Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1442/13.7TAGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: BORGES MARTINS
Descritores: ACÇÃO DIRECTA
CAUSA DE JUSTIFICAÇÃO
DIREITO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RP201601201442/13.7TAGDM.P1
Data do Acordão: 01/20/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 665, FLS.154-162)
Área Temática: .
Sumário: Mostra-se justificada por acção direta a conduta do proprietário da habitação, que procedeu ao tamponamento da caixa de visita do coletor publico que havia sido instalado pelas entidades publicas sem o seu conhecimento e consentimento no local onde veio a ficar localizada a garagem de sua casa, e que veio a transbordar por diversas vezes inundando a garagem e causando danos aos bens ali existentes, perante a persistente e duradoura inação daquelas entidades para o efeito insistentemente alertadas pelo arguido.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo Comum Singular n.º 1442/13.7TAGDM
Unidade Local Criminal de Gondomar – J1

Acordam os Juízes deste Tribunal da Relação:

Nos presentes autos foi exarada a seguinte decisão:

Pelo exposto, julgo totalmente improcedente a douta acusação pública e, em consequência, absolvo o arguido B… dos crimes de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 213º, n.º 1, c) do Código Penal, e poluição, previsto e punível pelo artigo 279º, n.º 1 do Código Penal, de que vinha acusado.
Mais julgo o pedido de indemnização civil deduzido por C…, SA totalmente improcedente e, em consequência, absolvo B… do pedido.

Recorreu o MP, por entender, em síntese, que o arguido devia ser condenado, uma vez que não ocorrem os mencionados pressupostos de acção directa; e que poderia ele ter-se socorrido de uma providência cautelar, para salvaguarda do seu direito.
Respondeu o arguido, louvando-se nos bom fundamentos da decisão recorrida, pugnando pela manutenção desta.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo PGA apôs Visto.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Foi o seguinte o teor decisório da decisão recorrida:

Apreciada a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
Por escritura pública de compra e venda de 17-05-1999, a sociedade D…, Lda. adquiriu, livre de ónus e encargos, à Câmara Municipal de Gondomar o prédio, previamente loteado pela Câmara Municipal de Gondomar (lote n.º..), sito na Rua…, Gondomar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º …../…… e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …...
Por escritura pública de compra e venda de 15-12-2006, o arguido adquiriu a D…, Lda. o mesmo prédio, com a intenção de nele construir uma moradia.
Dessa segunda escritura não consta qualquer ónus ou encargo do prédio.
Em 2007 o arguido deu entrada na CMG do projecto de construção da sua moradia no referido prédio, ao qual foi atribuído o n.º …./.., que veio a ser aprovado pela CMG, sendo-lhe concedida licença de construção.
Dessa licença não consta a existência de nenhuma infraestrutura pública no prédio.
Em Abril de 2009, quando limpava o terreno para posterior abertura de caboucos, o arguido deparou-se com a existência de uma caixa de águas residuais no local onde tinha sido aprovada a construção da garagem afeta à residência.
Nessa sequência, em 22-04-2009, o arguido comunicou essa descoberta à CMG e requereu uma fiscalização urgente ao local, a qual foi efectuada em 01-07-2009.
Em 17-07-2009, face à manutenção da situação, o arguido requereu à CMG que, em 15 dias, procedesse à retirada da caixa e demais infraestruturas que oneravam o seu terreno.
Em Abril de 2010 o arguido iniciou a construção da moradia.
Em 14-05-2010 a CMG informou o arguido de que fora solicitado às C… o desvio do colector de saneamento do seu terreno.
Nos 2 anos subsequentes nenhuma das entidades (CMG e C…) retirou ou desviou o colector e/ou a caixa de águas.
Concluída a construção da moradia, sem embargo de qualquer natureza, o arguido requereu o respectivo alvará de utilização, que lhe foi concedido em 13-08-2012 sem qualquer reserva ou limitação.
Em 11-10-2012 o arguido comunicou à CMG que, se no prazo de 30 dias, não fossem retiradas do seu prédio a conduta e a caixa de águas residuais, o mesmo procederia, sem qualquer outro aviso, à eliminação das mesmas.
No dia 17-10-2012 a caixa de visita que se encontrava na garagem do arguido transbordou e provocou inundação da garagem até à altura de 0,5 metros, danificando as paredes e o portão e objectos que aí se encontravam guardados.
Essas inundações repetiram-se em 20 e 22 de Outubro de 2012.
