Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
668/20.1PBAVR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO
Descritores: CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO
PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO REO"
PROVA POR PRESUNÇÃO
PROVA INDICIÁRIA
ARGUIDO
PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Nº do Documento: RP20230517668/20.1PBAVR.P1
Data do Acordão: 05/17/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO INTERPOSTO PELO ASSISTENTE.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I – Ocorre contradição insanável prevista na alínea b), nº 2, do art.410º, do CPP, se o tribunal tanto afirma a sua dúvida séria e fundada sobre a propriedade dos veículos, invocando o princípio do in dubio pro reo, como contraditoriamente diz, discorrendo sobre a presunção legal da titularidade do registo, que esta presunção “não poderá ter-se por afastada”.
II – A admissibilidade em processo penal da prova por presunção legal (art. 350º, do Código Civil) é propensa a dúvidas pela sua articulação com o princípio da presunção de inocência do arguido.
III – Contudo, nada obsta a que o tribunal a utilize para prova de um facto penalmente relevante. Admissível a prova indiciária em processo penal, a qual equivale à prova por presunção judicial em processo civil (art.351º, do Código Civil), não existe razão para excluir do princípio da liberdade da prova em processo penal (art.125º, do Código Processo Penal) o funcionamento pleno da prova por presunção legal (art. 350º, do Código Civil),
IV – Mas, se a conjugação da prova é bastante para criar uma dúvida séria, objetiva e fundada sobre o juízo de probabilidade do juiz relativamente ao facto presumido, por inferência da presunção judicial ou legal, sendo esse facto desfavorável ao arguido, deverá o mesmo ser dado como não provado por demonstração de que a presunção é infundada no caso concreto, seja pela prova do seu contrário, seja pela dúvida objetiva e séria sobre a base lógica da presunção.
V – A presunção legal de inocência do arguido não pode nunca ser convertida em presunção de verdade das suas declarações (negação simples ou motivada) em relação aos factos que o favorecem constitutivos do crime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 668/20.1PBAVR.P1



Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:


1. RELATÓRIO
Após realização da audiência de julgamento no Processo nº 668/20.1PBAVR.P1 do Juízo Local Criminal de Aveiro- Juiz 1, foi em 14 de novembro de 2022 proferida sentença, e na mesma data depositada, na qual – ao que aqui interessa - se decidiu (transcrição):
(…)
- absolver AA da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º, n.º1 e n.º4, alínea a) do Código Penal
*
Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o assistente, para este tribunal da Relação do Porto, com os fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:
CONCLUSÕES:
1.º O presente recurso tem por objecto a matéria de facto, mas também de direito, da douta Sentença proferida pela MM.ª Juíza do Tribunal a quo, que, julgando a acusação improcedente, por não provada, decidiu absolver o arguido da prática, em autoria 72 material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º n.º 1 e n.º 4 do Código Penal;
2.º Com o mais elevado respeito, o ora recorrente discorda, desde logo, da análise e decisão proferida sobre vários pontos da matéria de facto, que se mostram incorrectamente julgados, sendo que, no seu entender, face aos elementos probatórios existentes nos autos, não deveriam ter sido considerados provados os factos constantes dos n.ºs 1., 4. e 6, bem como, deveriam ter sido considerados provados os factos referidos nas alíneas A., C., E. e F.
3.º Tendo em devida atenção as provas produzidas em julgamento, nos termos que adiante se explicitarão, leva-nos a concluir que houve erro notório na apreciação e na valoração da prova – prova essa, concretamente indicada na presente motivação, que implica decisão diversa da ora recorrida. SENÃO VEJAMOS:
4.º Quanto ao facto indicado em 1. dos factos dados como provados: a conclusão de que arguido e assistente acordaram na venda a terceiros dos dois veículos identificados neste ponto extravasa todos os elementos de prova existentes nos autos, não sendo sequer coerente com a restante prova produzida e tida em conta pelo Tribunal na douta Sentença recorrida, designadamente, a que resulta espelhada na motivação da decisão de facto.
5.º Com efeito, a referência a um suposto “acordo” existente entre arguido e assistente implicaria um entendimento ou uma combinação entre ambos – que, por sua vez, pressupõe uma autorização ou concordância da parte deste último, que jamais existiu, quanto a todos os aspectos de uma eventual venda dos veículos a terceiros (nomeadamente, o preço e condições de pagamento).
6.º Nas declarações que o assistente prestou nos autos, constantes da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 04/03/2022, resulta que o assistente entregou as duas viaturas ao arguido, temporariamente, para que ele encontrasse potenciais compradores para o mesmo, sendo que, caso os interessados demonstrassem o interesse na compra, o negócio seria ajustado e celebrado directamente entre o assistente e o comprador, intervindo o arguido como um mero intermediário ou mediador, a quem o assistente paga uma retribuição a título de “comissão”; e que, se o negócio não fosse concretizado, os automóveis seriam devolvidos ao assistente, assumindo o arguido a obrigação de os restituir logo que lhe fossem solicitados; como, de resto, se alcança das passagens de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificaram e transcreveram (Ficheiro nº 20220304150738_4112494_2870299: passagem com início em 00:01:18 e fim em 00:18:12; passagem com início em 00:22:19 e fim em 00:23:40).
7.º Mais confirmou o assistente, nas declarações complementares que prestou nos autos, constantes da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 24/03/2022, que o entregou as duas viaturas ao arguido porque, apesar das dificuldades relacionadas com a documentação do outro veículo de marca e modelo Opel ..., tinha uma boa relação com ele, o que apenas reforça a confiança que nele depositou quando da entrega das viaturas; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro nº 20220324105006_4112494_2870299: passagem com início em 00:00:21 e fim em 00:07:30).
8.º A corroborar as declarações prestadas pelo assistente, temos o depoimento prestado nos autos pela testemunha BB, constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 04/03/2022, que, com conhecimento directo dos factos, afigurou-se-nos sincero, espontâneo e credível, tendo sido completamente ignorado, ou pelo menos não devidamente valorado, na douta Sentença recorrida; como, de resto, se alcança das passagens de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, se identificaram e transcreveram (Ficheiro n. 74 20220304162242_4112494_2870299: passagem com início em 00:04:04 e fim em 00:12.23; passagem com início em 00:17:48 e fim em 00:18:14).
