Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
622/19.6T8ETR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: TRANSACÇÃO JUDICIAL
NEGÓCIO FORMAL
Nº do Documento: RP20200324622/19.6T8ETR-A.P1
Data do Acordão: 03/24/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A transação é um negócio mediante o qual as partes constituem, modificam ou extinguem direitos, sejam eles direitos de crédito ou direitos reais.
II - Nunca é, porém, um negócio consensual. A transação é um negócio formal, ou seja, para ser válido, depende da observância de forma especial.
III - Assim, quando, através de uma transação judicial, se pretenderem alienar onerosamente direitos reais sobre imóveis ou estabelecer encargos sobre os mesmos, deve essa transação ser, obrigatoriamente, celebrada por documento autêntico, documento particular autenticado, por termo no processo ou em ata de diligência conciliatória presidida pelo juiz.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 622/19.6T8ETR-A.P1
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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I - Relatório
1 - B… e esposa, C…, intentaram ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra D…, alegando, em breve resumo, que são donos de um prédio rústico no qual está edificada uma casa que, no início de 2006, foi emprestada ao R., mas que este se recusa a devolver-lhe.
Pede, assim e para além do mais, que o R. seja condenado a reconhecer-lhe a propriedade do dito prédio e a devolver-lho livre de pessoas e bens, num prazo que propõe seja de 30 dias.
2 - O R. refutou este pedido por considerar, em suma, que a dita casa lhe pertence por ter sido por ele construída, pedindo, em sede reconvencional, para além do mais, que lhe seja reconhecido o direito a adquirir o prédio dos AA., pagando por ele o valor que esse prédio tinha antes das obras por si iniciadas.
3 - Posteriormente, porém, ou seja, no dia 29/01/2020, AA. e R. requereram a homologação da seguinte transação, formalizada nesse requerimento:
“Cláusula Primeira
Os Autores são proprietários do seguinte prédio:
-“Rústico, sito no caminho da …, lugar de …, freguesia do …, concelho da …, a confrontar do Norte com E… e outros, Sul Caminho, Nascente E… e Outros e Poente F…, com a área de 150 m2, inscrito na matriz predial desta freguesia sob o artigo 1.379 e descrito a seu favor na Conservatória do Registo Predial da … sob o número 161/19890503.
Cláusula Segunda
Os autores reconhecem que:
- No ano de 2002 autorizaram o réu a edificar no prédio identificado no artigo primeiro uma casa onde pudesse viver, sendo certo que iniciou nesse ano, de boa-fé, as obras da sua construção;
- O réu vive no edifício por si erigido desde o ano de 2004 e de que o valor deste bem, incorporado naquele prédio, é muito superior ao valor que o mesmo possuía antes da incorporação;
- De que existe entre ambos os bens uma ligação material e permanente de tal forma absoluta que torna impossível uma separação, sem alteração total do todo.
Cláusula Terceira
Os autores reconhecem que por via da aludida obra o réu o adquiriu a propriedade do imóvel identificado na cláusula primeira.
Cláusula Quarta
Tendo destes recebido o preço, que ambos acordaram como valor do prédio anterior à incorporação, ou seja, três mil euros, quantia que dele já receberam, por transferência bancária da conta com o IBAN: PT …………….. para a sua conta bancária com o IBAN: PT ……………….
Cláusula Quinta
Autores e réus desistem, mutuamente, dos demais pedidos efetuados na petição inicial e contestação.
Cláusula Sexta
Custas em divida a Juízo serão pagas, em pares iguais, por autores e réu, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário deferido ao segundo outorgante, prescindindo todos de procuradoria e custas de parte.”.
4 - Sobre este requerimento recaiu o seguinte despacho:
“Fls. 47 ss (reqs. elet. de 29.01.2020):
Dispõe o art.º 290.º do CPC que a transação pode fazer-se de duas formas «por documento autêntico ou particular, sem prejuízo das exigências de forma da lei substantiva» ou «por termo no processo».
Nos presentes autos, vieram Autores e Réu juntar aos autos documento particular com as cláusulas da transação a que chegaram, ora da transação celebrada temos que a mesma consubstancia declarações negociais que se reconduzem à compra e venda do prédio rústico em discussão pelos AA. ao Réu pelo preço, já pago, de €3.000,00.
Atentemos então nas exigências de forma previstas pela lei substantiva, como imposto pelo art.º 290.º n.º 1 do CPC, sendo que nos termos do art.ºs 875.º do CCivil, o contrato de compra e venda de bem imóvel só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado. Exige, pois, a lei substantiva, como formalidade ad substantiam, de validade das declarações negociais do contrato de compra e venda, a escritura pública ou documento particular autenticado, sob pena de nulidade por vício de forma.
Como contrato que é, por aplicabilidade das regras gerais já referidas, a transacção não escapa à referida exigência e respectivos efeitos. É isso mesmo que a lei corrobora ao dispor sobre a forma exigível para a validade da transacção preventiva ou extrajudicial, fazendo-a depender da forma exigida pela lei substantiva – cfr. art. 1250º C. Civil («Sem prejuízo do disposto em lei especial, a transacção preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado, quando dela possa derivar algum efeito para o qual uma daquelas formas seja exigida, e de documento escrito, nos casos restantes.»).
