Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
637/20.1T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: DEOLINDA VARÃO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
JOGO ON LINE
RESPONSABILIDADE CIVIL
Nº do Documento: RP20220210637/20.1T8PRT.P1
Data do Acordão: 02/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Se, face ao teor da petição inicial, o facto ilícito gerador de responsabilidade civil, que consiste na utilização pela ré, sem autorização, da imagem e nome do autor na criação de um jogo eletrónico, ocorre nos Estados Unidos da América, os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para o conhecimento do mérito da causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 637/20.1T8PRT.P1 – 3ª Secção (Apelação) - 1388
Acção de Processo Comum – Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível do Porto – Juiz 5


Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
AA, de nacionalidade ..., residente em Rua..., ... ..., Portugal,
instaurou acção declarativa, de condenação, sob a forma de processo comum, contra
E...., com sede em 209, ..., ..., ..., ..., EUA.
Pediu que a ré fosse condenada a pagar-lhe:
- A título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de € 84.000,00 de capital, acrescida dos juros vencidos, no montante de € 37.892,58, e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal;
- Montante nunca inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos, no montante de € 1.826,30, dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal.
Como fundamento, alegou, em síntese:
- A ré, através do desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais, é uma empresa líder global em entretenimento digital interactivo, contando com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a E...1, com sede na Suíça, a qual e assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão;
- O autor é um jogador de futebol português, que, actualmente, joga na Roménia, ao serviço do C...;
- O autor mantém já uma longa carreira como jogador de futebol profissional, sobejamente conhecido no meio do futebol, tendo exercido a sua profissão, maioritariamente, em clubes portugueses e estrangeiros, tendo ainda sido internacional pelas Selecções Portuguesas de Futebol Sub 17, Sub 18, Sub 19, Sub 20 e Sub 21, por 46 vezes;
- O autor teve conhecimento que a sua imagem, o seu nome e as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados ... (também com as designações ... ou ...), pelo menos nas edições 2011, 2012, 2014 e 2015; ..., pelo menos na edição de 2012; e ..., pelo menos nas edições de 2014 e 2015, todos propriedade da ré;
- O autor jamais concedeu autorização para ser incluído nos supra identificados jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos, nem conferiu poderes aos Clubes, para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome para tal;
- A imagem do autor é utilizada pela ré a nível global;
- A ré está a utilizar a imagem e o nome do autor, pelo menos, desde 28.09.10 (data de lançamento do jogo de vídeo ... 2011);
- Nos jogos em que aparece, a imagem do autor é individualizada.
A ré contestou, invocando, além do mais, a excepção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses.
O autor respondeu à excepção, pugnando pela sua improcedência.
Por despacho de 21.01.21, foi designado o dia 23.02.21 para a realização de audiência prévia, abrangendo todas as finalidades previstas na lei (artigo 591.º do CPC).
Por despacho de 02.02.21, foi determinado que, por força do disposto no n.º 1 do art. do 6.º-B da Lei 1-A/20, de 19.03 (na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/21, de 01.02, a audiência agendada apenas poderia ter lugar por meios telemáticos e que, até 24 horas antes da realização da audiência, os ilustres mandatários poderiam opor-se à sua realização pelo método indicado.
Por requerimento de 05.02.21, a ré veio opor-se à realização da audiência prévia pelo método indicado.
Por despacho de 10.02.21, foi desmarcada a audiência prévia agendada, sem prejuízo de as partes poderem vir informar que lograram reunir as condições logísticas para a realização da audiência prévia por meios telemáticos, ficando os autos a aguardar o impulso das partes até ao termo de vigência da al. c) do n.º 5 do artigo 6.º-B da Lei 1-A/20, determinando-se ainda que, nada sendo requerido no prazo de 10 dias após aquele termo, fosse aberta conclusão.
Em 23.02.21, foi proferida decisão que considerou ser inviável a audiência prévia, face à lei em vigor, e considerou ser adequado tratar por escrito as questões que, legalmente, podem ser tratadas imediatamente por esta via, como a excepção de incompetência internacional, já sobejamente discutida nos articulados.
Na mesma decisão, foi o tribunal julgado internacionalmente incompetente e foi a ré absolvida da instância.

