Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1250/19.1T9OVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: PAULO COSTA
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
NULIDADE
GARANTIAS DE DEFESA
CASO JULGADO FORMAL
IRRECORRIBILIDADE DO DESPACHO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RP202301251250/19.1T9OVR.P1
Data do Acordão: 01/25/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No caso vertente, a decisão do Juiz de instrução que julgou improcedente a invocada nulidade de omissão da constituição da qualidade de arguido e seu interrogatório não teve como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido; este, através do requerimento de abertura de instrução, da contestação e do julgamento pôde esclarecer o que lhe veio imputado na acusação.
II - Como tal, atendendo à natureza sanável da nulidade em causa, é constitucionalmente aceitável que a decisão do Juiz de instrução que julgou improcedente a nulidade invocada pelo arguido não seja sindicável por nenhuma outra instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1250/19.1T90VR.P1
Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro – Juízo Local Criminal de Ovar

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
No âmbito do Processo Comum singular n.º 1250/19.1T90VR, a correr termos no Juízo local Criminal de Ovar, por sentença datada de 14-06-2022, foi decidido:
«Condeno o arguido AA pela prática, como autor material, do crime de dano, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, Cód. Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa.
Condeno o arguido AA pela prática, como autor material, do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, Cód. Penal, na pena de 50 (cinquenta) dias de multa.
Condeno o arguido AA pela prática, como autor material e em concurso efetivo, dos crimes de dano e injúria, p. e p. pelos arts. 212.º, n.º 1 e 181.º, n.º 1, ambos do Cód. Penal, na pena única de respetivamente, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de €:10,00 (dez euros).
Nos termos do disposto nos artigos 374.º, n.º 4, 513.º, n.º 1, 514.º, n.º 1, todos do Cód. Processo Penal, e 74.º, 85.º, n.º 1, alínea b), 89.º, 95.º, n.º 1, estes do Cód. das Custas Judiciais, decido condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C. (duas unidades de conta).
B - PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
Julgo parcialmente procedente os pedidos de indemnização civil formulados pelo demandante BB, condenando o demandado AA a pagar-lhe, a título de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, a quantia de €:2.300,00 (dois mil e trezentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados do modo constante da fundamentação da presente sentença até efetivo e integral pagamento.
Custas da “instância cível” a cargo de demandante e demandado na proporção do seu decaimento.»
*
Inconformado, o arguido interpôs recurso, concluindo (transcrição):
1. Nos presentes autos não foi o recorrente constituído arguido ou inquirido como tal;
2. O recorrente teve contacto, pela primeira vez com os autos, quando foi notificado para, querendo, abrir instrução ou contestar as acusações pública e particular e, bem assim, o pedido de indemnização cível, todos contra si formulados.
3. Nos termos dos artigos 57º e 58º do C. P. Penal, a constituição do arguido constitui ato legalmente obrigatório a praticar sob pena de nulidade por insuficiência do processo – artigo 102º/2, al. d) do Código de Processo Penal. Ora,
4. A falta de constituição do recorrente como arguido e a falta do seu interrogatório posterior, em tal qualidade, sendo possível que o fosse, nomeadamente quando notificado, conforme supra referido em 2. Das presentes conclusões, e sempre após a dedução de acusação, constituem nos termos e normativos supra referidos, e, bem assim, dos artigos 61º/1, al. b) e 272º/1 do C. P. Penal, nulidade de todo o processo.
5. E, mesmo que se entenda, que tal constituição opera automaticamente com a dedução de acusação pública, ao abrigo do artigo 57º/1 do mesmo diploma legal, com a constituição de arguido deve ao imputado ser comunicado, oralmente ou por escrito, tal condição e, consequentemente, os deveres e direitos à mesma inerente – cfr. artigo 57º/3 e 58º/2 a 6 do C. P. Penal. Com efeito,
6. A constituição de arguido para ser totalmente válida, deve ser comunicada expressamente ao titular de tal qualidade.
7. Tudo o que não ocorreu nestes autos.
8. Ocorrendo tal motivo de nulidade é nulo todo o processo, nos termos do artigo 122º do C. P. Penal.
9. Devendo ser de anular toda a tramitação processual dependente do inquérito nulo, retirando-se desta nulidade as consequências necessárias em termos de diligência posteriores, por violação de um vasto leque de princípios constitucionais, a saber, o princípio do acusatório, do contraditório e da garantia de defesa do arguido consagrados no artigo 32º/5 da Constituição da República Portuguesa.