Assim, notifiquem-se as partes para juntarem aos autos a escritura pública ou documento particular autenticado em falta relativamente à compra e venda constante da transacção que antecede, por forma a habilitar o Tribunal quanto à sua homologação. Prazo: 20 dias”.
5 - Inconformado com este despacho, dele recorre o R., terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1º. Contestando e reconvindo numa ação em que os autores pretendiam do réu a entrega de um seu prédio rústico, este peticionou, nos termos do artigo 1340º do Código Civil, que lhe fosse reconhecido “ o direito de adquirir o prédio dos autores, pagando por ele o valor que esse prédio tinha antes das obras iniciadas, o que ocorreu no ano de 2002”.
2º. Alegou todos os factos necessários a adquirir esse prédio por Acessão Industrial Imobiliária e dispôs-se a pagar o preço do prédio à data da incorporação da obra que nele erigiu.
3º. Reconhecendo o direito do réu e os factos relevantes para a aquisição do prédio por acessão e, ainda, o preço oferecido para pagamento da indemnização devida, juntaram as partes aos autos um termo de transação em que fizeram constar a sua vontade de transigir e os pressupostos do reconhecimento do direito de aquisição.
4º. Acontece que a Ilustre Juiz “a quo”, suportando-se no artigo 875º do Código Civil e 290º, nº1 do CPC referiu que: - “o contrato de compra e venda de bem imóvel só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado”;
- A validade da transação, a que chegaram réu e autores, está dependente da forma exigida pela lei substantiva – cfr. art. 1250º C. Civil (“sem prejuízo do disposto em lei especial, a transação preventiva ou extrajudicial deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado, quando dela possa derivar algum efeito para o qual uma daquelas formas seja exigida, e de documento escrito, nos casos restantes”);
- Na sequência deste raciocínio notificou as partes “para juntarem aos autos a escritura ou documento particular autenticado em falta relativamente à compra e venda constante da transação que antecede, por forma a habilitar o Tribunal quanto à sua homologação”.
5º. Ora, autores e réu fizeram uma transação judicial, por termo no processo, não preventiva ou extrajudicial, como erradamente se afirma no despacho recorrido, com o objetivo de colocarem um fim à incerteza do pleito, adaptando este às suas melhores perspetivas.
6º. A pretendida (necessária) homologação não conhece do mérito da causa, mas constitui a solução de mérito para que aponta o contrato de transação, cabendo-lhe a solução do litígio ainda que observando a vontade das partes.
7º. Sendo certo que só a Meritíssima juíza do processo pode reconhecer o direito do réu, pois a acessão industrial imobiliária é uma forma potestativa de aquisição originária do direito de propriedade, de reconhecimento necessariamente judicial (Vid. Ac. TRP- 28.03.2012- relatado pelo Senhor Desembargador Augusto de Carvalho, in WWWdgsi.pt.)
8º. Convidar autores e réus a celebrar uma escritura pública para, depois, homologar a transação é, decididamente, uma decisão errada sob o ponto de vista jurídico, desnecessária e imprópria.
9º. De posse dessa eventual escritura de compra e venda, as partes não necessitariam de qualquer ato judicial legitimador. E se essa fosse a opção, haveriam de por fim à instância por inutilidade superveniente!
10º. A Senhora Juíza violou os artigos 1250º; 1316º; 1317 al. d) e 1340º do Código Civil e 290º do Código de Processo Civil.
11º. Deve, em consequência, ser revogada a decisão constante do despacho impugnado e convidar-se a Ilustre Juíza a apreciar do termo de transação celebrado por autores e réus, com vista à sua homologação, pois tal é imposto justamente pelos preceitos legais atrás identificados”.
6 - Não consta que tivesse havido resposta.
7 - Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la:
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II- Mérito do recurso
1 - Definição do seu objeto
Inexistindo questões de conhecimento oficioso, o objeto do recurso em apreço, delimitado, como é regra, pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º1, do Código de Processo Civil (CPC)], é constituído unicamente pela questão de saber se a transação apresentada pelas partes respeita a forma legalmente exigida e, nessa medida, devia ter sido judicialmente homologada.
2 - Baseando-nos nos factos descritos no relatório supra exarado -que são os únicos relevantes para o efeito -, vejamos, então, como solucionar esta questão:
A transação – diz-nos o artigo 1248.º, n.º 1, do Código Civil – “é um contrato pelo qual as partes previnem ou terminam um litígio mediante reciprocas concessões”.
É, portanto, antes de mais, um contrato autónomo. Ou seja, um contrato mediante o qual as partes constituem, modificam ou extinguem direitos, sejam eles direitos de crédito ou direitos reais.
E, sendo um contrato, a transação está sujeita ao regime geral dos negócios jurídicos (artigo 217.º e segts, do Código Civil) e à disciplina dos contratos em geral (artigo 405.º e segts, do Código Civil)[1].
Ora, no que à forma diz respeito, verificamos que a transação nunca é um negócio consensual. Pelo contrário, a transação é um negócio formal; isto é, para ser válida, depende da observância de forma especial (artigo 219.º do Código Civil) [2].
