com efeito, e voltando ao exemplo concreto supra apontado, estamos aqui perante uma diferença de (560,00€ / 10€) 56 horas de actividade efectiva, e não apenas perante um intervalo de algumas horas, que pudesse ser imputável à simples diferença do número de dias úteis de cada mês.
Não se olvide que a Autora não auferia honorários em razão do número de pacientes tratados, mas sim do número de horas em que estava ao serviço da Ré, pelo que tal grandeza de variação impõe necessariamente a conclusão de que, embora estivessem estipulados horários, a Autora não podia estar obrigada a cumpri-los.
Adiante-se ainda que esta mesma conclusão é aplicável a todos os demais anos em que a Autora exerceu funções para a Ré, uma vez que em qualquer um dos mesmos se verifica esta mesma realidade de a retribuição mensal auferida pela Autora não ser uniforme (sendo que em todos esses anos a amplitude destas diferenças retributivas mensais foi ainda superior à do ano de 2012, que usamos como bitola).
Por outro lado, e em reforço desta mesma conclusão, dispomos ainda de vários outros factos que ficaram demonstrados nos autos, designadamente:
- a Autora podia acordar livremente com a sua colega D… a organização dos horários de exercício de funções, de maneira a que, durante as ausências de uma a outra assumia o serviço da primeira, recebendo o respectivo pagamento;
- a Autora podia sempre, de acordo com a sua disponibilidade, alterar o horário de atendimento;
- quando não houvesse marcação de tratamentos, a Autora não teria que se deslocar para as instalações da Ré.
Além disso, a Autora marcava as suas próprias férias, limitando-se a comunicar à Ré, com antecedência, que não estaria disponível para exercer funções naquelas datas, sem que tivesse ficado demonstrada a necessidade de aprovação por parte da instituição bem como qualquer limitação em termos de número de dias de ausência.
A Autora também agendava tratamentos, que efectuava nas clínicas da Ré, para doentes que com ela contactavam directamente, sem que do facto tivesse dado o prévio conhecimento à funcionária da recepção.
Por último, a Autora gozava de total autonomia técnica, fazendo a avaliação das várias situações que lhe eram apresentadas pelos utentes da Ré, ministrando os tratamentos de fisioterapia e avaliando a evolução desses mesmos utentes, sem qualquer interferência por parte da instituição.
Esta limitava-se a solicitar periodicamente informações sobre a actividade exercida pela Autora, como o objectivo de permitir à Ré ter conhecimento de como estava a decorrer a valência de fisioterapia.
Ora, todos estes factos - ao contrário dos primeiros que enunciei - constituem indícios susceptíveis de concluir que não estamos perante um contrato de trabalho, uma vez que contêm elementos típicos de contratos em que não existe subordinação jurídica.
Com efeito, estes factos não são passíveis de indiciar pela inexistência de um elo de subordinação ou de prestação de meios; mas apenas da existência da obrigação de obter um determinado resultado.
9 - Ou seja, tudo ponderado, estamos perante uma situação em que se afigura extremamente difícil poder afirmar com segurança e de forma absolutamente convicta qual a natureza do contrato celebrado entre as partes, uma vez que o mesmo se encontra preenchido por elementos dos dois tipos legais em confronto.
Assim sendo, face à existência de tais dúvidas e por aplicação da regra do ónus de prova prevista no artigo 342º do Código Civil, apenas restaria ao tribunal decidir pela improcedência da tese da Autora (não se olvide, o que aqui mais uma vez reitero, que era sobre este que recaia o ónus de demonstrar a natureza laboral do contrato e não o inverso).
10 – Esta conclusão, porém, sai ainda mais reforçada por duas vias complementares.
A primeira está relacionada com o facto de ter sido a própria Autora quem, não obstante ter interpelado por várias vezes a Ré no sentido da celebração de um contrato de trabalho, não aceitou a proposta que nesse sentido lhe foi apresentada pela instituição em Março de 2012, por não concordar com a retribuição base mensal que iria passar a receber, cujo valor seria substancialmente inferior àquele que até então mensalmente efectivamente estava a auferir a “recibos verdes”.
