Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
12342/18.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANABELA TENREIRO
Descritores: INTERDIÇÃO
MAIOR ACOMPANHADO
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Nº do Documento: RP2019091012342/18.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 906, FLS 205-213)
Área Temática: .
Sumário: I - Na hipótese de falecimento do requerido, na pendência da acção de interdição, o revogado artigo 904.º n.º1 do C.P.Civil possibilitava ao requerente solicitar o prosseguimento dos autos desde que já tivessem sido realizados o interrogatório e o exame, para o efeito de verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada.
II - A decisão sobre a incapacidade e fixação da data provável do começo da incapacidade tem importância quando se pretende anular, em acção judicial, os actos praticados pelo requerido, realizados em data anterior ao anúncio do processo judicial pois o autor beneficia dessa presunção.
III - A aplicação imediata do artigo 904.º, n.º 1 do CPCivil, sem um regime transitório, aos processos pendentes, e face à inexistência ou insuficiência de interesses públicos prevalecentes, constitucionalmente protegidos, afecta, de forma grave, as expectativas criadas no cidadão advenientes do regime que estava em vigor quando a acção foi proposta em juízo, desrespeitando o princípio constitucional da protecção da confiança e da segurança jurídica (cfr. art. 2.º da CRP).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 12342/18.4T8PRT.P1

Relatora: Anabela Tenreiro
Adjunta: Lina Castro Baptista
Adjunta: Alexandra Pelayo
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Sumário
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto
I—RELATÓRIO
B… intentou, em 28 de Maio de 2018, a presente acção de interdição contra C…, seu irmão, alegando factos susceptíveis de revelar incapacidade de gerir a sua pessoa e bens, pedindo que seja decretada a sua interdição por anomalia psíquica.
Foi apresentada contestação em nome do requerido bem como uma procuração, em 2 de Junho de 2018, datada de 4 de Abril de 2018.
Em 3 de Julho de 2018, o Requerido constituiu outra mandatária na presença de duas testemunhas no âmbito do pedido de interdição provisória.
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Proferiu-se decisão que decretou, provisoriamente, a interdição do Requerido, C…, com início, pelo menos, há dois anos atrás e nomeou, como seu tutor provisório, o seu irmão, D…. Em consequência, proibiu-se a prática de atos em nome do requerido, designadamente, a venda/alienação dos seus bens, pelo próprio ou por terceiro em seu nome, designadamente através de procuração emitida para o efeito, mesmo que com data anterior à presente decisão.
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Após o falecimento do Requerido, em 25 de Fevereiro de 2019, o Requerente solicitou o prosseguimento dos autos com vista a apurar a existência da incapacidade e o momento em que se iniciou.
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Proferiu-se a seguinte decisão:
Na presente acção especial de interdição por anomalia psíquica a qual por via da entrada em vigor da Lei n.º 49/201, de 14/08, do regime jurídico do maior acompanhado e a sua aplicação aos processos pendentes (arts. 25 e 26 Lei n.º 49/2018, de 14/08), passou a ser de Acompanhamento de Maior instaurada pelo requerente B… contra o requerido C…, visto que este faleceu na pendência da acção (cfr. Assento de óbito de fls. 193), ao abrigo do disposto nos arts. 904.º, n.º 1, do C.P.C. julgo a instância extinta.
Sem custas.
Registe e notifique.

Inconformado com esta decisão, o Requerente interpôs o presente recurso, formulando as seguintes
Conclusões
A) A sentença a quo decidiu a extinção da instância, com fundamento no disposto no actual art. 904.º, n.º 1 do C.P.C., com a redação dada pela Lei n.º 49/2018, de 14/08, do Regime Jurídico do Maior Acompanhado, e na sua aplicação aos processos pendentes.
B) O Recorrente não aceita esta decisão por entender que, não obstante a morte do Requerido Sr. C…, ocorre utilidade na prossecução da lide com vista a verificar-se se existia e desde quando a incapacidade do Requerido.
C) O Recorrente manifestou interesse na prossecução da mesma, justificando tal com base na defesa dos interesses patrimoniais em causa, mediante a invocação da incapacidade do interditando à data da prática de negócios ou eventuais liberalidades do mesmo melhor descritas na petição inicial,
D) O que se reitera, já que a existência da incapacidade alegada e a data provável do seu começo é susceptível de repercussão jurídica, nomeadamente em sede de anulação dos actos praticados pelo falecido,
E) Além disso, importa não descurar que após a alegada data provável da incapacidade do requerido (ano de 2016), o Sr. C…, solteiro, sem descendentes e ascendentes, outorgou testamento a favor de diversas entidades, ou seja instituiu-as seus herdeiros legatários, quando sem tal acto formal seria ele, o seu Irmão, o herdeiro legítimo – artºs 2132º e 2133º, nº 1, al. c), do CC.