A C… procedeu então à reparação do troço do colector danificado que causava as inundações, para o que levantou o piso e o revestimento cerâmico na rampa de acesso à garagem, jamais o repondo.
Na sequência desses acontecimentos e da comunicação de 11-10-2012, o arguido reuniu-se, em 26-10-2012, nas instalações da CMG, com representantes desta e da C…, tendo-lhe sido proposto por estas entidades a manutenção do colector no seu prédio, substituindo-o por um de maior diâmetro e capacidade, o que o arguido rejeitou, mantendo a sua intenção de retirada do colector.
Essa solução da retirada imediata do colector foi, nessa altura, afastada pela CMG e pela C… por alegadas dificuldades financeiras e excessiva onerosidade desses trabalhos.
Em 28-01-2013 o arguido comunicou à C… que, se no prazo de 15 dias a situação não fosse resolvida e não fosse indemnizado dos prejuízos sofridos, sem qualquer outro aviso, procederia à neutralização do colector que atravessava o seu prédio.
Entre essa data e 3 de Abril de 2013, o arguido procedeu ao tamponamento da caixa de visita do colector público instalada na sua garagem, colocando uma tampa em madeira sobre o colector e uma escora para a segurar e, no dia seguinte, cimentou a caixa de visita.
Com a obstrução da caixa de visita daquele colector, as águas residuais transbordaram na caixa de visita situada num terreno agrícola contíguo ao terreno do arguido, acumulando-se ao ar livre um depósito de águas sujas e dejectos, escorrendo para uma linha de água de rega, afluente do ….
No dia 03-04-2013, a PSP deslocou-se ao local juntamente com funcionários da C… com o intuito de se proceder à desobstrução da caixa de visita, tendo o arguido impedido a entrada destes no seu terreno, e só em meados de Outubro de 2013 autorizou a sua desobstrução, para o que foi necessário o uso de martelos pneumáticos.
Não obstante, não foi possível a remoção da totalidade do betão introduzido na caixa de visita pelo arguido, mas apenas o existente na zona aprumada, provocando uma diminuição da capacidade útil da caixa de visita de 40%, que se mantém até à presente data.
O arguido estava ciente de que a caixa de visita do colector implantada no seu terreno era uma infraestrutura pública, cuja gestão e exploração estava concessionada a C…, e que, ao obstruí-la, agia contra a vontade da concessionária.
O arguido estava ciente de que a obstrução dessa caixa poderia provocar um derrame de águas residuais na caixa de visita situada num terreno agrícola contíguo ao seu e que as mesmas poderiam penetrar no solo ou ser arrastadas pela água.
O arguido sabia que as águas residuais poderiam contaminar o solo, o subsolo e as águas, e que assim poderia colocar em risco a saúde dos vizinhos.
A C…, SA é a entidade gestora dos serviços de abastecimento de água e drenagem de águas residuais no município de Gondomar.
Do PIC
Em consequência da obstrução do colector e da caixa de visita instalada no terreno do arguido, a C…, através dos seus funcionários e equipamentos, efectuou trabalhos de reparação e reposição das infraestruturas afectadas, nos seguintes termos e custos:
O valor da mão de obra por cada hora de trabalho corresponde a € 49,0650.
O valor da inspecção vídeo por cada hora é de € 135,5713.
O valor da cada deslocação é de € 16,9995.
O uso de camião de desobstrução é de € 113,4791 por cada hora ou fracção de actividade.
Na última reparação, foram gastos € 101,32 em materiais de construção como dois discos de corte para aço, vinte máscaras de papel para pintura, 75 kg de microbetão, uma folha de lixa e dois kg de cola para PVC.
Em 02-04-2013 foi feito um diagnóstico da situação no local pelos funcionários E…, F… e G… entre as 17:35 e as 18:00 horas.
Em 02-04-2013 foi efectuada nova deslocação ao local pelos mesmos três funcionários entre as 21:15 e as 22:00 horas.
Em 03-04-2003 foi efectuada uma inspecção vídeo ao colector localizado no terreno do arguido pelos funcionários H…, I… e J… entre as 11:00 e as 12:30 horas.
Em 03-04-2013 foi efectuada nova deslocação ao local pelo piquete composto pelos funcionários E…, F… a e G… entre as 20:00 e as 20:40 horas, aguardando a chegada da PSP.
Em 03-04-2013 foi efectuada nova deslocação ao local pelo mesmo piquete, acompanhado pela PSP, entre as 22:00 e as 23:00 horas.