Ou seja, foi a própria Autora quem, por sua própria vontade, não quis celebrar com a Ré um contrato de trabalho, preferindo continuar a usufruir das vantagens que a qualificação da sua relação com aquela como contrato de prestação de serviços lhe proporcionava. Logo, tem necessariamente de se concluir que, a partir daquela data, a Autora tinha perfeito conhecimento de que – pelo menos formalmente e para efeitos retributivos - se mantinha numa situação de prestadora de serviços.
Depois, importa ter em consideração a jurisprudência consagrada, entre outros, nos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 23/01/2003 e da Relação do Porto de 02/05/2011 - ambos consultáveis na internet, no sítio www.dgsi.pt - nos quais se decidiu que no domínio das profissões liberais devem, em princípio, os respectivos acordos ser entendidos como de prestação de serviços.
Este raciocínio é, quanto a mim, absolutamente pertinente e defensável.
Com efeito, qualquer fisioterapeuta (tal como sucede, por exemplo, com um arquitecto, um médico, um advogado ou um veterinário) é necessariamente alguém dotado de qualificações superiores às da média, desde logo porque obrigatoriamente dotado de uma licenciatura universitária, cuja formação e preparação está directamente vocacionada para o exercício de uma actividade liberal, autónoma e independente.
Como tal, embora seja possível que na prática assim não suceda, impende sobre o profissional que se encontra nessas condições um ónus reforçado de convencer o tribunal da existência inequívoca de um vínculo efectivo de subordinação.
O que no caso, como resulta evidente, não sucedeu.
De todo este circunstancialismo, portanto, sai ainda mais reforçado o desequilíbrio dos “pratos da balança” no sentido da natureza não laboral do contrato celebrado entre as partes.
Tudo ponderado, entendo que não é possível, em concreto, concluir pela existência de um vínculo de subordinação jurídica e de dependência da Autora relativamente à Ré, o que impossibilita extrair a conclusão de que tal relação consubstanciou um verdadeiro contrato de trabalho.” – fim de citação.

Face a tal fundamentação, consideramos que a mesma responde em geral, de um modo que temos como adequado, à questão fundamental objecto de recurso, assim da qualificação do contrato, tratando todas as questões que o caso concreto requer, sem deixar de evidenciar, aliás, as próprias dúvidas que se apresentaram ao Julgador e a razão por que essas ultrapassou, no sentido do decidido.
Não obstante, apesar de algum risco de repetição, permitimo-nos dizer o seguinte:
Desde logo, tal como tem sido repetidamente dito pela Jurisprudência, reafirmando que a lei aplicável para efeitos da denominada presunção de laboralidade é a que vigorava à data do início da relação entre as partes, salvo alteração ocorrida nessa relação em momento posterior, do que decorre, por se situar o início dessa relação em Fevereiro de 2008, ser aplicável ao caso será o artigo 12.º do CT/2003, mas com a redacção da Lei n.º 9/2006, de 20/03, com a redacção seguinte: “Presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição.”[10]
Não sendo reconhecidamente essa redação a mais feliz por parte do legislador, acabou depois por ser alterada no Código de 2009. Disso mesmo nos dá nota a decisão recorrida, por apelo aos Acórdãos desta Relação de 02/11/2009 e 13/07/2011, citando-se aqui, como nessa, desses o seguinte:
“o legislador andou hesitante quanto ao modo como regular a presunção de laboralidade”, em consequência do que acabou por publicar uma redacção absolutamente ineficaz para atingir o fim pretendido, uma vez que não consagra quaisquer elementos relevantes que permitam qualificar, anda que presumidamente, a existência de um contrato de trabalho – nesse sentido, vide Paula Quintas e Hélder Quintas, in “Código do Trabalho Anotado e Comentado”, 2009, página 84.
Dessa forma, mesmo sob o regime do Código do Trabalho de 2003, mais não restou ao julgador que continuar a aplicar o “método indiciário”, exactamente nos mesmos termos em que o fazia durante a vigência da LCT.