10. Nulidade que não tendo sido sanada pode ser objeto de apreciação em sede de recurso, como se alega e peticiona, nos termos do disposto no artigo 410º, n.º 3 do Código de Processo Penal.
(…)
*
Também a Digna Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso do arguido, pugnando pela sua improcedência e pela manutenção da decisão recorrida, aduzindo as seguintes conclusões:
“Conclusões:
1. Contrariamente ao que alega o recorrente, não se verifica qualquer nulidade por não ter sido constituído arguido ou inquirido como tal, uma vez que a falta de constituição como arguido e interrogatório nessa qualidade, decorreu apenas da circunstância de não ter sido possível apurar do seu paradeiro.
2. Daí que nenhuma nulidade se pode ter por verificada, sendo que, pese embora o artº 272º, n.º 1 do CPP, comine com nulidade a “falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre”, tal verifica-se apenas, “sendo possível a notificação”.
3. De todo o modo, não há que ignorar o disposto no artº 57º 1 do C.P.P no sentido de que “Assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal”, o que sucedeu no caso.
(…)
*
É do seguinte teor o elenco dos factos provados e não provados e respectiva motivação constantes da decisão recorrida (transcrição):
«A) FACTOS PROVADOS:
Com interesse para a decisão da causa, resultou provado que:
1.º
No dia 31 de julho de 2019, cerca das 17.45 horas, na Av. ..., no ..., em Ovar, o arguido AA irritado com o assistente, BB por razões de trânsito, imobilizou o veículo automóvel em que seguia com a matrícula ..-VJ-.., e ao mesmo tempo que lhe dirigia vários impropérios, abeirou-se do veículo automóvel conduzido pelo ofendido de marca e modelo “Mercedes ...” com a matrícula ..-CR-.. e desferiu dois violentos pontapés na porta do condutor, causando estragos no veículo avaliados em 2.000,00€ (dois mil euros).
2.º
O arguido agiu, livre, voluntária e conscientemente com o propósito, conseguido, de causar estragos no referido veículo automóvel, bem sabendo que ao proceder desse modo, agia contra a vontade do legítimo proprietário e praticava factos ilícitos e criminalmente puníveis.
*
3.º
No circunstancialismo de tempo e lugar referido em 1.º, o arguido proferiu as seguintes expressões na direção do assistente: “filho da puta”, “cabrão” e “burro”.
4.º
O arguido bem sabia que as palavras referidas em 3.º eram injuriosas e que, ao proferi-las, estava a ofender a honra e consideração do assistente.
5.º
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei criminal.
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6.º
Em consequência direta da conduta do demandante, foram danificadas a porta do condutor do veículo do assistente, na sua chapa e pintura exteriores, o elevador do vidro, entre outros sistemas elétricos.
7.º
Para reparação dos danos do veículo, o demandante despendeu a quantia de €:2.000,00 (dois mil euros).
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8.º
O demandante sentiu-se profundamente ofendido com as expressões referidas em 3.º
9.º
Tais expressões foram proferidas na presença de terceiros e para que estes ouvissem, tendo o demandante sofrido humilhação e vergonha.
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10.º
Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
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11.º
O arguido encontra-se emigrado nos Emirados Árabes Unidos, auferindo o salário mensal líquido de €:7.000,00 (sete mil euros).
(…)
Decisão instrutória a propósito de nulidade suscitada em requerimento de abertura de instrução.
DECISÃO
Declaro encerrada a instrução.
O Tribunal é competente em razão da matéria e hierarquia.
Não há nulidades ou questões prévias que cumpra conhecer.
A fls. 68/69 a Digna Magistrada do Ministério Público proferiu despacho de acusação contra o arguido AA pela prática, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1 do CP.
Discordando do teor de tal acusação veio o arguido requerer a abertura de instrução, alegando, em suma, que:
- nulidade do inquérito decorrente do facto de não ter sido constituído arguido nem interrogado nessa qualidade;
- não praticou os factos de que vem acusado.
Por despacho de fls. 138 foi declarada aberta a instrução.
