Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
79/12.2ZRPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: CRIME DE AUXÍLIO À EMIGRAÇÃO ILEGAL
CRIME DE FALSIDADE INFORMÁTICA
BUSCAS
ESCRITÓRIO DE ADVOGADO
REQUISITOS
NECESSIDADE E PROPORCIONALIDADE
Nº do Documento: RP2018050979/12.2ZRPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/09/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 22/2018, FLS 249-263)
Área Temática: .
Sumário: I - As buscas mostram-se necessárias,
- muito embora alguns dos crimes se encontrem já suficientemente indiciados face ao confronto entre a prova decorrente das próprias manifestações de interesse inseridas nas bases de dados e a prova testemunhal (e mesmo alguma documental), pois que é sabido que a prova testemunhal é mutável, influenciável e genericamente falível;
- por outro lado, o objectivo expresso das buscas não é apenas (ou nem é sobretudo) o da apreensão de dados informáticos ou documentos em suporte digital, mas também, a apreensão de documentos em arquivo físico (analógico) ou de papel, que não é possível (ou viável) efectuar por ouro meio.
II - As buscas mostram-se proporcionais,
para o que há que atentar ao conflito de direitos/deveres constitucional e legalmente consagrados- mormente o dever de exercício da acção penal por parte do MP e o dever de sigilo profissional dos advogados e imunidade de que goza a advogada visada - cujo sacrifício, de qualquer modo, deve ser limitado, na medida do possível, nos termos conjugados dos artigos 135.º, 177.º/5, 179.º e 180.º C P Penal e 75.º a 77.º do EOA.
III - Nem se pode invocar para justificar a não autorização das buscas, para que ao interesse da investigação e punição fosse sacrificado o dever de sigilo profissional inerente à função social e jurídica do patrocínio forense, a falta de ressonância ética ou da suficiente gravidade dos crimes em causa, que apesar de se inserirem no chamado direito penal secundário, têm molduras penais abstractas de prisão de 1 a 5 anos.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 79/12.2ZRPRT-A.P1
Origem: Comarca do Porto, Matosinhos – Juízo Inst. Criminal – Juiz 1

Acordam, em conferência, na 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:

I – Nos autos de inquérito de que o presente recurso foi extraído, requereu o Ministério Público – renovando, aliás, despachos/promoções que já anteriormente deduzira e invocando, para tanto, o teor da investigação do SEF apensa aos mesmos autos – a realização de buscas a dois escritórios de advocacia da Dr.ª B..., situados, respetivamente, em Lisboa e em Cascais, “com busca, pesquisa e apreensão de dados informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes para recolha de elementos e documentação relevante”, com vista a “apreender todos os documentos em arquivo físico ou digital associados às manifestações de interesse na regularização extraordinária que verte do nº 2 do artigo 88° [da Lei 23/2007, de 4 de julho] em nome de imigrantes ilegais não enquadráveis nesse mecanismo legal”.
Sobre tal promoção, incidiu o seguinte despacho do Ex.mo Juiz de Instrução Criminal (transcrição):
«O Digno Magistrado do Ministério Público veio mais uma vez promover a realização de buscas a dois escritórios de advocacia, em Lisboa e em Cascais, “com busca, pesquisa e apreensão de dados informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes para recolha de elementos e documentação relevante», com o intuito de «apreender todos os documentos em arquivo físico ou digital associados às manifestações de interesse na regularização extraordinária que verte do nº 2 do artigo 88° [da Lei 23/2007, de 4 de julho] em nome de imigrantes ilegais não enquadráveis nesse mecanismo legal”.
O requerente especifica, como documentos com interesse para a prova, “cópias de documentos de viagem, notas referentes às circunstâncias migratórias individuais, documentos comprovativos da entrada em território nacional e documentos decorrentes das subordinações laborais declaradas”.
Pretende o Ministério Público, com essas diligências, “dimensionar de forma concreta o número de cidadãos estrangeiros que usufruíram desta conduta ilícita, apurar o respetivo ‘modus operandi’ e acautelar a apreensão de demais provas relevantes”. Alegadamente, “estes documentos poderão estabelecer cabalmente nos autos que a advogada (...) tinha conhecimento das circunstâncias específicas reais de cada imigrante ilegal – a exata data de entrada em território português, o real país de origem e a existência ou inexistência, de prova da entrada legal – e que, por sua iniciativa, promoveu registos "criativos" que iludiram a plataforma informática e evitaram os pareceres negativos automáticos e as consequentes determinações para abandono de território português”.
Pretende ainda o Ministério Público apreender «anotações que permitam inferir um eventual agrupamento de imigrantes ilegais por entidade patronal e registos contabilísticos informais decorrentes dos serviços prestados. A existirem, estes documentos permitirão definir o papel da advogada no recrutamento destes trabalhadores estrangeiros e dimensionar as vantagens ilícitas auferidas”.
Segundo o requerente, “Renova assim o Ministério Público os despachos/promoções de fls. 116 a 118, 164, 200 e 235, quanto às aí promovidas buscas e pesquisas informáticas nos escritórios de advocacia da Drª B...”.
Invoca, para fundamentar o seu pedido de buscas aos dois escritórios, o teor da investigação do SEF apensa por linha aos presentes autos e constante de dois volumes com 629 páginas.
Cumpre-nos apreciar:
Este é o terceiro pedido de buscas aos escritórios de advocacia identificados nos autos, subsequente aos nossos despachos, datados de 2/05/2017 e 2/06/2017, a fls. 230, 231 e 238, que indeferiram os dois primeiros pedidos de busca.
Com todo o respeito por diferente entendimento, o Ministério Público continua a não fundamentar, à luz de critérios de adequação e proporcionalidade, a necessidade das buscas aos dois escritórios de advocacia.
Nos termos do artigo 178º, nº 1, do Código de Processo Penal, “são apreendidos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir a prática de um crime, os que constituírem o seu produto, lucro, preço ou recompensa, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova”.
O Ministério Público pretende apreender elementos de prova relativos aos crimes de “auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183º da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, revista e republicada pela Lei nº 29/2012, de 9 de agosto, e de falsidade informática, previsto e punido no artigo 3º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro”.
De acordo com o disposto no artigo 174º, nº 2, do Código de Processo Penal, a busca só deve ser ordenada quando houver indícios de que os objetos relacionados com um crime ou que possam servir de prova se encontrem em local reservado ou não livremente acessível ao público.
O artigo 183° da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, tipifica o crime de auxílio à emigração ilegal do seguinte modo:
“1 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada ou o trânsito ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional é punido com pena de prisão até três anos.
2 - Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos.
3 - Se os factos forem praticados mediante transporte ou manutenção do cidadão estrangeiro em condições desumanas ou degradantes ou pondo em perigo a sua vida ou causando-lhe ofensa grave à integridade física ou a morte, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos.
4 - A tentativa é punível.”
Manifestamente, não existem indícios da prática, pela advogada visada, dos factos aludidos supra nos nºs 1 ou 3, assim como não há indícios de que a mesma tenha favorecido a entrada ou o trânsito ilegal de cidadãos estrangeiros em Portugal.
O Ministério Público pretende perseguir criminalmente a advogada por favorecer ou facilitar a permanência daqueles estrangeiros com intenção lucrativa, sugerindo que a visada teria conseguido evitar “pareceres negativos automáticos” e as consequentes “determinações para abandono de território português”, ao apresentar no portal do SEF as manifestações de interesse nos termos do artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho.
Em suporte a essa sua pretensão, o Ministério Público invoca o teor do auto informativo de fls. 500 a 505, que não tem valor normativo e não vincula o tribunal criminal se não se mostrar devida e legalmente fundamentado.