9.º Quanto a esta matéria, o arguido prestou declarações, constantes da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 21/09/2022, as quais, para além de em si mesmas contraditórias – na medida em que apresenta duas explicações distintas e incompatíveis para o mesmo facto: por um lado, declarando que pagou as viaturas ao assistente, depois deste as ter comprado em França e lhas ter entregue para venda a terceiros; por outro lado, declarando que foi o próprio arguido que comprou e pagou as viaturas em França, hipótese que não faz qualquer sentido com a alegação de as ter pago ao assistente – desafia as regras da própria lógica, relevando-se por demais inverosímil, não devendo, por isso, merecer qualquer credibilidade; como, de resto, se alcança das passagens de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, se identificaram e transcreveram (Ficheiro n. 20220921150608_4112494_2870299: passagem com início em 00:11:26 e fim em 00:13:43; passagem com início em 00:15:53 e fim em 00:24:54; passagem com início em 00:34:25 e fim em 00:35:38; passagem com início em 00:38:07 e fim em 00:40:57; passagem com início em 00:42:49 e fim em 00:46:40; e passagem com início em 00:54:03 e fim em 00:54:28).
10.º Realmente, o arguido com as declarações prestadas não logrou convencer ninguém da sua versão, aliás, versões dos factos constantes da Acusação – as quais se mostram desapoiadas de qualquer outro elemento de prova idóneo, não podendo valer como tal o conveniente depoimento prestado pela sua companheira, com quem reside, a qual, para além no interesse do desfecho da causa, “denotou pouca imparcialidade e quase nenhuma objectividade”.
11.º Em face das provas produzidas em julgamento, e por via da apreciação crítica das declarações do assistente, do depoimento da referida testemunha e das declarações do próprio arguido, nas concretas passagens supra identificadas e transcritas, conjugadas com os demais elementos documentais constantes dos autos, mormente, a fls. 8, 10, 55., 115, 201, 233 e 287, com os demais factos dados como provados e não provados e ainda com as presunções judiciais decorrentes regras da experiência comum, tudo devidamente ponderado, deve ser modificada a decisão de facto contida na douta Sentença recorrida quanto a este ponto 1. dos factos dados como provados, devendo o mesmo passar a constar como não provado; ou, quando assim se não entenda, deverá ser substituído por outro que dê como provado apenas que: Em data não concretamente apurada do mês de Março de 2020, o arguido recebeu do assistente, com vista a promover a sua venda a terceiros, e a título devolutivo, os veículos automóveis indicados em a) e b).
12.º Quanto ao facto indicado em 4. dos factos dados como provados: a indicação de que o assistente tem na sua posse o veículo da marca e modelo Opel ..., desde data não concretamente apurada, mas situada após o mês de Maio de 2020, também extravasa todos os elementos de prova existentes nos autos, não sendo sequer coerente com a restante prova produzida.
13.º Com efeito, a prova produzida em julgamento vai no sentido de que o assistente passou a ter na sua posse o referido veículo da marca e modelo Opel ..., por o ter comprado ao arguido, a partir de Junho de 2019.
14.º Nas declarações complementares que o assistente prestou nos presentes autos, constantes da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 24/03/2022, o mesmo refere-se expressamente a tal momento temporal; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro nº 20220324105006_4112494_2870299: passagem com início em 00:00:21 e fim em 00:01:10).
15.º A corroborar as declarações prestadas pelo assistente, temos o depoimento prestado nos autos pela testemunha CC, constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 04/03/2022, que, com conhecimento directo dos factos, afigurou-se-nos sincero, espontâneo e credível, tendo também neste ponto sido ignorado, ou pelo menos não devidamente valorado, na 76 douta Sentença recorrida, como, de resto, se alcança das passagens de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificaram e transcreveram (Ficheiro n. 20220304160734_4112494_2870299: passagem com início em 00:01:51 e fim em 00:02:02; passagem com início em 00:04:05 e fim em 00:04:46; passagem com início em 00:09:38 e fim em 00:11:00; passagem com início em 00:11:13 e fim em 00:13:18).
16.º Ainda corroborar as declarações prestadas pelo assistente, temos o depoimento prestado nos autos pela testemunha BB, constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 04/03/2022, que, com conhecimento directo dos factos, afigurou-se-nos sincero, espontâneo e credível, tendo também neste ponto sido ignorado, ou pelo menos não devidamente valorado, na douta Sentença recorrida; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro n. 20220304162242_4112494_2870299: passagem com início em 00:13:56 e fim em 00:14:16).
17.º Em suma: a testemunha CC referiu-se expressamente a um momento temporal situado “há uns três anos atrás” – o que, por referência à data da prestação do seu depoimento, em 04/03/2022, coloca-nos no decurso do ano de 2019; por outro lado, a testemunha BB confirma que foi antes da situação das viaturas identificadas em a) e b) do ponto 1. dos factos provados (Março de 2020) – o que, em qualquer dos casos, é inconciliável com o início da posse do assistente do Opel ... reportado a Maio de 2020.
18.º Em face das provas produzidas em julgamento, e por via da apreciação crítica das declarações do assistente e do depoimento das referidas testemunhas, nas concretas passagens supra transcritas, conjugadas com os demais elementos documentais constantes dos autos, com os demais factos dados como provados e não provados e ainda com as presunções judiciais decorrentes regras da experiência comum, tudo devidamente ponderado, deve ser modificada a decisão de facto contida na douta sentença recorrida quanto a este ponto 2. dos factos dados como provados, sendo substituída por outra que dê como provado que: Desde data não concretamente apurada, mas situada após o mês de Junho de 2019, o assistente passou a ter na sua posse o veículo da marca e modelo Opel ..., com a matrícula ..-LS-..;
19.º Quanto ao facto indicado em 6. dos factos dados como provados: a conclusão de que, à data dos factos, arguido e assistente se dedicavam conjuntamente à compra e venda de veículos automóveis, também extravasa todos os elementos de prova existentes nos autos, não sendo sequer coerentes com a restante prova produzida e tida em conta pelo Tribunal na douta Sentença recorrida, designadamente, a que resulta espelhada na motivação da decisão de facto.
