Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
542/22.7T8PFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PEDRO VAZ PATO
Descritores: EXTINÇÃO DE PROCEDIMENTO CRIMINAL CONTRA PESSOA COLETIVA
INSOLVÊNCIA DE SOCIEDADE ARGUIDA
Nº do Documento: RP20230125542/22.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: A declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado, sendo que ela não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação (como resulta do artigo 234.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Pr 542/22.7T8PFR.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O Ministério Público veio interpor recurso do douto despacho do Juízo Local Criminal de Paços de Ferreira do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este que declarou extinta a responsabilidade criminal da arguida pessoa coletiva com a designação social “N..., Ldª”.

São as seguintes as conclusões da motivação do recurso:
«1. O Ministério Público não se conforma com o despacho judicial que declarou a extinção do procedimento criminal quanto à sociedade arguida “N...” e o arquivamento dos autos (a referência à extinção da pena no despacho recorrido é lapso manifesto, visto que nos autos ainda nem foi realizada audiência de discussão e julgamento).
2. Com efeito, não estão reunidos os pressupostos para que seja declarada a extinção do procedimento criminal e, consequentemente, os autos deveriam ter prosseguidos os seus termos, aguardando pela instauração e conclusão do processo administrativo de dissolução e liquidação da sociedade que iria correr os seus termos na Conservatória do Registo Comercial, tal como resulta do disposto no artigo 234.º/4 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante denominado CIRE).
3. Aliás, essa foi precisamente a promoção efectuada pelo Ministério Público nos presentes autos, na sequência da informação prestada pela CRC da Maia de que o Tribunal competente ainda não tinha efectuado a comunicação prevista no artigo 234.º/4 do CIRE, pelo que o processo administrativo ainda não tinha sido instaurado.
4. A decisão recorrida não tem fundamento legal e, ademais, nem sequer se encontra em consonância com várias decisões proferidas pelos Tribunais superiores relativamente a esta matéria.
5. Analisando a certidão remetida pelo Tribunal onde correu termos o processo de insolvência verificamos ser indubitável que este processo foi encerrado por, após a declaração de insolvência, o administrador da insolvência ter constatado a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente, nos termos do disposto nos artigos 230.º/1,d) e 232.º do CIRE.
6. Tal resulta inequívoco da acta da Assembleia de Credores realizada em 29/11/2006 e que integra a certidão junta aos autos.
7. Portanto, ao contrário do que parece decorrer da decisão recorrida, no caso concreto não se verificou qualquer encerramento da liquidação, nomeadamente nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 230.º/1, f) do CIRE.
8. E, no que tange aos efeitos do encerramento por insuficiência da massa insolvente sobre as sociedades comerciais, o artigo 234.º/4 do CIRE dispõe que “a liquidação da sociedade prossegue nos termos do regime jurídico dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de entidades comerciais, devendo o juiz comunicar o encerramento e o património da sociedade ao serviço de registo competente”.
9. Ou seja, apenas após o registo do encerramento do processo administrativo de dissolução e liquidação, com o cancelamento da matrícula, é que o procedimento criminal poderia ter sido declarado extinto quanto à pessoa colectiva e aqui sociedade arguida.
10. Tal como, apenas a título de exemplo, notou o Tribunal da Relação de Relação de Évora de 26/09/2017), ao notar que “no tocante às sociedades, para efeitos de extinção do procedimento criminal, nos termos do artigo 127.º do CP, apenas o registo da sua dissolução e do encerramento da liquidação fazem extinguir aquelas”.
11. Em suma, o registo da dissolução e do encerramento da liquidação da sociedade arguida ainda não se verificou, pelo que nunca o Tribunal a quo poderia ter proferido a decisão de que ora se recorre.
12. Pelo exposto, é nosso entendimento que o recurso deve ser procedente e o despacho judicial recorrido deve ser integralmente revogado, visto que não se verifica qualquer extinção do procedimento criminal, pelo que os autos deverão prosseguir os seus termos».

