Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
653/15.5PHVNG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: ESCUSA
RELAÇÕES DE AMIZADE
ARGUIDO
Nº do Documento: RP20170308653/15.5PHVNG-A.P1
Data do Acordão: 03/08/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: INCIDENTE DE ESCUSA
Decisão: DEFERIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS N.º10/2017, FLS.249-251)
Área Temática: .
Sumário: Existindo relações de proximidade entre a família do arguido e o juiz para deferir a escusa o que releva não é tanto o facto de o juízo conseguir ou não manter a sua imparcialidade, mas defendê-lo da suspeita de a não conservar, não dando azo a qualquer duvida, por essa via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dois seus magistrados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 653/15.5 PHVNG-A.P1
Pedido de escusa
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I Relatório
No processo supra identificado, que corre termos pela Secção Criminal (J2) da Instância Local de V.N. de Gaia, Comarca do Porto, o Ministério Público deduziu acusação contra B…, imputando-lhe factos que consubstanciariam a autoria material de um crime de ofensa à integridade física simples.
Recebida a acusação e designada data para a audiência, iniciada esta, a Sra. Juiz titular, Dra. C…, de imediato, ditou o seguinte despacho:
Tendo em conta que o arguido B… é pessoa do meu conhecimento pessoal e com quem eu já privei, vou suscitar o incidente de escusa, pelo que se dá sem efeito o julgamento”.
Concretizando tal propósito, a Sra. Juiz formulou pedido de escusa de intervenção nestes autos “ao abrigo do disposto no artº 119º do CPC”, aduzindo os seguintes fundamentos (reprodução integral):
Com efeito, conheço o arguido e a sua família desde os seis anos de idade, tendo frequentado em determinada altura, e de forma frequente, a sua casa. Fui colega de escola da sua filha mais velha.
O arguido integra, ainda, a esfera de relações sociais dos progenitores da subscritora (ilustrativo destas é a circunstância de após o adiamento da diligência ter dado conta de se ter cruzado com o meu progenitor há pouco tempo, recomendando-me transmitisse a ambos os seus cumprimentos).
Se é certo que a minha isenção não seria diversa da que sempre pauta a minha postura em qualquer processo, entendo que – por que à justiça não basta ser séria, exigindo-se que assim se apresente perante os sujeitos processuais – o facto de conhecer pessoalmente o arguido poderá conduzir a suspeição sobre a decisão final a proferir: do arguido no sentido de questionar se a decisão não decorreria da necessidade do ofendido não questionar a relevância daquelas na minha decisão (em caso de condenação); a do ofendido, e caso se conclua pela absolvição, se esta não derivaria de conhecer pessoalmente o arguido.
Assim, entendendo existirem razões sérias para os sujeitos processuais questionarem a minha imparcialidade, requer-se, à luz do artº 120º, al. g), do CPC, requer-se a V. Ex.ª se digne deferir o presente pedido de escusa”.
Fez acompanhar o pedido de certidão da acusação pública.
Recebidos os autos nesta Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto absteve-se de emitir qualquer parecer, por entender que o Ministério Público não tem intervenção neste incidente.
*
Colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II - Fundamentação
Entre os princípios que integram a chamada constituição processual penal, prevê o art.º 32.º da Constituição o princípio do juiz natural ou juiz legal (n.º 9).
Uma das dimensões fundamentais desse princípio é a exigência de que o juiz chamado a proferir decisões num caso concreto esteja prévia e inequivocamente individualizado através de lei geral, proibindo-se, assim, não só os tribunais “ad hoc” ou a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime, mas também que a fixação da competência fique dependente de uma qualquer apreciação discricionária (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, I, 2007, 525).
Daí que o afastamento do juiz (natural) do processo só possa ser determinado por razões mais fortes do que aquelas que o referido princípio visa salvaguardar, ou seja, a regra do juiz natural ou legal só pode ser derrogada em casos excepcionais, para dar satisfação bastante e adequada a outros princípios constitucionais, como o da imparcialidade.
Assim acontecerá se houver motivo sério e grave adequado a suscitar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz natural (n.º 1 do art.º 43.º do Cód. Proc. Penal).
Havendo o risco de a sua intervenção ser considerada suspeita, deve ser o próprio juiz a desencadear o processo que leve ao seu afastamento, dirigindo ao tribunal imediatamente superior pedido de escusa.
Com efeito, circunstâncias específicas há que podem colidir com o comportamento isento e independente do julgador, pondo em causa a sua imparcialidade, bem como a confiança dos sujeitos processuais e do público em geral. Verificando-se alguma ou algumas dessas circunstâncias, há que substituir o julgador por outro em relação ao qual não possa suscitar-se essa desconfiança.
A imparcialidade é atributo fundamental dos juízes e da função judicial e visa garantir o direito de todos os cidadãos a um julgamento justo e equitativo.
Sobre os juízes recai o dever de adoptar uma conduta pessoal, social e profissional que, aos olhos de uma pessoa razoável, bem informada e de boa fé, seja entendida como íntegra, leal e correcta.
É “a confiança pública nos juízes (que) garante o respeito pelas suas decisões e o prestígio e boa imagem da Administração da Justiça e do próprio Estado de direito democrático. Essa percepção social da incorruptibilidade, probidade e honestidade dos juízes não pode ser minimamente beliscada por qualquer atitude do juiz que a ponha em causa”[1].