De facto, afigura-se-nos extremamente difícil a demonstração de que a simples apresentação, no portal do SEF, de uma "manifestação de interesse" em nome e representação de um estrangeiro, nos termos do artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, possa constituir o seu apresentante em responsabilidade penal pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal, considerando nomeadamente o direito de petição consagrado no artigo 52°, nº 1, da Constituição da República.
Representativo daquela dificuldade é um entendimento possível, relativamente aos efeitos jurídicos do registo daquela manifestação de interesse, expresso no parecer apresentado pelo Ministério Público no processo 242/12.6BEBRG e reproduzido a fls. 12 a 16 do Apenso A: “O requerimento apresentado (…) face ao regime legal plasmado no nº 2 [do artigo 88°] da Lei 23/07, de 4 de julho, só pode ser entendido como uma simples manifestação de interesse e não como um requerimento que tem a virtualidade de dar início ao procedimento, que é oficioso, e, portanto, não depende da iniciativa de quem não tem legitimidade para o iniciar no âmbito do citado artigo 88°, nº 2.
(…) Assim, os atos praticados e aqui em causa, não configuram uma verdadeira decisão de indeferimento, que tivesse sido proferida no âmbito de um qualquer procedimento administrativo, o qual, reforça-se, nem sequer teve início. Antes configurando-se, tão-somente, como uma mera informação ao interessado, prestada na sequência da exposição por ele apresentada, de natureza e em âmbito pré procedimental, a dar-lhe conta de que, após análise da sua exposição, a situação nela relatada não pode ser submetida naquele regime excecional, não sendo objeto de apreciação, de acordo com o previsto no nº 2 do artigo 88° da Lei 23/07, de 4 de julho. Assim, o ato impugnado pelo Recorrente não pode ser qualificado como ato administrativo, enquanto ato decisório, para efeitos do artigo 120° do C.P.T.A, e, concomitantemente, do nº 1 do artigo 51° do C.P.T.A., não sendo assim judicialmente sindicável. Com efeito, a informação prestada não consubstancia um verdadeiro ato administrativo, enquanto ato decisório proferido ao abrigo de normas de direito público e juridicamente conformador de uma situação individual e concreta suscetível de ter eficácia externa e de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos e de ser suscetível de impugnação.
O mesmo se diga relativamente à notificação para abandono voluntário de território nacional, efetuada por referência ao disposto no artigo 138° da Lei 23/2007, de 4 de julho, que não constitui igualmente ato administrativo. Com efeito, a notificação proferida nos termos do artigo 138° da Lei 23/2007, de 4 de julho, constitui um mero convite para abandonar voluntariamente o país e, assim, se evitar a instauração de um processo de expulsão administrativa, sendo, nestes casos, tal notificação (...) autónoma e independentemente de qualquer processo. E o incumprimento (não abandono voluntário) pelo notificado não é suscetível de determinar qualquer forma de execução, precisamente porque não consubstancia uma decisão/estatuição autoritária com eficácia externa. Trata-se de um ato pré-procedimental que poderá conduzir, ou não, à instauração de um procedimento para eventual expulsão.”
Tendo o Ministério Público esta posição num processo judicial administrativo, afigura-se-nos inaceitável a defesa de um entendimento diametralmente oposto para o efeito de perseguir criminalmente a representante dos estrangeiros que apresentem manifestações de interesse nos termos do citado artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, atendendo nomeadamente a princípios fundamentais da administração e da justiça penal, como os princípios da boa fé, da confiança, da lealdade e da presunção de inocência.
No contexto que a prova documental do apenso A indicia e em face da citada norma constitucional e dos princípios da confiança e da presunção de inocência, afigura-se-nos temerária a afirmação de que o registo de uma manifestação de interesse possa configurar um crime de auxílio à imigração ilegal, nem mesmo na forma de tentativa. Assim, não existem quaisquer indícios que justifiquem, segundo critérios de idoneidade, necessidade, adequação e proporcionalidade, a realização de uma busca para apreensão de documentos relativos às circunstâncias específicas reais dos referidos emigrantes, tanto mais que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras dispõe das informações e dos meios materiais e humanos necessários e adequados ao apuramento da real situação dos referidos emigrantes.
A este respeito, atente-se no teor da cota de fls. 28 do "apenso inquérito do SEF": “Por relevante à abordagem destes autos, junto das bases de dados ao dispor do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, procedi ao levantamento do percurso laboral e migratório dos empresários e trabalhadores estrangeiros referenciados com a entidade patronal C..., Lda.”. Da informação dessa cota e das setenta e cinco folhas que se lhe seguem, e nomeadamente de fls. 5, 10, 15, 22, 41, 42 a 44, 47 a 64, 70, 71, 73, 74, 77, 78, 80 a 88, 93 a 95, 99 a 103, 125, 413 a 469 e 515 do referido apenso, resulta que o SEF já recolheu, por via administrativa, documentos que o Ministério Público alega pretender obter na requerida busca aos escritórios de advocacia visados, não se mostrando necessária aquela busca para apreensão de documentos similares relativos a outros trabalhadores estrangeiros referidos na investigação.
Dos autos não resulta qualquer indício de qualquer intervenção da advogada no recrutamento destes trabalhadores estrangeiros, designadamente no auxílio à sua entrada no território nacional.
A questão que se colocará a seguir é a de saber se há indícios do crime de falsidade informática, previsto e punível pelo artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro. Conforme resulta do respetivo preâmbulo, esta Lei visou transpor para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho Europeu, de 24 de fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adapta o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, de 23 de novembro de 2001, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 88/2009, de 15 de setembro. Nos termos e para os efeitos previstos no artigo 2°, alínea b), da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, considera-se ‘dados informáticos’, “qualquer representação de factos, informações ou conceitos sob uma forma suscetível de processamento num sistema informático, incluindo os programas aptos a fazerem um sistema informático executar uma função”, definição praticamente coincidente com a definição prevista no artigo 1.º al. b) da aludida Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa.
No relatório justificativo da referida Convenção (versão portuguesa), e explicando aquela definição “Dados Informatizados”, pode ler-se o seguinte:
“A definição de dados informatizados assenta na definição de dados, de acordo com a norma ISO. Esta definição contém os termos ‘adequado para tratamento’. Isto significa que os dados são colocados de tal forma que podem ser diretamente processados pelo sistema informático. De modo a tomar claro que o termo ‘dados’, ao abrigo da Convenção, deverá ser entendido como referindo-se a dados sob a forma eletrónica ou outra forma diretamente processável, foi introduzida a noção de ‘dados informatizados’. Os dados informatizados que são automaticamente processados poderão constituir o alvo de uma das infrações penais definidas na presente Convenção, bem como o objeto de aplicação de uma das medidas de investigação definidas pela presente Convenção.”
O artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, prevê e pune, como crime de falsidade informática, a conduta de "quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem".
Tal corresponde à transposição do artigo 7° da Convenção, com a epígrafe ‘Falsificação informática’, com o seguinte teor: “Cada Parte deverá adotar as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para classificar como infrações penais nos termos do seu direito interno, quando praticadas intencional e ilicitamente, a introdução, a alteração, o apagamento ou a supressão de dados informáticos dos quais resultem dados não autênticos, com o intuito de que esses dados sejam considerados ou utilizados para fins legais como se fossem autênticos, quer sejam ou não diretamente legíveis e inteligíveis. Qualquer uma das Partes pode exigir que para existir responsabilidade criminal tem de haver intenção fraudulenta ou outra intenção criminosa semelhante.”