Em 05-04-2003 foi efectuada uma inspecção vídeo ao colector localizado no terreno do arguido pelos funcionários L…, M… e N… entre as 9:55 e as 10:30 horas.
Entre 10-10-2013 e 16-10-2013 foram efectuados serviços de reparação na caixa de visita do colector situada no terreno do arguido, nos seguintes termos:
• Em 10-10-2013 L… e O… trabalharam 1,75 horas, E… e N… trabalharam 4,5 horas e P…, Q… e R… trabalharam 8 horas;
• Em 11-10-2013 P…, S… e T… trabalharam 8 horas;
• Em 14-10-2013 U… e V… trabalharam 8 horas;
• Em 15-10-2013 S…, W… e X… trabalharam 8 horas;
• Em 16-10-2013 Y… e Z… trabalharam 8 horas.
Em 16-10-2013 foi efectuada limpeza do colector pelos funcionários AB…, AC… e AE… entre as 13:15 e as 15:45 horas.
Em 16-10-2013 foi continuada a limpeza do colector e aspiração da caixa de visita pelos funcionários L…, O… e N… entre as 16:20 e as 18:00 horas.
Em 21-10-2013 foi efectuada reparação das almofadas/meia cana da caixa de visita pelos funcionários AF… e Q… entre as 13:00 e as 17:00 horas.
OUTROS
O arguido não tem antecedentes criminais.
É vendedor e aufere € 720,00 por mês; tem um filho de 14 anos a cargo, com quem vive; paga a título de amortização de empréstimo bancário para aquisição de habitação cerca de € 500,00 por mês.
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Não resultou provado que o colector público que passa sob o terreno do arguido está aí implantado desde 1992, nem que se encontrava cadastrado pelo C1… (entidade responsável pela rede de águas de Gondomar anteriormente à C…).
Não resultou provada a causa da obstrução do colector em Outubro de 2012.
Não resultou provado que as águas residuais acumuladas no terreno contíguo ao do arguido provinham apenas da obstrução da caixa de visita.
Não resultaram provados outros factos com interesse para a decisão da causa.
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Motivação
O Tribunal valorou toda a prova produzida em audiência de julgamento, documental e testemunhal, que apreciou conjugadamente.
De um modo geral, o arguido alegou que adquiriu o prédio livre de ónus e encargos, desconhecendo a existência do colector e da caixa de visita; quando iniciou as escavações em 2009, encontrou um tubo, entrou em contacto com a CMG e a C… e aí tomou conhecimento da sua existência. Remeteu carta a essas entidades para a retirada dessas infraestruturas e, após novas cartas e reuniões, a CMG informou-a que a C… era responsável por essa retirada. Prosseguiram as obras de construção da sua residência, totalmente aprovadas e licenciadas, sem embargos, até que em 2012 sofreu a primeira inundação da caixa de visita no interior da sua garagem, a que se seguiram outras nos dias seguintes, que lhe danificaram a garagem e o que aí se encontrava.
Dias depois, em reunião na CMG, foi informado que não havia disponibilidade financeira para retirar o colector e foi-lhe proposto aumentar a capacidade do mesmo para um de maior dimensão e retirar a caixa de visita do interior da garagem para o exterior, o que o arguido recusou por entender ter comprado o imóvel sem ónus e encargos, a que acrescia que tal operação implicaria a destruição do pátio e do pavimento da garagem (o que em parte já tinha sucedido quando a C… reparou o tubo Outubro de 2012, nunca tendo reposto o pavimento).
Mantendo-se o impasse, informou a C… que iria tapar a caixa de visita, o que fez nos termos provados, tendo as águas residuais transbordado numa caixa de visita do terreno contíguo e escorrido para um rego, como aliás já acontecia com águas residuais de outras casas.
Como justificação para essa conduta, alegou que, com aviso de que iria tapar a caixa de visita, acreditou que a C… resolvesse a situação para evitar danos maiores. E nunca interpôs nenhuma acção judicial face às indicações da CMG, desde o início das conversações, de que o colector seria retirado.
Confirmou as recusas de limpeza e trabalhos até meados de Outubro de 2013 e esclareceu que actualmente não usa a sua garagem face ao lixo e danos causados desde as inundações e a reparação da caixa de visita nessa altura.
Ora, seguindo o processo e a sua extensa documentação, a versão do arguido mostra-se comprovada.
