Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6637/13.0TBMAI-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOSÉ MANUEL DE ARAÚJO BARROS
Descritores: CADUCIDADE
PRESCRIÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
CUMPRIMENTO DEFEITUOSO
Nº do Documento: RP201409116637/13.0TBMAI-A.P1
Data do Acordão: 09/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Deve ser conhecida a excepção da caducidade, estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, não obstante a parte que a deduziu a tenha erroneamente classificado como prescrição.
II - O prazo de caducidade preconizado no artigo 917º do Código Civil é aplicável, por interpretação extensiva, a todas as acções em que são formulados pedidos com fundamento em vícios da coisa vendida, maxime à que vise a responsabilização do vendedor pelos danos conexos com o interesse contratual positivo do comprador decorrentes do cumprimento defeituoso da obrigação (artigos 798º e 799º do mesmo código).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: 2ª SECÇÃO CÍVEL – Processo nº 6637/13.0TBMAI-A.P1
Tribunal Judicial da Maia – 4º Juízo Cível

SUMÁRIO (artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
I - Deve ser conhecida a excepção da caducidade, estabelecida em matéria não excluída da disponibilidade das partes, não obstante a parte que a deduziu a tenha erroneamente classificado como prescrição
II - O prazo de caducidade preconizado no artigo 917º do Código Civil é aplicável, por interpretação extensiva, a todas as acções em que são formulados pedidos com fundamento em vícios da coisa vendida, maxime à que vise a responsabilização do vendedor pelos danos conexos com o interesse contratual positivo do comprador decorrentes do cumprimento defeituoso da obrigação (artigos 798º e 799º do mesmo código)

Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto
I
RELATÓRIO
B…, LDA, intentou a presente acção declarativa contra C…, SA, pedindo a condenação desta a pagar à autora as quantias de 77.867,00 €, respeitante a indemnização por danos emergentes de cumprimento defeituoso de contrato, e de 50.370,00 €, relativa a indemnização por lucros cessantes decorrentes desse cumprimento defeituoso, acrescidas dos juros legais de mora vencidos, no montante de 6.205,16 €, bem como dos que se vencerem desde a propositura da acção até efectivo e integral pagamento.
Fundamentou o seu pedido, em súmula, em venda que a ré lhe efectuou de farinha sem as condições acordadas no contrato, já que se encontrava imprópria para consumo humano.
Regularmente citada, apresentou-se a ré a contestar, excepcionando a prescrição e, sem prescindir, impugnando parte dos factos aduzidos na petição, concluindo pela improcedência do pedido.
Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho em que se saneou o processo, julgando-se improcedente a excepção de prescrição invocada pela ré na sua contestação, identificando-se o objecto do litígio e enunciando-se os temas de prova.
Inconformada, veio a ré interpor recurso da decisão que julgou improcedente a excepção, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente e em separado, com efeito meramente devolutivo.
A recorrente apresenta as seguintes conclusões:
1 – A questão em apreço no presente recurso consiste em apurar se perante uma situação de venda de coisa defeituosa a recorrida estava obrigada a respeitar o prazo de 6 meses a contar da denúncia do defeito para interpor acção judicial indemnizatória contra a recorrente ou se beneficia do prazo de prescrição ordinário de 20 anos;
2 – Como é reconhecido, e bem, pela sentença sob recurso e por um dos acórdãos na mesma invocados, as relações comerciais não se compadecem com prazos longos, pelo que consideramos verdadeiramente incongruente que se exija prazos curtos para a denúncia e se aceite o longuíssimo prazo ordinário de prescrição para a reclamação de indemnização pelo interesse contratual positivo;
3 – Salvo o devido respeito, cremos ser mais consistente e fundamentada a jurisprudência e doutrina maioritária que defendem o prazo de caducidade de seis meses para qualquer reclamação originada por cumprimento defeituoso, o qual se impõe por razões de bom senso e, essencialmente, de unidade do sistema jurídico;
4. A presente acção não foi proposta no prazo de 6 meses após a denúncia, o que implica a caducidade do direito aqui reclamado pela recorrida.
A recorrida apresentou as respectivas alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
II
FUNDAMENTAÇÃO
1. Uma nota de sequência, para refutar o, pela recorrida suscitado, aparente óbice ao conhecimento da questão versada no recurso.