O Ministério Público junto desta instância emitiu douto parecer, pugnando pelo provimento do recurso, aderindo integralmente à sua motivação.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – A questão que importa decidir é, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, a de saber se deve, ou não, ser declarada extinta a responsabilidade criminal da arguida pessoa coletiva com a designação social “N..., Ldª”.

III -
É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«Dos elementos documentais que instruem os autos resulta que, a sociedade arguida foi declarada insolvente por sentença, transitada em julgado, tendo o apenso de liquidação sido declarado encerrado, por despacho transitado em julgado.
Da análise da certidão de matrícula da sociedade da Conservatória de Registo Comercial constante dos autos não resulta o registo da extinção da Liquidação.
Contudo, dúvidas inexistem que tal Liquidação se extinguiu, como advém da informação certificada prestada nos autos, encontrando-se os autos arquivados.
Dos presentes autos resulta, então, que a sociedade arguida foi declarada Insolvente, e o processo de Liquidação encontra-se encerrado e findo (inexistindo quaisquer bens), não tendo tal encerramento sido levado (por razões que se desconhecem) ao registo.
Existindo declaração de situação de insolvência, a que acresce o respectivo ingresso em processo de liquidação (mas não de registo da extinção da pessoa colectiva, que pressupõe procedimento administrativo subsequente, ex vi art. 234.º/4 do CIRE), ainda assim entendemos que o tribunal se confronta com um problema de subsistência da responsabilidade criminal – uma vez que se verifica o desaparecimento do centro de imputação da responsabilidade penal – num circunstancialismos em que subsiste a sua aptidão para ser sujeito de relações jurídicas, conferida pelo estatuto da personalidade.
Ora, quanto ao problema com que se confronta estes autos, é de sublinhar que existe divisão entre doutrina e jurisprudência sobre o problema de a extinção da pessoa colectiva produzir, ou não, a extinção da responsabilidade penal por equiparação à morte da pessoa física (v.g., sociedades, aquando do encerramento da liquidação – cfr. art. 160.º/2 do CSC; no sentido de que existirá extinção da responsabilidade, com a extinção da personalidade jurídica, cfr. JORGE DOS REIS BRAVO, Direito Penal dos Entes Colectivos, Ensaio sobre a Punibilidade de Pessoas Colectivas e Entidades Equiparadas, Coimbra Editora, 2008, pp. 375-378; no sentido de que não existe, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 02.05.2006 no Proc. 394/06-1, Acórdão para Fixação de Jurisprudência 5/2006, ambos in www.dgsi.pt).
Assim, no que tange as projecções positivas onde buscar a solução para o problema sub iudicio, uma vez que o RGIT não estabelece qualquer norma específica sobre factos-fundamentos de extinção da responsabilidade criminal, serve-nos aqui a disciplina que verte do Código Penal (cfr. art. 3.º, al. a) do RGIT), sendo de sublinhar, antes de mais, que entre as causas de extinção da responsabilidade não se inclui a extinção da pessoa colectiva (cfr. art. 127.º/1 do CP), sendo pela mobilização de um juízo de equiparação entre a morte da pessoa física e a extinção da pessoa colectiva que centralmente se pugna pela produção do inerente efeito (cfr. JORGE DOS REIS BRAVO, op. loc. cit, pp. 375-378): à perda de personalidade jurídica se associa a extinção da responsabilidade, por se pretender que aqui radica a perda do referente individual da pena – o próprio agente da imputação.
Mas se por aqui se inicia a discussão sobre a matéria, desde logo se tem o problema por deslocalizado: a existência de personalidade jurídica não é, de forma nenhuma, o elemento fundamental que esta parte da doutrina pretende que seja no âmbito da responsabilização criminal de entidades empresariais, já que no corpo normativo da imputação penal a entes colectivos não se estabelece como requisito a existência de personalidade, antes se assimilando no quadro legal todas as organizações que, localizadas no escopo teleológico da norma, permitam identificar os caracteres que impõem a realização de uma pretensão punitiva (cfr. art. 11.º/2 do CP e art. 7.º/1 do RGIT).