Das escrituras de compra a venda do terreno, após o loteamento, de fls. 71-72 e 75-76 resulta que a CMG vendeu a D… o prédio/lote 3 livre de ónus e encargos (consta expressamente) e a D…, gerida pelo tio do arguido AH…, vendeu-o ao arguido sem menção de qualquer ónus ou encargo. Dessa segunda escritura não consta a expressão “livre de ónus e encargos”, mas também não faz referência à sua existência. E da certidão predial do prédio 202-203 não consta qualquer registo de ónus.
Acresce que quer a C… (concessionária da exploração e gestão dos serviços públicos municipais de abastecimento de água e saneamento do município de Gondomar – cfr. contrato de concessão do apenso I, que sucedeu aos C1… nessa função), quer a CMG não confirmaram, quer documentalmente (cfr. fls. 135 – “talvez em 1990!” – e fls. 39 e 170, estas do apenso II), quer em audiência através dos depoimentos das testemunhas inquiridas, mormente AI… e AJ…, respectivamente director geral e engenheiro mecânico da C…, que o colector existente no terreno do arguido se encontrava cadastrado no C1…: o primeiro desconhecia o registo, o segundo assegurou a inexistência de cadastro por, na altura em que terá sido implantado, não ser prática a elaboração de cadastro. Aliás, dos elementos do apenso I sobre as estruturas públicas municipais relativas a águas existentes em Gondomar não se retira a sua existência. Assim, que lá se encontra, é um facto; desde quando e a que título, não há prova, o que permite perceber a razão de não estar registado nem constar como ónus ou encargo na escritura de compra e venda do prédio.
Esta situação omissiva do colector conferiu credibilidade ao arguido na afirmação de que só dele tomou conhecimento quando iniciou as fundações da sua obra, em Abril de 2009, facto confirmado pelo tio AH…. Aliás, de fls. 65 consta a primeira comunicação do arguido nesse sentido em 22-04-2009.
Logo em Julho de 2009, conforme consta de fls. 37 do apenso II no projecto de construção apresentado pelo arguido e foi confirmado em audiência pelo director geral da C…, AI…, que referiu que logo nessa altura a CMG lhe solicitou um estudo sobre a viabilidade e custo de retirada e desvio do colector, a CMG assumiu posição no sentido de que a caixa de visita e o colector teriam que ser retirados do terreno do arguido, o que foi expressamente requerido por este em 17-07-2009 (cfr. fls. 181 do apenso II).
Ainda sem resolução quanto a essa situação, é emitido alvará de obras de construção pela CMG (cfr. fls. 192 do apenso II), sem qualquer reserva, e o arguido inicia a construção em Abril de 2010 (cfr. nota de fls. 41 do apenso II), sendo que em Maio de 2010 o arguido é informado pela CMG de que fora solicitado à C… o desvio do colector de saneamento do lote de terreno sua propriedade (cfr. fls. 67).
Perante esta notificação, qualquer cidadão na posição do arguido, de boa fé, com um projecto devidamente licenciado e autorizado pela CMG, entenderia que o colector seria retirado, tanto que lhe foi concedido alvará de utilização sem qualquer restrição em 13-08-2012 (cfr. fls. 53 do apenso II).
Contudo, a obra prosseguiu, nunca foi embargada (cfr. o processo do apenso II), e o arguido continuou a insistir pela retirada das infraestruturas, o que fez em 11-10-2012 (cfr. fls. 198).
Logo após essa insistência, sofreu inundações consecutivas na sua garagem, com danificação da mesma, do portão e dos bens aí guardados, como confirmou o tio AH… e AL… (construtor civil autor de um orçamento para a reparação da garagem), o que conduziu à reunião na CMG em 26-10-2012. Nessa reunião, foi-lhe comunicada a posição da C… nos exatos termos provados, conforme asseveraram o arguido, AI… e AM…, engenheira civil companheira do tio do arguido AH…, que o acompanhou, o que o arguido recusou.
Sem resultados práticos quanto à resolução da situação, o arguido remeteu nova carta à C… em 28-01-2013 requerendo tal resolução e informando que neutralizaria o colector caso nada fosse feito (cfr. fls. 201).
Nessa sequência, face à ausência de resposta das entidades, o arguido confessou ter tapado a caixa de visita (conforme fotografias de fls. 231-233), o que levou a que as águas residuais transbordassem no terreno contíguo e escorressem para uma linha de rega, conforme informação prestada pela Agência Portuguesa do Ambiente e fotografias de fls. 224 e 226.