Na verdade, refere esta que, tendo a ré-recorrente excepcionado o decurso do prazo de prescrição, só em via de recurso se apresentando a falar de caducidade, atento o princípio do dispositivo, apenas se poderia conhecer da prescrição, que não da caducidade. Sendo certo que esta, como previsto no nº 1 do artigo 333º do Código Civil, só pode ser apreciada oficiosamente se estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes. Não sendo o caso.
Não lhe poderemos dar razão.
Desde logo se dirá que não é inteiramente verdade que a ré não se tenha na contestação referido à caducidade. Não obstante na sua alegação essencial se reporte à prescrição, quer no intróito (artigo 1º da contestação) quer nas conclusões (artigos 17º e 18º), não deixa de aludir também à caducidade, no artigo 8º dessa peça processual.
Mas o que quanto a nós releva é que toda a sua argumentação, nomeadamente quando transcreve o artigo 917º do Código Civil, se dirige ao que nos termos da lei consubstancia a excepção de caducidade prevista naquele preceito. O que foi perfeitamente entendido tanto pela autora como pela senhora juiz a quo. Pelo que é de todo irrelevante que, empregando terminologia jurídica errada, a tenha caracterizado como prescrição.
Nessa linha, e tendo em atenção o disposto no artigo 236º do Código Civil, refere o Prof. Vaz Serra, in RLJ, Ano 103º, a págs 286, que “parece que também no nosso direito a interpretação das declarações de vontade, a fazer nos termos do artigo 236º, nº 1, do Código Civil, é uma questão de direito, pois não se trata de determinar o que o declarante de facto quis, mas qual o sentido que juridicamente deve ser atribuído à declaração”. Acrescentado, a fls 287 – “mostra isto que a interpretação das declarações negociais não se dirige (salvo no caso do nº 2 do artigo 236º) a fixar um simples facto - o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração - mas a fixar o sentido jurídico, normativo, da declaração”.
Embora integradas em problemática diversa - o da possibilidade de conhecimento de certas questões em recurso de revista -, as precedentes afirmações são esclarecedoras para a abordagem do problema ora em análise. Permitindo-nos pôr no seu devido lugar a classificação que a ré dá à sua atitude processual.
Na senda do atrás transcrito, se bem que num âmbito meramente substantivo, o sumário do Acórdão da Relação do Porto de 2.11.70, in BMJ nº 201, pág. 184: “I - No sector obrigacional importa, como princípio, acima de tudo, surpreender as regras por que as partes quiseram regulamentar os seus interesses; (...) III - Tal qualificação é questão de direito, embora o nomen juris que as partes deram à contratação seja elemento a ter em conta na prévia operação interpretativa da vontade real”. Ainda com interesse e no mesmo sentido, ver acórdãos do STJ de 3.5.84, in BMJ nº 337, pág. 343, e da Relação do Porto de 1.4.82, in CJ, Tomo II, pág. 282.
É, assim, irrelevante que a ré tenha classificado a excepção por si deduzida como prescrição. Efectivamente, como já concluímos, tal classificação não vincula o juiz, o qual deverá livre e correctamente caracterizar juridicamente a mesma.
2. Questiona-se a aplicabilidade do prazo de caducidade de seis meses prevista no artigo 917º do Código Civil (todos os artigos que seguidamente se nomeiam são deste código) à presente acção, em que se peticiona a responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente de cumprimento defeituoso do contrato, conexo com vícios da coisa vendida.
O regime legal da venda de coisas defeituosas consta dos artigos 913º a 922º. Desde logo, no nº 1 do artigo 913º, se mandando aplicar com as devidas adaptações o que se prescreve na secção relativa aos bens onerados (artigos 905º a 912º), em tudo quanto seja modificado naqueles específicos preceitos.
Assim, por vícios da coisa vendida, pode o comprador pedir:
- anulação do contrato, por erro ou dolo (verificados os de um ou outro previstos nos artigos 251º ou 254º), nos termos do artigo 905º;
- indemnização pelo interesse contratual negativo, traduzido no prejuízo que o comprador sofreu pelo facto de ter celebrado o contrato (danos emergentes e lucro cessante, em caso de dolo, e só aqueles, em caso de simples erro não culposo – artigos 908º, 909º e 915º);
- redução do preço, quando as circunstâncias do contrato mostrarem que, sem erro ou dolo, o comprador teria igualmente adquirido os bens, mas por um preço inferior, nos termos do artigo 911º (cumulável com a indemnização - nº 1 deste preceito, in fine);
- reparação da coisa ou, se for necessário e esta tiver natureza fungível, a sua substituição, no caso de dolo ou de ignorância culposa do vendedor do vício ou da falta de qualidade da coisa (artigo 914º, 1ª parte), ou, independentemente de culpa ou de erro do vendedor, se este estiver obrigado a garantir o bom funcionamento da coisa vendida, quer por convenção das partes, quer por força dos usos (artigo 921º, nº 1).