Na explicação do artigo 7° da Convenção, o relatório justificativo da Convenção sobre o Cibercrime (versão portuguesa) refere: “81. O objetivo deste artigo é o de instituir uma infração paralela à falsificação de documentos tangíveis, isto é, em suporte de papel. A sua finalidade é a de colmatar as lacunas existentes ao nível do direito penal relativamente à clássica falsificação, a qual exige uma legibilidade visual das declarações contidas num documento e não se aplica aos dados armazenados eletronicamente. As manipulações de tais dados com valor probatório poderão acarretar as mesmas consequências graves que os tradicionais atos de falsificação, caso se verifique a indução em erro de terceiros. A falsificação relacionada com computadores consiste na criação ou alteração não autorizada de dados armazenados, de forma a que os mesmos se revistam de um valor probatório diferente e que as transações legais, baseadas na autenticidade da informação veiculada por esses dados, sejam objeto de dolo. Neste caso, o interesse jurídico protegido será o da segurança e credibilidade dos dados eletrónicos que poderão ter consequências ao nível das relações jurídicas.
82. Deverá ser salientado o facto de que os conceitos nacionais de falsificação poderão variar significativamente. Um dos conceitos assenta na autenticidade de acordo com o autor do documento, enquanto outros se baseiam na veracidade da declaração contida no documento (...).
83. A presente disposição aplica-se a dados que equivalem a um documento público ou privado que produz os seus efeitos em termos jurídicos. A ‘introdução’ não autorizada de dados corretos ou incorretos dá origem a uma situação que corresponde à elaboração de um documento falso. As alterações subsequentes (modificações, variações, mudanças parciais), eliminações (remoção de dados de um suporte de dados) e supressão (retenção e ocultação de dados), correspondem, de um modo geral, à falsificação de um documento autêntico.”
No entanto, as aludidas manifestações de interesse não são documentos na definição ínsita no artigo 255°, nº 1, alínea a), do Código Penal, uma vez que as declarações inverídicas nas mesmas inscritas não são idóneas para provar facto juridicamente relevante, não alteram dados armazenados nem devem ser consideradas ou utilizadas para a produção de efeitos jurídicos no sentido previsto pelo citado artigo 7° da Convenção.
Em anotação ao referido artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro, Pedro Dias Venâncio considera que “na sua formulação atual (...) parece exigir-se que a atuação do agente se consubstancie na produção (...) de dados ou documentos não genuínos” [‘produzindo’] e não apenas com os atos de ‘introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados ou programas informáticos ou, por qualquer outra forma, interferir num tratamento informático de dados’.” (Lei do Cibercrime - Anotada e Comentada, Coimbra Editora, p. 39).
No entanto, os indícios são omissos relativamente à alegação de que a arguida tenha efetivamente produzido dados informáticos adequados a interferir num tratamento informático de dados, sendo no mínimo duvidoso que a inscrição de uma data de entrada em território nacional desconforme com a realidade, no ato de preenchimento de um formulário eletrónico semelhante ao formulário em papel documentado a fls. 26 do apenso A, deva ser criminalmente punida com fundamento num suposto sistema automático de pré-agendamento (SAPA), atendendo nomeadamente ao princípio da decisão previsto no artigo 13° do CPA e às regras aplicáveis ao correspondente processo administrativo.
Como se infere dos artigos 54° e seguintes do Código de Procedimento Administrativo, aplicável nos termos previstos no artigo 54°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, as referidas normas permitem o uso de meios eletrónicos na instrução dos processos administrativos.
Assim, o artigo 61° do CPA estabelece:
“1 - Salvo disposição legal em contrário, na instrução dos procedimentos devem ser preferencialmente utilizados meios eletrónicos, tendo em vista:
a) Facilitar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres através de sistemas que, de forma segura, fácil, célere e compreensível, sejam acessíveis a todos os interessados; b) Tomar mais simples e rápido o acesso dos interessados ao procedimento e à informação;
c) Simplificar, e reduzir a duração dos procedimentos, promovendo a rapidez das decisões, com as devidas garantias legais.
2 - Quando na instrução do procedimento se utilizem meios eletrónicos, as aplicações e sistemas informáticos utilizados devem indicar o responsável pela direção do procedimento e o órgão competente para a decisão, assim como garantir o controlo dos prazos, a tramitação ordenada e a simplificação e a publicidade do procedimento.
3 - Para efeitos do disposto do número anterior, os interessados têm direito:
a) A conhecer por meios eletrónicos o estado da tramitação dos procedimentos que lhes digam diretamente respeito;
b) A obter os instrumentos necessários à comunicação por Via eletrónica com os serviços da Administração, designadamente nome de utilizador e palavra-passe para acesso a plataformas eletrónicas simples e, quando legalmente previsto, conta de correio eletrónico e assinatura digital certificada.”
No entanto, a lei não permite que o órgão competente para a decisão se faça substituir na decisão por um órgão ou programa decisor eletrónico; a decisão humana não deve ser substituída por uma decisão produzida por um sistema automatizado, como resulta implicitamente admitido nos despachos da Diretora Nacional do SEF, com os nºs 42/DN/20 16 e 50/DN/20 16, datados de 4 e 16 de julho de 2016, documentados a fls. 24 e 25 do apenso A. (Sobre o tema das decisões eletrónicas, vide "A Decisão Administrativa Eletrónica Emergência da Regulação do Procedimento Administrativo Eletrónico", tese de mestrado de Cristina Maria da Silva Lopes e Navarro Machado).
Logo, não vislumbramos que a busca pretendida pelo Ministério Público tenha suporte bastante em indícios da prática de um qualquer crime de "falsidade informática", por existirem fundadas dúvidas sobre a verificação dos respetivos elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, nomeadamente no que respeita aos efeitos juridicamente relevantes pretendidos. Referimo-nos, mais uma vez, ao entendimento defendido pelo Ministério Público nos tribunais administrativos acima transcrito e documentado a fls. 12 a 16 do apenso A.
Mas mesmo que, por hipótese de raciocínio, se aceitasse o pressuposto da existência de indícios desse crime, à luz de princípios de adequação, proporcionalidade, e da intervenção mínima do direito penal e do direito processual penal, o Ministério Público devia especificar que dados informáticos devem ser apreendidos e por que razão os mesmos devem ser procurados nos escritórios de advocacia visados e não no sistema informático do SEF onde foram introduzidos, ou no sistema informático do fornecedor de serviços de internet.
Alegando o Ministério Público que a advogada visada introduziu os dados na plataforma online do SEF, é nessa plataforma que o Ministério Público deverá procurar o corpo de delito relativo à produção de dados pela arguida no SAPA do SEF, nomeadamente os elementos de prova relativos ao seu tratamento informático e ao procedimento que automatizou os pareceres, negativos ou positivos, relativos a essas manifestações de interesse.
Se o Ministério Público pretende obter outro tipo de dados informáticos, nomeadamente dados de tráfego, dispõe dos meios legais que permitem a sua preservação e revelação, nomeadamente os previstos nos artigos 13° e 14° da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro. Nesse sentido, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu, por acórdão de 22/04/2013, que "a obtenção de um concreto endereço IP que esteve na origem de uma determinada comunicação efetuada é da competência do Ministério Público e não do juiz."
Como refere a Professora Catedrática Teresa Armenta Deu, nas suas “Lecciones de Derecho Procesal Penal”, o princípio da proporcionalidade compreende três subprincípios, nomeadamente o da idoneidade, o da necessidade e o da proporcionalidade stricto sensu:
«1) A idoneidade refere-se à adequação objetiva e subjetiva de causalidade da medida limitativa em relação aos seus fins, de modo a que as ingerências sejam adequadas qualitativa, quantitativamente e no seu âmbito subjetivo de aplicação.» (...) «2) A "necessidade" ou "alternativa menos gravosa" ou "intervenção mínima" implica a manifestação externa e comparativa da proporcionalidade. Compara-se a medida restritiva que se pretende adotar com outras possíveis, devendo acolher-se a menos lesiva para os direitos dos cidadãos. (...)