Foram inquiridas duas testemunhas indicadas pelo arguido no seu requerimento de abertura de instrução.
Procedeu-se à realização do debate instrutório, com observância do devido formalismo legal, com formulação a final de conclusões pelo Ministério Público e arguido.
A decisão instrutória, no sentido da pronúncia, depende da existência de indícios suficientes, obtidos por via do inquérito e da instrução, que preencham os pressupostos de que depende a aplicação aos arguidos de uma pena ou de uma medida de segurança (art.º. 308º, n.º. 1 do Cód. Proc. Penal).
Os indícios são suficientes, na perspectiva do normativo invocado, quando, em face dos mesmos, seja em termos de prognose, muito provável a futura condenação do arguido ou esta seja mais provável que a sua absolvição (art.º. 283º, n.º. 1 ex vi do art.º. 308º, n.º. 2, ambos do Cód. Proc. Penal)
(…)
Da invocada nulidade do inquérito
Contrariamente ao defendido pelo arguido tal nulidade não se verifica.
Com efeito, se é verdade que AA não foi, na fase de instrução, constituído
formalmente arguido nem interrogado nessa qualidade, tal ficou-se a dever, apenas, à circunstância de não ter sido possível apurar o seu paradeiro e proceder à respectiva notificação.
A fls. 49 foi solicitado ao Comandante do Posto Territorial da GNR ... a sua constituição como arguido e interrogatório. Diligência que se frustrou pelas razões constantes da informação policial de fls. 55 – notificado por via postal simples o arguido não compareceu no Posto Policial.
Na sequência da não comparência do denunciado no Posto Policial a GNR tentou a sua notificação pessoal – vide fls. 56 -, a qual não se concretizou pelo facto de o denunciado nunca ter sido localizado.
Consta ainda da informação de fls. 56 que a GNR contactou com a esposa do denunciado que informou que o mesmo se encontrava a trabalhar no Dubai, tendo fornecido uma morada.
Por despacho de fls. 63 foi determinada pesquisa nas bases de dados sobre a identificação completa do denunciado, cujo resultado consta de fls. 64, ali constando como morada a do Dubai.
Conforme resulta do preceituado no art.º 272º, n.º 1 do CPP, a falta de interrogatório como arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a notificação, constitui nulidade.
Ora, no caso concreto, a constituição como arguido e o seu interrogatório nessa qualidade não era viável porquanto o arguido estava a residir no Dubai.
Pelo que não se verifica a apontada nulidade.
***
(…)
Assim, aderindo por inteiro às razões de facto e de direito enunciadas na acusação, pronuncio para julgamento perante juiz singular:
AA, ids. nos autos, pela prática, em autoria material, de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1 do C. Penal.
*
II. Apreciando e decidindo:
Questões a decidir no recurso
É pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta que se delimita o objecto do recurso, devendo a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo do dever de se pronunciar sobre aquelas que são de conhecimento oficioso[1].
As questões que os recorrentes colocam à apreciação deste Tribunal de recurso são as seguintes:
- Nulidade por falta de constituição como arguido e subsequente interrogatório.
(…)
Vejamos.

Na sua peça recursiva o arguido refere que a falta de constituição do recorrente como arguido quer a falta do seu interrogatório posterior, em tal qualidade, desde logo, em sede de inquérito, sendo possível (como manifestamente o era, como a notificação ora efetuada demonstra e prova), e sempre após a dedução de acusação, constituem nulidade.
Relativamente à nulidade por falta de constituição como arguido.
Com efeito, como decorre dos autos e já havia sido feito notar no despacho de pronúncia, a falta de constituição como arguido do denunciado e interrogatório nessa qualidade, decorreu apenas da circunstância de não ter sido possível apurar do seu paradeiro, não obstante as diligências efetuadas nesse sentido, nomeadamente com recurso à autoridade policial que nunca conseguiu localizá-lo e notifica-lo para comparecer e permitir tal diligência.
Posteriormente veio a ser obtida informação de que o denunciado se encontraria a
trabalhar no Dubai.
O art.º 272º, n.º 1 do CPP, dispõe, efetivamente que a falta de interrogatório como
arguido, no inquérito, de pessoa determinada contra quem o mesmo corre, sendo possível a
notificação, constitui nulidade.