F) A aplicação (cega) do novo C.PC., leia-se do novo regime do Acompanhamento de Maiores previsto nos arts. 891.º e ss. do C.P.C., aos processos especiais de interdição por anomalia psíquica pendentes à data da sua entrada em vigor, configura uma aplicação retroativa da lei, violando assim, de forma clara o princípio da irretroatividade da lei, consagrado no artº 12º do Código Civil.
G) O não reconhecimento do direito do Requerente de, uma vez que a morte do Requerido ocorreu depois de feito o exame, prosseguir com a causa para o efeito de se verificar a incapacidade e a data do respectivo início, o que decorria da anterior redação do art. 904º do CPC, viola, no mínimo, os direitos validamente adquiridos pelo Recorrente e põe em causa de forma irremediável o do princípio da segurança e proteção da confiança ínsito no artigo 2.º da C.R.P.,
H) O princípio da confiança traduz-se, numa proteção da confiança dos cidadãos na atuação do Estado, a qual deve ter sempre presente e objetivar-se para que haja um mínimo de certeza no direito das pessoas e nas expectativas que lhe são juridicamente criadas;
I) A desconsideração, o simples desaproveitamento, da audição pessoal do Requerido e do exame pericial realizado carecem de justificação,
J) A aplicação do artigo 904, n.º 1º do novo Código de Processo Civil, a processos de interdição anteriores à sua entrada em vigor, constitui uma consequência jurídica demasiado violenta e inadmissível no Estado de Direito Democrático, geradora de uma insegurança jurídica inaceitável, desrespeitando em absoluto as expectativas legítimas e juridicamente criadas,
K) Uma alteração da ordem jurídica que sacrifique legítimas expectativas de particulares juridicamente criadas só faz sentido e só pode ser admitida quando valores mais elevados se impõem, ou seja, o sacrifício imposto apenas tem razão de ser perante a inevitabilidade de razões da maior importância para a sociedade, justificando-se, então, o sacrifício de alguns em prol do coletivo,
L) Em suma, o Recorrente entende que a norma que determina e extinção da instância com a morte do beneficiário (art. 904.º, n.º 1 do actual C.P.C.), e interpretada no sentido de se aplicar aos processos de interdição por anomalia psíquica pendentes à entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08, é manifestamente inconstitucional por violação do princípio da segurança e proteção da confiança integrador do princípio do Estado de Direito Democrático.
M) Ou seja, quando a Lei manda aplicar imediatamente a nova Lei aos processos pendentes está a referir-se ao formalismo da nova tramitação que deve ser aplicado ao processo pendente, mutatis mutandis, e não a estabelecer a extinção imediata de um processo que já se iniciou, onde já ocorreu prova pericial, e até decisão de interdição provisória porque tal violaria o disposto no art.º 12º, n.º 1 in fine do C.C. e o disposto no art.º 2º da C.R.P.
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II—Delimitação do Objecto do Recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, pelo que a questão a dirimir, consiste em saber se deve ser aplicado imediatamente ao processo de interdição pendente o novo Regime do Maior Acompanhado, concretamente a norma que determina a extinção da instância, em consequência da morte do interditando e se esta alteração legislativa ofende o princípio constitucional de protecção da confiança e da segurança jurídica decorrente do princípio do Estado de Direito Democrático (cfr. art. 2.º da CRP).
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III—FUNDAMENTAÇÃO
Factos indiciariamente provados:
1. O Requerido tinha 88 anos de idade, com referência à data da entrada da p.i.
2. O Requerido era solteiro e vivia sozinho, há cerca de 28 anos, na E…, sita na …, nº .., no Porto.
3. O Requerido padecia de demência, deterioração cognitiva, de forma exuberante e irreversível, que o incapacitava de se reger a si e aos seus bens, e potenciava que fosse vítima de manipulação de terceiros em quem confie (cfr. relatório médico de fls. 47 ss., cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
4. O Requerido sofria de diabetes, fazendo por isso medicação que devia ser controlada e vigiada, sofreu três acidentes vasculares cerebrais, diversos acidentes isquémicos transitórios (AIT), padecia de leucoencefalopatia isquémica e apresentava perda de volume encefálico com predomínio fronto temporal (cfr. o aludido relatório médico e demais docs. juntos aos autos).