O autor recorreu, formulando, em síntese, as seguintes

CONCLUSÕES
1ª – Quanto à audiência prévia, importa salientar que em 21.01.21 o
Tribunal a quo proferiu despacho a convocar a audiência prévia, com todos os fins enumerados no n.º 1 do artigo 591.º do CPC.
2ª – Em 02.02.21, profere novo despacho onde, por força do disposto no n.º 1 do artigo do 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020, de 19.03 (na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01.02), informou as partes que a audiência prévia terá lugar (na data e hora já agendadas) com recurso ao sistema de videoconferência de acesso livre Zoom, com as seguintes credenciais de acesso aí melhor identificadas.
3ª – Pelo facto de a ré não ter aceitado a realização da audiência prévia, no agendado dia 23 de Fevereiro, cfr. alínea c) do n.º 5 do citado artigo 6.º-B, veio, o Tribunal a quo, em 09.02.21, a proferir novo despacho de, que procede à desmarcação daquela diligência e na sua parte final refere ainda que: “Aguardem os autos o impulso das partes até ao termo de vigência da al. c) do n.º 5 do art. 6.º-B da Lei n.º 1-A/2020. Nada sendo requerido no prazo de 10 dias após aquele termo, abra conclusão.
4ª – Considerados os despachos preferidos e o motivo que levou à desmarcação da data, entretanto, agendada para a realização da audiência prévia, ficaram as partes – pelo menos o autor e estamos em crer, também, a ré – a aguardar a designação de nova data para a mesma.
5ª – Nunca foi demonstrado nos autos o desinteresse na realização dessa audiência prévia, por nenhuma das partes, pelo que não se pode considerar que alguma delas tenha renunciado à mesma.
6ª – Para além de que a decisão recorrida vem a ser proferida ainda antes de decorrido o prazo de pronúncia dos mandatários das partes, em cumprimento daquele despacho de fls., i.e., até 10 dias após o termo de vigência da alínea c) do n.º 5 do artigo 6.º-B da Lei n.º 1-A/20.
7ª – A prolação de uma decisão-surpresa é um vício que afecta essa mesma decisão e respeita ao seu conteúdo, pelo que o Tribunal a quo, em face dos despachos anteriores, ao não convocar novamente a audiência prévia e proferir a decisão de que se recorre, surpreendeu as partes, que esperavam pela sua marcação, cometeu uma nulidade traduzida na omissão de um acto que a lei prescreve (artigo 195.º, n.º 1, do CPC), e que acaba por se comunicar, inquinando, à sentença proferida, nulidade que expressamente se invoca.
8ª – Tal nulidade acarreta a nulidade da sentença proferida, por excesso de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 2ª parte, do CPC, i.e., o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, sem que antes tivesse levado a cabo a diligência processual a que se encontrava estritamente obrigado a designar.
9ª – A ré produziu e comercializou, fisicamente e online, milhões de jogos de vídeo contendo a imagem, nome e demais características pessoais do autor, sem o seu consentimento ou autorização e sem lhe pagar qualquer contrapartida económica e isso verifica-se, pelo menos, desde o ano de 2011, com o lançamento do jogo ... (também com as designações ... ou ...), cfr. artigo 9.º da petição inicial.
10ª – Tal conduta constituiu uma apropriação da imagem do autor, que tem um valor patrimonial, emergente do valor comercial que aquela imagem, tem no mercado.
11ª – Tal mostra-se devidamente alegado na petição inicial, designadamente, nos seus artigos 9.º, 10.º, 11.º 18.º, 67.º, 87.º, 91.º, 93.º, 98.º, 130.º, 176.º e 179.º n.º 2, onde são expressamente identificados os jogos onde aquela apropriação ocorreu e que nunca foi conferida qualquer autorização expressa, ou sequer autorização tácita, pelo autor a quem quer que fosse, para ser incluído nos supra identificados jogos electrónicos, jogos de vídeo e aplicativos.
12ª – É, pois, manifesto que o autor – ao contrário do que a decisão recorrida refere – substanciou em factos a ocorrência de um dano, e os danos causados ao autor, por acção da ré, apenas a esta podem ser imputáveis, por ela a única autora do facto danoso (cfr. artigos 562.º, 563.º, 564, n.º 1, 565.º, 566.º n.ºs 1, 2 e 3, todos do CC e ainda artigo 609.º n.º 2 do CPC).
13ª – Quanto à localização de tal dano em Portugal, os jogos propriedade da ré são comercializados, distribuídos, jogados e a sua imagem, nome e demais características são utilizadas, mundialmente, pelo que, logicamente, também no nosso país. Este é praticamente um facto notório e do conhecimento comum, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, alínea c) do CPC.
13ª – Veja-se, a título de exemplo, o alegado na parte final do artigo 14.º, 17.º, 94.º e 172.º todos da petição inicial, e ainda nos artigos 30.º a 33.º (inclusive) da resposta.
14ª – Com a petição inicial, o autor juntou aos autos vasta prova documental dessa comercialização, distribuição e exploração ilícita, da qual se destacam, naturalmente, a factura de aquisição em Portugal dos jogos ... junta como doc. 9, o doc. 12, o doc. 13, e o doc. 14, estes últimos demonstrativos da possibilidade de aquisição dos jogos da ré em território nacional.
15ª – Mais do que a venda dos jogos e o local onde a mesma ocorre – circunstância a que o Tribunal a quo atribui considerável relevância –, o que está em causa é a utilização e divulgação da imagem, nome e demais características do autor, sem o consentimento deste, pela ré nos seus jogos, bem como os avultados lucros daí decorrentes e que esta aufere exclusivamente.
16ª – Pelo que, atento o disposto no artigo 71.º, n.º 2, do CPC, em articulação com a alínea a) do artigo 62.º do mesmo Código, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a presente causa.
17ª – Tanto mais que eventuais dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede in casu.
18ª – Tal como amplamente alegado e demonstrado na petição inicial, está em causa a violação, pela ré, de direitos de personalidade do autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da CRP e artigos 70.º e 72.º do CC.
19ª – Logo, não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país, a qual teria de apreciar e decidir sobre o mérito de uma violação de direitos de personalidade de um cidadão estrangeiro, com protecção constitucional consagrada no ordenamento jurídico nacional deste mesmo cidadão, sem qualquer ligação àquele país.
20ª – Muito menos – como defende a ré – uma jurisdição jurídica complexa, em que para além da ordem jurídica nacional coexistem várias ordens jurídicas locais, como é, por exemplo, o caso dos Estados Unidos.
21ª – Nos autos é arguida pelo autor a inconstitucionalidade do artigo 38.º, n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da CRP), cfr. alegado nos artigos 70.º e seguintes da resposta.
22ª – Ora, a necessidade de efectiva tutela jurídica, ao abrigo do princípio da necessidade contido no artigo 62.º, alínea c), do CPC, também se cumpre se as circunstâncias do caso, além de revelarem forte conexão real ou pessoal com a ordem jurídica portuguesa, evidenciarem que o direito exercendo, a não se admitir que seja actuado perante os Tribunais portugueses, está ameaçado na sua praticabilidade e exercício.
23ª – O princípio da necessidade vale, assim, como salvaguarda para tais situações funcionando como alargamento ou extensão excepcional da competência internacional dos Tribunais portugueses.
24ª – Por outro lado, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.
25ª – Ora, o autor é cidadão português, tem aqui o seu domicílio e os seus familiares mais próximos, pelo que não tem qualquer nexo estreito com outro país, muito menos com os Estados Unidos da América.
26ª – Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua distribuição mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afectadas por este.
27ª – Estão os tribunais portugueses melhor posicionados para conhecer do mérito da acção.
28ª – Teria, assim, de improceder a deduzida excepção de incompetência internacional do Tribunal a quo, aduzida pela ré, por verificação dos elementos de conexão constantes das alíneas a), b) e c) do artigo 62.º do CPC.
29ª – Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 615.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, 591.º, 592.º e 593.º, n.º 1, 62.º, alíneas a), b) e c), 71.º, n.º 2 e 80.º n.º 3, todos do CPC.