3) A proporcionalidade "stricto sensu" refere-se à necessidade de ponderar os interesses em conflito na hora de limitar o exercício do direito fundamental de que se trate, de maneira a ponderar os interesses individuais (...) com o interesse estatal que se pretende salvaguardar com a limitação.» (Ob. cit., p. 70 e 71).
Também Manuel Monteiro Guedes Valente se refere ao princípio da proporcionalidade, que relaciona com o princípio do respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos:
“O respeito por este princípio pela Polícia emerge, desde logo, do nº 1 do artigo 272° da CRP (...). A proteção dos direitos dos cidadãos - todos os direitos e os fundamentais por excelência - apresenta-se como uma obrigação do Estado, quer em uma vertente positiva - defendendo-os e garantindo-os face à ameaça de outrem - quer em uma vertente negativa - não atuar de modo que os ofenda e sacrifique arbitrária e desmesuradamente - i. e., os direitos e interesses do cidadão são, por um lado, fundamento da atuação da polícia -um fim em si mesmo - e, por outro, um limite imanente da atividade administrativa em geral e, em especial, da atividade policial, muito em especial no âmbito do direito administrativo sancionatório e criminal.” (Manuel Monteiro Guedes Valente, «Teoria Geral do Direito Policial», Tomo I, ed. Almedina, outubro 2005, p. 98-99).
Efetivamente, não se nos afigura justificada, à luz dos referidos princípios de necessidade, intervenção mínima, proporcionalidade e adequação, buscar, pesquisar e apreender documentos e dados informáticos de dois escritórios de advocacia que seguramente contêm inúmeros documentos e outros dados cobertos pelo sigilo profissional sem qualquer interesse para os presentes autos, com a consequente devassa e perturbação da atividade ali exercida.
Nos termos do artigo 208.º da Constituição da República, «a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato e regula o patrocínio forense como elemento essencial à administração da justiça.»
Em anotação ao citado normativo constitucional, Jorge Miranda e Rui Medeiros sublinham: «I - A Constituição não ignora o papel fundamental que os advogados são chamados a desempenhar, seja na perspetiva da plena efetivação do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos, seja na ótica da própria administração da justiça. (...)
III - O artigo 208° tem unicamente em vista a atividade dos advogados no exercício do mandato e o patrocínio forense enquanto elemento essencial à administração da justiça. O legislador constitucional, ao salvaguardar as imunidades dos advogados e ao reconhecer o interesse público do patrocínio forense, não se limita a remeter para a lei ordinária a tarefa da definição dos atos próprios dos advogados que beneficiam da proteção qualificada prevista no artigo 208°.
(...) A relevância que a Lei Fundamental confere à advocacia, neste preceito, inserido num título respeitante aos tribunais, tem subjacente o reconhecimento da função social dos advogados na administração da justiça (…).
A alusão genérica ao mandato tem um alcance expansivo, não se esgotando necessariamente no mandato (forense) conferido para ser exercido perante um órgão jurisdicional (...). A abertura da formulação constitucional permite, nomeadamente, abranger o mandato para a defesa dos direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares através da apresentação à Administração Pública de requerimentos, reclamações ou recursos administrativos. (...)
IV - O artigo 208° refere que a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício do mandato. (...) As imunidades existem para defender os advogados de ações ou intromissões provindas do exterior e, em última análise, para preservar a independência dos advogados no exercício do mandato» ("Constituição Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 2007, Tomo III, p. 98 a 103).
Também a Lei de Organização do Sistema Judiciário preceitua, no seu artigo 13°, nº 2, sob a epígrafe "Imunidade do mandato conferido a advogados":
“Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:
a) O direito à proteção do segredo profissional;
b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos.”
E, relativamente a buscas e apreensões em escritórios ou sociedades de advogados, cumpre considerar o disposto nos artigos 75° a 77º do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pela Lei nº 145/2015, de 9 de setembro, com especial destaque para o preceituado no artigo 76°, sob a epígrafe: “Apreensão de documentos”:
“1 - Não pode ser apreendida a correspondência, seja qual for o suporte utilizado, que respeite ao exercício da profissão.
2 - A proibição estende-se à correspondência trocada entre o advogado e aquele que lhe tenha cometido ou pretendido cometer mandato e lhe haja solicitado parecer, embora ainda não dado ou já recusado.
3 - Compreendem-se na correspondência as instruções e informações escritas sobre o assunto da nomeação ou mandato ou do parecer solicitado.
4 - Excetua-se o caso de a correspondência respeitar a facto criminoso relativamente ao qual o advogado tenha sido constituído arguido.”
Este nº 4 prevê um requisito cumulativo ao aludido no artigo 180º nº 2, do Código de Processo Penal. Não só não é permitida, sob pena de nulidade, a apreensão de documentos abrangidos pelo segredo profissional, salvo se eles mesmos constituírem objeto ou elemento do crime, como também é necessário que o advogado com domicílio profissional naquele escritório tenha sido constituído arguido.
No caso que nos é apresentado, o Ministério Público pretende obter busca em escritório de advocacia sem ter constituído arguida a advogada visada.
Como resulta da nossa apreciação dos indícios que devem ser fundamento de uma autorização de busca, não está demonstrado em que medida os documentos que o Ministério Público pretende apreender são elemento constitutivo ou objeto da prática de algum crime imputável à mesma advogada.
Referimo-nos particularmente aos documentos destacados a fls. 278: cópias de documentos de viagem, notas referentes às circunstâncias migratórias individuais, documentos comprovativos da entrada em território nacional e documentos decorrentes das subordinações laborais declaradas, ou mesmo as supostas anotações que permitam inferir um eventual agrupamento de imigrantes ilegais por entidade patronal ou supostos registos contabilísticos informais decorrentes de serviços prestados.
Todos esses documentos, a existirem efetivamente em algum dos escritórios da advogada visada, não constituem objeto ou elemento dos crimes que o Ministério Público parece pretender imputar à referida advogada, que não foi constituída arguida pela prática de qualquer crime.
Como afirmou o Presidente do Conselho de Deontologia de Lisboa da Ordem dos Advogados, num recente artigo publicado no jornal Público, «o advogado serve o direito. E por isso, a relação profissional que estabelece com quem procura os seus serviços repousa na confiança e lealdade recíprocas, garantidas pelo sigilo profissional. (…) O sigilo profissional não se reconduz, porém, a um privilégio do advogado. Serve a cidadania livre. Constitui uma garantia desta. Só a proteção do conteúdo da relação estabelecida entre o advogado e constituinte permite ao cidadão/constituinte agir em sociedade, exercendo cabal e plenamente os direitos e legítimos interesses de que seja portador de forma inteiramente livre e esclarecida, nos limites da lei e do direito. (…) Porque o sigilo profissional dos advogados não é privilégio destes. É direito fundamental dos cidadãos.»
Por tudo o exposto, e considerando as normas e princípios constitucionais diretamente aplicáveis, nos termos previstos nos artigos 1º, 12°, 13°, 16°, 18° nº 1 e nº 2, 20°, nº 2, 32°, nº 2, e 52° da Constituição, indeferem-se, mais uma vez, as requeridas buscas aos dois escritórios de advocacia.
Notifique o Ministério Público e devolva.»
