Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1346/19.0T8PNF-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JERÓNIMO FREITAS
Descritores: PROCESSO EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO
PERÍCIA MÉDICA
REGIME
Nº do Documento: RP202109201346/19.0T8PNF-B.P1
Data do Acordão: 09/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: RECURSO IMPROCEDNETE, CONFIRMADA A DECISÃO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - No processo emergente de acidente de trabalho, a realização da perícia médica na fase conciliatória, excepto nos casos em o acidente provocou a morte do sinistrado (art.º 100.º do CPT), é sempre obrigatória, ou seja, é um acto que integra necessariamente a tramitação do processo, como condição para se fixar a incapacidade do sinistrado e possibilitar a realização da tentativa de conciliação (art.º 101.º CPT).
II - Nos casos em que não é obtida a conciliação entre as partes, sempre que a causa do desacordo, ou uma das questões controvertidas que o motiva, seja a discordância do interessado com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho, haverá sempre lugar à realização de uma segunda perícia médica, agora por junta médica, isto é, colegial, cuja realização fica dependente de requerimento da parte interessada (art.º 138.º e 2, do CPT).
III - Em suma, no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, quando está em causa a fixação da incapacidade do sinistrado para o trabalho, a lei processual laboral prevê duas perícias médicas, cuja realização tem lugar nas condições apontadas.
IV - Se tivermos presente o regime da prova pericial estabelecido no Código de Processo Civil (artigos 467.º e sgts), designadamente, no que concerne ao limite do número de perícias, constata-se que a solução do CPT não diverge daquele, na medida em que ali também se prevê a possibilidade de realização de dois exames periciais. A primeira perícia tem lugar a requerimento das partes ou quando seja determinada oficiosamente pelo juiz (art.º 467º n.º1); a segunda é a que consta prevista no art.º 487.º, do CPC, tendo lugar também a requerimento das partes – “alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado” [n.º1] - ou por determinação oficiosa do tribunal – “a todo o tempo [..], desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade [n.º2] –tendo por “objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta” [n.º3].
V - O exame por junta médica previsto no art.º 139.º do CPT, salvaguardadas as especificidades próprias ditadas pelos objectivos em vista, corresponde à segunda perícia prevista no CPC, nomeadamente, no artigo 487.º. Em termos similares, a sua realização a requerimento de qualquer das partes depende apenas da discordância “com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo” [art.º 138.º2 do CPT], devendo aquele ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos [art.º 117.º n.º2, CPT], e tem o mesmo objecto que o exame pericial singular, ou seja, visa determinar a incapacidade para o trabalho do sinistrado.
VI - Não era admissível ao sinistrado, notificado do resultado do exame por junta médica, socorrer-se do “disposto no art. 487.º do C.P.C., [para] requerer a realização de segunda perícia”, por dele discordar na consideração de que “ as respostas dadas pelos Senhores Peritos aos quesitos 2.º e 3.º não espelham de forma fiel a situação clínica“ e com o propósito, como referiu no final do requerimento, de “(..) dissipar quaisquer dúvidas e em nome da descoberta da verdade material, (..), com vista a apurar a incapacidade temporária absoluta e a incapacidade parcial permanente resultantes para o autor do acidente dos autos”.