A ré contra-alegou, suscitando a questão prévia da falta de conclusões e, no mais, pugnando pela improcedência do recurso.
Já após a remessa dos autos a este Tribunal, o autor juntou aos mesmos cópia das seguintes decisões judiciais, proferidas em acções idênticas à presente, nas quais os tribunais portugueses foram julgados internacionalmente competentes:
- de 11.05.21, proferida no processo 3239/20.9T8CBR, do Tribunal Judicial de Coimbra, Juízo Central Cível de Coimbra, Juiz 2.
- de 10.10.21, proferida no processo 17657/20.9T8LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível de Lisboa, Juiz 5.
Por seu turno, a ré juntou aos autos cópia das seguintes decisões judiciais, proferidas em acções idênticas à presente, nas quais os tribunais portugueses foram julgados internacionalmente incompetentes:
- de 06.09.21, proferida no processo 4167/20.3T8LRA, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Central Cível de Leiria, Juiz 2;
- de 15.09.21, proferida no processo 4157/20.6T8STS, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Cível, Juiz 2;
- de 29.09.21, proferida no processo 3853/20.2T8BRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juiz 5;
- de 15.10.21, proferida no processo 17046/20.5T8LSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, Juiz 3;
- de 12.10.21, proferida no processo 4239/20.4T8STB, do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo Central Cível de Setúbal, Juiz 1.
A ré juntou ainda aos autos cópia dos seguintes acórdãos:
- do TRC, de 26.10.21, proferido no processo 3239/20.9T8CBR-A.C1, que revogou a decisão da 1ª instância de 11.05.21, julgando os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes;
- do TRL, de 13.01.22, proferido no processo 24974/19.9T8LSB.L1, idêntico aos dos presentes autos, que também julgou os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II.
Nos termos do artigo 651.º, n.º 2 do CPC, admite-se a junção aos autos das cópias das decisões judiciais apresentadas por ambas as partes.
*
Questão prévia da falta de conclusões
Diz o artigo 639.º, n.º 1 do CPC – Diploma a que pertencem todas as normas adiante citadas sem menção de origem – que o recorrente deve apresentar a sua conclusão, na qual concluirá, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem conter as especificações previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do mesmo preceito.
Por seu turno, diz o n.º 4 do mesmo artigo 639.º que, quando as conclusões faltem, sejam deficientes, obscuras, complexas ou nelas se não tenha procedido às especificações a que alude o n.º 2, o relator deve convidar o recorrente a apresentá-las, completá-las, esclarecê-las ou sintetizá-las, sob pena de não se conhecer do recurso, na parte afectada.
Já a falta de conclusões constitui fundamento de rejeição do recurso (artigo 641.º, n.º 2, al. b)).