Ou seja, independentemente da consagração desta presunção legal no Código do Trabalho de 2003, continuará sempre a ser boa prática, tal como sucedia no regime anterior, recorrer à verificação, em cada caso, de um conjunto de indícios da existência ou inexistência de subordinação jurídica, particularmente nas situações, como a dos autos, em que as partes divergem quanto à qualificação do contrato.”

Refere-se também, a propósito de um caso analisado à sombra da mesma disposição legal, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28 de Janeiro de 2016[11], o seguinte:
“(...) A sobredita presunção trata-se de uma presunção legal ou de direito, já que é a própria lei que deduz de um facto conhecido a ilação (conclusão ou inferência) da verificação de um facto desconhecido.
Quem tem a seu favor uma presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz, nos termos do n.º 1 do artigo 350.º do Código Civil, bastando-lhe provar o facto que serve de base à presunção, sendo que a prova deste equivale à prova do facto presumido.
No respeitante à força probatória das presunções legais regula o n.º 2 do mesmo artigo 350.º, de harmonia com o qual as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, salvo nos casos em que a lei o proibir.
Por conseguinte, as presunções legais importam a inversão do ónus da prova (artigo 344.º, n.º 1, do Código Civil), sendo designadas por presunções júris tantum as que podem ser ilididas por prova em contrário, e por presunções júris et de jure as que não admitem prova em contrário.
A presunção legal daquele artigo 12.º é uma presunção júris tantum, que importa a inversão do ónus da prova, fazendo recair sobre a parte adversa a prova do contrário do facto que serve de base à presunção ou do próprio facto presumido. (...)
Porém, apesar de não valer tal presunção, nada obsta a que o trabalhador demonstre que existia um contrato de trabalho (cf., neste sentido, PEDRO ROMANO MARTINEZ, Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, p. 315).
2.3. Tal como vem sendo repetidamente afirmado, a extrema variabilidade das situações concretas dificulta muitas vezes a subsunção dos factos na noção de trabalho subordinado, implicando a necessidade de, frequentemente, se recorrer a métodos aproximativos, baseados na interpretação de indícios.
Nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a actividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da actividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da actividade, existência de controlo externo do modo de prestação da actividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a actividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da actividade, a inscrição do prestador da actividade na Segurança Social e a sua sindicalização).
Cada um daqueles indícios tem naturalmente um valor muito relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade (MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 12.ª edição, Almedina, Coimbra, 2004, p. 145), a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo.(...)”

Ora, não podendo deixar de se ter presente que é afinal na existência da subordinação jurídica que, face às dificuldades de qualificação que se reconhecem pela proximidade entre os dois tipos de contrato, se encontra o elemento estruturante da delimitação entre ambos, pois que o contrato de trabalho se caracteriza, como sabemos, fundamentalmente pela dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face ao empregador – aquele fica sujeito às ordens deste, relativamente aos termos em que desenvolve a prestação do seu trabalho e ao respetivo poder disciplinar.
E, nesse sentido, podendo encontrar-se o núcleo diferenciador entre os contratos de trabalho e de prestação de serviços na existência ou não de trabalho subordinado, refere a propósito Monteiro Fernandes[12], com a Mestria que lhe é reconhecida, que “no elenco de indícios de subordinação, é geralmente conferido ênfase particular aos que respeitam ao chamado «momento organizatório» da subordinação: a vinculação a horário de trabalho, a execução da prestação em local definido pelo empregador, a existência de controlo externo do modo de prestação, a obediência a ordens, a sujeição à disciplina da empresa (…). Acrescem, elementos relativos à modalidade de retribuição (em função do tempo, em regra), à propriedade dos instrumentos de trabalho e, em geral, à disponibilidade dos meios complementares da prestação. (…). Cada um destes elementos, tomado de per si, reveste-se de patente relatividade. O juízo a fazer, nos termos expostos, é ainda e sempre um juízo de globalidade, conduzindo a uma representação sintética de tessitura jurídica da situação concreta. Não existe nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos índices de subordinação, desde logo porque cada um desses índices pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso.”
Serão elementos constitutivos da noção de contrato de trabalho, de acordo com a norma legal, a prestação de atividade, a retribuição e a subordinação jurídica.