O arguido não negou saber que a caixa de visita e o colector eram estruturas públicas, nem que o tamponamento da caixa conduziria a derrame das águas residuais e dejectos noutro local, nem que tal situação poderia contaminar águas e solos, como aliás resulta das regras da experiência comum e é do conhecimento do cidadão médio. Em todo o caso, avançou que outras casas vizinhas deitam dejectos no terreno contíguo e AH…, de forma credível, adiantou que o rio Tinto é um rio contaminado, poluído, entubado por causa dos maus cheiros.
Entendeu, sim, conforme se expôs, que a “ameaça” levaria a C… a agir, o que não sucedeu.
E suportou-se no facto de a CMG inicialmente o ter informado de que o colector seria retirado e de existirem alternativas para tal, como lhe adiantou, e confirmou em audiência, a engenheira AM…, bem como as testemunhas/operacionais da C… I…, E… e L…, sempre com custos acrescidos para a C….
Ainda quanto aos factos, e no que respeita à capacidade da caixa de visita após a sua reparação, foi fulcral o depoimento de AI… – se bem que o arguido e AH… tenham frisado que, na altura, a C… procedeu a uma limpeza das caixas de visita das redondezas, o que levou a uma melhoria generalizada do funcionamento do colector.
Baseou-se ainda o Tribunal no CRC de fls. 330 e nas declarações do arguido quanto às suas condições económicas actuais, que se revelaram nessa parte verdadeiras.
No que respeita às datas, valores de custos assumidos pela C… com mão de obra, materiais e equipamentos foram fulcrais as ordens de trabalho de fls. 254, 255 e 259-268, as guias de transporte de materiais de fls. 256-258, o relatório de ocorrência de fls. 253 (para associação dos funcionários aos serviços) e a tabela/preçário de 2013 para serviços praticados pela C… de fls. 269-272, documentos relacionados com os depoimentos dos vários funcionários inquiridos que confirmaram a sua presença e o tipo de serviços que efectuaram, a saber, I…, E…, L…, O…, N…, F…, M…, J… e G….
O agente da PSP AN… confirmou a sua presença na residência do arguido em Abril de 2013 e a recusa deste de permissão de entrada dos funcionários da C….
AO…, colega de trabalho do arguido há cerca de 20 anos, abonou o seu carácter cumpridor e responsável.

Enquadramento jurídico dos factos
Vem o arguido acusado, além do mais, de um crime de dano qualificado.
Dispõe o artigo 212º, n.º 1 do Código Penal:
“Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.
Por seu lado, o artigo 213º, n.º 1, c) do mesmo diploma qualifica o crime ao preceituar:
“Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa destinada ao uso e utilidade públicos, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias”.
O bem jurídico protegido por este tipo de ilícito é a propriedade, no sentido de a salvaguardar de agressões que atinjam directamente a existência ou integridade do estado da coisa.
Para que se encontre preenchido este crime, para além dos elementos objectivos especificados no tipo legal, é necessário o dolo do agente em qualquer das suas modalidades (sendo bastante o dolo eventual), ou seja, o conhecimento da natureza alheia da coisa e a vontade de levar a cabo uma actividade que a destrua, danifique, desfigure ou torne não utilizável, nos termos dos artigos 13º e 212º, n.º 1, a contrario do Código Penal.
Quanto à qualificação do crime em questão, atentemos no Acórdão da Relação do Porto de 22-02-2006, relatado pela Ex.ma Juiz Desembargadora Alice Santos, in www. dgsi.pt, no sentido de que “a ratio da agravante não está na tutela dos interesses da Administração Pública, mas no especial destino da coisa, na sua afectação ao uso e utilidade de uma colectividade, sendo irrelevante que pertença a uma entidade pública. No caso […]- tratava-se da porta de entrada do serviço de urgência de um hospital público – as portas tinham o destino concreto de utilização por todos os indivíduos que necessitem de se dirigir àquele hospital, ou seja, aquela porta pode ser usada por uma generalidade de público indiferenciado, […] estão ao dispor do público em geral e, este tira um proveito imediato das mesmas”.