O art. 7.º/5 do RGIT, como o art. 11.º/11 do CP, expressamente prevê as fórmulas de execução da sanção penal sobre entidades desprovidas de personalidade e mesmo o art. 127.º/2 do CP, inserido sistematicamente nas causas de extinção do procedimento por crime, estabelece que o património da entidade empresarial responderá pelas multas em que aquela “for condenada” nos casos em que tenha sido extinta, não associando a esta circunstância a extinção dos termos do processo criminal em curso.
Se relativamente aos executores do crime (gerentes, directos ou administradores, pessoas humanas, portanto), a respectiva incriminação pessoal sempre se mostrou possível por gozarem do estatuto de pessoa humana pressuposta pelo direito das sanções éticas (cfr. arts. 11.º/1 e 12.º do CP e art. 27.º da CRP), a existência de uma organização de meios, física ou jurídica, onde se centra um núcleo de interesses que constitui a peça de charneira na formulação de uma vontade desvaliosa à luz dos princípios ético-axiológicos protegidos pelo direito do crime, fundamentou, no percurso histórico e numa abordagem centrada no princípio da culpa, a edificação de um ordenamento que permitisse a sua perseguição.
Por inerência, a extinção da pessoa colectiva (rectius, a perda dessa vida jurídica que se tem por de fraco relevo) é indiferente à existência de responsabilidade criminal, interessando sim apurar da manutenção dos pressupostos materiais que despoletam e escoram essa responsabilidade para lá da sua extinção ou apesar dela, projectados no arquétipo de subjectividade, de representatividade ética e material, não de personalização por ficção jurídica.
Nesse pressuposto se entendeu (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para Fixação de Jurisprudência 5/2006) que a incorporação de uma pessoa colectiva noutra por operação de fusão (geradora de efeito extintivo da pessoa jurídica incorporada – cfr. art. 112.º, al. a) do CSC) não extingue a responsabilidade por contra-ordenação de que a primeira estivesse sendo alvo: perdida a personalidade colectiva mas subsistindo a organização que representava numa outra persona iuridica, a responsabilidade por ilícito de ordenação subsiste, mantendo-se intocada a possibilidade de punir a representação de meios a um desvalor de vontade e de resultado eticamente neutros, ainda que haja ingressado numa outra esfera de titularidade (doutrina avisada que, de resto, recebeu conforto no direito positivo na redacção do art. 11.º/8 do CP, introduzido pela Lei 59/2007 de 04.09).
Podemos, pois, assentar nesta premissa: a atribuição de personalidade jurídica, por intersecção de fictio iuris, a uma organização empresarial não constitui o radical da punição, como a sua subsequente perda não preclude o exercício da mesma, centrando-se a legitimidade do exercício de acção criminal na subsistência dos caracteres essenciais que justificam a incriminação da empresa à luz do corpo normativo do direito das penas, centrado no seu substrato pessoal (as pessoas que concorrem, nas respectivas qualidades, para a formulação da vontade penalmente relevante) e patrimonial (a estrutura de meios corpóreos e incorpóreos alocados à prossecução e execução empírica dessa vontade penalmente relevante).
À guisa de conclusão e em jeito de remate, concluímos que a eliminação da empresa por forma a que se perdam todos os referentes que a individualizam como entidade (ou, por outras palavras, eliminado-se o conceptual de subjectividade que acima caracterizámos) permitirão ter por desaparecido o sistema organizativo que constitui centro de imputação penal, neste quadro se assomando uma situação equiparada à morte da pessoa física patenteada no art. 127.º/1 do CP e a consequente extinção da responsabilidade por conduta penal e, isto, quer o ordenamento jurídico-civil (ou comercial) lhe atribua personalidade jurídica, quer não.
Regressando ao caso dos autos e recordando o que acima relatámos, estando a sociedade declarada insolvente foi desencadeado um procedimento jurisdicional de liquidação, que tem por radical a conversão de todos os capitais fixos e circulantes da empresa em disponibilidades, para alocação ao pagamento do seu universo de credores (cfr. arts. 156.º-170.º do CIRE e arts. 179.º-185.º do CPEREF).