VII - A acolher-se esta pretensão estar-se-ia a admitir a realização de três perícias médicas, uma singular e duas por junta, a última para se pronunciar sobre os mesmos factos e quesitos, o que extravasa o regime estabelecido no CPT, mas também no CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: APELAÇÃO n.º 1346/19.0T8PNF-B.P1
SECÇÃO SOCIAL
ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO
I. RELATÓRIO
I.1 No Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo do Trabalho de Penafiel, frustrado o acordo na tentativa de conciliação, B… apresentou petição inicial, dando início à fase litigiosa da presente acção especial emergente de acidente de trabalho, na qual demanda C…, S.A., e D…, LDA, pedindo que julgada procedente, em consequência sejam as rés condenadas no seguinte:
A) Reconhecer o acidente sofrido pelo autor como um acidente de trabalho;
B) Reconhecer a existência do nexo causal entre o acidente e as lesões sofridas pelo autor;
C) Pagar ao autor a quantia de €3.048,98, a título de indemnização por incapacidade temporária absoluta (ITA) desde 22.08.2018 a 07.11.2018, calculada com base na al. d) do art. 48.º n.º 3, da Lei 98/09, de 4 de Setembro;
D) Pagar ao autor o capital de remição da pensão anual e vitalícia de 285,35€, devida a partir de 08.11.2018, calculada com base na al. c) do art. 48.º n.º 3, da Lei 98/09, de 4 de Setembro;
E) Pagar ao autor a quantia de €549,35 a título de despesas médico medicamentosas e com deslocações a consultas e tratamentos;
F) Pagar ao autor a quantia de €40,00 relativa a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de Penafiel e ao Tribunal;
G) Pagar ao autor os juros de mora, vencidos e vincendos sobre todas as quantias em dívida, à taxa legal, e até integral pagamento.
Na tentativa de conciliação, sob a direcção do Ministério Público, o autor reclamou o capital de remissão da pensão anual de €285,35, devida a partir de 08.11.2018; a quantia de €3.048,35 a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta; a quantia de €449,35 relativa a despesas com tratamentos e consultas; €100,00 de deslocações para consultas e tratamentos e ainda a quantia de €40,00 relativa a despesas de deslocações obrigatórias ao gabinete médico-legal de Penafiel e ao Tribunal.
A primeira ré aceitou a transferência salarial de €580,00 x 14 + 135,70 x 11. Porém, não reconheceu o acidente como de trabalho, não reconheceu as lesões de que o sinistrado é portador, nem o nexo causal com o evento participado, não aceitou os períodos de incapacidade atribuídos pelo GML e não aceitou a IPP atribuída pelo mesmo gabinete, declinando toda e qualquer responsabilidade pela reparação dos direitos emergentes do alegado acidente de trabalho.
A segunda ré aceitou que o sinistrado auferia o salário de €580,00 x14 + €135,70 x11 e declinou “toda e qualquer responsabilidade nos presentes autos uma vez que tem toda a responsabilidade transferida para a seguradora e segue a posição da mesma”.
Findos os articulados foi proferido despacho saneador, selecionados os factos assentes e elaborada a base instrutória da causa. Na consideração de serem também controvertidos o grau de incapacidade que adveio ao Autor, os períodos de incapacidade temporária e a data da alta, foi determinada a constituição do apenso para a apreciação dessas questões, ao abrigo do disposto no artigo 131º, n.º 1, al. e) e 132º, nº1, do Cód. Proc. Trab.
No âmbito do referido apenso foi realizado exame por junta médica, tendo os senhores peritos médicos respondido aos quesitos por unanimidade, pronunciando-se, no essencial, no sentido do período de ITA a considerar ser de 45 dias, com a data da alta a ser fixada em 05-10-2018, bem assim entendendo que o autor ficou curado sem qualquer desvalorização (IPP).
Notificado desse laudo, o sinistrado apresentou o requerimento que segue:
-«[..]
Vem, ao abrigo do disposto no art. 487.º do C.P.C., requerer a realização de segunda perícia, com os fundamentos seguintes:
1. Salvo o devido respeito, que é muito, o autor entende que as respostas dadas pelos Senhores Peritos aos quesitos 2.º e 3.º não espelham de forma fiel a situação clínica daquele.
2. Desde logo, e como resulta dos documentos já juntos aos autos relativos às baixas médicas, o autor esteve de baixa médica até 07.11.2018, pelo que só por manifesto lapso ou por não terem atentado nos documentos juntos aos autos (uma vez que aparentemente se basearam apenas no que habitualmente ocorre em “casos similares”), podem os Senhores Peritos ter referido que in casu se verificou uma ITA de apenas 45 dias.
3. Acresce que consta do relatório apresentado que o autor em consequência do acidente participado não ficou portador de qualquer IPP, o que não corresponde de todo à verdade.