No caso, reconhece-se que as conclusões não são um modelo de concisão, mas existem e cumprem minimamente os requisitos do citado n.º 2 do artigo 639.º, pelo que não ocorre falta nem deficiência de conclusões.
*
III
Os elementos com interesse para a decisão do recurso são os que constam do ponto I.
*
IV.
As questões a decidir – delimitadas pelas conclusões da alegação da apelante (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3 do CPC) – são as seguintes:
- Inadmissibilidade de dispensa da audiência prévia;
- Violação do princípio do contraditório;
- Competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer da presente acção.

[As duas primeiras questões serão analisadas em simultâneo, para facilitar a sistematização do acórdão]

1. Dispensa da audiência prévia e violação do contraditório
Segundo o artigo 591.º, n.º 1, concluídas as diligências preceituadas no n.º 2 do artigo anterior [despacho pré-saneador], se a elas houver lugar, é convocada audiência prévia, a realizar num dos 30 dias subsequentes, destinada a algum ou alguns dos fins enumerados nas diversas alíneas do preceito.
Um desses fins é o de facultar às partes a discussão de facto e de direito, nos casos em que ao juiz cumpra conhecer excepções dilatórias (1ª parte da al. b).
Diz o artigo 593.º, n.º 1 que, nas acções que hajam de prosseguir, o juiz pode dispensar a realização de audiência prévia quando esta se destine apenas aos fins indicados nas alíneas d), e) e f) do n.º 1 do artigo 591.º.
Assim, no caso, pretendendo o M.º Juiz a quo conhecer da excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, não poderia ter dispensado a audiência prévia.
A dispensa de audiência prévia nos casos em que a lei não prevê essa dispensa equivale à prática de um acto que a lei não permite e que pode influir no exame e decisão da causa; se assim for, constitui pois uma nulidade processual atípica ou inominada, aplicando-se-lhe o regime do artigo 195.º.
Não sendo de conhecimento oficioso, tem de ser arguida pelos interessados, no prazo de 10 dias a contar do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificado para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência; e tem de ser arguida perante o tribunal que a praticou. É o que resulta do regime instituído nos artigos 196.º, 2ª parte, 197.º, n.º 1 e 199.º, n.ºs 1 e 3 (este, a contrario).
No entanto, tem sido defendido, doutrinal e jurisprudencialmente, que sempre que a violação das normas processuais esteja coberta por decisão judicial que ordenou, sancionou ou autorizou o acto ou omissão (mesmo que de modo implícito), pode reagir-se contra tal violação através de recurso da decisão[1].
É o que sucede no caso dos autos em que a dispensa da audiência prévia foi sancionada pela decisão recorrida, e, por isso, pode ser invocada e conhecida no presente recurso.
Por último, a verificação da nulidade processual importa a anulação dos termos subsequentes do processo, da forma que está prevista no n.º 2 do citado artigo 195.º.

A dispensa de audiência prévia, nos casos em que a lei não a permite, só tem influência no exame e decisão da causa, constituindo, consequentemente, nulidade, se tiver originado a violação do princípio do contraditório.