20.º Ora, com o mais elevado respeito, não é legítimo, nem lícito, ao Tribunal extrair da prova produzida em audiência de julgamento o que lá não está ou é mesmo contraditório com aquela, o que as testemunhas não referem, o que as partes não declararam, pelo que o Tribunal a quo não pode, de modo algum, sob pena de violação grave dos direitos constitucionalmente consagrados do cidadão, substituir-se a uma prova, e concluir por um facto que não está demonstrado.
21.º Não se discute que arguido e assistente se deslocaram juntos a França para fazer a aquisição dos veículos identificados em 1. dos factos dados como provados. Nem que, à data dos factos, ambos se dedicariam, cada um deles, à compra e venda de automóveis. Mas não o faziam conjuntamente.
22.º Nem mesmo o arguido, que prestou declarações quanto a esta matéria, constantes da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 21/09/2022, e apesar da já referida falta de credibilidade que as mesmas devem merecer, se refere a qualquer actividade “conjunta” de compra e venda de automóveis, mas, quanto muito, à ideia de virem eventualmente a constituir uma sociedade de “rent-a-car”; e que até chegou a ter em sua casa todos os automóveis do assistente, evidenciando assim o reconhecimento de uma separação de patrimónios e de negócios; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na 78 alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro 20220921150608_ 4112494_2870299: passagem início em 00:38:35 e fim em 00:40:09).
23.º Muito menos a testemunha apresentada pelo arguido, DD, que é sua companheira, e que prestou o seu depoimento nos autos, constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 13/10/2022, confirmou qualquer actividade “conjunta” de compra e venda de automóveis, antes deixando bem claro que os veículos que o arguido “ajudava a vender” pertenciam ao assistente e nunca deixaram de estar na sua posse; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro n. 20221013104444_4112494_2870299: passagem com início em 00:15:22 e fim em 00:19:50);
24.º Em face das provas produzidas em julgamento, e por via da apreciação crítica das declarações do arguido e do depoimento da referida testemunha, nas concretas passagens supra transcritas, conjugadas com os demais elementos documentais constantes dos autos, mormente, a fls. 8, 10, 55., 115, 201, 233 e 287, com os demais factos dados como provados e não provados e ainda com as presunções judiciais decorrentes regras da experiência comum, tudo devidamente ponderado, deve ser modificada a decisão de facto contida na douta Sentença recorrida quanto a este ponto 6. dos factos dados como provados, devendo o mesmo passar a constar como não provado; ou, quando assim se não entenda, deverá ser substituído por outro que dê como provado apenas que: À data dos factos acima descritos, o arguido e assistente dedicavam-se, cada um deles, à compra e venda de veículos automóveis, tendo realizado entre si alguns negócios em que o arguido ajudava a encontrar interessados na compra das viaturas que pertenciam ao assistente, sendo que se deslocaram juntos a França para fazer a aquisição dos veículos identificados em 1.
25.º Quanto ao facto indicado em A. dos factos dados como não provados: a entrega, propriamente dita, dos veículos pelo assistente ao arguido, independentemente do título – tem, como é lógico, e como em qualquer entrega, subjacente o exercício de um poder de facto sobre a coisa que se coloca à disposição de outrem.
26.º A este respeito, foi desde logo a testemunha apresentada pelo próprio arguido, DD, que é sua companheira, e que prestou o seu depoimento nos autos, constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 13/10/2022 – que, apesar da sua pouca imparcialidade e subjectividade, atenta a afinidade com a posição assumida pelo arguido, deverá relevar neste ponto na medida em que traduz um reconhecimento contrário aos interesses deste –- confirmar que os veículos em causa foram entregues pelo assistente ao arguido; como, de resto, se alcança das passagens de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, se identificaram e transcreveram (Ficheiro n. 20221013104444_4112494_2870299: passagem com início em 00:18:53 e fim em 00:19:50; passagem com início em 00:39:37 e fim em 00:42:08).
27.º Também o depoimento da testemunha BB, constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 04/03/2022 – que, com conhecimento directo dos factos, afigurou-se-nos sincero, espontâneo e credível, tendo também neste ponto sido ignorado, ou pelo menos não devidamente valorado, na douta Sentença recorrida – confirmou que houve uma entrega, a título devolutivo, dos veículos pelo assistente ao arguido; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro 20220304162242_4112494_2870299: passagem com início em 00:04:04 e fim em 00:06:28).
28.º Não restam dúvidas que o assistente entregou os veículos ao arguido – sendo certo que só o poderia ter feito no exercício de um poder de facto sobre aqueles bens; se não tivesse qualquer poder de facto, estaríamos, naturalmente, perante um facto impossível. Haverá, assim, que convocar os ensinamentos do direito das coisas: nos termos do disposto no artigo 1251.º do Código Civil, posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real; e, como previsto no n.º 2 do artigo 1252.º do mesmo Código, em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto, presumindo-se que a mesma continua em nome de quem a começou.
29.º O poder de facto exercido pelo assistente, a tornar possível a entrega física dos veículos ao arguido, enquadra-se, assim, a categoria da posse, por reunir, tanto o corpus – o seu elemento material, que consiste no domínio de facto sobre a coisa, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre ela, ou na possibilidade física desse exercício – como o animus, que consiste na intenção de exercer sobre a coisa como seu titular, o direito real correspondente àquele domínio de facto.
30.º Quanto aos efeitos da posse, dispõe o n.º 1 do artigo 1268.º do Código Civil que o possuidor goza da presunção da titularidade do direito – excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse.