Pela simples declaração insolvencial e posterior ingresso em processo de liquidação, sabemos que a empresa foi despojada do seu quadro de controlo jurídico natural, tendo existido um corte das relações de representação com o quadro de administradores e que os seus sócios se encontram despojados de prerrogativas de controlo ou intervenção; sabemos ainda que os seus elementos de activo e passivo – o leque de bens e relações jurídicas caracterizantes da empresa, como entidade autónoma e própria e que a definem – foram dissolvidos e reestruturados, estando os primeiros integralmente convertidos em verbas monetárias e os segundos agregados num elenco distribuído de prioridades, apenas aguardando pagamento de acordo com um quadro jurídico próprio e que afasta a exigibilidade de outras dívidas, não-integradas nesse elenco.
O processo de liquidação, pois, conduziu à integral desmontagem da auto-referenciação do ente colectivo na dimensão subjectiva e objectiva que, hoje, se reduz a uma massa indistinta de moeda e de dívidas, sem qualquer traço que a destacasse do ambiente em que se enreda, ou, por outras palavras, que lhe conferisse qualquer elemento próprio e identificável.
De facto, a partir do momento em que o processo insolvencial ou falimentar ingressa na liquidação e numa fase de «decomposição» dos elementos integrativos e estruturais da organização para obtenção de fundos monetários, a empresa perde de imediato o seu traço essencial que constitui a premissa fundante da sua incriminação: o de constituir um ente munido de características próprias, uma entidade com actuação autónoma, passível de possuir um desvalor de conduta pessoal, de exprimir, na sua vida empresarial, uma vontade reprovável pelo Direito, autónoma e passível de censura por um prisma ético-jurídico.
A partir desse momento, a empresa passa a representar uma simples soma de elementos patrimoniais e vínculos jurídicos, activos e passivos, que se distribuem por relações jurídico-obrigacionais de acordo com um quadro de prioridade normativo, sem que nenhuma expectativa exista de, depois de decidido o início do processo de liquidação, poder vir a ingressar num inter-relacionamento social onde se pudesse manifestar a perturbação de preceitos éticos de foro criminal (a sua situação é muito mais próxima de uma massa hereditária aberta por óbito de uma pessoa singular, sobre a qual concorrem sujeitos e relações jurídicas creditícias, já não se observando um referente individual digno de registo): a pena, neste ambiente circunstancial, constitui uma inutilidade patente, por nenhum objectivo de política criminal representar, uma vez que a sociedade cessou a sua inter-comunicação com a comunidade jurídica e não voltará a adquirir uma roupagem que permita identificar uma entidade destacada das suas componentes, com um animus próprio e relações materiais próprias com a sociedade humana e jurídica.
Aberta a liquidação, de resto, não é possível realizar, sequer, a ablação patrimonial representada na pena de multa aplicada, quando em respeito pela dogmática penal e insolvencial convocáveis.
De facto, em primeiro lugar, uma multa não conhece uma posição subjectiva activa – um credor –, em sentido próprio, ou seja, não existe propriamente um sujeito jurídico que goze de direito a prestação debitória (de pagar) e que se pudesse apresentar munido desse interesse perante o processo falimentar de acordo com os caracteres do art. 47.º/1 do CIRE.
O traço essencial da multa é a representação de castigo, a realização de um desfalque patrimonial sobre o condenado, por forma a, por essa via, recuperar as expectativas comunitárias sobre a vigência e integridade da norma violada e, por outra parte, obter uma ressocialização da pessoa, um reposicionamento do seu comportamento endógeno e a forma como encara comandos normativos de abstenção com traços de eticidade: não existe, pois, um interesse privado digno de cobertura que capacitasse um sujeito a obter a prestação, subsistindo apenas a realização de um apelo ao condenado e o re-insuflamento da confiança da comunidade, pela materialização da sanção (cfr. art. 40.º/1 do CP).