Por sua vez, ainda a propósito da em geral apontada inexistência de subordinação no contrato de prestação de serviços – o trabalhador, estando contudo vinculado ao resultado da actividade, tem autonomia relativamente aos termos da execução dessa actividade –, teremos também de reconhecer que nos deparamos, não raras vezes, com situações de fronteira em que se conjugam elementos que apontam para uma situação de trabalho subordinado com outros que são tidos como típicos da autonomia da atividade que caracteriza a prestação de serviço, exigindo-se então, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de fevereiro de 2012[13], que se façam intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam essa subordinação, os chamados indícios negociais internos[14] e externos[15], sem esquecermos também, como lembra Monteiro Fernandes[16], que “cada um destes elementos, tomado de per si, reveste-se de patente relatividade”, pelo que “o juízo a fazer (…) é ainda e sempre um juízo de globalidade, conduzindo a uma representação sintética da tessitura jurídica da situação concreta”, não existindo “nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos índices de subordinação, desde logo porque cada um desses índices pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso”. Ou seja, como se conclui no citado Acórdão de 12 de novembro de 2015, por uma lado torna-se “necessária uma ponderação global dos elementos indiciários constatados, tentando encontrar o sentido dominante dos mesmos, procurando encontrar uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço”, e por outro, que “a conclusão no sentido da existência de subordinação jurídica, a partir dos indícios de subordinação indicados, e a consequente qualificação laboral do contrato deve (…) ser rodeada das cautelas normalmente exigidas pela aplicação de um método indiciário à qualificação de um negócio jurídico”, devendo ainda, citando Maria do Rosário da Palma Ramalho[17], “ter especial atenção à evolução moderna do contrato de trabalho enquanto tipo negocial e, por fim, não deve conduzir a um resultado qualificativo contrário à vontade real das partes na conclusão do negócio”.
Ora, no caso, fazendo tal percurso, ainda que se possa aceitar que a Autora, face ao que se provou, estivesse de algum modo inserida na estrutura organizativa da Ré – como se refere na sentença recorrida “a Autora estava integrada na organização das duas clínicas da Ré, tendo de exercer a sua actividade dentro dos horários de funcionamento das mesmas; e em interacção com o respectivos serviços administrativos” –, já não se pode dizer que a sua actividade fosse efectivamente realizada sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré. Afinal, diversamente, era ela Autora quem definia o número de sessões que o doente iria necessitar para concluir o respectivo tratamento, ou quem definia (e pedia) também quais os instrumentos e produtos que necessitava que a Ré adquirisse para poder realizar os tratamentos nos utentes – compatível com o facto de não poder aplicar terapêuticas e utilizar materiais não aprovados pela Ré –, estando apenas obrigada, a prestar informações acerca de todo e qualquer episódio anómalo que sucedesse com os utentes, de qualquer reclamação que lhe fosse dirigida por estes, bem como sobre o estado de conservação do material e das falhas e carências que houvesse quanto a esse. Sem essa relevância, também, o facto de ser periodicamente questionada pela direcção da Ré acerca da forma como estava a decorrer a sua actividade, tanto mais que, como se provou (facto jj) constante da sentença), esse mencionado se destinava afinal a permitir que a Ré tivesse conhecimento de como estava a decorrer a valência de fisioterapia – e não pois, por exemplo, a “controlar” o modo de execução da actividade. Ainda, sobre “retribuição, a verdade é que o valor recebido em dinheiro pela actividade prestada era contabilizado pelo número de horas em que efectivamente exercesse essa actividade, sendo certo que, face ao que se provou, tendo se ser prestada essa actividade dentro de horários previamente acordados entre as partes – inicialmente, na clínica de … três manhãs por semana, entre as 09:00 e as 13:00 horas, e na clínica de …, de segunda a sexta-feira, entre as 15:00 e as 20:00 horas; no período compreendido entre 02 de Janeiro de 2012 e 10 de Setembro de 2012, das 09:00 às 20:00 ou 20:30 horas, com almoço das 12:00 às 13:00 horas, permanecendo na clínica de … da parte da manhã e na clínica de … da parte