A concessão de tais direitos ao comprador de coisa defeituosa não afasta porém a faculdade que genericamente assiste ao credor (in casu, o comprador) de intentar acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente de cumprimento defeituoso da obrigação, nos termos dos artigos 798º e 799º.
Como refere Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas (Conformidade e Segurança), Almedina, 5ª Edição, pág. 78, “o comprador pode escolher e exercer autonomamente a acção de responsabilidade civil pelo interesse contratual positivo decorrente do cumprimento defeituoso ou inexacto presumidamente imputável ao devedor (artigos 798º e 799º, artigo 801º, nº 1) sem fazer valer outros remédios, sem pedir a resolução do contrato ou a redução do preço nem a reparação ou substituição da coisa, portanto”.
Quanto ao prazo de caducidade, prossegue este autor referindo que “esta acção, em que os prejuízos indemnizáveis tenham origem no vício da coisa, não pode deixar de obedecer aos prazos breves, previstos especialmente para venda de coisas defeituosas”. Explicitando que “é de aplicar o prazo curto de caducidade previsto no artigo 917º à acção de indemnização fundada na violação contratual positiva, porque e só na medida em que o dano esteja em conexão com o vício da coisa e dele resulte, a fim de se não tornar ilusório e sem significado prático aquele prazo abreviado de caduciade especialmente previsto pelo legislador – afinal, a causa petendi é a mesma: o defeito da coisa”. Concluindo, mais adiante, que “já em cumprimento defeituoso não abrangido pelo artigo 913º, vale dizer, quando a violação culposa de deveres do devedor não se refira a vício intrínseco ou orgânico da coisa, a responsabilidade contratual estará sujeita ao prazo ordinário da prescrição”.
Aquele entendimento, de que o prazo do artigo 917º comporta interpretação extensiva a todas as acções, que não só à acção de anulação, é por esse autor justificado, ob. cit., a págs. 80 e sgs:
“Justifica-se a extensão do art. 917º, que refere apenas a acção de anulação, às acções dos demais direito referidos, porque e na medida em que através delas se fazem valer pretensões no quadro da garantia e à garantia ligadas; porque e na medida em que através delas se realize ou materialize a mesma garantia pelos vícios; numa palavra, porque e na medida em que são recursos contratuais por vícios da coisa.
(…)
Na verdade, seria incongruente não sujeitar todas as acções referidas à especificidade do prazo breve para agir que caracteriza a chamada garantia edilícia desde a sua origem, pois, de contrário, permitir-se-ia ao comprador obter resultados (referidos aos vícios da coisa) equivalentes, iludindo os rígidos e abreviados termos de denúncia e caducidade. Ora, em todas as acções de exercício de faculdades decorrentes da garantia, qualquer que seja a escolhida, vale a razão de ser do prazo breve (cfr., também, o nº 2 do artigo 436): evitar no interesse do vendedor, do comércio jurídico, com vendas sucessivas, e da correlativa paz social a pendência por período dilatado de um estado de incerteza sobre o destino do contrato ou cadeia negocial e as dificuldades de prova (e contraprova) dos vícios anteriores ou contemporâneos à entrega da coisa que acabariam por emergir se os prazos fossem longos, designadamente se fosse de aplicar o prazo geral da prescrição (art. 309º); transcurso prazo breve razoável, há-de proteger-se a legítima confiança de vendedores (e revendedores) em que os negócios sejam definitivamente válidos e cumpridos e não entorpeçam o giro comercial.
Vejam-se, neste sentido, os lugares paralelos do art. 921º nº 4, e dos art. 1220º e 1224º, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 2/97, de 4 de Dezembro de 1996 (Diário da República, de 30/01/97), que uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: A acção destinada a exigir a reparação de defeitos de coisa imóvel vendida no regime anterior ao Decreto-lei nº 267/94, de 25 de Outubro, estava sujeita à caducidade nos termos previstos no artigo 917º do Código Civil”.