Estando, permanentemente, sujeito a escrutínio público, ao juiz exige-se que evite “comportamentos que ponham em causa a confiança nas suas qualidades para administrar a Justiça, tendo sempre presente que o seu exemplo pessoal quotidiano é relevante…”[2].
Por isso, quando a independência do juiz possa ser legitimamente questionada e/ou quando ocorram situações susceptíveis de gerarem dúvidas sobre a sua imparcialidade, o accionamento do mecanismo de escusa constitui um poder-dever a exercer criteriosamente pelo juiz.
Assim fez a Ex.ma Sra. Juiz, Dra. C…, que, pelas razões que menciona e se transcreveram supra, entendeu que, aos olhos dos sujeitos processuais, a sua isenção na apreciação e decisão deste caso que lhe foi distribuído pode ser posta em causa.
Sendo múltiplas e de diversa natureza as circunstâncias susceptíveis de gerar desconfiança quanto à imparcialidade do juiz, elas podem ser analisadas e avaliadas numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.
Quando testada numa perspectiva subjectiva, tem-se em vista apurar se o juiz manifestou, ou existe motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, se guarda, em si, qualquer motivo para favorecer ou desfavorecer um interessado na decisão, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador, mas só “factos objectivos evidentes” legitimam o afastamento da presunção de imparcialidade (assim, Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 127).
Numa perspectiva objectiva, visa-se determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode, fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique, sendo certo que o motivo sério e grave há-de decorrer de “objectiva justificação, avaliando-se as circunstâncias invocadas pelo Requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador” (acórdão do STJ de 07.04.2010, disponível em www.dgsi.pt/jstj; Relator: Cons. Pires da Graça).
Como mui doutamente se exprime o STJ no acórdão de 12 de Maio de 2004, disponível em www.dgsi.pt/jstj (Cons. Henriques Gaspar) “...a dimensão subjectiva não basta à afirmação da garantia. Releva, também, e cada vez mais com acrescido reforço, uma perspectiva objectiva, que é consequencial à intervenção no direito processual, com o suporte de um direito fundamental, de um conceito que não era, por tradição, muito chegado à cultura jurídica continental: a aparência, que é traduzida no adágio "justice must not only be done; it must also be seen to be done", que revela as exigências impostas por uma sensibilidade acrescida dos cidadãos às garantias de uma boa justiça.
Perspectiva esta em que “...intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulabilidade de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra o interessado na decisão - o titular da causa.
(…)
A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, que poderia ser devastadora, e para não cair na "tirania das aparências" (cfr., Paul Martens, "La tyrannie des apparences", "Revue Trimestrielle des Droits de L´Homme", 1996, pag. 640), ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja mas também pareça ser.
É, ainda, o Sr. Conselheiro Henriques Gaspar a esclarecer que “…circunstâncias ou contingências de relação (amizade ou inimizade) com algum dos interessados, são factores que, dependendo da intensidade, têm justificado a recusa (sendo certo que o fundamento de recusa pode constituir, igualmente, fundamento para pedido de escusa e o juízo prudencial do tribunal na decisão deste pedido será, também, da mesma natureza) com fundamento na afectação da imparcialidade objectiva”[3].
No caso em apreço, tanto quanto resulta dos autos, à Sra. Juíza requerente foi distribuído o processo comum n.º 653/15.5 PHVNG, em que é arguido B…, acusado da autoria de um crime de ofensa à integridade física simples na pessoa de D….
Não se vislumbra nenhum interesse pessoal da peticionante no processo que lhe foi distribuído para julgar e não temos a menor dúvida que o julgaria com total isenção e imparcialidade, como afirma.
Como escreve o Professor G. Marques da Silva no seu “Curso de Processo Penal”, I, 1993, p. 164, “a melhor garantia de imparcialidade reside no carácter de cada um” e nenhuma campanha de intoxicação informativa é capaz de pôr em causa a dignidade de carácter e a probidade funcional dos juízes.
Mas existirá, como pretende a requerente, o risco, do ponto de vista objectivo, de a sua intervenção suscitar “sérias reservas” sobre a sua imparcialidade?
Tendo em consideração o apontado circunstancialismo (relações de proximidade, quer entre a Sra. Juiz peticionante e a família do arguido, quer entre este e os progenitores da Sra. Juiz), é de admitir que qualquer cidadão da comunidade onde a julgadora exerce funções possa contestar a sua imparcialidade, pelo que ocorre legítimo fundamento para a escusa requerida.
Numa situação destas, o que releva não é tanto o facto de o juiz conseguir ou não manter a sua imparcialidade, mas defendê-lo da suspeita de a não conservar, não dando azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados.

III - Decisão
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em deferir o pedido de escusa, dispensando a Sra. Juiz C… de intervir no processo comum n.º 653/15.5 PHVNG, pendente na Secção Criminal (J2) da Instância Local de V.N. de Gaia, Comarca do Porto, em que é arguido B….
Sem tributação.

(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 08-03-2017
Neto de Moura
Ana Bacelar
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[1] “Compromisso Ético dos Juízes Portugueses - Princípios para a Qualidade e Responsabilidade”, documento aprovado no oitavo congresso dos juízes portugueses, editado pelo ASJP.
[2] Idem.
[3] Comentário ao artigo 43.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, p. 147