5. O Requerido tinha sido vítima de diversas burlas, realizadas por terceiros, dirigidas diretamente à sua pessoa e seus bens, tendo sido emitidas procurações falsificadas em seu nome, e com elas foram subtraídos do seu património diversos bens imóveis. Também foram furtados cheques e levantado dinheiro (que mais tarde a sua sobrinha recuperou, como se pode constatar dos extratos das contas bancárias) de diversos bancos, nomeadamente do F… e G…
6. As pessoas que querem visitar ou tratar de assuntos do interesse do Senhor C… eram proibidas e impedidas de a ele ter acesso, sem que este soubesse e sem que qualquer familiar ou médico tenha dado ordens nesse sentido.
7. A correspondência enviada ao Senhor C… era desviada e aberta por terceiros, lida e filtrada, apenas chegando às mãos do Sr. C… revistas e postais.
8. Nos presentes autos foram apresentadas duas procurações em nome do requerido, sem que este se recorde de o ter feito (cfr. fls. 60 e 98).
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IV-DIREITO
O ser humano é dotado de personalidade jurídica, adquirida no momento do seu nascimento completo e com vida (cfr. art. 66.º, n.º 1 do C.C) e de capacidade de gozo de direitos, inerente àquela.
Se esta “capacidade de direitos” não pode faltar de todo, como observava Manuel de Andrade[1], a um sujeito jurídico, o mesmo não acontece com a capacidade de exercício de direitos, definida por aquele autor como a aptidão para praticar, por si próprio, ou através de um representante voluntário, actos produtivos de efeitos jurídicos.
A lei prevê categorias de pessoas que estão, de forma absoluta ou limitada, impedidas de exercitar, por si próprias, os respectivos direitos.
Assim, anteriormente à entrada em vigor do estatuto do maior acompanhado, estabelecida na Lei n.º 49/2018, de 14/08, podiam ser interditos dos seus direitos, nos termos do artigo 138.º, n.º 1 do C. Civil, todos aqueles que, por anomalia psíquica, surdez-mudez ou cegueira se mostrassem incapazes de governar suas pessoas e bens.
Na disciplina actualmente vigente, o maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, beneficia das medidas de acompanhamento previstas no código civil (cfr. art. 138.º do CC).
No que respeita ao valor dos actos praticados pelo interdito, como esclarecia Mota Pinto[2], não há que fazer distinção entre a hipótese de o incapaz vir a ser ulteriormente interdito e a hipótese de nunca chegar a ser decretada a interdição pois em qualquer das hipóteses é necessário que se verifiquem os seguintes requisitos:
1)Que no momento do acto haja uma incapacidade de entender o sentido da declaração negocial ou falte o livre exercício da vontade,
2) Que a incapacidade natural seja notória ou conhecida do declaratário.
Não basta a prova da incapacidade natural para se obter a anulabilidade destes actos, exigindo-se, para tutela da boa fé do declaratário e da segurança jurídica, a prova da cognoscibilidade da incapacidade.
E, para efeito de obter a anulabilidade dos actos jurídicos, no regime pretérito, era importante ter em atenção três períodos:
-os actos praticados depois do registo da sentença de interdição definitiva eram feridos de anulabilidade (art. 148.º);
-na pendência da acção eram anuláveis se fossem praticados depois do anúncio da propositura da acção e se mostrassem prejudiciais (art. 149.º);
-se praticados antes da propositura da acção, aplicava-se o regime da incapacidade acidental-(arts. 150.º e 257.º).
No novo artigo 154.º do C.Civil, a solução é igual, com referência aos actos praticados após o registo do acompanhamento, ao anúncio do início do processo de acompanhamento e ao período anterior a esse anúncio.

Nos termos do revogado art. 901.º n.º 1 do C.P.Civil e actual art. 900.º, n.º 1, na decisão final, o juiz fixa, sempre que possível, a data a partir da qual se iniciou a necessidade de acompanhamento por se verificar aquela impossibilidade de exercer plenamente os seus direitos.
Na hipótese de falecimento do requerido, na pendência da acção judicial, o revogado artigo 904.º n.º1 do C.P.Civil possibilitava ao requerente solicitar o prosseguimento desde que já tivessem sido realizados o interrogatório e o exame, para o efeito de verificar se existia e desde quando datava a incapacidade alegada.
A fixação da data provável do começo da incapacidade tem importância quando se pretende anular, em acção judicial, os actos praticados pelo requerido, realizados em data anterior ao anúncio do processo judicial.