E, assim, se a transação for preventiva ou extrajudicial, deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado, se dela resultar algum efeito para o qual seja necessário esse tipo de documento. Se o não for, deve, no mínimo, constar de documento escrito (artigo 1250.º, do Código Civil).
Já se estivermos perante uma transação judicial, a mesma pode ser feita por documento autêntico, por documento particular, desde que respeitadas as exigências de forma da lei substantiva, por termo no processo ou ainda em ata, quando resulte de conciliação obtida pelo juiz – artigo 290.º, n.ºs 1 e 4, do CPC.
Em qualquer caso, como vemos, é sempre exigida forma especial.
Interessa-nos, para a situação em apreço, a forma legalmente prescrita para a transação judicial quando esteja em causa a transmissão de direitos reais sobre imóveis.
Efetivamente, foi essa transmissão que as partes quiseram ao celebrar o acordo que submeteram a homologação judicial. Mediante esse acordo, como já relatámos, os AA. reconheceram que o R. adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio de que até então se diziam proprietários e o R., por sua vez, pagou aos AA. o preço desse mesmo prédio, antes da realização da obra que nele incorporaram.
Por conseguinte, o efeito deste acordo é, como já adiantámos, a transmissão do direito de propriedade sobre tal prédio.
Sucede que essa transmissão, para ser válida, não podia ser, como foi, celebrada por documento particular simples.
Como resulta do disposto no artigo 875.º do Código Civil, ressalvando embora o disposto em lei especial, “o contrato de compra e venda de imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado”.
Mas não só o contrato de compra e venda de imóveis. Também os outros contratos onerosos alienatórios sobre imóveis obedecem, por regra, ao mesmo regime -artigo 939.º do Código Civil[3]. Também esses contratos, para serem válidos, devem ser celebrados por escritura pública ou por documento particular autenticado, que é como quem diz, documento particular sujeito a autenticação, que mais não é do que um termo através do qual o notário, ou outra entidade legalmente equiparada, atesta que os autores desse documento confirmaram perante ele, ou ela, que o respetivo conteúdo corresponde à sua vontade (artigo 363.º, n.º 3, do Código Civil e artigos 35.º, n.º 3, 150.º e 151.º, do Código do Notariado).
Sendo, pois, este o regime substantivo, nunca a forma de uma transação judicial na qual se estipulem idênticos efeitos, pode ser menos exigente. Pelo contrário, quando assim suceda, ou seja, quando, através de uma transação judicial, se pretendam alienar ou transmitir onerosamente direitos reais sobre imóveis ou estabelecer encargos sobre os mesmos, deve essa transação ser, obrigatoriamente, celebrada por documento autêntico, documento particular autenticado, por termo no processo ou em ata de diligência conciliatória presidida pelo juiz. É o que se extrai da conjugação das normas que acabámos de referir.
Sucede que, como já dissemos, as partes, no caso em apreço, não usaram nenhum destes meios. Celebraram a transação em análise por documento particular não autenticado para, entre o mais, os AA. transmitirem ao R. o seu direito de propriedade sobre o prédio no qual este edificou uma obra.
Assim, nunca essa transação podia ter sido, como não foi, homologada judicialmente.
Mas também não era necessária a celebração de uma escritura pública de compra e venda simples ou mesmo um documento autenticado no qual se celebrasse idêntico contrato, como parece ter-se exigido na decisão recorrida. Efetivamente, se os AA. não queriam, como pelos vistos não querem, alienar o seu prédio à margem da acessão industrial que reconhecem ter sido exercitada pelo R., não estavam obrigados a celebrar aquele contrato como se esta circunstância não existisse. Até porque, como refere o Apelante, se assim fosse, não haveria em rigor uma transação mas uma inutilidade superveniente da lide, devido à fusão na mesma titularidade do direito de propriedade sobre o prédio reivindicado.
De modo que o único convite que deveria ter sido feito às partes era para juntarem aos autos a transação que celebraram, seja ela exarada em documento autêntico, documento particular autenticado ou por termo no processo. Isto, porque não houve qualquer diligência conciliatória presidida pelo juiz, nem, repetimos, havia, ou há, razão para impor às partes a celebração de qualquer contrato de compra e venda.
Nessa medida, a decisão recorrida não pode manter-se em vigor e, diversamente, deve ser proferido despacho que formule o referido convite.
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III- DECISÃO
Pelas razões expostas, acorda-se em conceder provimento ao presente recurso, e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido e determina-se que se convidem as partes a juntarem aos autos nova transação celebrada em documento autêntico, documento particular autenticado ou por termo no processo.
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- Sem custas.
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Porto, dia 9 de Março de 2020
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
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[1] Neste sentido, Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, Código Civil Anotado, 3ª edição Revista e atualizada, Coimbra Editora, pág. 856.
[2] Neste sentido, por exemplo, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. III, 12ª edição, Almedina, pág. 581.
[3] Neste sentido, Fernando Andrade Pires de Lima e João de Matos Antunes Varela, ob cit., pág. 255.