4. Com efeito, quando sujeito a esforços, nomeadamente se permanecer algumas horas de pé ou se andar a pé durante longos períodos de tempo, o autor sente dor na perna direita e a mesma fica endurecida.
5. Esse endurecimento/rigidez da perna poderá não ter sido detetado pelos Senhores Peritos porquanto aquando da realização do exame, a perna do autor não foi sujeita a qualquer esforço, uma vez que o mesmo se encontrava deitado.
6. Sendo certo que o autor se deslocou ao local do exame de veículo automóvel, pelo que também não foi sujeito a qualquer esforço prévio.
7. Acresce que, por lapso de que muito se penitencia e que ficou a dever-se ao nervosismo do momento, apesar de a ter consigo, o autor não exibiu aos Senhores Peritos a medicação que se encontrava a tomar e que inclui anti-inflamatórios e relaxantes musculares, o que poderá também ter “falseado” o resultado do exame.
8. Uma vez que os anti-inflamatórios e relaxantes musculares poderão ter interferido na condição física do autor, “mascarando” as sequelas físicas que o mesmo apresenta.
9. Ao contrário do que resulta do auto de exame de junta médica, em consequência do acidente participado o autor ficou portador de uma IPP de pelo menos 2%, conforme consta do relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho, realizado em 03.10.2019 e subscrito pela Srª Drª E…, perita em medicina legal.
10. Assim, a fim de dissipar quaisquer dúvidas e em nome da descoberta da verdade material, requer-se que se proceda à realização de uma segunda perícia, com vista a apurar a incapacidade temporária absoluta e a incapacidade parcial permanente resultantes para o autor do acidente dos autos».
I.2 Pronunciando-se sobre esse requerimento, o Tribunal a quo proferiu a decisão seguinte:
- «A fls. 8 veio o Sinistrado requerer a realização de segunda junta médica, com vista a apurar a incapacidade temporária absoluta e a incapacidade parcial permanente que entende terem resultado para ele do acidente em discussão nos autos.
Notificadas as Rés de tal requerimento veio a Seguradora opor-se, nos termos constantes de fls. 13 e ss..
Cumpre decidir.
Decorre do disposto no artigo 487º, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no artigo 1º, nº2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, que qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
Analisando o requerimento do Autor de fls. 8 e 9 conclui-se que pura e simplesmente o Autor não aceita o resultado da junta médica realizada porque não concorda com o parecer unânime dos Srs. peritos.
Sucede que não pode o Sinistrado, apenas por não concordar com o resultado da perícia realizada, pretender que se realize segunda perícia, tanto mais quanto é certo que os Srs. Peritos Médicos foram unânimes nas respostas dadas aos quesitos que constituíam o objeto da perícia e as respetivas respostas mostram-se fundamentadas.
Pelo exposto, indefiro o requerido a fls. 8 e 9.
(..)».
I.3 Inconformado com essa decisão, o Autor apresentou recurso de apelação, o qual foi admitido para subir de imediato, em separado e com efeito meramente devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 79º-A, nº2, alínea d), 80º, 81º e 83º,do CPT.
No despacho que admitiu o recurso foi ainda fixado o valor do incidente em €30.000,01.
As alegações de recurso mostram-se sintetizadas nas conclusões seguintes:
1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido pelo tribunal a quo que indeferiu a realização de segunda perícia requerida a fls. 8 e 9.
2. Resulta do teor do referido despacho que o tribunal a quo considerou que o autor não fundamentou devidamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial em causa, limitando-se a “pura e simplesmente” não aceitar o resultado da junta médica realizada.
3. Alicerçando ainda o tribunal recorrido a sua decisão no facto de os Srs. Peritos terem sido unânimes nas suas respostas.
4. Como decorre da lei e da nossa jurisprudência, a realização da segunda perícia destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados da primeira, inexatidão que pode ocorrer apesar da unanimidade das respostas dadas aos quesitos.
5. Não pode, por isso, essa unanimidade funcionar como entrave à possibilidade de realização de segunda perícia, sendo certo que essa limitação não decorre nem da letra nem do espírito da lei.