Como esclarecia A. dos Reis[3] presume-se que já existia a esse tempo a causa da interdição, restando provar que a anomalia mental era notória ou era conhecida do outro estipulante.
Acrescentando, com interesse, que o alcance da expressão data provável é de que a presunção pode ser ilidida por prova em contrário.
No caso de falecimento do requerido, a lei permitia, como acima se referiu, que o requerente obtivesse decisão sobre a existência da incapacidade e data provável do seu início, por constar do processo de interdição meios de prova (exame pericial e interrogatório do requerido) que permitiam ao juiz formular um juízo decisório.
Por outras palavras, a demonstração da alegada incapacidade, através do exame médico e do resultado do interrogatório do requerido, podia ser aproveitada pelo requerente, facilitando-lhe, numa futura acção de anulação, a prova dessa factualidade e período temporal em que se verificou.
No entanto, na actual redacção do art. 904.º n.º 1 do C.P.C., pese embora a discordância manifestada pelo Conselho Superior da Magistratura,[4] foi eliminada a faculdade que anteriormente era concedida ao requerente de pedir o prosseguimento do processo para aqueles efeitos, desde que estivessem realizados no processo o interrogatório do requerido e o exame pericial.
A discordância do Recorrente prende-se justamente com a aplicação desta norma pelo tribunal a quo ao processo pendente; ou seja, por não ter deferido o seu requerimento de continuação dos termos do processo e ter decidido extinguir a instância, em consequência do falecimento do requerido, inutilizando o exame e interrogatório feito a este último.
Concretamente, o tribunal, em conformidade com o art. 26.º, n.º 1 da Lei n.º 49/2018, de 14/08, extinguiu a instância, em razão da morte do requerido, em estrita obediência ao disposto no art. 904.º, n.º 1 do CPC, que não prevê, ao contrário da expectativa criada juridicamente até esta data, a hipótese de os autos prosseguirem para verificação da incapacidade.
Na verdade, o diploma legal que instituiu o regime do maior acompanhado determina, no referido art. 26.º, n.º 1 a sua aplicação imediata aos processos de interdição pendentes, aliás em concordância com o princípio de aplicabilidade imediata da nova lei adjectiva, sendo que apenas os actos do requerido ficam sujeitos à lei vigente no momento da sua prática (n.º 3).
Como ensinava Manuel de Andrade[5], de acordo com este princípio, uma nova lei será de aplicar, desde logo, nas suas próprias causas já instauradas, a todos os termos processuais subsequentes, por razões de natureza publicística e instrumental do processo, por não interferir na solução dada pelo direito substantivo.
Por conseguinte, afigura-se-nos seguro que, com a entrada em vigor da Lei n.º 49/2018, de 14/08, foi eliminada a faculdade conferida ao requerente de pedir a continuação do processo, para efeito de verificação da incapacidade.
A opção do legislador, ao suprimir a continuação do processo após a morte do requerido, pese embora o regime anterior estatuir em sentido contrário e de ter sido alertado, em parecer, para o desaproveitamento do exame médico e do interrogatório, implica a demonstração da incapacidade acidental do requerido na acção de anulação, sem o benefício decorrente da presunção, que as pessoas, com legitimidade para tal, queiram propor.
É precisamente esta alteração legislativa, de aplicação imediata aos processos pendentes, que o Recorrente defende ofender o princípio de protecção da confiança previsto no artigo 2.º da CRP.
Sobre a protecção da confiança na vertente da estabilidade legislativa, Jorge Miranda[6] refere que o legislador tem outrossim um dever de boa fé perante os destinatários das normas que edite e estes o direito de verem salvaguardadas as expectativas que aquelas tenham provocado.
Citando o acórdão do TC n.º 287/90[7], acrescenta que a ideia geral de inadmissibilidade (de medidas legislativas), poderá ser aferida, nomeadamente, pelos dois seguintes critérios:
“a) A afectação de expetativas, em sentido desfavorável, será inadmissível, quando constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dele constantes não possam contar;
b) Quando não for ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, deve recorrer-se, aqui, ao princípio da proporcionalidade, explicitamente consagrado, a propósito dos direitos, liberdades e garantias, no n.º 2 do art. 18.º da Constituição, desde a 1.º revisão.
Pelo primeiro critério, a afectação de expetativas será extraordinariamente onerosa. Pelo segundo, que deve acrescer ao primeiro, essa onerosidade torna-se excessiva, inadmissível ou intolerável, porque injustificada ou arbitrária.