Um dos princípios fundamentais do processo civil é o princípio do contraditório, consagrado em diversas disposições do CPC e fundamentalmente no artigo 3.º.
Segundo Manuel de Andrade[2], o processo reveste a forma de um debate ou discussão entre as partes (audiatur et altera pars). Cada uma das partes é chamada a deduzir as suas razões (de facto e de direito), a oferecer as suas provas, a controlar as provas do adversário e a discretear sobre o valor e o resultado de umas e outras.
Lebre de Freitas[3]refere que, na sua concepção tradicional, o princípio do contraditório tinha como escopo principal a defesa, no sentido negativo de oposição ou resistência à actuação alheia. Àquela concepção substitui-se hoje uma noção mais lata de contrariedade, entendida como garantia de participação efectiva das partes no desenvolvimento de todo o litígio, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influírem em todos os elementos que se encontrem em ligação com todo o objecto da causa. O escopo principal do princípio do contraditório passou a ser a influência, no sentido positivo do direito de incidir activamente no desenvolvimento e no êxito do processo.
A reforma processual de 95/96 consagrou aquela noção mais ampla de contraditório.
Diz o artigo 3.º, n.º 3 do que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Conforme se lê no Preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12, prescreve-se, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.
Como salienta Abrantes Geraldes[4], a alteração do artigo 3.º e, principalmente, o aditamento do nº. 3 teve em vista permitir que a contraditoriedade não seja uma mera referência programática e constitua, efectivamente, uma via tendente a melhor satisfazer os interesses que gravitam na órbita dos tribunais: a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos.
O princípio do contraditório está posto ao serviço do princípio da igualdade das partes, consagrado no artigo 4.º: o tribunal deve assegurar, ao longo de todo o processo, um estatuto de igualdade substancial das partes, designadamente no exercício de faculdades, no uso de meios de defesa e na aplicação de cominações ou de sanções processuais.
No plano da alegação, o princípio do contraditório exige que os factos alegados por uma das partes (como causa de pedir ou fundamento de excepção) possam ser pela outra contraditados (por impugnação ou por excepção), sendo assim concedida a ambas as partes, em igualdade, a faculdade de sobre elas se pronunciarem.
No que respeita às questões de direito, o princípio do contraditório exige que, antes da sentença, seja facultada às partes a discussão efectiva de todos os fundamentos de direito em que a decisão se baseie.
Tratando-se de um fundamento de direito na disponibilidade exclusiva das partes, a possibilidade de discussão resulta naturalmente da sua invocação necessária pelo interessado e do direito de resposta da parte contrária.
A proibição da decisão surpresa a que se refere o Preâmbulo do DL 329-A/95 tem sobretudo interesse para as questões de que o tribunal pode conhecer oficiosamente, quer sejam de direito material ou de direito processual.
Lebre de Freitas[5] defende que se nenhuma das partes tiver suscitado aquelas questões, deve o juiz que nelas entenda dever basear a sua decisão – seja mediante o conhecimento prévio do mérito da causa, seja no plano processual – convidar previamente ambas as partes a sobre elas tomarem posição, só estando dispensado de o fazer em casos de manifesta desnecessidade (artigo 3.º, n.º 3).
Segundo Abílio Neto[6], o efeito surpresa é inadmissível porque apanha a parte desprevenida, atentando contra o dever de lealdade que deve informar a actividade judiciária.
Porém, a decisão-surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, do Tribunal, a quem tais julgamentos continuam a pertencer em exclusividade. Não se podendo falar de surpresa quando os mesmos devam ser conhecidos como viáveis, como possíveis[7].
Como afirma Lopes do Rego[8], “(…) a audição excepcional e complementar das partes, precedendo a decisão do pleito e realizada fora dos momentos processuais normalmente idóneos para produzir alegações de direito, só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela”.
Acrescenta o mesmo autor[9]que “(…) não deverá “banalizar-se” a audição atípica e complementar das partes, ao abrigo do preceito ora em análise, de modo a entender-se que toda e qualquer mutação do estrito enquadramento legal que as partes deram às suas pretensões passa necessariamente pela actuação do preceituado no art. 3º, nº 3”.
Em consonância com o acima exposto, a jurisprudência tem considerado que há decisão-surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora[10].
Entendendo-se mesmo que, nas situações em que a lei impõe a prolação de despacho liminar, a imposição de um despacho liminar prévio àquele constitui uma decisão em si mesmo contraditória[11].
Acresce que, nos termos do citado artigo 3.º, n.º 3, a audição das partes pode ser dispensada em casos de manifesta desnecessidade (conceito indeterminado que deve ser encarado sob uma perspectiva objectiva) e sempre que as partes não possam, objectivamente e de boa-fé (cfr. artigo 8.º), alegar o desconhecimento de questões de direito ou de facto a decidir ou as respectivas consequências[12].
A violação do princípio do contraditório resulta da omissão de um acto que a lei impõe (a audição da parte contrária em determinadas situações) e que pode influir no exame e decisão da causa; neste caso, constitui também uma nulidade processual atípica ou inominada, aplicando-se-lhe o regime do artigo 195.º, dando-se aqui como reproduzido o que acima escrevemos acerca deste regime.