da tarde, de segunda a sexta-feira; por último, a partir de Novembro de 2013, das 15:00 às 20:00 horas, de segunda a sexta-feira, em … –, esse horário de atendimento dos doentes foi sempre definido de acordo com a disponibilidade da Autora, destinando-se o controlo efectuado pela Ré sobre o número de horas de actividade desenvolvida pela Autora – inicialmente através da assinatura de um livro próprio e, posteriormente, através de um mecanismo electrónico – apenas a registar o número de horas durante as quais os serviços eram prestados, pois que só assim os serviços administrativos da Ré conseguiam aferir, no final de cada mês, o número total de horas a serem pagas à Autora (alíneas dd, ee e ff). Para além do que se referiu, face aos indícios que resultam dos factos provados, numa visão global que considere os critérios antes enunciados, no sentido do afastamento da existência de um contrato de trabalho, deparamo-nos ainda com o seguinte: - Tendo sido o horário de atendimento dos doentes sempre definido por acordo entre a Autora e a Ré, de acordo com a disponibilidade da primeira, por vezes a mesma também agendava tratamentos que efectuava nas clínicas da Ré, nos intervalos em que sabia que não tinha outra marcação, para doentes que com ela contactavam directamente, sem que do facto tivesse dado o prévio conhecimento à funcionária da recepção; - A Autora e a outra profissional que exercia funções da mesma natureza (D…) podiam acordar livremente entre ambas a organização dos horários de exercício de funções, de maneira a que, durante as ausências de uma a outra assumia o serviço daquela, recebendo o respectivo pagamento; - A Ré apenas pedia à Autora para avisar a avisar quando não pudesse comparecer, para que as recepcionistas pudessem desmarcar (e remarcar) antecipadamente os tratamentos que estavam previstos para o período de ausência daquela; - Se porventura não houvesse marcação de tratamentos, a Autora não teria que se deslocar para as instalações da Ré, e esta nada lhe tinha de pagar; - O controlo das horas prestadas pela Autora destinava-se apenas a registar o número de horas durante as quais os serviços eram prestados, pois que só assim os serviços administrativos da Ré conseguiam aferir, no final de cada mês, o número total de horas a serem pagas à Autora; - A Autora ausentava-se do serviço vários dias por ano, com o intuito de gozar férias, dias esses que previamente comunicava à Ré, sendo que não recebia nesses dias qualquer retribuição; - No seguimento de interpelação da Autora acerca da possibilidade da sua integração no quadro de pessoal da instituição, através da correspondente celebração de um contrato de trabalho, ao que a Ré anuiu em 30 de Março de 2012 a Ré – chegando inclusive a requerer junto do Instituto da Segurança Social, I.P. a inscrição daquela como sua trabalhadora, com efeitos a partir de 01 de Abril de 2012 –, foi a própria Autora quem acabou por recusar celebrar o contrato de trabalho com a Ré, por não concordar com o vencimento proposto, cujo valor seria substancialmente inferior (devido aos descontos e demais deduções legais) àquele que mensalmente efectivamente estava a auferir; - as partes acordaram que a Ré pagaria à Autora a quantia de 10,00€, por cada hora de exercício de funções, do que decorreu a variação, face ao diverso número de horas, o pagamento de quantitativos mensais diferentes, sendo efectuados esses pagamentos contra a emissão pela Autora dos denominados “recibos verdes”; Na data em que a Autora deixou de exercer mais funções para a Ré, exercia também outra actividade, num estabelecimento que ela própria abriu ao público em ….
Deste modo, dentro da exigida visão global dos indícios manifestados no caso, num e noutro sentido, não poderemos deixar de considerar, concordando com a decisão recorrida, que não está demonstrado o elemento essencial, assim de existência de subordinação jurídica, que caracteriza, como se referiu anteriormente, o contrato de trabalho face ao contrato de prestação de serviços.
Improcede pois também o recurso nesta parte, não obtendo fundamento as respectivas conclusões.
E, por decorrência, por depender o demais da procedência do recurso quanto à questão anterior, assim da qualificação da relação como laboral, claudicando o recurso nessa pretendida qualificação, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões levantadas nas conclusões do recurso, porque directamente dependentes daquela qualificação.
Decaindo, a Recorrente suporta as custas do recurso.