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Inconformado com o assim decidido, veio o Ministério Público interpor o presente recurso, com subida imediata e em separado, sintetizando as suas razões nas seguintes conclusões:
«1. Das diligências levadas a cabo no inquérito nº 79/12.2ZRPRT, resulta indiciado que a advogada B..., visando fins lucrativos, promoveu manifestações de interesse inserindo dados falsos nas mesmas, para obtenção de autorizações de residência a imigrantes que entraram/permaneceram ilegalmente em território nacional, designadamente por não possuírem visto de entrada (cfr. artigo 10º da Lei nº 23/2007), ocultando com essa conduta factos que, se fossem conhecidos pelo SEF, obstariam à concessão do visto de residência (cfr. artigo 77º, nº 1, alínea b), da Lei nº 23/2007).
2. Contrariamente ao entendimento constante da decisão recorrida, encontra-se indiciada a prática, pela advogada B... dos crimes de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183º, nº 2, da Lei 23/2007, de 4 de julho, na redação dada pela Lei nº 29/2012, de 9 de agosto, e de falsidade informática, previsto e punido no artigo 3º, nº 1, da Lei 109/2009, de 15 de setembro, mediante a utilização abusiva e ilegal do regime excecional previsto pelo artigo 88º nº 2, da citada Lei nº 23/2007, de 4 de julho, através da inserção no portal "SAPA" de dados falsos nas manifestações de interesse apresentadas.
3. Dada a abrangência (“por qualquer forma”) do tipo legal de auxílio a imigração ilegal, previsto e punido pelo nº 2 do artigo 183º da Lei nº 23/2007, o preenchimento de dados falsos numa “manifestação de interesses”, nos termos previstos no artigo 88º, nº 2, do mesmo diploma legal, inseridos com vista à obtenção de autorizações de residência para imigrantes em situação de permanência ilegal no território nacional, corresponde, manifestamente, a uma conduta que preenche os elementos típicos do ilícito criminal em causa.
4. A noção de documento prevista no regime geral (artigo 255º, alínea a), do Código Penal), não se aplica, nos exatos termos previstos nessa norma, ao crime de falsidade informática, pelas especificidades do regime especial previsto na Lei do Cibercrime.
5. A inserção de manifestações de interesse no portal “SAPA” pela advogada B..., ao abrigo do disposto no artigo 88º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, contendo, indiciariamente, dados falsos, constitui uma adulteração ilícita de dados informáticos, para os efeitos previstos no artigo 3°, nº 1, da Lei do Cibercrime, uma vez que esses dados falsos visam a criação de documentos não genuínos, para finalidades juridicamente relevantes, atendendo ao facto de terem a aptidão de ludibriar o SEF nos pareceres de atribuição de autorização de residência, visando, de forma manifesta, causar engano nas relações jurídicas.
6. Como meio de obtenção de provas que é, a busca não pode depender da prévia existência das provas que visa, precisamente, obter. Sob pena de se retirar qualquer efeito útil relevante ao referido meio ou instrumento de obtenção de prova.
7. O que se pretende com a busca é precisamente a recolha de elementos de prova que confirmem ou infirmem os factos participados. Para ser ordenada a busca e a apreensão não é necessário, pois, que os indícios da prática do crime sejam suficientes ou fortes.
8. A decisão recorrida faz assentar a realização daquele meio de obtenção de provas na existência das mesmas provas.
9. O interesse do Estado na investigação criminal e na expulsão de estrangeiros que permaneçam irregularmente em território nacional encontra-se expressamente previsto no artigo 27°, nº 3, alínea c), e 33°, nº 2, da nossa Lei Fundamental, e fundamenta a restrição de direitos fundamentais implicada com a realização das buscas, tal como expressamente previsto no artigo 18°, nº 2, e 34°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa e no artigo 174°, nº 2, do Código de Processo Penal.
10. As buscas promovidas, a realizar nos escritórios de advocacia da Dr.ª B..., com busca, pesquisa e apreensão de dados informáticos (devidamente especificados na promoção do Ministério Público) nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes, são necessárias, adequadas e proporcionais aos fins de investigação visados, não existindo qualquer afronta ao artigo 18°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.
11. Os documentos que se visam apreender na busca, e exaustivamente elencados na promoção do Ministério Público, apesar de poderem estar cobertos por segredo profissional, estão diretamente relacionados com a indiciada atividade delituosa levada a cabo pela suspeita.
12. A definição do objeto da busca, quando esta incida em escritório de advogado ou em local onde este faça arquivo, impõe um maior cuidado, mas não implica que, encontrando-se assente em pressupostos que redundem na sua adequação e proporcionalidade, tenha de revestir forma diferente de outra qualquer. Pese embora o objeto da busca tenha de estar minimamente concretizado, incluindo as razões para a mesma, não se impõe que, previamente à diligência, se dê o mesmo a conhecer ao advogado ou ao representante da Ordem dos Advogados, limitando intoleravelmente a sua utilidade e eficácia.
13. Nada invalida que a constituição como arguida da advogada visada pela busca opere em momento imediatamente anterior à realização das mesmas; não pode é pretender-se que essa constituição ocorra antes, com a inerente perda de eficácia da diligência.
14. Além do mais, sempre se dirá que o artigo 76º, nº 4, não tem aplicação quando as buscas em escritórios de advogados visam apreender objetos ou elementos de um crime, nos termos e para os efeitos previstos na parte final do artigo 180º, nº 2, do Código de Processo Penal.
15. Ora, a apreensão de documentos visada pelas buscas promovidas pelo Ministério Público diz respeito a objetos ou elementos de um crime, não se limitando à mera recolha de prova que sustente indícios da prática do mesmo.
16. O artigo 16º, nº 5, da Lei do Cibercrime refere as formalidades relativas às apreensões relativas a sistemas informáticos utilizados para o exercício da advocacia, procedendo a uma remissão apenas para o Código de Processo Penal, e não para o Estatuto da Ordem dos Advogados, enquanto que, no caso dos jornalistas, se remete expressamente, na mesma norma, para o Estatuto dos Jornalistas, o que sustenta a interpretação de que, no caso especial de apreensão de dados informáticos, o artigo 76º, nº 4, do Estatuto da Ordem dos Advogados, não terá aplicação.
17. As diligências requeridas na promoção do Ministério Público revelavam-se (e revelam-se) de grande interesse para a descoberta da verdade material, bem como para as necessidades de obtenção de prova.
18. Encontravam-se (cabalmente) preenchidas as condições formais e materiais de que dependia a sua autorização.
19. Pelo que deveriam ter sido deferidas as diligências requeridas.
20. Ao indeferir a promoção do Ministério Público, o Mmº. Juiz de Instrução Criminal procedeu a uma errónea interpretação dos artigos 88º, nº 2, e 183º, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, dos artigos 3º, nº 1, e 16º, nº 4, da Lei do Cibercrime (Lei nº 109/2009, de 15 de setembro), dos artigos 174°, nº 2, e 180°, nº 2, do Código de Processo Penal, do artigo 76°, nº 4, da Lei nº 145/2015, de 9 de setembro (Estatuto da Ordem dos Advogados) e artigo 18°, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.»
Finalizou o Ministério Público o seu recurso pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que determine a busca promovida, direcionada aos escritórios de advocacia da Dr.ª B... (sitos na Av. ..., nº ..., ..° Esquerdo, em Lisboa e na Av. ..., nº ..., ..., ..º Esquerdo, em Cascais), com busca, pesquisa e apreensão de documentos em suporte papel e de dados informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes, tudo nos termos previstos nos artigos 174°, nº 2, 176°, 177°, nºs 1 e 5, 179°, nº 3, 180°, todos do Código de Processo Penal, e artigos 15° a 17° da Lei do Cibercrime (…)».