No caso, a decisão recorrida conheceu apenas da excepção de incompetência absoluta do tribunal (incompetência internacional).
Essa excepção havia sido invocada pela ré na contestação e foi respondida pelo autor no articulado de resposta.
O contraditório foi, pois, assegurado, tendo a questão da incompetência internacional sido apreciada e decidida em função dos fundamentos de alegação e defesa apresentados pelas partes, com apreciação e resposta efectiva aos da defesa, apresentados pelo autor, que assim teve a sua oportunidade de exercer influência na decisão.
A decisão recorrida não é, pois, uma decisão surpresa, ou seja, não é uma decisão com a qual o autor não pudesse deixar de contar.
Tendo sido observado o princípio do contraditório no que respeita à única questão que foi decidida na decisão recorrida, a dispensa de audiência prévia acabou por não ter influência no exame e decisão da causa e, nessa medida, não gerou nulidade.

Improcedem, assim, as conclusões do autor, nesta parte.

2. Competência internacional dos tribunais portugueses
Diz o artigo 59.º que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.
Para a determinação da competência internacional, só se aplica o critério expresso no artigo 59.º se não existirem tratados, convenções, regulamentos comunitários ou leis especiais ratificadas ou aprovadas, que vinculem internacionalmente os tribunais portugueses, porque estes prevalecem sobre os restantes critérios.
No caso dos autos, não se perspectiva a aplicabilidade de qualquer instrumento internacional de regulação do foro aplicável, pelo que é aplicável o sobredito critério.
O caso dos autos também não se integra em nenhuma das regras de competência exclusiva dos tribunais portugueses previstas nas diversas alíneas do artigo 63.º, nem foi invocada a existência de qualquer pacto privativo e atributivo de jurisdição, nos termos que estão previstos no artigo 94.º.
A atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses para dirimir a presente acção terá, pois, de ser aferida pelo disposto no artigo 62.º.
Segundo aquele preceito, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:
a) Quando a acção possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
Os critérios aferidores da competência internacional dos tribunais portugueses previsto no citado preceito são, pois: o da coincidência (al. a); o da causalidade (al. b) e o da necessidade (al. c).
Esses critérios são autónomos. Cada um deles funciona com completa independência relativamente aos outros, sendo de per si bastante para suscitar a competência dos tribunais portugueses[13].
O autor alega que, no caso, se verificam todos os três referidos factores de conexão.
Vejamos então.

Quanto ao factor da al. a) (critério da coincidência)
A competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção[14].
O autor formulou um pedido de indemnização por danos decorrentes da utilização indevida pela ré da sua imagem e do seu nome, pelo que a causa de pedir consiste na responsabilidade civil por facto ilícito.
Sendo assim, a acção deve ser proposta no tribunal correspondente ao lugar onde o facto ocorreu (artigo 71.º, n.º 2).
A referida norma atribuiu relevância ao facto ilícito, enquanto pressuposto da responsabilidade civil extracontratual prevista no art. 483.º do CC, em desfavor do dano a que não atribuiu qualquer importância[15].
Ora, o facto ilícito que o autor imputa à ré é a produção de jogos de vídeo, com a utilização da sua imagem, sem consentimento nem autorização, produção essa que, de acordo com a própria alegação do autor, ocorreu nos EUA.
Invocou o autor a aplicação das normas do artigo 80.º, n.º 3.
Diz aquele preceito que, se o réu tiver o domicílio em país estrangeiro, é demandado no tribunal do lugar onde se encontrar; não se encontrando em território português, é demandado no tribunal do domicílio do autor, e, quando este domicílio for em país estrangeiro, é competente para a causa o tribunal de Lisboa.
Como a sua epígrafe refere, o artigo 80.º estabelece a regra geral em matéria de competência em razão do território, a qual tem de ceder perante a regra especial do n.º 2 do artigo 71.º, acima referida.
Não se verifica, pois, no caso, o factor de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previsto na al. a) do artigo 63.º.

Quanto ao factor da al. b) (critério da causalidade)
Para concluir pela verificação do factor previsto na al. b) do artigo 63.º, sustentou o autor que os jogos fabricados pela ré são vendidos em Portugal e que o dano sofrido pelo autor ocorreu em Portugal.