Por outro lado, vem acusado de um crime de poluição, p. e p. pelo artigo 279º, n.º 1 do Código Penal, que dispõe:
“Quem, não observando disposições legais, regulamentares ou obrigações impostas pela autoridade competente em conformidade com aquelas disposições, provocar poluição sonora ou poluir o ar, a água, o solo, ou por qualquer forma degradar as qualidades destes componentes ambientais, causando danos substanciais, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
Nos termos do n.º 6, “para os efeitos dos n.ºs 1, 2 e 3, são danos substanciais aqueles que:
a) Prejudiquem, de modo significativo ou duradouro, a integridade física, bem como o bem-estar das pessoas na fruição da natureza;
b) Impeçam, de modo significativo ou duradouro, a utilização de um componente ambiental;
c) Disseminem microrganismo ou substância prejudicial para o corpo ou saúde das pessoas;
d) Causem um impacto significativo sobre a conservação das espécies ou dos seus habitats; ou
e) Prejudiquem, de modo significativo, a qualidade ou o estado de um componente ambiental”.
O crime de poluição é um crime pluri-ofensivo em que os bens jurídicos tutelados pela norma incriminante não se confinam ao bem jurídico de feição colectiva como é o ambiente, mas abrange igualmente bens jurídicos de natureza individual, como a vida, a integridade física e bens alheios de valor elevado – Acórdão da Relação de Coimbra de 09-07-2008, consultado em www.dgsi.pt.
Conforme Acórdão da Relação do Porto de 09-04-2014, relatado pelo M.mo Juiz Desembargador Dr. Augusto Lourenço, “a poluição constitui em si mesma a criação de um perigo que pode afectar a saúde, bem-estar e diferentes sistemas de vida, tanto individuais como colectivos, exigindo-se actualmente que tal poluição cause os referidos danos substanciais”.
A propósito dos crimes de perigo, pode ler-se no ponto 31 do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 400/82, de 23.09, que aprovou o Código Penal na redacção de 1982: “O ponto crucial destes crimes […] reside no facto de que condutas cujo desvaler da acção é de pequena monta se repercutem amiúde num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que neste capítulo está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo. A lei penal, relativamente a certas condutas que envolvem grandes riscos, basta-se com a produção do perigo (concreto ou abstracto) para que dessa forma o tipo legal esteja preenchido. O dano que possa vir a desencadear não tem interesse dogmático imediato. Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social. Adiante-se que devido à natureza dos efeitos altamente danosos que estas condutas ilícitas podem desencadear o legislador penal não pode esperar que o dano se produza para que o tipo legal de crime se preencha. Ele tem de fazer recuar a protecção para momentos anteriores, isto é, para o momento, em que o perigo se manifesta”.
Da matéria fáctica dada como provada resultou que o arguido, sabendo que sob o seu terreno se encontrava implantado um colector público, procedeu ao tamponamento da respectiva caixa de visita, localizada na sua garagem, colocando uma tampa em madeira e uma escora para a segurar, e posteriormente cimentou a caixa de visita.
Com essa obstrução, as águas residuais transbordaram na caixa de visita situada num terreno contíguo, acumulando-se ao ar livre um depósito de águas sujas e dejectos daí resultantes, escorrendo para uma linha de água, consequência que o arguido previu.
É, assim, líquido que a conduta do arguido provocou um dano na infraestrutura pública (tanto que foi necessário o uso de material pneumático para remoção do cimento) e que causou “poluição”, em termos comuns, no terreno vizinho, bem como que o arguido tinha conhecimento sobre as consequências dos seus actos.
No entanto, urge perceber a razão da sua conduta.
Fazendo uma súmula da história deste acontecimento, o arguido adquiriu o seu terreno sem qualquer menção de ónus ou encargos, como aliás o anterior proprietário o tinha adquirido, legitimamente convencido de que nesse estado se encontrava. Aliás, apesar dos depoimentos difusos nesse sentido, não se conseguiu fazer prova de que o colector estivesse sequer cadastrado…
Quando tomou conhecimento da existência do colector reportou-o à CMG e à C…, e foi-lhe comunicado pela CMG de que a infraestrutura seria retirada, o que tinha sido solicitado à C…. Íamos no ano de 2009, e desde aí sempre a C… protelou a situação alegando dificuldades financeiras.
Prosseguiu a obra, a CMG concedeu todas as licenças legais, a C… nunca a embargou.
Só em Outubro de 2012 estas entidades propuseram ao arguido manter o colector no terreno, substituindo-o por um de maior calibre, ao que o arguido se opôs por entender ter adquirido o terreno sem qualquer ónus e por não lhe ser proposta qualquer indemnização, tendo a CMG e a C… ficado de analisar a situação.
Quatro anos depois do início do problema, sem qualquer resposta ou proposta, mantendo-se uma imposição implícita por parte da CMG e da C… no sentido de o arguido suportar o colector no terreno, este actuou, convencido de que, com aviso prévio, a C… solucionaria a situação.