Por outro lado, a execução criminal da pena de multa, a ser realizada no processo de insolvência, seria efectuada fora do processo-crime, no campo das relações jurídico-privatísticas e perante um tribunal civil (ou comercial), que definiria os termos e condições do pagamento, definindo a modulação por que a pena se teria por realizada sobre o condenado, actos jurisdicionais que traduzem, precisamente, o trilho judiciário da execução da pena e, por isso, a serem transportados para o processo insolvencial, representarão abrogação da proibição estatuída no art. 32.º/8 da Constituição da República, quando se considere o dispositivo do art. 470.º/1 do CPP, uma vez que radica num desaforamento ilícito da competência para a execução da pena.
De resto, lapidarmente afirmado pela melhor doutrina: “A pena de multa só pode ser tomada como instrumento (…) da política criminal quando surja (…) como autêntica pena criminal, antes que como mero «direito de crédito do Estado» – ainda que de natureza publicística – contra o condenado. Esta asserção, aparentemente trivial, revela-se a uma consideração mais próxima, como verdadeiramente essencial e prenhe de consequências práticas.” (cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Reimpressão, 2005, Coimbra Editora, p. 118).
Daqui deriva, pois, como uma daquelas consequências práticas a vedação ao aplicador da Lei da observação da pena como direito creditório no ambiente do processo insolvencial, de conteúdo patrimonial, que comportasse um tratamento a pari num concurso de credores.
No pressuposto de quanto se vem de dizer e em jeito de remate, perdida aquela auto-referenciação sobre o entorno (que constitui a infra-estrutura sobre a qual se edifica a responsabilidade criminal da pessoa colectiva), aquele «sentimento de si da pessoa colectiva» que a identificava, de um prisma objectivo, como organização individual, diríamos, por via de incidências que lhe são exógenas e que não ocorrem num campo de determinação de vontade, temos por sinalizada uma analogia suficiente para com o dispositivo do art. 127.º/1 do CP e com a morte do agente do crime, razão por que detectamos fundamento para a extinção da responsabilidade criminal ao abrigo desse articulado legal, por esta ordem de motivos, o que seguidamente se decretará.
No que respeita ao facto de, da análise da certidão de matrícula da sociedade não resultar o registo da extinção da Liquidação, diga-se que a finalidade do registo comercial consiste em dar publicidade à situação jurídica das sociedades, tendo em vista a segurança do comércio jurídico (art. 1º, nº. 1 do Cód. Reg. Comercial).
Assim, os factos sujeitos a registo, ainda que não registados, podem ser invocados entre as próprias partes ou seus herdeiros (art. 13º, nº. 1 do mesmo diploma), e no tocante a terceiros, só produzem efeitos depois da data do respectivo registo, não podendo a falta de registo ser oposta aos interessados pelos seus representantes legais, a quem incumbe a obrigação de o promover nem pelos herdeiros destes (art. 14º).
Decorre, pois, que não sendo o registo constitutivo, mas tão só meramente declarativo, a sua falta não impede que o facto registado, ali omitido, produza efeito no processo de natureza criminal.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da RP de 26.06.07, proferido no âmbito do proc. nº. 0742535, in www.dgsi.pt. que sufraga esta posição, não havendo liquidação e representação da massa falida, porque esta nem sequer existe, não faz sentido manter um “nada” na qualidade de arguido.
Assim sendo, muito embora não se encontre ainda levada ao registo a liquidação da sociedade arguida, cumpre declara extinto o procedimento criminal contra a mesma instaurado, em face da argumentação supra explanada.
Esta circunstância tem efeitos idênticos ao da morte de uma pessoa singular, acarretando quer a extinção da responsabilidade criminal quer da pena de multa que aqui lhe foi aplicada, nos termos do disposto nos artigos 127º e 128º do Código Penal.
Face ao exposto, declaro extinta a responsabilidade criminal da sociedade arguida e, em consequência, declaro extinta a pena em que foi condenada.
Remeta, após trânsito, boletim à D.S.I.C.
Notifique.
Proceda como se promove.
Oportunamente, arquive.»

IV – Cumpre decidir.