31.º Acresce, do registo automóvel resulta a presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define – cfr. o conjugadamente disposto nos artigos 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02 e no artigo 7.º do Código do Registo Predial. Presunção que não se mostra ilidida.
32.º Para além disso, mostram-se juntos aos autos a fls. 8 e 11 as “Declaração Aduaneira de Veículo”, que é a declaração que deve ser preenchida e entregue sempre que se pretende que um veículo seja introduzido em território nacional, ou seja, sempre que é importado ou admitido de um país oriundo da União Europeia, onde o assistente consta como adquirente dos veículos em causa.
33.º Pelo exposto, não só se mostra provada a titularidade formal do respectivo direito de propriedade, como também o corpus e o animus de posse sobre os veículos em causa.
34.º Ao considerar que o que terá decorrido da prova produzida nos presentes autos “é que o assistente não esteve nessa posse continuada, sendo até das suas declarações que decorre a entrega dos veículos ao arguido em Março de 2020 e que aí estariam até que fosse encontrado potencial comprador”, o Tribunal a quo comete o maior dos equívocos: o de confundir a posse com a simples detenção, ignorando o conceito da mera detenção ou posse precária. É que, nos termos do disposto no artigo 1253.º do Código Civil, são havidos como detentores precários: a) os que exercem o poder de facto sem intenção de agir como beneficiários do direito; b) os que simplesmente se aproveitam da tolerância do titular do direito; c) os representantes ou mandatários do possuidor e, de um modo geral, os que possuem em nome próprio.
35.º Ainda que o assistente tenha entregue os veículos ao arguido em Março de 2020, é evidente que, nas circunstâncias dos autos, o fez a título precário e devolutivo, com o intuito de este o poder mostrar a potenciais interessados na compra dos mesmos. Não podendo ser o arguido considerado um verdadeiro possuidor, porquanto não se verificou qualquer forma de aquisição da posse.
36.º No momento da prática dos factos que resultaram provados em 2. e 5., o arguido tinha a mera detenção ou posse precária dos veículos em causa.
37.º Nem faria qualquer sentido que o assistente viesse a instaurar o procedimento cautelar de restituição provisória de posse mencionado na douta Sentença recorrida) se não se assumisse como o verdadeiro e legítimo dono e possuidor dos identificados bens – como, efectivamente, era.
38.º De notar ainda que, naquele processo, e tal como consta de fls. 201 e ss., deram-se como indiciariamente provados outros factos, não apenas o que foi transcrito na douta Sentença recorrida (alínea f), que são, todos eles, coerentes com as declarações que o assistente prestou nos presentes autos – pelo que, com o devido respeito, não pode este admitir que seja questionada a sua boa-fé.
39.º Devemos também anotar que, para o que se deu como indiciariamente provado na Decisão Cautelar referenciada na douta Sentença recorrida, foram tidos em conta diversos documentos juntos àqueles autos – o que é do conhecimento oficioso do Tribunal a quo que, desrespeitando o princípio da descoberta da verdade material, acabou por não investigar toda a matéria contida no processo e que, na perspectiva da douta Sentença recorrida, até poderia ser relevante para a decisão, como se lhe impunha nos termos do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal.
40.º Acresce que, não pode ser exigida ao assistente a prova de que não vendeu nem transmitiu os veículos em causa ao arguido – por se tratar de facto negativo; o que configuraria uma verdadeira “prova diabólica” ou impossível na prática, violadora o direito constitucional ao acesso ao direito e aos tribunais previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa.
41.º Em face das provas produzidas em julgamento, e por via da apreciação crítica dos depoimentos das referidas testemunhas, nas concretas passagens supra transcritas, conjugadas com os demais elementos documentais constantes dos autos, mormente, a fls. 8, 10, 55., 115, 201, 233 e 287, com os demais factos dados como provados e não provados e ainda com as presunções judiciais decorrentes regras da experiência comum, tudo devidamente ponderado, deve ser modificada a decisão de facto contida na douta Sentença recorrida quanto a este ponto A. dos factos dados como não provados, devendo o mesmo passar a constar como provado.
42.º Quanto ao facto indicado em C. dos factos dados como não provados: resultando já assente que os veículos identificados em 1 dos factos provados eram propriedade do ofendido, e que o arguido os vendeu, devemos quanto aos demais aspectos atender, desde logo, ao depoimento prestado pela testemunha EE (pessoa que comprou o veículo ... com matrícula ..-..-GV ao arguido), constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 04/03/2022, que, com conhecimento directo dos factos, afigurou-se-nos sincero, espontâneo e credível, tendo sido completamente ignorado, ou pelo menos não devidamente valorado, na douta Sentença recorrida; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro n. 20220304154254_4112494_2870299: passagem com início em 00:04.31 e fim em 00:17:46).
43.º Ainda neste circunspecto, devemos igualmente atender ao depoimento prestado pela testemunha FF (representante da pessoa que comprou o veículo ... com matrícula ..-..-FP ao arguido), constante da gravação áudio da sessão de Audiência de Discussão e Julgamento realizada em 03/11/2022, que, também com conhecimento directo dos factos, afigurou-se-nos não menos sincero, espontâneo e credível, tendo sido também completamente ignorado, ou pelo menos não devidamente valorado, na douta Sentença recorrida; como, de resto, se alcança da passagem de gravação que, para os fins do disposto na alínea b) do n.º 3 e n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, supra se identificou e transcreveu (Ficheiro n. 202203114746_4112494_2870299: passagem com início em 00:09:30 e fim em 00:16:40)
44.º Perante a inexistência de qualquer contra-prova, os depoimentos prestados por estas testemunhas não deixam quaisquer dúvidas que o arguido vendeu os veículos referidos em 1. dos factos provados, sem comunicar tal facto ao assistente, nem lhe tendo entregue o valor realizado com as referidas vendas, mais resultando as regras da experiência e do normal acontecer que o fez com o propósito concretizado de fazer suas os valores recebidos como contrapartida desses negócios.