6. As razões da discordância do autor relativamente ao relatório pericial em análise mostram-se suficientemente fundamentadas no requerimento oportunamente apresentado, pelo que deveria o tribunal a quo ter ordenado a realização de segunda perícia, por não se afigurar impertinente nem meramente dilatória, a fim de dissipar quaisquer dúvidas e alcançar a verdade material que sempre deve nortear todas as decisões judiciais.
7. De todo modo, se o tribunal a quo considerava insuficiente a fundamentação apresentada pelo autor, sempre poderia/deveria, ao abrigo do princípio da cooperação intersubjetiva, na vertente do dever de prevenção, ter convidado o autor a completar/aperfeiçoar o seu requerimento, ao invés de indeferir, sem mais, o requerimento apresentado, coartando assim ao mesmo a possibilidade de ver reconhecida a IPP que para si resultou do acidente dos autos.
8. O que em última análise redunda numa verdadeira denegação de justiça, violando o princípio de tutela jurisdicional efetiva e do acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da tutela da confiança que decorre do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2.º da mesma Lei Fundamental.
9. Ao indeferir o requerimento apresentado pelo autor, não admitindo a realização de segunda perícia, o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, violando, por deficiente interpretação e aplicação o disposto no art. 487º, do Código de Processo Civil, subsidiariamente aplicável, por força do disposto no art.º 1.º, nº 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, bem como o princípio da cooperação intersubjetiva, na vertente do dever de prevenção, o princípio de tutela jurisdicional efetiva e do acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da tutela da confiança que decorre do princípio do Estado de Direito.
10. Deverá, por isso, o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que ordene a realização de segunda perícia.
11. Se assim se não entender, deverá ser revogado o despacho recorrido, substituindo-o por outro que convide o recorrente a, no prazo que for julgado razoável, aperfeiçoar o seu requerimento, através de uma melhor indicação das razões da sua discordância relativamente ao relatório da primeira perícia, seguindo-se os ulteriores termos legais.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o douto despacho proferido pelo tribunal a quo e substituído por outro que ordene a realização de segunda perícia ou convide o recorrente a aperfeiçoar o seu requerimento, nos termos supra expostos.
I.4 A Ré seguradora apresentou contra-alegações, mas sem que as sintetizar em conclusões.
Refere, no essencial, que o Código do Processo de Trabalho é lei especial, funcionando o Código de Processo civil subsidiariamente só nas partes não reguladas por aquela lei.
O CPT regula este incidente sem prever a realização de uma segunda junta médica com o objectivo de contrariar a primeira e única prevista.
Conclui pugnando pela improcedência do recurso.
I.5 O Ministério Público junto deste Tribunal de recurso não emitiu o parecer a que alude o art.º 87.º3, do CPT, na consideração de tal lhe estar vedado, por estar em causa uma questão eminentemente processual.
I.6 Foram colhidos os vistos legais e determinou-se que o processo fosse inscrito para ser submetido a julgamento em conferência.
I.7 Delimitação do objecto do recurso
Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas, salvo questões do conhecimento oficioso [artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e artigos 639.º, 635.º n.º 4 e 608.º n.º2, do CPC, aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho], a questão colocada para apreciação consiste em saber se o Tribunal a quo errou o julgamento ao indeferir o requerimento apresentado pelo autor, não admitindo a realização de segunda perícia, violando, por deficiente interpretação e aplicação o disposto no art.º 487º, do Código de Processo Civil.
II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. MOTIVAÇÃO DE FACTO
A matéria de facto com relevo para a apreciação do recurso é a que resulta do relatório.
II.2 MOTIVAÇÃO DE DIREITO
O recorrente discorda do despacho que lhe indeferiu a requerida realização de segunda perícia, defendendo que o tribunal a quo errou por deficiente interpretação e aplicação o disposto no art.º 487º, do Código de Processo Civil.
Sustenta, no essencial, que a unanimidade do laudo da junta médica não pode ser entrave à possibilidade de realização de segunda perícia e que fundamentou suficientemente o requerimento indeferido com as razões da sua discordância relativamente àquele, “(..) pelo que deveria o tribunal a quo ter ordenado a realização de segunda perícia, por não se afigurar impertinente nem meramente dilatória, a fim de dissipar quaisquer dúvidas e alcançar a verdade material (..)”.