Vem o recorrente Ministério Público alegar que, ao contrário do que resulta do despacho recorrido, não deverá ser declarada extinta a responsabilidade criminal da arguida pessoa coletiva com a designação social “N..., Ldª”, pois, apesar de esta ter sido declarada insolvente, e como consta da informação prestada pela Conservatória do Registo Comercial, não chegou a iniciar-se o processo administrativo de dissolução e liquidação dessa sociedade. Invoca o sentido da jurisprudência que considera que a declaração de insolvência de uma sociedade, embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado, sendo que ela não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação (como resulta do artigo 234.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas).
É, na verdade, esse o sentido unânime da jurisprudência, como é também assinalado no parecer do Ministério Público junto desta instância.
Podem ver-se, nesse sentido, entre outros, os acórdãos (todos acessíveis em www.dgsi.pt) do Supremo Tribunal de Justiça de 12-10-2006 (proc.º n.º 0692930, relatado por Pereira Madeira); da Relação de Coimbra de 22 de outubro de 2014 (proc.º n.º 50/08.4TATBU-A.C1, relatado por Cacilda Sena), de 27 de janeiro de 2016 (proc.º n.º 141/13.4TATBU.C1, relatado por Isabel Valongo) de 18 de janeiro de 2017 (proc. n.º 8698/15.9T8CBR.C1, relatado por Jorge França) e de 18 de setembro de 2019 (proc.º n.º 158/16.7T9PBL-A.C1, relatado por Jorge França); da Relação de Évora de 2 de maio de 2006 (proc.º n.º 394/06-1, relatado por Pires da Graça) e de 26 de setembro de 2017 (proc.º n.º 862/15.7T9EVR.E1, relatado por José Proença da Costa); da Relação de Guimarães de 9 de fevereiro de 2009 (proc. n.º 2701/08-1, relatado por Cruz Bucho); e desta Relação do Porto de 5 de março de 2003 (proc.º n.º 0210379, relatado por Fernando Batista), de 28 de maio de 2003 (proc.º n.º 0310495, relatado por Borges Martins), de 10 de março de 2004 (proc.º n.º 0315960, relatado por Borges Martins), de 8 de julho de 2004 (proc.º n.º 0441488, relatado por Agostinho Freitas), de 6 de outubro de 2004 (proc.º n.º 0413650, relatado por André Silva), de 13 de outubro de 2004 (proc.º n.º 0414013, relatado por Fernando Monterroso), de 28 de setembro de 2005 (proc.º n.º 0510726, relatado por Alves Fernandes), de 21 de dezembro de 2005 (proc.º n.º 0416352, relatado por Ângelo Morais), de 9 de maio de 2007 (proc.º n.º 0710903, relatado por António Eleutério), de 27 de junho de 2007 (proc.º n.º 0742535, relatado por Ernesto Nascimento) e de 12 de setembro de 2007 (proc.º n.º 0741140, relatado por Pinto Monteiro).
O despacho recorrido afasta-se do sentido dessa jurisprudência, considerando que a declaração de insolvência e posterior início da liquidação é suficiente para considerar extinta a responsabilidade criminal de uma sociedade. Mas é certo que analisa de forma mais profunda as razões substanciais da extinção da responsabilidade criminal de pessoas coletivas na perspetiva do sentido e finalidade das penas que lhes possam ser aplicadas (quando grande parte dos acórdãos citados se limitam a uma argumentação formal e assente quase só na autoridade da jurisprudência anterior).
Alega o despacho recorrido, a esse respeito, que a declaração de insolvência e posterior liquidação de uma sociedade faz desparecer o centro de imputação penal que justifica a sua responsabilidade (sendo, por isso, equiparada à morte da pessoa física a que se reporta o artigo 127.º, n.º 1, do Código Penal) e isso verifica-se independentemente da manutenção da sua personalidade jurídica. A partir desse momento, a empresa passa a representar uma simples soma de elementos patrimoniais e vínculos jurídicos, ativos e passivos, «sem que nenhuma expectativa exista de, depois de decidido o início do processo de liquidação, poder vir a ingressar num inter-relacionamento social onde se pudesse manifestar a perturbação de preceitos éticos de foro criminal (a sua situação é muito mais próxima de uma massa hereditária aberta por óbito de uma pessoa singular, sobre a qual concorrem sujeitos e relações jurídicas creditícias, já não se observando um referente individual digno de registo): a pena, neste ambiente circunstancial, constitui uma inutilidade patente, por nenhum objectivo de política criminal representar, uma vez que a sociedade cessou a sua inter-comunicação com a comunidade jurídica (…).»