Coloca-se então a questão: seria legítimo obrigar o arguido a suportar o ónus indefinidamente? Ou, por outras palavras, não terá sido legítima a actuação do arguido no sentido de defender o seu direito de propriedade sobre o terreno?
Dispõe o artigo 1344º, n.º 1 do Código Civil que a propriedade dos imóveis abrange o espaço aéreo correspondente à superfície, bem como o subsolo, com tudo o que neles contém e não esteja desintegrado do domínio por lei ou negócio jurídico.
E nos termos do artigo 1305º do mesmo diploma o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Note-se que o arguido adquiriu o prédio sem quaisquer ónus ou encargos, o que um colector público no subsolo sempre configuraria. Ora, nos termos do artigo 3º do DL n.º 34.021, de 11/10/1944, são estabelecidos, com carácter permanente, os ónus que sejam necessários à captação e condução das águas destinadas a saneamento de aglomerados populacionais, ónus que dão direito a indemnização na medida em que causarem efectiva diminuição do valor dos prédios respectivos. Daqui resulta que, a fim de manter esse ónus, sempre o arguido teria que ser ressarcido (já que não o foi o único particular anteriormente proprietário do mesmo prédio), o que nunca lhe foi proposto. Por isso, não era o arguido obrigado a suportá-lo por mera generosidade.
Configurando-se, então, a presença do colector como um entrave ao seu direito de propriedade pleno sobre o subsolo do prédio, e aguardando há 4 anos pela sua remoção (inicialmente confirmada, depois protelada, finalmente negada), perante a possibilidade de novas inundações e danos no seu prédio, cremos que o arguido agiu no exercício do direito de defender o que era seu, através de acção directa como lhe faculta o artigo 1314º do Código Civil, sabedor da inércia das entidades públicas até aí e com a esperança de que o aviso sobre o seu acto desencadeasse uma resposta.
A falta de recurso aos meios públicos, como o próprio avançou, ter-se-á prendido com a crença de que o colector seria removido, como lhe fora prometido, perante a “ameaça” do seu tamponamento, ao que a C… foi indiferente.
Este processo reflecte, a nosso ver, uma atitude lamentável por parte das instituições envolvidas, que tentaram vencer o arguido pelo cansaço, pela exaustão de uma negociação sem fim, forçando-o a suportar um encargo sem qualquer contrapartida e danos sem reparação nos seus bens, até ao ponto de o converterem no culpado e de dele exigirem uma indemnização.
Ora, crendo que o arguido agiu no exercício de um direito de defesa da sua propriedade, a sua conduta não se revestiu de ilicitude, pelo que será absolvido dos crimes de que vinha acusado/pronunciado.

Pedido de indemnização civil
A C… deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, requerendo a sua condenação no pagamento de € 11.902,82 a título de despesas de reparação e reposição das infra-estruturas afectadas com a conduta do arguido, afectação de recursos humanos, materiais e equipamentos.
O artigo 129º do Código Penal manda regular pela lei civil a indemnização de perdas e danos emergentes de um crime.
Há então que averiguar se estarão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil enunciados no artigo 483º, n.º 1 do Código Civil, a saber:
a) um facto humano voluntário;
b) a ilicitude da conduta, que pode traduzir-se na violação de um direito de outrem ou de qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios;
c) a imputação do facto ao lesante, que traduz a culpa deste aferida em abstracto pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso;
d) o dano;
e) o nexo de causalidade entre o facto e dano.
Ora, sem mais considerações, se se concluiu que o arguido agiu no exercício de um direito, sem ilicitude, falece um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, pelo que o pedido da C… é improcedente.

Fundamentação:

Nos termos do disposto no art.º 425.º, n.º 5 do CPP, entende este Tribunal de Recurso remeter para os bons fundamentos da sentença absolutória – o que nos dispensa de escrever comentários quiçá mais duros sobre a actuação da C. Municipal de Gondomar e C… neste caso – apenas aditando algumas notas em reforço dessa mesma argumentação:
1) Entre os exemplos mais vezes citados na doutrina sobre a acção directa está a possibilidade dada ao proprietário de arrancar e cortar as raízes que se introduzirem no seu terreno e o tronco ou ramos que sobre ele propenderem – art.º 1366.º, n.º1 do CC. Isto, se o dono da árvore, sendo rogado judicial ou extrajudicialmente, o não fizer. Repare-se, contudo, no prazo que a lei dá a este último para reagir: três dias. Reflicta-se neste prazo: não obstante se tratar de um processo orgânico lento, o da expansão dos ramos e raízes, o legislador considerou intolerável o sacrifício do direito de propriedade para lá dessa mínima dilação.