45.º Em face das provas produzidas em julgamento, e por via da apreciação crítica das declarações do assistente e do depoimento das referidas testemunhas, nas concretas passagens supra transcritas, conjugadas com os demais elementos documentais constantes dos autos, mormente, a fls. 8, 10, 55., 115, 201, 233 e 287, com os demais factos dados como provados e não provados e ainda com as presunções judiciais decorrentes regras da experiência comum, tudo devidamente ponderado, deve ser modificada a decisão de facto contida na douta Sentença recorrida quanto a este ponto C. dos factos dados como não provados, sendo substituída por outra que o dê como provado.
46.º Quanto aos factos indicados em E. e F. dos factos dados como não provados: como vimos, o arguido não logrou convencer ninguém da sua versão, aliás, versões dos factos, sendo que as suas declarações desafiam as regras da própria lógica, relevando-se por demais inverosímeis, não devendo, por isso, merecer qualquer credibilidade.
47.º Com efeito, começou por declarar que pagou as viaturas ao assistente, depois deste as ter comprado em França e lhas ter entregue para venda a terceiros; para, logo em seguida, passar a declarar que foi o próprio arguido que comprou e pagou as viaturas em França, hipótese que não faz qualquer sentido com a alegação de as ter pago ao assistente; quando, na verdade, o que não poderá deixar de dar-se como provado na procedência da presente impugnação recursória é que o assistente entregou as duas viaturas ao arguido, temporariamente, para que ele encontrasse potenciais compradores para o mesmo, sendo que, caso os interessados demonstrassem o interesse na compra, o negócio seria ajustado e celebrado directamente entre o assistente e o comprador, intervindo o arguido como um mero intermediário ou mediador, a quem o assistente paga uma retribuição a título de “comissão”; e que, se o negócio não fosse concretizado, os automóveis seriam devolvidos ao assistente, assumindo o arguido a obrigação de os restituir logo que lhe fossem solicitados.
48.º Ora, nestas circunstâncias, não tendo sido possível ao Tribunal a quo aferir da atitude interior do arguido perante as suas declarações, sempre deverá socorrer-se das regras da experiência comum e do normal acontecer, aliás, ao abrigo do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal; os factos psicológicos que traduzem o elemento subjectivo são, em regra, objecto de prova indirecta, isto é, só são suscetíveis de serem provados com base em inferências a partir dos factos materiais e objectivos, analisados à luz das regras da experiência comum.
49.º Ora, analisados todos os elementos de prova existentes nos autos e no confronto com a factualidade objectiva apurada, mormente, dos factos que, nos termos da presente motivação, devem resultar provados, será forçoso que o Tribunal também conclua pelo elemento subjectivo inerente à conduta do arguido, através de um juízo assente nas regras da experiência comum.
50.º O modus operandi utilizado pelo arguido, relevado e apurado em julgamento, relativamente à venda das suas viaturas em causa, não deixa qualquer dúvida: agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de fazer seus os veículos já mencionados, bem como as quantias em dinheiro obtidas através da venda dos mesmos, não obstante saber que eles não lhes pertencia e que actuava contra a vontade do seu único e legítimo proprietário, o assistente, sabendo ainda que as suas condutas eram proibidas e punidas pela Lei penal.
51.º Por estes motivos, entende o recorrente que deve ser modificada a decisão de facto contida na douta Sentença recorrida quanto a estes pontos E. e F. dos factos dados como não provados, sendo substituída por outra que os dê como provados.
52.º Resultou provado nos presentes autos que o arguido se encontrava na detenção ou posse precária (e não na posse, com o significado jurídico que lhe atribui o artigo 1251.º do Código Civil), dos dois veículos automóveis, que os vendeu a terceiros e recebeu as quantias monetárias recebidas para esse pagamento, nos termos da presente motivação; na procedência da presente impugnação recursória, nomeadamente, quanto à matéria de facto, também não poderá deixar de resultar provado que os veículos eram propriedade do assistente, relativamente ao que não existem dúvidas consistentes, fundadas e irremovíveis.
53.º Também resultou provado que os termos do acordo realizado entre o arguido e assistente quanto aos veículos não envolvia a transmissão da posse ou da propriedade do veículo, que se mantiveram, sempre, na esfera jurídica deste último,
54.º Pelo que, se mostra igualmente verificado o elemento típico objectivo da “entrega de coisa móvel ao agente por título não translativo da propriedade”.
55.º Também o elemento subjectivo do crime se mostra verificado,
56.º Pelo que, atenta a factualidade tida como provada, bem como a qualificação jurídica já operada, dúvidas não subsistem de que o arguido cometeu facto ilícito, doloso e culposo de que vem acusado.
57.º Ao decidir nos termos constantes da douta Sentença em recurso, o Tribunal a quo violou, assim, o disposto: no artigo 205.º n.º 1 e 4 do Código Penal; nos artigos 127.º e 340.º do Código de Processo Penal; nos artigos 1251.º, 1252.º n.º 2 e 1258.º n.º 1 do Código Civil; no artigo 29.º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02 e no artigo 7.º do Código do Registo Predial; nos artigos 20.º e 32.º n.º 5 da Constituição da República Portuguesa; entre outros, dos quais fez uma incorrecta interpretação e aplicação ao caso em apreço, nos termos da presente motivação;
58.º Por tudo o que ficou exposto, deverá a douta sentença recorrida ser alterada e/ou anulada, sendo substituída por outra que julgue procedente a acusação, condenando o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança, p. e p. pelo artigo 205.º n.º 1 e n.º 4 do Código Penal.
*
Por despacho foi o recurso regularmente admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
--
Respondeu o Ministério Público junto do tribunal a quo às motivações de recurso vindas de aludir, entendendo que este deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente a decisão recorrida.
--
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, concluindo pela total procedência do recurso do assistente, com os seguintes fundamentos:
a) Existe contradição insanável entre os factos dados como provados, não provados e motivação de facto, que se torna relevante e insanável para a decisão final tomada de absolvição (artigo 410.º, n.º2 b) do CPP, cujo conhecimento é oficioso.
b) ocorre manifesta insuficiência da fundamentação de facto para se perceber de que modo o tribunal a quo chegou à decisão sobre os factos dados como provados e não provados, havendo uma descredibilização de toda prova que notoriamente em alguns pontos não é compreensível;
c) procede a impugnação da matéria de facto especificada pelo recorrente assistente.