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Já nesta 2ª instância, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apor o seu “visto”.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
Assim, levando em conta a argumentação expendida no acima transcrito despacho recorrido e face às conclusões do recurso, as principais questões a decidir consistem em saber:
- se a factualidade indicada como fundamentadora das pretendidas buscas em escritórios de advocacia é suscetível de preencher algum tipo de ilícito criminal;
- se, ainda que se considere existir matéria com relevância criminal, as buscas não devem ser autorizadas por serem desnecessárias e redundantes, face à existência de outros meios de prova, e/ou por se verificar desproporção entre o interesse para a descoberta da verdade (que visam alcançar), por um lado, e a necessária quebra das imunidades constitucionalmente reconhecidas ao exercício da advocacia (que, necessariamente, comprimem), por outro.
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Previamente à análise das identificadas questões, importa conhecer os fundamentos da indeferida pretensão do Ministério Público, que a seguir passam a especificar-se:
Indícios de práticas criminais da visada alegados como motivação das buscas
Para obter a autorização das buscas nos escritórios da advogada Dr.ª B..., o Ministério Público invocou a existência dos seguintes indícios prévios:
«(1)- O inquérito n.º 79/12.2ZRPRT teve início a 06-12-2012, com base nas informações de serviço do SEF (de fls. 3-28), nas quais se refere, em síntese, que na sequência de uma operação de fiscalização no restaurante "D...", sito no "E...", foram identificados seis trabalhadores que se encontravam em permanência ilegal no território nacional.
(2)- A fiscalização "supra" referida foi motivada pelas suspeitas da prática de crime, decorrentes da análise das "Manifestações de Interesses" dos cidadãos de nacionalidade brasileira F..., G..., H... e I..., as quais tinham diversos elementos em comum, designadamente a data de inserção no portal "SAPA", o vínculo laboral assumido com a empresa "C..., Lda." (NIF .........), propriedade de J... e K..., o desempenho de funções laborais no restaurante "D...", sito no "E...", em Matosinhos, a residência na Rua ..., n° ., em Matosinhos, e o contacto telefónico ..........
(3)- Além do mais, apurou-se que os cidadãos supra referidos tentaram regularizar a sua permanência em território português através do procedimento extraordinário previsto no artigo 88.°, n.º 2, da Lei n.º 23/2007, de 4 de Julho, e que nas respetivas manifestações de interesse foram comunicadas datas de entrada em Portugal anteriores à emissão dos respetivos passaportes, o que levantou a suspeita, posteriormente confirmada pelas declarações prestadas pelos próprios e pela verificação dos carimbos de entrada no Espaço Schengen apostos nos passaportes dos mesmos, de que as datas de entrada em Território Nacional haviam sido deturpadas aquando da inserção das manifestações de interesse, com vista a induzir em erro e viciar a decisão do SEF, que atribui parecer negativo automático às manifestações de interesse sempre que a diferença entre a data de chegada a Território Nacional e a data de inserção de Manifestação de Interesse seja inferior a 180 dias (cf. Auto Informativo de fls. 500 a 505).
(4)- No decurso da investigação apurou-se que, entre 2007 e 2016, pelo menos 190 cidadãos estrangeiros, que se encontravam a trabalhar por todo o Território Nacional, indicaram como entidade patronal uma das empresas associadas a J... e K..., na manifestação de interesse apresentada no âmbito do procedimento extraordinário previsto no artigo 88.°, n.º 2, da Lei 23/2007, de 4 de Julho (cfr. listagem constante nas fls. 393 a 399), que todos esses registos no portal "SAPA" tinham como contacto telefónico o número ......... e que pelo menos 19 cidadãos declaravam, nesse registo, ter chegado a Portugal em datas anteriores à emissão dos seus passaportes.
(5)- Quando inquiridas, as testemunhas G..., M..., N... e I..., para além de confirmarem que entraram em Portugal em datas posteriores às indicadas nas respetivas manifestações de interesse, referiram que, por indicação de O... ou de funcionários das respetivas empresas, a fim de regularizar a sua situação em Território Nacional, contactaram a advogada B..., através do n° ........., que acordaram com a mesma a regularização do respetivo processo de legalização em Portugal mediante o pagamento de montantes que variavam entre os 150€ e 500€, enviando-lhe para o email B1...@gmail.com ou entregando-lhe em mão, para esse efeito, a documentação solicitada pela mesma (contrato de trabalho, número de contribuinte, passaporte e dados da Segurança Social). Relativamente à data de entrada em Portugal por todas as testemunhas foi referido que a aposição de data anterior à data de entrada em Portugal foi realizada pela advogada, sem o respetivo conhecimento. A testemunha N... referiu que, para dar entrada do pedido inicial de legalização se encontrou presencialmente com a advogada B... no respetivo escritório em Cascais, tendo, para esse efeito, aí entregue cópia do passaporte, número de contribuinte, contrato de trabalho e número da segurança social.
(6)- Realizadas pesquisas no portal "SAPA", foram detetadas cerca de 270 "Manifestações de Interesses" de cidadãos cujas nacionalidades variam entre a Tunisina, Paquistanesa, Nepalesa, Indiana e Filipina, entre outras, igualmente associadas ao número de telefone ........., nas quais é declarada a nacionalidade Brasileira, não obstante no campo observações ser revelada a verdadeira nacionalidade e referido que o cidadão em causa não era titular de visto de entrada, logrando-se desta forma protelar um eventual procedimento do SEF quanto ao seu afastamento coercivo de Território Nacional e impedindo a instauração de contraordenações à respetiva entidade patronal.
(7)- No dia 12/01/2017, o SEF procedeu a ação de fiscalização ao restaurante "D...", sito no "E...", em Matosinhos, estabelecimento explorado pela sociedade "C..., Lda.", tendo sido detetados mais dois funcionários em situação irregular em Portugal, sendo que um deles, P..., referiu de forma informal que a responsabilidade a nível contraordenacional da sociedade referida é transferida, pela mesma, para o trabalhador,
(8)- No decurso da investigação, a cargo do SEF, apurou-se, ainda, através de pesquisa efetuada ao site da Ordem dos Advogados, que o número de telefone ......... se encontra associado à advogada B..., com escritório na Avenida ..., ..., .° Esquerdo, ....-... Lisboa e na Avenida ..., ..., ..., .° Esquerdo, ....-... Cascais.»
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A) A tipicidade das condutas sob investigação
Na alargada argumentação expendida no acima transcrito despacho recorrido, deteta-se, como primeira e basilar linha de força, a que vai no sentido de negar tipicidade criminal às condutas invocadas pelo Ministério Público.
Assim, no que tange ao invocado crime de auxílio à imigração ilegal do nº 2 do artigo 188º da Lei nº 23/2007, de 4/7 [2], o entendimento do M.mº JIC pode considerar-se sintetizado na seguinte passagem do seu despacho: “De facto, afigura-se-nos extremamente difícil a demonstração de que a simples apresentação, no portal do SEF, de uma ‘manifestação de interesse’ em nome e representação de um estrangeiro, nos termos do artigo 88°, nº 2, da Lei nº 23/2007, de 4 de julho, possa constituir o seu apresentante em responsabilidade penal pela prática de um crime de auxílio à imigração ilegal, considerando nomeadamente o direito de petição consagrado no artigo 52°, nº 1, da Constituição da República.”