Mais refere que se o tribunal a quo considerava insuficiente a fundamentação, sempre poderia/deveria tê-lo convidado a completar/aperfeiçoar o seu requerimento.
Alega, ainda, que o indeferimento consubstancia uma “denegação de justiça, violando o princípio de tutela jurisdicional efetiva e do acesso aos tribunais, consagrado no art. 20.º da Constituição da República Portuguesa e o princípio da tutela da confiança que decorre do princípio do Estado de Direito Democrático, consagrado no art. 2.º da mesma Lei Fundamental”.
Contrapõe a recorrida seguradora, no essencial, que o incidente de fixação da incapacidade é regido pelas normas especiais do CPT, não admitindo a realização de segunda perícia médica colegial, nos termos previstos no art.º 487.º do CPC.
II.2.1 O artigo 487.º do CPC, com a epígrafe “Realização de segunda perícia”, estabelece o seguinte:
1 - Qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
2 - O tribunal pode ordenar oficiosamente e a todo o tempo a realização de segunda perícia, desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade.
3 - A segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta.
Em face da argumentação do recorrente, a questão fulcral consiste em saber se no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, mormente quando prossegue para a fase litigiosa e está em causa a fixação da incapacidade, em caso de discordância com o laudo do exame por junta médica, assiste às partes o direito a requererem um novo exame por junta médica tendo por objecto “a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira” com o propósito de “corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta”.
O art.º 1.º do CPT, com a epígrafe “Âmbito e integração do diploma”, estabelece o seguinte:
1 - O processo do trabalho é regulado pelo presente Código.
2 - Nos casos omissos recorre-se sucessivamente:
a) À legislação processual comum, civil ou penal, que directamente os previna;
b) À regulamentação dos casos análogos previstos neste Código;
c) À regulamentação dos casos análogos previstos na legislação processual comum, civil ou penal;
d) Aos princípios gerais do direito processual do trabalho;
e) Aos princípios gerais do direito processual comum.
3 - As normas subsidiárias não se aplicam quando forem incompatíveis com a índole do processo regulado neste Código.
Como observa o Acórdão do STJ de 22-02-2017 [Proc.º 384/15.3T8GMR.G1.S1, Conselheiro Chambel Mourisco, disponível em www.dgsi.pt] a disposição constante do art.º 1.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, de que o processo do trabalho é regulado pelo respetivo código, é a norma estruturante que deve nortear toda a interpretação inerente a um regime que o legislador quis destacar do Código de Processo Civil, dadas as suas particularidades.
De resto, o n.º2, do mesmo artigo é bem claro, daí resultando que só “[N]os casos omissos” há lugar à aplicação subsidiária de outra legislação processual que directamente os previna.
O Código do Processo de Trabalho regula o processo para efectivação de direitos resultantes de acidente de trabalho, nos artigos 99.º a 150.º, o qual compreende duas fases distintas: uma primeira, chamada fase conciliatória, de realização obrigatória e sob a direcção do Ministério Público; e, uma segunda, a fase contenciosa, de realização eventual e sob a direcção do Juiz.