Porém, no caso vertente, a constituição como arguido e o seu interrogatório nessa
qualidade não era possível já que o arguido residia no Dubai.
Acresce que, como decorre do artº 57º 1 do CPP “Assume a qualidade de arguido todo aquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal”. Mas uma coisa é a qualidade de arguido e outra é a da sua constituição.
A lei não impõe formalidade especial para a constituição como arguido, como resulta do disposto no artº 58º 2 CPP.
A não constituição de arguido e seu interrogatório constitui uma nulidade sanável e dependente de arguição, art. 120º, n º 2 al. d) e 3, al.c) todos do CPP
Como o afirma Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 2.ªedição, pag. 707, (…) a omissão do interrogatório constitui a nulidade sanável, prevista no artigo 120.°, n.° 2, al .a d). A conclusão do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.° 1/2006 mantém-se válida em face da lei nova, porquanto o interrogatório continua a ser uma diligência legalmente obrigatória do inquérito no caso de fundada suspeita contra qualquer pessoa determinada (ficando prejudicada a doutrina de LOBO MOUTINHO, 2000: 188, que considera existir uma nulidade insanável, nos termos do artigo 119, al. c)).A referida nulidade tem lugar mesmo que o arguido tenha prestado TIR e o MP não tenha deduzido acusação (acórdão do TRG, de 15 .5 .2006, in CJ, XXXI, 3, 297)
Ora, o arguido veio arguir essa nulidade no requerimento para abertura da instrução e portanto atempadamente, tendo o Mmo. Juiz de Instrução decidido que não se verificava a pretendida nulidade.
O art. 310º do C.P. Penal no que respeita à decisão instrutória, como no caso dos autos que pronunciou o arguido pelos factos constantes do despacho de acusação do Ministério Público formulada nos termos do artigo 283º do mesmo diploma legal, estatui ser tal decisão irrecorrível, “(…) mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias ou incidentais (…), com remessa imediata para julgamento.
A recorribilidade do despacho de pronúncia só é possível nos casos de não pronúncia do arguido, de despacho que indeferir a arguição de nulidade quando se reportar ao vício da alteração substancial de factos nos termo a que alude o art. 309º do CPP, do despacho que pronunciar o arguido não havendo acusação do M.P., do despacho que pronunciar o arguido por factos constantes da acusação do assistente desacompanhada do M.P., em crimes particulares, do despacho que pronunciar o arguido por factos apenas constantes da acusação do assistente, mas não constantes da acusação do M.P., que pode acontecer nos crimes públicos e semipúblicos do despacho que indeferir a arguição de nulidades decorrentes da falta de cumprimento do art. 303º, n º 1 em sede de alteração de factos e do despacho que indeferir a arguição de nulidade do despacho de pronúncia por não conter menções doa art. 283º, n º 3 do CPP.
O que significa que o conhecimento desta questão por parte do juiz de instrução fez caso julgado sendo insuscetível de ser revisto, mesmo por este Tribunal Superior, a não ser que se tratasse de questão de prova proibida, que não é o caso, art. 310º nº 2 e 3 do CPP ou então de uma nulidade insanável de conhecimento mesmo oficioso, que não é como atrás se referiu, ou sanável, se entretanto não o tiver sido e não tenha o seu conhecimento transitado em julgado por força da própria lei e até irregularidades se tempestivamente arguidas.
Ora, a tomada de conhecimento por parte do JIC da questão em causa é irrecorrível. Transitou em julgado ope legis.
De todo o modo, mesmo a verificar-se tal nulidade a mesma só teria implicação nas declarações prestadas pela pessoa visada que o incriminassem e que não poderiam ser utilizadas como prova, não prejudicando as provas anteriormente obtidas, art. 58º, n º 6 e 7 do CPP.
O art. 410º, n º 3 do CPP só teria aplicação no presente caso se a decisão não fosse irrecorrível.

Sobre a questão de se considerar constitucionalmente admissível a irrecorribilidade do despacho que pronuncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação e aprecia nulidades e outras questões prévias ou incidentais transcrevemos na parte relevante o Ac. do TC n.º 482/2014 de 25.06.2014 (acessível em www.dgsi.pt):
“O Tribunal Constitucional, em jurisprudência constante, tem considerado constitucionalmente admissível, por não configurar uma restrição desproporcionada do direito ao recurso em processo penal, que o legislador, em benefício da celeridade processual, determine a irrecorribilidade do despacho que pronúncia o arguido pelos mesmos factos constantes da acusação, bem como a irrecorribilidade da decisão instrutória na parte em que decide questões prévias ou incidentais àquele despacho (de pronúncia).”