***
IV – DECISÃO:
Acordam os juízes que integram a Secção social do Tribunal da Relação do Porto, procedendo parcialmente o recurso quanto à matéria de facto, em considerar no mais improcedente o recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC, anexa-se o sumário do presente acórdão, da responsabilidade exclusiva do relator.
*
Porto, 24 de Abril de 2017
Nelson Fernandes
Fernanda Soares
Domingos Morais
____________
[1] Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2013, p. 221/222
[2] Op. cit., p. 235/236
[3] cf. neste sentido o Ac. STJ de 24/09/2013, in www.dgsi.pt
[4] cf. Ac. STJ de 28 de Maio de 2009, in www.dgsi.pt
[5] In, Estudos Sobre o Processo Civil, pág. 71.
[6] Neste sentido, Ac. desta Relação e Secção de 11 de Junho de 2012, Relatora Fernanda Soares, processo 2/10.9TTMTS.P1.
[7] Apelação 2311/14.9T8MAI.P1, com intervenção do aqui relator e Adjuntos, disponível em www.dgsi.pt.
[8] disponível em www.dgsi.pt
[9] Também disponíveis para consulta em www.dgsi.pt.
[10] “Presume-se que as partes celebraram um contrato de trabalho sempre que, cumulativamente:
a) O prestador de trabalho esteja inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as orientações deste;
b) O trabalho seja realizado na empresa beneficiária da actividade ou em local por esta controlado, respeitando um horário previamente definido;
c) O prestador de trabalho seja retribuído em função do tempo despendido na execução da actividade ou se encontre numa situação de dependência económica face ao beneficiário da actividade;
d) Os instrumentos de trabalho sejam essencialmente fornecidos pelo beneficiário da actividade;
e) A prestação de trabalho tenha sido executada por um período, ininterrupto, superior a 90 dias.”
[11] Recurso 2501/09.6TTLSB.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Direito do Trabalho, 11.ª edição, Almedina, págs. 143 e 144.
[13] Processo 2178/07.3TTLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, citado no Ac. do mesmo Tribunal de 12 de novembro de 2015, processo 618/11.6TTPRT.P1.S1, também no mesmo Sítio.
[14] Citando: “a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a atividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da atividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da atividade, existência de controlo externo do modo de prestação da atividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa.”
[15] Citando de novo: “o número de beneficiários a quem a atividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da atividade, a inscrição do prestador da atividade na Segurança Social e a sua sindicalização”.
[16] Direito do Trabalho, 14.ª Edição, 2009, Almedina, p. 149, citado no mesmo Acórdão de 12 de novembro de 2015.
[17] Ob. cit. pág. 44.
________
Sumário – a que alude o artigo 663.º, n.º 7 do CPC:
1- O núcleo diferenciador entre contrato de trabalho e de prestação de serviços assenta na existência ou não de trabalho subordinado, sendo de conferir, dentro dos indícios de subordinação, particular ênfase aos que respeitam ao chamado «momento organizatório» da subordinação.
2- Impendendo sobre o autor que pretende ver reconhecida a existência de um contrato de um contrato de trabalho, de acordo com o regime decorrente do n.º 1 do artigo 342.º do CC, o ónus de alegar e provar os factos necessários ao preenchimento dos elementos constitutivos do contrato, estabeleceu o legislador, com o objectivo de facilitar essa tarefa, uma presunção legal, vulgarmente denominada de laboralidade, prevista no artigo 12.º do CT/2003.
3- Não sendo a redacção dada ao artigo 12.º do CT/2003 pela Lei n.º 9/2006 eficaz para atingir o fim pretendido – uma vez que não consagra quaisquer elementos relevantes que permitam qualificar, anda que presumidamente, a existência de um contrato de trabalho –, sendo essa a aplicável, impõe-se então ao julgador, afinal nos mesmos termos em que o fazia durante a vigência da LCT, a verificação do conjunto de indícios que tenha disponíveis no caso sobre a existência ou inexistência de subordinação jurídica, ponderando-os globalmente, tentando encontrar o seu sentido dominante, assim uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço.

Nelson Fernandes