Já quanto ao alegado crime de falsidade informática do nº 1 do artigo 3º da Lei 109/2009, de 15/9 [3], entende o Tribunal recorrido, mormente, que “(…) os indícios são omissos relativamente à alegação de que a arguida tenha efetivamente produzido dados informáticos adequados a interferir num tratamento informático de dados, sendo no mínimo duvidoso que a inscrição de uma data de entrada em território nacional desconforme com a realidade, no ato de preenchimento de um formulário eletrónico semelhante ao formulário em papel documentado a fls. 26 do apenso A, deva ser criminalmente punida com fundamento num suposto sistema automático de pré-agendamento (SAPA), atendendo nomeadamente ao princípio da decisão previsto no artigo 13° do CPA e às regras aplicáveis ao correspondente processo administrativo.”
Pois bem.
Não obstante o assinalável esforço argumentativo desenvolvido pelo Tribunal recorrido na sustentação da sua tese de que os factos indicados pelo Ministério Público – e, em boa medida, indiciados pela investigação prévia do SEF – não preencherão os requisitos dos dois tipos legais de crime apontados na promoção indeferida, afigura-se-nos que tal interpretação não é a mais correta.
Com efeito, não sendo postos verdadeiramente em causa os indícios de que a Ex.ma Advogada visada introduziu no “sítio do SEF na Internet” (designado por SAPA), em nome dos seus clientes e com intuito lucrativo, – pelo menos nos casos expressamente mencionados na investigação – dados sobre as respetivas datas de entrada no território nacional e até sobre a sua nacionalidade que, consabidamente, não correspondiam aos reais, como meio de não verem as suas declarações de interesse automaticamente indeferidas, não vemos como se não mostrem preenchidos os requisitos típicos do crime de auxílio à emigração ilegal do nº 2 do artigo 188º da Lei nº 23/2007, de 2/7.
É certo que dos autos não resultam indícios de qualquer intervenção da advogada no recrutamento destes trabalhadores estrangeiros, designadamente no auxílio à sua entrada ou mesmo à sua circulação no território nacional.
Porém, é também insofismável que o âmbito de abrangência do tipo de ilícito ora em causa não se limita a tais comportamentos de maior visibilidade ou de maior proatividade, estendendo-se também ao auxílio, “por qualquer meio”, à “permanência” ilegal de imigrantes.
Nem se diga que – como o faz o Tribunal recorrido – uma conduta de auxílio (neste caso, jurídico) só seria tipicamente relevante se se destinasse diretamente à produção de um ato administrativo e já não a efeitos alegadamente pré-decisórios, automáticos, não definitivos.
Na verdade, o âmbito de atuação da visada encontra o seu enquadramento e explicação no contexto do alegado pelo recorrente e que aqui se reproduz:
«Segundo a Informação de Serviço n.º 64/GJ/09 do Gabinete Jurídico do SEF – Direção Regional do Norte (cfr. fls. 9 a 11 do Apenso A), foi determinado que o “SAPA” passasse a emitir parecer negativo automático quando constata uma manifestação de interesse apresentada por cidadão estrangeiro cuja entrada em território nacional tenha ocorrido entre 1-180 dias antes daquela apresentação.
Acontece que parte relevante destes imigrantes ilegais não reunia, à data do recrutamento, as condições para se regularizar em território nacional, designadamente porque apresentavam períodos de permanência em território português inferiores a cento e oitenta dias, constrangimentos objetivos que, indiciariamente, eram do conhecimento da advogada (cfr. auto informativo de fls. 500 a 505).
Existem fortes indícios de que estamos perante um procedimento consciente e sub-reptício: para contornar um dos requisitos previstos para a aceitação das manifestações de interesse no mecanismo de regularização extraordinária que verte do n.º 2, do artigo 88.º da Lei 23/2007, terão sido propositadamente alteradas, pela advogada B..., as datas de entrada de cidadãos estrangeiros inseridas no Portal "SAPA". Assim, ludibriada quanto ao real período de permanência em território português, a Administração emitiu pareceres positivos nestas manifestações de interesse quando, se fosse conhecida a verdadeira data de entrada, o parecer teria sido automático e negativo (cfr. auto informativo de fls. 411).
Após consulta aos registos no Portal "SAPA" promovidos pela advogada B... (tendo como critério de entrada o respetivo telemóvel ........., o contacto declarado - foram sinalizados cerca de duzentos e setenta pedidos associados a imigrantes, na sua maioria de aparente origem indostânica cuja nacionalidade carreada na plataforma online foi a brasileira (cfr. listagem de fls. 506 a 513).
A título de exemplo, note-se o procedimento adotado pela advogada no registo promovido em nome do imigrante ilegal Q...: no campo “nacionalidade do interessado” foi carreada a nacionalidade brasileira, mas no campo destinado às observações fez-se constar: "o CE (cidadão estrangeiro) é nacional do Bangladesh, mas, por não possuir visto de entrada, inseriu a sua nacionalidade como brasileiro, de forma a ser apresentada esta mi (manifestação de interesse) – requerendo desde já a retificação da sua nacionalidade" - (cfr. registo de fls. 515). Ao inserir no Portal "SAPA" um registo incorreto associado a uma nacionalidade isenta de visto – a brasileira – em detrimento da autêntica – a do Bangladesh – é contornada a obrigatoriedade da especificação do visto de entrada que pende sobre os cidadãos de origem indostânica. Este logro permitiu ao imigrante ilegal Q... permanecer no que se poderá chamar de "limbo documental", já que, sendo inviável a emissão de qualquer título de residência, com a inserção de uma manifestação de interesse no Portal "SAPA", este cidadão estrangeiro protelou o provável procedimento tendente ao afastamento coercivo de território nacional e impediu a instauração à respetiva entidade patronal da consequente contraordenação por emprego de mão-de-obra ilegal. Um subterfúgio que se mostrou eficiente e assegurou o prolongar desta estada irregular em Portugal.
Resulta, assim, indiciado que a advogada B..., com intenção lucrativa, não obstante a consciência jurídica inerente à profissão, não se coibiu de promover manifestações de interesse que sabia inviáveis e adotou procedimentos sub-reptícios que permitiram a um conjunto relevante de imigrantes ilegais contornarem os pareceres automáticos emitidos pela plataforma ‘on line’ por incumprimento dos requisitos prévios basilares: prova de entrada legal em território nacional e/ou período de permanência em Portugal superior a cento e oitenta dias.».
A invocação (a nosso ver descontextualizada e inócua) do parecer administrativo referido no despacho recorrido – proferido no âmbito de outros autos e a propósito de uma questão diversa – não modifica ou afeta, de modo algum, a tipicidade da conduta indiciada, como crime de auxílio à imigração ilegal.
Encontra-se, desta forma, suficientemente indiciada a prática, pela advogada B..., do crime de auxílio à imigração ilegal, previsto no artigo 183°, n.º 2, da Lei 23/2007, de 4 de julho, na redação dada pela Lei n.º 29/2012, de 9 de agosto.
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Quanto ao crime de falsidade informática delineado pelo artigo 3°, nº 1, da Lei nº 109/2009, de 15 de setembro – onde se prevê e pune a conduta de “quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem” – também o Tribunal recorrido põe em causa a respetiva verificação, por entender que existem “fundadas dúvidas sobre a verificação dos respetivos elementos constitutivos, objetivos e subjetivos, nomeadamente no que respeita aos efeitos juridicamente relevantes pretendidos”.
O tipo de argumentação aqui invocada pelo Tribunal recorrido mostra-se, em boa medida, semelhante à usada para o crime de auxílio à emigração ilegal: porque se estaria perante um procedimento prévio e, por isso, não diretamente destinado ao proferimento de um ato definitivo e executório da administração, o tipo de declaração ínsita numa “manifestação de interesse” não seria apta a produzir ou introduzir ‘dados’ ou ‘documentos’ juridicamente relevantes, para os efeitos incriminatórios agora previstos.