Posto isto, cumpre saber se, à luz dos princípios do Estado de direito democrático e da segurança jurídica, se deve considerar-se que forma caso julgado no processo (caso julgado formal) a decisão do juiz de instrução que aprecie a arguição de uma nulidade suscitada pelo arguido.
A este propósito aquele mesmo aresto refere “De acordo com a doutrina expendida neste aresto, a decisão instrutória forma caso julgado formal, limitando, nessa medida, os poderes do juiz de julgamento quanto à submissão do arguido a julgamento pelos factos (e crimes) descritos na pronúncia.
De resto, só o reconhecimento da atribuição de autoridade de caso julgado formal às decisões proferidas pelo juiz de instrução permite compreender a ressalva introduzida no n.º 2 do artigo 310.º do CPP, pela revisão operada em 2007, ao passar a acautelar expressamente a possibilidade de o juiz de julgamento excluir provas proibidas, apesar da irrecorribilidade da decisão instrutória que pronunciou o arguido pelos factos constantes da acusação, mesmo na parte respeitante à decisão de nulidades e outras questões prévias ou incidentais (artigo 310.º, n.º 1 do CPP). Na verdade, aquele normativo mais não faz do que ressalvar do caso julgado formal da decisão instrutória a decisão do juiz de julgamento relativa à exclusão de provas proibidas. Se o caso julgado formal não se verificasse, não seria preciso consagrar expressamente esta exceção.
Ora, se se reconhece a intangibilidade do caso julgado formado pela decisão do juiz de instrução que decide o objeto do julgamento a realizar por outro juiz, por maioria de razão, não poderá deixar de se reconhecer a vinculação no processo (caso julgado) das decisões proferidas pelo juiz de instrução cujo conteúdo se apresenta como, material e formalmente, autonomizado da decisão instrutória (cujo escopo se esgota na definição do objeto do futuro julgamento).
Só o reconhecimento de autoridade de caso julgado formal às decisões do juiz de instrução cumpre o «“direito à instrução” da competência de uma entidade imparcial e independente titular do poder soberano de administração da justiça», direito também ele reconhecido na jurisprudência do Tribunal Constitucional (v. Acórdão n.º 527/2003).”
E, atento o caso julgado formal resultante da decisão anteriormente proferida pelo juiz de instrução, estando ao Juiz de julgamento vedada a apreciação da mesma questão suscitada que conheceu da arguição da nulidade de omissão da constituição de arguido e de interrogatório em sede de inquérito, coloca-se a questão de saber se será constitucionalmente aceitável que essa decisão não seja sindicável por nenhuma outra instância, designadamente de grau superior.
O mesmo aresto responde a tal questão dizendo “Em suma, da jurisprudência do Tribunal Constitucional pode concluir-se que a faculdade de recorrer em processo penal constitui expressão das garantias constitucionais de defesa que impõem o recurso de sentenças condenatórias ou de atos judiciais que durante o processo tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais. Todavia, sempre se aceitou que a Constituição não impõe a recorribilidade de todos os despachos proferidos em processo penal. Não o impunha antes, nem impõe já depois da revisão de 1997, onde o segmento aditado ao artigo 32.º, n.º 1, explícita, afinal, o que a jurisprudência do Tribunal Constitucional já entendia estar compreendido nas «garantias de defesa em processo penal» (v. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 300/98).
Assim, o direito de recurso, como imperativo constitucional, hoje consagrado de modo expresso no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, deve continuar a entender-se no quadro das garantias de defesa – ou seja, só e quando estas garantias o exijam é que uma situação se deve considerar abrangida pelo âmbito de proteção do direito referido –, o que, pelas apontadas razões, não compreende necessariamente a impugnação do despacho de pronúncia (veja-se também neste sentido o já citado Acórdão n.º 30/2001).”