--
Na sequência da notificação a que se refere o art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, foi efetuado exame preliminar, após o que, colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO
Sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior - artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Posto isto,
as questões submetidas ao conhecimento deste tribunal são:
1. Da nulidade por falta de fundamentação
2. Da impugnação restrita da matéria de facto: erro notório na apreciação da prova e contradição insanável (n.º 2 do art.º 410 do C.P.P.
3. Da impugnação ampla da matéria de facto (art. 412°, nº3, do Código Processo Penal): violação do princípio da livre apreciação da prova.
4. Do preenchimento do tipo legal de crime
***
Com relevo para a resolução das questões objeto do recurso importa recordar
a fundamentação de facto da decisão recorrida, que é a seguinte (transcrição):
“Factos Provados:
1. Em data não concretamente apurada do mês de Março de 2020, AA e GG acordaram na venda a terceiros do veículo automóvel:
a) da marca e modelo ..., com a matrícula ..-..-FP, de valor não concretamente apurado, mas não inferior a €8.908,33, registado em nome de GG;
b) da marca e modelo ..., com a matrícula ..-..-GV, de valor não concretamente apurado, mas não inferior a €6.990,00, registado em nome de GG.
2. Em dia não concretamente apurado, mas que se situa no mês de Maio de 2020, AA vendeu o veículo identificado em 1, alínea b) a EE, pelo preço de €8.250,00, tendo já recebido anteriormente desta, como retoma, o veículo automóvel da marca e modelo Opel ..., com a matrícula ..-LS-.., de valor não apurado.
3. Após, a transferência da propriedade do referido veículo foi transferida para a titularidade de EE, datando o registo de 24-07-2020.
4. Desde data não concretamente apurada, mas situada após o mês de Maio de 2020, GG passou a ter na sua posse o veículo da marca e modelo Opel ..., com a matrícula ..-LS-...
5. Em dia não concretamente apurado, anterior a Setembro de 2020, AA vendeu o veículo identificado em 1, alínea a), por preço não concretamente determinado, mas não inferior a €12.000,00, ficando tal veículo à guarda de FF, sogro do comprador.
6. À data dos factos acima descritos, AA e GG dedicavam-se conjuntamente à compra e venda de veículos automóveis, sendo que se deslocaram juntos a França para fazer a aquisição dos veículos identificados em 1.
7. AA é vendedor de automóveis, trabalha por conta de “A..., Lda.”, com sede na ... e aufere mensalmente €705,00.
8. AA é divorciado, mas mantém residência conjunta com a ex-mulher, em casa arrendada, para o que despendem a quantia mensal de €300,00.
9. O arguido tem um filho maior de idade e economicamente independente.
10. Como habilitações literárias, AA tem o 6.º ano de escolaridade e dos autos não contam antecedentes criminais registados.
*
Factos não provados
Não existem outros factos dados como provados que tenham interesse para a decisão da causa ou que se mostrem em contradição com os dados como provados.
Nomeadamente não se provou:
A. Que GG entregou a AA os veículos referidos em 1 dos factos provados na qualidade de proprietário dos mesmos.
B. O veículo da marca e modelo Opel ... referido em 2 dos factos provados serviu de parte do pagamento do veículo identificado em 1, alínea b) dos factos provados.
C. Não obstante os veículos identificados em 1 dos factos provados serem propriedade do ofendido, o arguido vendeu-os, sem comunicar tal facto ao ofendido, nem tendo entregue àquele o valor realizado com as referidas vendas, o que fez, com o propósito concretizado de fazer sua a quantia em dinheiro e a viatura recebida como retoma.
D. Além disso, até ao momento o arguido não restituiu o veículo ..., com a matrícula ..-..-FP ao ofendido, apesar de instado pelo mesmo por diversas vezes para esse efeito.
E. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, com o propósito de fazer seus os veículos já mencionados, bem como a quantia em dinheiro obtida através da venda dos mesmos, no valor global de €18.639,05, não obstante saber que eles não lhe pertenciam e que actuava contra a vontade do legítimo proprietário. F. O mesmo também sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas pela Lei penal.
*
Motivação
A convicção do Tribunal alicerçou-se na análise crítica e ponderada, à luz dos princípios legais que regem a matéria, dos seguintes meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento (artigo 127º do Código de Processo Penal).
Desde já se deixa expresso que, por uma questão de maior facilidade na exposição do raciocínio e de economia processual, se fará conjuntamente a especificação da motivação da matéria de facto provada e não provada.
A prova documental constante dos autos foi circunstanciadamente analisada (como infra se especificará), porém, não trouxe qualquer elemento que pudesse permitir ao Tribunal perceber em que moldes se processavam os negócios de compra e venda de veículos entre AA e GG, quais as condições que ambos estabeleceram para esses negócios (os veículos pertenciam a ambos ou ficavam apenas à “consignação” para venda do arguido?), qual o acordo no que respeita à formalização dos negócios perante terceiros (o arguido tinha plena liberdade, ou a concretização do negócio tinha de ser finalizada pelo assistente?), nem sequer qual o entendimento que tinham quanto ao pagamento dos veículos (haveria repartição dos valores obtidos, pagamento de comissão ao arguido, ou confronto/acerto de contas?), etc.
Cogitou o Tribunal que a prova por declarações e testemunhal seria rica e esclarecedora. Pelo contrário, a prova que resultou dos depoimentos das testemunhas que poderiam esclarecer tais factos foi toda ela genérica, contraditória e facciosa, sobrando, como tal as declarações do arguido e do assistente, também em sentido contraditório.