(…) Para julgar da existência do excesso na “onerosidade”, isto é, na frustração forçada de expectativas, é necessário averiguar se o interesse geral que presidia à mudança do regime legal deve prevalecer sobre o interesse individual sacrificado, na hipótese reforçado pelo interesse na previsibilidade de vida jurídica, também necessariamente sacrificado pela mudança. Na falta de tal interesse do legislador ou da sua suficiente relevância segundo a Constituição, deve considerar-se arbitrário o sacrifício e excessiva a frustração de expectativas.”[8]
Como acima se salientou, quando foi proposta a presente acção de interdição, vigorava a norma que permitia, em caso de morte do requerido, o prosseguimento do processo, através de requerimento, para verificação da existência de incapacidade e fixação provável do seu início.
O legislador entendia que a protecção conferida ao incapaz em vida, devia permanecer mesmo em caso de ocorrer a sua morte no decurso da acção, por forma a facilitar a prova da incapacidade, em futura acção de anulação de actos prejudiciais ao seu património.
A anulabilidade dos actos do acompanhado prevista no artigo 154.º do CC foi estabelecida, segundo Mafalda Miranda Barbosa[9], no interesse do acompanhado, interesse que os seus herdeiros poderão, em sua substituição, querer fazer valer.
Ora, a expectativa legítima do Recorrente no sentido de poder obter uma decisão sobre a alegada incapacidade do requerido, com base no aproveitamento do exame pericial e do interrogatório constantes do processo, para, eventualmente, ponderar a propositura de uma acção de anulação frustrou-se, de uma forma gravosa, com a aplicação imediata do novo regime.
Com efeito, a extinção da acção de interdição e consequente desaproveitamento daqueles meios de prova, dificilmente permitem ao Recorrente conseguir provar a incapacidade do seu falecido irmão na data em que praticou actos jurídicos susceptíveis de serem anulados, sendo certo que já tinha sido decretada, provisoriamente, a sua interdição.
Conclui-se, por isso, que a aplicação imediata do artigo 904.º, n.º 1 do CPCivil, sem um regime transitório, aos processos de interdição pendentes, e face à inexistência ou insuficiência de interesses públicos prevalecentes, constitucionalmente protegidos, obvia, de forma intolerável, os mínimos de certeza e segurança[10], por afectar as expectativas criadas no cidadão decorrentes do regime que estava em vigor quando a acção foi proposta em juízo.
Conclui-se, por estes motivos, que a aplicação imediata, aos processos pendentes, da norma que determina a extinção da instância, em consequência da morte do requerido, implicando o desaproveitamento do exame e interrogatório realizados nos autos, é susceptível de consubstanciar uma retroactividade inautêntica ou aparente[11] da lei, desrespeita o princípio constitucional da protecção da confiança e da segurança jurídica contidos no princípio do Estado de Direito Democrático (cfr. art. 2.º da CRP).
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V—DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas que constituem este Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso e, consequentemente, declaram não aplicar o artigo 904.º, n.º 1 do CPCivil (que determina a extinção da instância) à presente acção, proposta anteriormente à publicação da Lei n.º 49/2018 de 14.08, por violar o princípio da protecção da confiança e da segurança jurídica deduzível do artigo 2.º da CRP, devendo os autos prosseguir os seus termos para os efeitos pretendidos pelo Recorrente.
Sem custas.
Notifique.

Porto, 10 de Setembro de 2019
Anabela Tenreiro
Lina Baptista
Alexandra Pelayo
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[1] Teoria Geral da Relação Jurídica.
[2] Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 239.
[3] Processos Especiais, vol. I, Coimbra Editora, pág. 127 e segs.
[4] O CSM, no parecer sobre a proposta de Lei n.º 110/XIII, manifestou a sua discordância relativamente ao desaproveitamento da audição pessoal do requerido e do exame pericial realizado em caso de morte deste, por carecer de qualquer justificação.
[5] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 42 e sgs.
[6] Manual de Direito Constitucional, Direitos Fundamentais, tomo IV, pág. 315.
[7] Ob. cit., pág. 318.
[8] Sobre o princípio da confiança e da segurança jurídica v. ainda Ac. Rel. Coimbra, de 22.09.2015 e jurisprudência aí citada, disponível em www.dgsi.pt.
[9] Maiores Acompanhados, Gestlegal, pág. 73.
[10] Palavras constantes do Acórdão do TC n.º 556/2003, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Lei que vigora para o futuro mas afecta relações jurídicas desenvolvidas no passado.