Na verdade, a generalidade das penas previstas para entes coletivos (ver, entre outros, os artigos 90.º-A a 90.º-M do Código Penal ou 16.º do Regime Geral das Infrações Tributárias) supõem o referido inter-relacionamento social que deixará de existir depois da declaração de insolvência. É certo que também está previsto o retomar das atividades da sociedade mesmo depois da situação de insolvência (argumento aduzido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça relatado por Pereira Madeira e acima referido). Essa situação está, na verdade, prevista nos artigos 230.º, n.º 1, c), e 234.º, n.º 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, mas supõe que a sociedade deixe de se encontrar em situação de insolvência, o que, manifestamente, está definitivamente afastado no caso em apreço, como estará em muitos outros.
Não poderá, porém, dizer-se o mesmo (isto é, que tal supõe o referido inter-relacionamento social) no que à pena de multa diz respeito (argumento também aduzido no referido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça relatado por Pereira Madeira e em alguns dos outros também acima referidos). Esta poderá ser tida em conta na liquidação da sociedade insolvente no mesmo plano das suas dívidas comerciais. Contra isso insurge-se, porém, o despacho recorrido. Aí se afirma que a multa não conhece um credor, nem se destina à satisfação de um interesse privado, mas antes à prossecução das finalidades das penas definidas no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal. E, por outro lado, que «a execução criminal da pena de multa, a ser realizada no processo de insolvência, seria efectuada fora do processo-crime, no campo das relações jurídico-privatísticas e perante um tribunal civil (ou comercial), que definiria os termos e condições do pagamento, definindo a modulação por que a pena se teria por realizada sobre o condenado, actos jurisdicionais que traduzem, precisamente, o trilho judiciário da execução da pena e, por isso, a serem transportados para o processo insolvencial, representarão abrogação da proibição estatuída no art. 32.º/8 da Constituição da República, quando se considere o dispositivo do art. 470.º/1 do CPP, uma vez que radica num desaforamento ilícito da competência para a execução da pena».
Em sentido próximo, tem sido alegado em despachos que vieram a ser revogados por alguns dos acórdãos acima referidos (assim, o acórdão da Relação de Guimarães relatado por Cruz Bucho) que a consideração da pena de multa no processo de insolvência como se de um crédito se tratasse acabará por prejudicar os credores e não a sociedade insolvente.
As considerações tecidas pelo despacho recorrido a respeito da natureza e finalidades da pena de multa e da sua incompatibilidade com o processo de liquidação de uma sociedade insolvente poderão ter toda a pertinência. Mas apenas de jure condendo. Elas esbarram com o disposto no artigo do 127.º, n.º 2, do Código Penal (preceito invocado em vários dos acórdãos acima referidos): «Em caso de pessoa coletiva ou equiparada, o respetivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada». O que significa que a multa deverá ser tida em conta no processo de liquidação de uma sociedade declarada insolvente e que, portanto, até ao fim dessa liquidação uma eventual condenação em multa não deixará de ter sentido e utilidade.
Ora, como de acordo com o artigo 234.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o processo de liquidação da sociedade insolvente só é encerrado com o respetivo registo, compreende-se a razão da jurisprudência acima indicada, que deverá ser seguida também neste caso.
Deverá, por isso, ser concedido provimento ao recurso

V – Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o douto despacho recorrido, que declarou extinta a responsabilidade criminal da arguida pessoa coletiva com a designação social “N..., Ldª”.

Notifique

Porto, 25 de janeiro de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Eduarda Lobo
Castela Rio