A) Quanto ao primeiro ponto, concordamos com o que se escreveu na decisão recorrida:
O local de venda dos videojogos produzidos pela ré não é, em si mesmo, um elemento de conexão relevante, dado que não se trata de um facto essencial constitutivo da causa de pedir. O seja, a circunstância de um produto da ré ter constituído o objeto imediato de um negócio jurídico concluído em Portugal – por exemplo, aqui um videojogo adquirido em Itália foi ofertado a um adolescente ou foi revendido por um comerciante a um cliente – não integra o núcleo de factos relevantes – o mesmo se diga de um simples facto jurídico, como ter sido o videojogo utilizado em território nacional.
Acresce que, por um lado, não é este o facto ilícito imputado à ré – sendo este, recorde-se, a produção de um videojogo com a imagem do autor, com fins (e resultados) lucrativos. Na petição inicial não se diz que é a ré quem vende os jogos que produz em Portugal (isto é, que é parte em negócios jurídicos concluídos em Portugal). Por outro lado, tal facto (praticado por outras sociedades) não se confunde com o dano alegadamente sofrido pelo autor (…).”,
Além disso, como resulta dos elementos que contam do ponto I, o próprio autor alegou que a exploração, distribuição e venda de jogos electrónicos, conteúdos e serviços online para consolas de jogos, telemóveis e computadores, levada a cabo pela ré, se restringe-se exclusivamente aos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, não procedendo à comercialização dos jogos na Europa. Na alegação do autor, são outras sociedades, designadamente a E...1, com sede na Suíça, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
Ou seja, na alegação do próprio autor, o facto ilícito imputado à ré ocorreu em território estrangeiro, pelo que, neste ponto, não se verifica o factor de atribuição de competência internacional referido na al. b) do artigo 63.º.

B) Quanto ao segundo ponto, ao contrário do que o autor refere nas conclusões de recurso, na petição inicial não foi alegada a ocorrência de quaisquer danos em território nacional.
Ao logo daquele articulado, maxime nos artigos referidos a que o autor faz referência nas conclusões, limitou-se o autor a invocar de forma genérica a violação do seu direito à imagem.
E a conclusão no sentido da verificação dos danos em território nacional não se pode extrair sem mais da circunstância de os jogos produzidos pela ré poderem ser aqui visionados.
Como se escreveu no Acórdão do TC de 26.10.21[16] (proferido em acção idêntica à presente, instaurada por diferente autor):
(…)
É igualmente certo que baseando-se o pedido do A. na responsabilidade por factos ilícitos, são pressupostos cumulativos desta responsabilidade, enquanto fonte geradora da obrigação de indemnizar: o facto; a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios); o nexo de imputação do facto ao lesante; o dano e finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Nesta medida, o dano integra igualmente a causa de pedir, quando invocada está a responsabilidade civil decorrente de facto ilícito, pelo que, verificando-se em território nacional os danos (ou pelo menos parte significativa e relevante destes danos, ter-se-ia por atribuída a competência internacional aos tribunais portugueses, com fundamento nesta alínea b).
Assim sendo, o facto ilícito imputado à R. no que se reporta à utilização e exploração alegadamente abusiva do seu nome e imagem, verifica-se aquando da criação deste jogo, contendo o nome, outras características pessoais e profissionais e a imagem do jogador, alegadamente sem a sua autorização e com a sua posterior divulgação.
O dano, conforme considera o tribunal a quo, consiste “na própria utilização não autorizada e indevida da imagem” e verificam-se pela própria criação dos jogos contendo o nome e imagem do A., alegadamente sem o seu consentimento. Nessa medida a maior ou menor divulgação ou comercialização destes jogos, por quaisquer meios e envolvendo ou não ganhos económicos para a R. (e para as diversas empresas que comercializam estes jogos) apenas potenciam ou agravam danos que para o A. resultavam já da utilização da sua imagem nestes jogos, mas não constituem em si um dano autónomo.
A criação e divulgação destes jogos é feita pela R. nos EUA, sendo a partir deste território que serão comercializados por outras empresas, subsidiárias ou não da R., para o resto do mundo, incluindo para Portugal. Mas se a divulgação destes jogos em todo o mundo, será relevante para efeitos de quantificação dos danos e, se esta comercialização e divulgação é feita a nível mundial, não se pode afirmar que se produz em território nacional o dano ou parte relevante dos danos.
Há que não esquecer que o facto constitutivo essencial desta causa se reporta à produção e divulgação destes jogos utilizando a imagem e o nome do A., sem sua autorização e que esta produção e divulgação localizam-se em solo norte-americano, independentemente de o poderem ser posteriormente para todo o mundo, mediante acordos feitos com a proprietária dos jogos, suas subsidiárias, ou por qualquer outro meio (seja por compras online, pela sua utilização posterior em jogos e torneios).
Dito de outra forma: não é o local, ou um dos locais onde essa divulgação ocorre que confere a competência internacional aos tribunais portugueses, por não se poder afirmar que o dano ocorreu em Portugal. Não é o local, ou um dos locais onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o referido jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo A..
Não se vê assim que os tribunais nacionais sejam os internacionalmente competentes para conhecimento desta ação, por se não poder afirmar que se verificaram em território nacional os danos, ou sequer a maioria dos danos, causados pela invocada atuação ilícita.
(…).”[17].

Não se verifica, pois, também quanto a este ponto, o factor de atribuição da competência internacional previsto na al. b) do artigo 63.º.