Porém, por razões idênticas às já anteriormente adiantadas, não sufragamos o argumentário subjacente a esta especiosa interpretação do preceito em causa, pelo que entendemos que se encontram também presentes – na factualidade indiciada – os pressupostos típicos do crime de falsidade informática, previsto e punido no artigo 3°, n.º 1, da Lei 109/2009, de 15 de setembro.
Procede, assim, na vertente da verificação da tipicidade da factualidade investigada, o recurso interposto.
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B) Os requisitos das buscas em escritório de advocacia
Entendeu-se, subsidiariamente, no despacho recorrido que, em todo o caso, o Ministério Público não terá especificado, como devia, que dados informáticos deveriam ser apreendidos e por que razão os mesmos deveriam ser procurados nos escritórios de advocacia visados e não no sistema informático do SEF onde foram introduzidos, ou no sistema informático do fornecedor de serviços de internet.
Assim, explícita ou implicitamente, aí se esboça a posição de que, tendo o SEF acedido às informações ou dados supostamente viciados através do seu próprio sistema informático, nele encontraria também, necessariamente, todos os elementos de prova suficientes para fundamentar uma eventual acusação. Seria, por isso, desnecessário efetuar buscas nos escritórios da Ex.ma Advogada visada, pelo que as diligências promovidas seriam ilegais e inconstitucionais, por desrespeitarem os pressupostos de tais meios de obtenção de prova, designadamente os exigidos pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade, por sua vez moldados pelo princípio da intervenção mínima do direito penal e do direito processual penal.
Vejamos.
Constituem pressupostos gerais de admissibilidade dos meios de obtenção de prova, nomeadamente, a sua permissão constitucional, a sua legalidade ‘stricto sensu’ (existência de lei habilitante), a sua concreta necessidade (insubstituibilidade) para a salvaguarda de um direito constitucionalmente protegido e a sua proporcionalidade para o efeito pretendido [4].
Como requisitos específicos da busca, aponta-se ainda a necessidade da existência de indícios do crime e de que o arguido, outra pessoa que deva ser detida, quaisquer objetos relacionados com o crime ou que possam servir de prova se encontram em lugar reservado ou não livremente acessível ao público [5].
Acrescem, finalmente, como requisitos especialíssimos da busca em escritório de advogado, os decorrentes do disposto nos artigos 180º e 177º, nº 5, do Código de Processo Penal e 75º a 77º do atual Estatuto da Ordem dos Advogados (Lei nº 145/2015, de 9/9).
Voltando aos requisitos considerados em falta pelo despacho recorrido, há, desde logo, que assinalar que, contrariamente ao ali expendido, as buscas promovidas se mostram claramente necessárias para a prova cabal dos crimes em investigação.
Com efeito, embora alguns dos vários crimes se encontrem já suficientemente indiciados face ao confronto entre a prova decorrente das próprias ‘manifestações de interesse’ inseridas nas bases de dados oficiais e a prova testemunhal e mesmo alguma documental existentes nos autos, é sabido que a prova testemunhal é mutável, influenciável e genericamente falível. Por outro lado, o objetivo expresso das buscas não é apenas (ou nem é sobretudo) o da apreensão de ‘dados informáticos’, ou de documentos em suporte digital, mas também o da apreensão de documentos em arquivo físico (analógico) ou de papel, que não é possível (ou viável) efetuar por outro meio.
As buscas mostram-se, assim, incontestavelmente, necessárias.
Já quanto à respetiva proporcionalidade, há que atender ao conflito de direitos/deveres constitucional e legalmente protegidos – mormente o dever de exercício da ação penal por parte do Ministério Público e o dever de sigilo profissional dos advogados, por parte da causídica visada com as promovidas buscas (cfr., respetivamente, os artigos 221º, nº 1, e 208º da CRP).
Cremos que também subjaz (pelo menos implicitamente) ao despacho recorrido a consideração de que, no caso concreto, o tipo de crimes eventualmente cometidos careceria de suficiente gravidade ou até de ressonância ética para que ao interesse da sua investigação e punição fosse sacrificado o dever de sigilo profissional inerente à função social e jurídica do patrocínio forense.
Quanto à alegada carência de ressonância ética dos crimes em causa, embora reconheçamos estar – designadamente quanto ao crime de auxílio à imigração ilegal – face a exemplos do chamado ‘direito penal secundário’, não podemos deixar de entender que a respetiva gravidade se deve aferir em função das penas que o legislador estatuiu para a sua punição [6]. Ora, ambos os tipos legais de crime em investigação preveem punições com penas de 1 a 5 anos de prisão, não podendo ser, de modo algum, considerados bagatelas penais.
Não se nos afigura, assim, que a autorização das promovidas buscas/apreensões possa ser considerada, no âmbito da ponderação de direitos constitucional e legalmente protegidos, como desproporcionada face ao sacrifício das imunidades de que goza a Ex.ma Advogada visada. De resto, tal sacrifício, na medida do possível, deverá ser limitado, nos termos conjugados dos artigos 177º, nº 5, 180º, 179º e 135º do Código de Processo Penal e 75º a 77º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
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III – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, em revogar a decisão recorrida e, em substituição, autorizar e determinar a busca promovida, direcionada aos escritórios de advocacia da Dr.ª B... (sitos na Av. ..., nº ..., ..° Esquerdo, em Lisboa, e na Av. ..., nº ..., ..., ..º Esquerdo, em Cascais), com busca, pesquisa e apreensão de documentos em suporte papel e de dados informáticos nos computadores e demais aparelhos eletrónicos aí existentes, associados às ‘manifestações de interesse’ na regularização extraordinária prevista no nº 2 do artigo 88° da Lei 23/2007, de 4 de julho, em nome de imigrantes ilegais não enquadráveis nesse mecanismo legal, tudo nos termos previstos nos artigos 174°, nº 2, 176°, 177°, nºs 1 e 5, 179°, nº 3, 180°, todos do Código de Processo Penal, e artigos 15° a 17° da Lei do Cibercrime.
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Sem custas.
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Porto, 9 de maio de 2018
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
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[1] Tal decorre, desde logo, de uma interpretação conjugada do disposto no nº 1 do artigo 412º e nos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[2] Onde se prevê que “Quem favorecer ou facilitar, por qualquer forma, a entrada, a permanência ou o trânsito ilegal de cidadão estrangeiro em território nacional, com intenção lucrativa, é punido com pena de prisão de um a cinco anos”.
[3] Dispositivo da também chamada “Lei do Cibercrime”, onde, relembre-se, se prescreve que “Quem, com intenção de provocar engano nas relações jurídicas, introduzir, modificar, apagar ou suprimir dados informáticos ou por qualquer outra forma interferir num tratamento informático de dados, produzindo dados ou documentos não genuínos, com a intenção de que estes sejam considerados ou utilizados para finalidades juridicamente relevantes como se o fossem".
[4] Sobre os requisitos gerais dos meios de obtenção de prova, ver Francisco Marcolino de Jesus, ‘Os Meios de Obtenção de Prova em Processo Penal’, Almedina, 2011, páginas 139-140.
[5] Ver também Francisco Marcolino de Jesus, obra citada, páginas 180-181.
[6] Para obviar a situações possivelmente chocantes, vem entendendo alguma doutrina que, no juízo de ponderação, deverá sempre ter-se presente o tipo de crime, em confronto com a danosidade social da medida, por forma a que se possa evitar a realização da busca em casos bagatelares (neste sentido, cfr., ainda Francisco Marcolino, obra citada, nota 499, na página 181.