Nesta medida, sequer considerando o teor dos depoimentos prestados por EE e FF – respectivamente, compradora do veículo identificado na alínea b) do ponto 1 dos factos provados e representante do comprados do veículo descrito na alínea a) do ponto 1 dos factos provados - foi possível ao Tribunal perceber o que estava subjacente à tipologia de acordo entre arguido e assistente, sendo que esse acordo é essencial para alcançar o preenchimento dos factos objectivos que integram o tipo legal de crime – sem que se perceba se os veículos foram adquiridos conjuntamente, para venda e posterior partilha/repartição de valores entre ambos não é possível estabelecer se existe ou não coisa alheia. A única coisa que o Tribunal pode dar por certa é que foi o arguido quem desenvolveu a actividade de angariação de clientes e de venda dos veículos, mas se lhe estavam entregues à consignação ou não, se existia acerto de contas pendente entre arguido e assistente, tal não foi suficientemente esclarecido.
Isto porque estas duas testemunhas, apesar do interesse reflexo de serem ressarcidas do pagamento efectuado para aquisição dos veículos, foram aquelas que mantiveram um depoimento mais isento e objectivo, sem se denotar efectiva escolha de versão/facção.
Quanto ao depoimento prestado por CC, não obstante terse colocado em posição de conhecer os meandros dos negócios celebrados entre arguido e assistente, a verdade é que apenas situa o momento em que estes se conheceram, mas não qualquer factualidade que relevasse à decisão. Mesmo no que respeita à questão de saber se o Opel ... a testemunha afirmou factualidade que contrariou as declarações prestadas pelo assistente, o que significa que não se conseguiu conferir segurança a este depoimento.
Relativamente ao depoimento prestado por BB (tal como de outros depoimentos e das declarações do arguido e assistente), resultou com assertividade que ambos os veículos foram trazidos para Portugal no mesmo dia – contrariamente ao que fizeram constar da declaração aduaneira de veículo -, pois que tudo o mais que a testemunha veio trazer aos autos foi de manifesto exagero quanto ao número de reuniões tidas por conta da venda dos veículos, ao longo de três meses, sendo certo que, depois, se percebe que estas reuniões não se deviam apenas a estes dois veículos e que daí nada se retira quanto à tipologia dos negócios celebrados entre arguido e assistente.
No que respeita ao depoimento prestado por HH actual proprietária do veículo ..., desconhecia em absoluto qualquer facto relacionado com a temática probatória, razão pela qual não se valorou.
Resta-nos a análise do depoimento prestado por DD, exmulher do arguido, mas que ainda mantém residência conjunta com o mesmo e, de que se denotou pouca imparcialidade e quase nenhuma objectividade. Em bom rigor, deste depoimento resultou que os negócios feitos entre arguido e assistente tinham, para além de fraca organização contabilística, também a “mistura” de capitais provenientes de sociedade denominada “B...”, de que esta testemunha foi gerente. Assim, ao invés de esclarecedor, este depoimento trouxe um maior grau de incerteza à apreciação dos factos, fazendo entrar na equação quantias monetárias que não pertenciam nem ao assistente, nem ao arguido, como forma ou meio de pagamento dos veículos aqui em causa. Com excepção desta particularidade, o depoimento foi uma reprodução das declarações do arguido, sendo eu face à proximidade entre ambos, o Tribunal não conseguiu conferir efectiva credibilidade ao mesmo.

No que respeita à prova por declarações, face ao que acima já se deixou expresso, é fácil de perceber que não foi senão contraditória a versão apresentada por um e outro – a servir os interesses de um ou de outro, sem uma verdadeira e franca colaboração para com o Tribunal na descoberta da verdade material. Mesmo no âmbito das declarações complementares, o assistente não conseguiu ser totalmente imparcial, imputando ao arguido termos negociais que não foram corroborados por qualquer outro meio de prova.
Assim, o assistente descreve uma cedência de veículos ao arguido para exibição a potenciais compradores, mas cujo negócio não se poderia concretizar sem a sua intervenção e negociação, referindo o pagamento de uma comissão ao arguido.
Por seu turno, o arguido também em declarações pouco corroboradas por outros meios de prova, veio contrapor que quando foi com o assistente a França adquirir os veículos já sabiam de antemão quem seriam os compradores, razão pela qual escolheram aqueles modelos, o que era do conhecimento do assistente, sendo que por via de negócio anteriores, havia acertos de contas a fazer, mas que mesmo assim entregou as quantias monetárias devidas pela venda destes dois veículos ao assistente (em numerário). Acrescentou ainda que o pagamento dos veículos, em França, foi feito em numerário, com quantias por si resgatadas de instituição bancária, por forma a alcançar o acerto de contas, misturando aqui uma letra por si subscrita no valor de €12.500,00.
Mesmo apreciando a diligência de acareação, é perfeitamente possível perceber que as dúvidas que se foram formando no espirito da julgadora (já acima enunciadas aquando da apreciação genérica da prova documental) não se esvaneceram, pelo contrário, saber se houve ou não uma qualquer apropriação de coisa alheia entregue por título não translativo da propriedade (fosse dos veículos, fosse das quantias monetárias) é algo que não se alcançou, muito menos saber se eventual apropriação era ilícita ou abusiva. Neste conspecto, o assistente acabou por admitir existir acerto de contas a fazer com o arguido por conta de outros negócios (com veículos da marca Audi) e de um empréstimo feito ao arguido, no montante global de €24.000,00, que estavam tutelados por duas letras, sendo eu o pagamento dos veículos descritos nos factos provados foi feito com numerário e também, um diferencial, com o seu cartão de crédito.
Por seu turno, o arguido manteve a sua versão de que o dinheiro usado para a compra dos veículos provinha da sua titularidade, com excepção do diferencial pago pelo assistente com recurso a cartão de crédito.
Ora, o pagamento em numerário poderia ser documentado por recurso a extractos bancários ou talões de levantamento, o mesmo no que respeita ao pagamento efectuado com cartão de crédito, assim se comprovando o efectivo comprador dos veículos. Porém, estes meios de prova não foram juntos aos autos, não existindo (com excepção do depoimento prestado por DD) qualquer outro meio de prova apto a confirmar ou informar o que foi declarado pelo arguido ou pelo assistente.