2) O Prof. Vaz Serra, no BMJ n.º 85, publicou um estudo sobre “Causas justificativas do facto danoso”. Encontramos no mesmo referências que vêm justamente a propósito da situação analisada nos presentes autos. Assim, a pág. 70: (…) Mas, não sendo a intervenção da justiça e da força pública sempre eficaz e causando, em todos os casos, atrasos e despesas, não se deve considerar ilícito o acto pelo qual uma pessoa obteve o que lhe era devido, mesmo empregando a força (…). E acrescenta o mesmo Autor, a pág. 80: A acção directa é perigosa e não pode facilitar-se o seu uso. Convém que os particulares só recorram a ela com prudência. Mas daí a impor-lhes responsabilidade civil quando não têm culpa alguma vai certa distância. Parece bastar que sejam considerados responsáveis, salvo provando que não tiveram culpa alguma, isto é, que foram escrupulosos no recurso à acção directa. Precisamente o comedimento extremo foi a modalidade de actuação do arguido, na medida em que se limitou a tamponar a conduta, não levando a cabo nenhuma destruição física em larga escala da infra estrutura – como poderia ser levado a tal depois das inundações e prejuízos que sofreu na garagem da casa de habitação.
3) Não se pode argumentar com a viabilidade de uma providência cautelar, porque neste caso não havia propriamente um perigo iminente de frustração de direitos, que cumprisse acautelar – mas antes uma lesão e limitação, acentuadas no tempo, do direito de propriedade de um cidadão. Justamente como pressuposto de funcionamento da figura da acção directa pata tutela de um direito tão afectado no tempo se considerou: Não se exige um risco de perda irreparável, basta toda a agravação essencial da dificuldade de prossecução do direito – cfr. Enneccerus-Nipperdy,”Derecho Civil”, parte general, 2.ª parte, Ed. Bosch, Barcelona, 1981, pág. 1105; a tutela efectiva exige e impõe o recurso a acção directa, quando o exercício do direito se torne mais difícil – cfr. “Comentário ao Código Civil -Parte Geral”, Universidade Católica Editora, pág. 795, anotação ao art.º 336.º.
A limitação que o direito subjectivo do arguido sofreu foi persistente e duradoura, sendo legítimo que ele acalentasse que a CMG, como ente público dotado de poder coercitivo viesse a resolver o problema em termos que não apenas “cosméticos”. Não é expectável por qualquer cidadão que um ente público desta natureza tenha um a intervenção péssima ao longo dos anos, sem dar mostras de a querer corrigir.
4) Mostra-se extensivo este regime à comissão do imputado crime de poluição, já que este surge como uma consequência inevitável do comportamento assinalado, que o arguido não poderia deixar de acontecer. Não se afigura qualquer outra alternativa, nem a mesma é alegada na discussão do objecto do processo até ao momento. Quanto à hierarquia dos bens jurídicos, não é a mesma susceptível de apenas ser reduzida ao binómio particular/comunidade, como se parece sustentar na motivação de recurso. Não pode o bem jurídico sacrificado ser de forma desproporcionada ou muito mais importante que aquele que se pretende salvaguardar. Mas como escreve António Pagliaro (“Trattato di Diritto Penale – Il Reato”, Giuffrè Ed., Milano, 2007, pág. 265) a situação que encontramos no exercício de um direito que causa exclusão da ilicitude pode ser definida como concurso aparente de normas. Não tem importância que uma das normas – a incriminadora – seja uma norma penal, e a outra – atributiva do direito – seja uma norma extrapenal. ao concurso de normas diz respeito o requisito de que as normas concorrentes pertencem ao mesmo ordenamento jurídico, no qual se apresentam como igualmente válidas em sentido técnico, seja relativamente ao tempo, ao lugar ou às pessoas. Não teria sentido atribuir uma prevalência absoluta à norma incriminadora, pois que tal poderia privar de conteúdo muitas normas atributivas de direitos. Se o direito a um ambiente sadio e ecologicamente equilibrado está previsto como direito fundamental, no art.º 66.º, n.º1 da CRP, não menos garantido é o direito à propriedade privada – art.º 62.º da CRP.

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo MP, confirmando integralmente a decisão recorrida.
Sem tributação.

Porto, 20 de Janeiro de 2016.
Borges Martins
Ernesto Nascimento