Através da primeira, como a sua própria denominação o indica, procura-se alcançar a satisfação dos direitos emergentes do acidente de trabalho para o sinistrado através da composição amigável, embora necessariamente sujeita a regras legais imperativas (direitos indisponíveis), atendendo aos interesses de ordem pública envolvidos. Para possibilitar aquele objectivo, a tramitação desta fase compreende, por sua vez, três fases, uma primeira, de instrução, que tem em vista a recolha e fixação de todos os elementos essenciais à definição do litígio, de modo a indagar sobre a“(..) veracidade dos elementos constantes do processo e das declarações das partes”, habilitando o Ministério Público a promover um acordo susceptível de ser homologado (art.ºs 104.º 1, 109.º e 114.º); uma segunda, que consiste na realização do exame médico singular, devendo este no relatório “deve indicar o resultado da sua observação clínica, incluindo o relato do evento fornecido pelo sinistrado e a apreciação circunstanciada dos elementos constantes do processo, a natureza das lesões sofridas, a data de cura ou consolidação, as sequelas e as incapacidades correspondentes, ainda que sob reserva de confirmação ou alteração do seu parecer após obtenção de outros elementos clínicos ou auxiliares de diagnóstico” (art.ºs 105.º e 106.º); e, finalmente, a tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público, com a finalidade primordial de obtenção de acordo susceptível de ser homologado pelo Juiz (art.º 109.º) [Cfr. João Monteiro, Fase conciliatória do processo para a efectivação do direito resultante de acidente de trabalho – enquadramento e tramitação, Prontuário do Direito do Trabalho, n.º 87, CEJ, Coimbra Editora, pp. 135 e sgts.].
Conforme estabelece o art.º 112.º 1, do CPT, não se obtendo o acordo, no auto da tentativa “(..) são consignados os factos sobre os quais tenha havido acordo, referindo-se expressamente se houve ou não acordo acerca da existência e caracterização do acidente, do nexo causal entre a lesão e o acidente, da retribuição do sinistrado, da entidade responsável e da natureza e grau da incapacidade atribuída”.
E, como decorre do art.º 117.º, do CPT, o início da fase contenciosa depende da apresentação de petição inicial ou o requerimento a que se refere o n.º2, do art.º 138.º do CPT.
A apresentação de requerimento é o meio processual próprio quando o interessado “se não conformar com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo, para efeitos de fixação da incapacidade para o trabalho” [art.º 138.º2 do CPT], o qual deve ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos [art.º 117.º n.º2, CPT], a fim de serem respondidos pelos senhores peritos médicos no exame por junta médica previsto no art.º 139.º/1 do CPT, perícia que é de realização obrigatória.
Por seu turno, como se retira a contrario sensu do n.º2, do art.º 138.º do CPT, a apresentação de petição inicial é necessária quando a discordância entre as partes na tentativa de conciliação vá para além da questão da incapacidade.
O exame por junta médica, que será sempre de realização obrigatória quando a questão da incapacidade esteja em discussão, quer seja a única ou uma das questões controvertidas, inscreve-se no âmbito da denominada prova pericial, regendo-se para além do disposto naquela norma, também pelas que no Código de Processo Civil disciplinam este meio de prova (artigos 467.º e seguintes do CPC).
A prova pericial tem por objecto, conforme estatuído no art.º 388.º do CC “(..) a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessário conhecimentos especiais que os julgadores não possuem” ou quando os factos “relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial”.
Recorrendo à lição do Professor Alberto dos Reis, elucida este que “O verdadeiro papel do perito é captar e recolher o facto para o apreciar como técnico, para emitir sobre ele o juízo de valor que a sua cultura especial e a sua experiência qualificada lhe ditarem” [Código do Processo Civil Anotado Vol. IV, Coimbra Editora, Reimpressão, 1987, pp. 171].
A sua função é a de “auxiliar do tribunal no julgamento da causa, facilitando a aplicação do direito aos factos”, não impedindo tal que seja “um agente de prova e que a perícia constitua um verdadeiro meio de prova” [Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 578].
Por conseguinte, as respostas aos quesitos dos Senhores peritos médicos e a respectiva fundamentação, são a expressão necessária da sua intervenção nesse meio de prova, isto é, o resultado da avaliação feita com base nos seus especiais conhecimentos médico-científicos, exigindo-se, para que cumpram o seu propósito, que sejam claras, suficientes e lógicas. Justamente por isso, importa não esquecer, o n.º8, do Anexo I, da TNI, estabelece o seguinte: “O resultado dos exames é expresso em ficha apropriada, devendo os peritos fundamentar todas as suas conclusões”.