Quanto ao factor da al. c) (critério da necessidade)
Quanto à verificação deste critério, concordamos com o que se escreveu na sentença de 29.09.21, proferida no processo 3853/20.2T8BRG, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juiz 5, em acção idêntica à presente (instaurada por diferente autor, e cuja cópia foi junta aos presentes autos pela ré):
(…).
Neste ponto, cumpre lembrar que o critério da necessidade visa evitar que o direito a exercitar fique desprovido de garantia judiciária, ou seja, que ocorra uma situação objetiva de denegação de justiça, incluindo os casos de impossibilidade absoluta e relativa ou dificuldade em tornar efetivo o direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro.
Nestes autos, não há qualquer indício que demonstre que o direito invocado pelo autor – o direito de indemnização por alegada violação de um direito de personalidade – não pode ser exercido pelo mesmo em território norte-americano, onde a ré desenvolve a sua actividade e onde terá praticado, na tese do autor, a alegada violação.
De igual modo, em causa não está um tipo de direito que não seja reconhecido naquela jurisdição e que, por esse motivo, impeça o autor de aí deduzir a sua reclamação.
Significa isto que o direito indemnizatório invocado poderá tornar-se efetivo por meio de ação proposta em território norte-americano, sem que tal constitua uma dificuldade apreciável para o autor.
Note-se que o conceito legal de “dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro”, refere-se, como é sabido, excecional e subsidiariamente, à dificuldade que resulta numa quase denegação de justiça, e não aos transtornos logísticos ultrapassáveis (do autor ou do tribunal).
(…).”.
Como já dissemos a propósito do factor de atribuição de competência internacional previsto na al. a) do artigo 63.º, a competência do tribunal deve ser apreciada em face dos termos em que a acção é proposta, ou seja, atendendo ao pedido formulado e à respectiva causa de pedir, não dependendo da legitimidade das partes nem da procedência da acção.
Em decorrência do acima referido, nenhum dos factores previstos no artigo 63.º torna necessário ou suficiente para a sua aplicação que a relação material pleiteada esteja sob a aplicação do domínio da lei portuguesa[18].
Por isso, ao contrário do que sustenta o autor, não releva para a aplicação do critério da necessidade a lei portuguesa em matéria de direitos de personalidade nem a invocação de inconstitucionalidade de determinadas normas.
Pelas razões expostas, entendemos que não se verifica também o factor de atribuição da competência internacional dos tribunais portugueses previsto na al. c) do artigo 63.º.
E não se aplicando nenhum dos factores previstos naquele preceito, tem de se concluir que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecer da presente acção.

A incompetência internacional é uma forma de incompetência absoluta, que, como tal, é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso, conducente, no caso, à absolvição da ré da instância (artigos 96.º, al. a), 97.º a 99.º, 576.º, n.ºs 1 e 2 e 527.º, al. a).

Improcedem, assim, as conclusões do autor também nesta parte.
*
V.
Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, em consequência:
- Confirma-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
***
Porto, 10 de Fevereiro de 2022
Deolinda Varão
Isoleta de Almeida Costa
Ernesto Nascimento
___________________________
[1] Neste sentido, Alberto dos Reis, CPC Anotado, V, pág. 424 e Manuel de Andrade, Manual de Processo Civil, pág. 182.
[2] Noções Fundamentais de Processo Civil, pág. 377.
[3] Introdução ao Processo Civil, pág. 96.
[4] Temas da Reforma do Processo Civil, I, 2ª ed., pág. 79.
[5] Obra citada, pág. 103.
[6] CPC Anotado, 22ª ed., pág. 60.
[7] Ac. do STJ de 29.09.98, BMJ-479-412.
[8] Comentários ao CPC, I, 2ª ed., pág. 33.
[9] Obra citada, pág. 34.
[10] Neste sentido, ver, por todos, os Acs. do STJ de 04.06.09 e de 27.09.11 e desta Relação de 11.04.18, todos em www.dgsi.pt.
[11] Ac. do STJ de 24.02.15; no mesmo sentido, os Acs. desta Relação de 04.11.08 e da RL de 27.09.17 e de 09.11.17, todos em www.dgsi.pt.
[12] Ac. da RL de 24.04.18, www.dgsi.pt.
[13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, págs. 92 e 93.
[14] Manuel de Andrade, obra citada, pág. 91.
[15] Cfr, os Acórdãos deste Tribunal de 18.03.99 e da RE de 10.03.10, ambos em www.dgsi.pt.
[16] www.dgsi.pt.
[17] No mesmo sentido se decidiu no Acórdão da RL de 13.01.22, também proferido em acção idêntica à presente, instaurada por diferente autor, www.dgsi.pt.
[18] Manuel de Andrade, obra citada, pág. 93.