Pedro Romano Martinez, in Cumprimento Defeituoso – Em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Almedina, pág. 413, trilha idêntico caminho:
“Apesar do artigo 917º ser omisso, tendo em conta a unidade do sistema jurídico no que respeita ao contrato de compra e venda, por analogia com o disposto no artigo 1224º, dever-se-á entender que o prazo de seis meses é válido, não só para interpor o pedido judicial de anulação do contrato como também para intentar qualquer outra pretensão baseada no cumprimento defeituoso. De facto, não se compreenderia que o legislador só tivesse estabelecido um prazo para a anulação do contrato, deixando os outros pedidos sujeitos à prescrição geral de vinte anos (artigo 309º); por outro lado, tendo a lei estatuído que, em caso de garantia de bom funcionamento, todas as acções derivadas do cumprimento defeituoso caducam em seis meses (artigo 921º, nº 4), não se entenderia muito bem porque é que, na falta de tal garantia, parte dessas acções prescreveriam no prazo de vinte anos; além disso, contando-se o prazo de seis meses a partir da denúncia, e sendo esta necessária em relação a todos os defeitos (artigo 916º), não parece sustentável que se distingam os prazos para o pedido judicial; por último, se o artigo 917º não fosse aplicável, por interpretação extensiva, a todos os pedidos derivados do defeito da prestação, estava criado um caminho para iludir os prazos curtos”.
Nesse sentido, de que o artigo 917º do mesmo código deve ser interpretado em ordem a abranger todas as acções emergentes de cumprimento defeituoso, se vem também pronunciando maioritariamente a jurisprudência, nomeadamente nos acórdãos do STJ 6.11.2007 (Azevedo Ramos), de 2.11.2010 (Alves Velho), de 16.03.2011 (João Bernardo) e de 24.05.2012 (Serra Batista), todos in www.dgsi.pt.
Nos acórdãos da Relação de Guimarães de 2.10.2008 (Rosa Tching) e desta Relação do Porto de 28.09.2010 e de 16.12.2009 (Ana Lucinda Cabral), in www.dgsi.pt, entende-se restringir parcialmente tal extensão, que, na vertente ressarcitória, abarcaria tão só a indemnização do interesse contratual negativo, compreendendo tanto o dano emergente (o prejuízo que o credor teve com o facto de se celebrar o contrato, ou seja, o prejuízo que ele não sofreria, se o contrato não tivesse sido celebrado) como o lucro cessante (o proveito que o credor teria obtido, se não fora o contrato que efectuou), mas já não a indemnização do interesse contratual positivo, ou seja, a relativa aos danos sofridos em consequência do cumprimento defeituoso dos mencionados contratos de compra e venda, quanto a este direito valendo o prazo ordinário de prescrição de vinte anos a que alude o artigo 309°. Foi essa a orientação seguida pela senhora juiz a quo, na sentença recorrida.
Não sufragamos tal entendimento.
Na verdade, como já supra se aduziu, o estabelecimento daquele prazo curto do artigo 917º (bem como dos previstos nos artigos 916º e 921º) deveu-se ao interesse da paz social, conexo com o não prolongar demasiadamente o estado de incerteza sobre o destino do contrato, bem como ao de evitar dificuldades de prova (e contraprova) que, com o decurso do tempo, se vão intensificando, não compagináveis com o prazo geral de prescrição de vinte anos. Interesses que nada se alteram no que concerne à acção que vise o ressarcimento do interesse contratual positivo.
Acresce que, como bem se aduz no acórdão do STJ de 7.05.2009 (Pires da Rosa), in www.dgsi.pt, realçando o valor da coerência do sistema, “ainda que só a indemnização por violação do interesse contratual positivo seja pedida, ela não deixa de ter a sua origem na venda defeituosa, e não deixa de ser, em caso algum, o sucedâneo com o qual se pretende assegurar a prestação pontual que o defeito não deixou cumprir”. Acrescentando que “daí que a acção respectiva não possa deixar de ser tratada no mesmo âmbito temporal que a acção definida para o essencial do remédio do defeito: ou a acção de anulação, ou a redução do preço, ou a reparação e substituição da coisa, ou a resolução”. Concluindo que “o prazo de caducidade do artigo 917º do Código Civil se aplica, por isso, por interpretação extensiva, a todas as acções propostas pelo credor vítima do cumprimento defeituoso de um contrato de compra e venda, incluindo as de simples indemnização”.
III
DISPOSITIVO
Acorda-se em, na procedência do recurso, julgar validamente excepcionada a caducidade do direito, que se verifica, consequentemente se absolvendo a ré do pedido.
Custas pela recorrida - artigo 527º do Código de Processo Civil.

Notifique.

Porto, 11 de Setembro de 2014
José Manuel de Araújo Barros
Pedro Martins
Judite Pires