Pese embora a função preponderante deste meio de prova, tal não significa que o julgador esteja vinculado ao parecer dos senhores peritos, já que o princípio da livre apreciação da prova permite-lhe que se desvie do parecer daqueles, seja ele maioritário ou unânime. Como a esse propósito elucida o Professor Alberto dos Reis, “(..) É dever do juiz tomar em consideração o laudo dos peritos; mas é poder do juiz apreciar livremente esse laudo e portanto atribuir-lhe o valor que entenda dever dar-lhe em atenção à análise critica dele e à coordenação com as restantes provas produzidas. Pode realmente, num ou noutro caso concreto, o laudo dos peritos ser absorvente e decisivo (..); mas isso significa normalmente que as conclusões dos peritos se apresentam bem fundamentadas e não podem invocar-se contra elas quaisquer outras provas; pode significar, também que a questão de facto reveste feição essencialmente técnica, pelo que é perfeitamente compreensível que a prova pericial exerça influência dominante.” [Código do Processo Civil Anotado Vol. IV, Coimbra Editora, Reimpressão, 1987, pp. 185/186]
Porém, quer adira ou quer se desvie, precisamente por caber ao Juiz decidir na sua livre convicção, é-lhe sempre exigido que deixe expressa a sua motivação, isto é, os fundamentos ou razões por que o faz, ainda que com diferentes níveis de exigência, dependentes, desde logo, quer da natureza da questão de facto objecto da perícia quer da clareza e suficiência da fundamentação do relatório pericial. E, para assim poder proceder, certo é, também, que em qualquer caso é sempre necessário que o Juiz conte com um resultado do exame pericial devidamente fundamentado, pois é a partir daí que se desenvolverá toda a apreciação com vista à formulação do juízo crítico subjacente à formação da convicção do julgador. Por outras palavras, o laudo, seja ele obtido por unanimidade dos peritos ou apenas por maioria, deve convencer pela sua fundamentação, pois só assim cumpre o propósito de facultar ao juiz os elementos necessários para fixar a natureza e o grau de incapacidade.
Importa é que em face das questões que se colocam em cada caso concreto, o resultado do exame por junta médica se apresente perante o Juiz com a clareza necessária para o habilitar a decidir.
Mas se assim não acontecer, a lei processual proporciona meios para as partes reagirem.
O primeiro deles consiste na faculdade que assiste às partes de reclamarem do relatório pericial, se “entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas” [art.º 485.º 1 e 2, CPC]. O segundo respeita ao direito de arguirem a nulidade do exame médico por falta de fundamentação do resultado, que se verificará quando tal se verifique e seja susceptível de “influir no exame ou na decisão da causa” (art.º 195.º 1 do CPC).
Para além disso, cabe também ter presente que igualmente é atribuído ao Juiz, quando este se aperceba que não encontra no relatório do exame médico o apoio suficiente e necessário para proferir a sentença, o poder de fazer uso do disposto no n.º4, do artigo 485.º do CPC, que lhe permite “mesmo na falta de reclamações, determinar oficiosamente a prestação dos esclarecimentos ou aditamentos previstos nos números anteriores”, isto é, quando exista “(..) qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas».
Por outro lado, não deve também esquecer-se que nos termos do art.º 139.º do CPT, o juiz não só pode formular quesitos se a dificuldade ou a complexidade da perícia o justificarem [n.º6], como para além disso, “(..) se o considerar necessário, pode determinar a realização de exames e pareceres complementares ou requisitar pareceres técnicos” [n.º7].
Releva também relembrar que, como decorre dos n.ºs 1 e 2, do art.º 140.º do CPT, a decisão com vista à fixação da incapacidade tem lugar realizadas as perícias previstas no art.º 139.º do CP.
Desta breve incursão pelo processo emergente de acidente de trabalho, retira-se que a realização da perícia médica na fase conciliatória, excepto nos casos em o acidente provocou a morte do sinistrado (art.º 100.º do CPT), é sempre obrigatória, ou seja, é um acto que integra necessariamente a tramitação do processo, como condição para se fixar a incapacidade do sinistrado e possibilitar a realização da tentativa de conciliação (art.º 101.º CPT). Essa perícia singular rege-se pelo disposto nos artigos 105.º e 106.º do CPT.