E, mais à frente podemos ler:
“Ora, para além da irrecorribilidade da pronúncia, também a questão da inadmissibilidade do recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos mesmos factos da acusação, decorrente da norma do n.º 1 do artigo 310.º do CPP, quando indefira nulidades de atos do inquérito, por aquele suscitadas, tem sido objeto de uma jurisprudência constante do Tribunal Constitucional (v., entre outros, acórdãos n.ºs266/98, 216/99, 387/99, 30/2001, 463/2002, 481/2003, 79/2005 e 460/2008; considerando já a mais recente redação do artigo 310.º, n.º 1 do CPP, v., entre outros, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs51/2010, 477/2011, 146/2012 e 265/2012).
Sem prejuízo de algumas declarações de voto discordantes, o Tribunal sempre entendeu que a ausência de recurso da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, mesmo na parte em que se apreciem e indefiram nulidades do inquérito, não viola as garantias de defesa. Está, portanto, «perfeitamente sedimentado na jurisprudência do Tribunal Constitucional que a norma constante do artigo 310.º, n.º 1, do Código de Processo Penal não padece de inconstitucionalidade, não ofendendo o artigo 32.º, n.º 1 da Constituição», como referido no Acórdão n.º 30/2001.”
Como se escreveu no Comentário Judiciário do Código de Processo Penal (Tomo I, 2021, pág. 1259):
“Na verdade, destinando-se o inquérito a legitimar a acusação e a instrução a comprovar judicialmente essa legitimidade (ac. TC 124/90), compreende-se que uma vez terminadas essas funções preliminares também os vícios aí cometidos percam relevância. Eles não têm qualquer influência sobre a bondade do resultado final. O arguido pode, por não os ter invocado quando devia, ser injustamente submetido a julgamento, mas aí tem, de novo, todas as garantias de defesa (art. 32º/1 CRP). Os actos inválidos praticados durante o inquérito ou a instrução não afectam, em regra, a bondade do resultado final”.
Daqui decorre que o arguido caso não tivesse invocado a dita nulidade no prazo previsto no citado artigo 120º, n.º 3 do CPP, a nulidade ficaria sanada e, como tal, estava de todo impedido de a suscitar na fase de julgamento.
No caso vertente, a decisão do Mmo. Juiz de instrução que julgou improcedente a invocada nulidade de omissão da constituição da qualidade de arguido e seu interrogatório não teve como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido. Este com o seu RAI, contestação e julgamento pôde esclarecer o que lhe veio imputado na acusação.
Sucede que, teve de facto a possibilidade de esclarecer tudo o que pretendeu, arrolando inclusivamente meios de prova, que foram produzidos em fase de instrução e julgamento. Isto significa que o arguido pôde dar plena exequibilidade ao seu direito de defesa.
Não estamos de facto perante uma situação em que a improcedência da dita nulidade afetou/comprimiu irremediavelmente os direitos de defesa do arguido.
Como tal, atenta a natureza da nulidade aqui em causa, consideramos ser constitucionalmente aceitável que a decisão do Mmo. Juiz de instrução que julgou improcedente a nulidade invocada pelo arguido não seja sindicável por nenhuma outra instância.
No mesmo sentido Ac. RP. datado de 23.11.2022 in dgsi www.pt.
Por todo o exposto, improcede, nesta parte, o recurso.

Em face do exposto improcede o conhecimento da invocada nulidade.

(…)
III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA nos segmentos relativos à impugnação da matéria de facto, com exceção do ponto 6º alterado nos termos supra expostos, embora sem qualquer relevância jurídica relativamente ao desfecho e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se em 5 UC a taxa de justiça devida (arts. 513.º, n.ºs 1 e 3, do CPPenal e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa).

Sumário da responsabilidade do relator.
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Porto, 25 de Janeiro de 2023
(Texto elaborado e integralmente revisto pelo relator, sendo as assinaturas autógrafas substituídas pelas electrónicas apostas no topo esquerdo da primeira página)
Paulo Costa
Nuno Pires Salpico
Paula Natércia Rocha
______________
[1] É o que resulta do disposto nos arts. 412.º e 417.º do CPPenal. Neste sentido, entre muitos outros, acórdãos do STJ de 29-01-2015, Proc. n.º 91/14.7YFLSB.S1 - 5.ª Secção, e de 30-06-2016, Proc. n.º 370/13.0PEVFX.L1.S1 - 5.ª Secção.