Nos casos em que não é obtida a conciliação entre as partes, sempre que a causa do desacordo, ou uma das questões controvertidas que o motiva, seja a discordância do interessado com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo para efeitos de fixação de incapacidade para o trabalho, haverá sempre lugar à realização de uma segunda perícia médica, agora por junta médica, isto é, colegial, cuja realização fica dependente de requerimento da parte interessada (art.º 138.º e 2, do CPT).
Em suma, no âmbito do processo emergente de acidente de trabalho, quando está em causa a fixação da incapacidade do sinistrado para o trabalho, a lei processual laboral prevê duas perícias médicas, cuja realização tem lugar nas condições apontadas.
Ora, se tivermos presente o regime da prova pericial estabelecido no Código de Processo Civil (artigos 467.º e sgts), designadamente, no que concerne ao limite do número de perícias, constata-se que a solução do CPT não diverge daquele, na medida em que ali também se prevê a possibilidade de realização de dois exames periciais. A primeira perícia tem lugar a requerimento das partes ou quando seja determinada oficiosamente pelo juiz (art.º 467º n.º1); a segunda é a que consta prevista no art.º 487.º, do CPC, tendo lugar também a requerimento das partes – “alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado” [n.º1] - ou por determinação oficiosa do tribunal – “a todo o tempo [..], desde que a julgue necessária ao apuramento da verdade [n.º2] –tendo por “objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta” [n.º3].
Este percurso evidencia que o exame por junta médica previsto no art.º 139.º do CPT, salvaguardadas as especificidades próprias ditadas pelos objectivos em vista, corresponde à segunda perícia prevista no CPC, nomeadamente, no artigo 487.º. Na verdade, em termos similares, a sua realização a requerimento de qualquer das partes depende apenas da discordância “com o resultado da perícia médica realizada na fase conciliatória do processo” [art.º 138.º2 do CPT], devendo aquele ser fundamentado ou vir acompanhado de quesitos [art.º 117.º n.º2, CPT], e tem o mesmo objecto que o exame pericial singular, ou seja, visa determinar a incapacidade para o trabalho do sinistrado.
Neste quadro, como cremos que já se percebeu, não era admissível ao sinistrado, notificado do resultado do exame por junta médica, socorrer-se do “disposto no art. 487.º do C.P.C., [para] requerer a realização de segunda perícia”, por dele discordar na consideração de que “ as respostas dadas pelos Senhores Peritos aos quesitos 2.º e 3.º não espelham de forma fiel a situação clínica“ e com o propósito, como referiu no final do requerimento, de “(..) dissipar quaisquer dúvidas e em nome da descoberta da verdade material, (..), com vista a apurar a incapacidade temporária absoluta e a incapacidade parcial permanente resultantes para o autor do acidente dos autos”.
A acolher-se esta pretensão estar-se-ia a admitir a realização de três perícias médicas, uma singular e duas por junta, a última para se pronunciar sobre os mesmos factos e quesitos, o que extravasa o regime estabelecido no CPT, mas também no CPC.
Significa isto, pois, que a decisão recorrida não violou o disposto no art.º 487.º do CPC.
Acresce dizer que essa limitação tão pouco põe em causa qualquer dos direitos enunciados pelo sinistrado, entre eles o do acesso aos tribunais, consagrado no art.º 20.º da CRP. Como também se deixou elucidado, se porventura o sinistrado tinha fundamentos para os usar, a lei processual proporcionava-lhe meios para reagir ao resultado do exame médico, nomeadamente, consoante fossem esses fundamentos, assistindo-lhe o direito a reclamar do relatório [art.º 485.º 1 e 2, CPC] ou a arguir nulidade do exame médico (art.º 195.º 1 do CPC). Para além disso, como é consabido, assiste-lhe o direito de recorrer da sentença final, posto que independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação [art.º 79.º al. b), do CPT].
Concluindo, improcede o recurso.
III. DECISÃO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar o recurso improcedente.

Custas do recurso a cargo do recorrente, atento o decaimento (art.º 527.º do CPC)

Porto, 20 de Setembro de 2021
Jerónimo Freitas
Nelson Fernandes
Rita Romeira