Em conclusão, não poderá ter-se por afastada a presunção registral dos veículos, mas também não pode ter-se por assente, dada a confusão de negócios jurídicos celebrados entre arguido e assistente e face à ausência de qualquer tipo de contabilidade, quais os reais termos em que ocorreu a detenção dos veículos por parte do arguido.
Ponto assente é o estatuído pelo n.º5 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa quanto ao principio da presunção de inocência, sem esquecer que as declarações prestadas pelo arguido não são um mero meio de prova, são, na verdade um meio de defesa, tal como o é o exercício do direito ao silêncio e, não se estando já na fase de inquérito nem de instrução, o Tribunal não pode decidir recorrendo a meras provas circunstanciais, nem com base em indícios suficientes, tem que existir uma convicção fundada na prova produzida quanto ao que aconteceu em concreto e quanto à intervenção de cada um dos agentes.
Pelo que, subsistindo ao Tribunal dúvida séria e razoável, não poderá o Tribunal proferir sentença condenatória relativamente ao arguido, tendo de ser aplicado, em concreto, o princípio constitucionalmente consagrado do “in dubio pro reo” (artigo 32.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa), o qual, sendo corolário do princípio da presunção de inocência, significa que a dúvida sobre a realidade de um facto deve ser decidida a favor da pessoa sob julgamento.
Para aplicação deste princípio é preciso que, no espírito do julgador, ao pretender fixar a matéria de facto, se instale uma dúvida séria, honesta e com força suficiente para se tornar um obstáculo intelectual à aceitação da versão dos factos prejudiciais ao arguido, o que já se disse existe em concreto.
Escalpelizando o teor da prova documental:
- no que respeita a fls. 8-9 e 10-11, “declaração aduaneira de veículo”, sendo perceptível, que ao contrário do que decorreu da prova por declarações, aí é feito constar que os veículos entraram em território nacional em datas diferentes, um em 08-02-2020 e outro em 17-02-2020 – qual a razão de ser de tal incongruência, não se conseguiu perceber.
Efectivamente, os veículos são declarados perante a Autoridade Tributária como tendo por adquirente GG (com domicilio na Rua ..., ...), mas não existe qualquer documento que confirme que a factura foi emitida em nome de uma sociedade, pelo contrário, aí é referido expressamente que é adquirente/proprietário pessoa singular – isto para reflectir a contradição com as declarações do arguido e com o depoimento de DD.
Daqui resulta também qual o valor declarado para a aquisição e que foi o que se teve em consideração.
- o documento constante de fls. 12 respeita a seguro de recheio de casa, que não releva minimamente para a prova dos factos, sendo apenas de relevar que a morada do assistente que aí é feita plasmar não corresponde com a que é expressa nas declarações aduaneiras de veículos.
- quanto às pesquisas efectuadas na base de dados da Conservatória do Registo Automóvel e às informações prestadas por este serviço/entidade, constantes de fls. 54, 55, 77-78, 86, 114 e 115-116, apenas serviram à formação da convicção do Tribunal quanto aos factos objectivos que daí podem retirar-se, mas já não quanto à natureza e validade das transmissões dos veículos. é inelutável que não foi sequer alegado ter existido uma impugnação aos actos registrais, pelo que, a presunção de propriedade poderá funcionar.
- foi interessante perceber que a fls. 111 a testemunha EE fez juntar uma declaração de circulação em que é feito constar que o emitente é GG, datada de 01-07-2020, mas que não se encontra assinada nem com qualquer carimbo que permita aferir da sua genuinidade.
- a referência que é feita ao exercício da gerência da sociedade “B..., unipessoal, Lda.” por parte da testemunha DD decorre do teor da certidão constante de fls. 119-120.
- em data não concretamente determinada, mas posterior à apresentação de queixa, o assistente instaurou procedimento cautelar de restituição provisória da posse contra AA, sendo que a mesma foi declarada procedente e determinada a restituição dos veículos àquele – o que veio a ser concretizado por intermédio de solicitador de execução. Este procedimento cautelar correu termos sob o n.º2431/20.0T8AVR, sem citação prévia (em estrito cumprimento do disposto pelo artigo 378.º do Código de Processo Civil), sendo que a acção principal corre termos sob o n.º4101/20.0T8AVR-A, intentada em 29-03-2022, sem que seja conhecido o seu desfecho (cfr. fls. 201-211, 212-215, 233). É interessante perceber que a inquirição de testemunhas e a prolação da decisão ocorreu em 25-08-2020, escassos dias depois de o registo do veículo identificado na alínea b) do ponto 1 dos factos provados ter sido efectuado na titularidade de EE. Interessante é também verificar que é dado por indiciariamente provado (sob alínea f)) que “desde a data da sua aquisição, o requerente vinha possuindo o CLIO e o MEGANE, continuadamente, em nome próprio, publicitando a sua venda a terceiros, abastecendo-os de combustível, cuidando da sua limpeza e manutenção, tudo à vista das pessoas do lugar onde reside, sem interrupções ou oposição de ninguém, como se de coisas suas se tratassem e nessa convicção”, quando, na realidade o que decorreu da prova produzida nos presentes autos é que o assistente não esteve nessa posse continuada, sendo até das suas declarações que decorre a entrega dos veículos ao arguido em Março de 2020 e que aí estariam até que fosse encontrado potencial comprador. Assim, a boa fé do assistente é aqui questionada pelo Tribunal.
- dos documentos juntos a fls. 229-232 pretendia-se alcançar a prova de quem havia efectuado os pagamentos de impostos relativamente aos veículos em questão, sucede que, não obstante o elenco das datas e pagamentos, nada decorre quanto a quem o fez, nem quanto ao NIF associado a tais pagamentos.
- a determinação dos antecedentes criminais registados gizou-se no Certificado do Registo Criminal junto aos autos a fls. 283”.
*
Conhecendo as questões suscitadas, cumpre decidir.
1.Da nulidade por falta de fundamentação
Invoca o Ministério Público, já nesta instância de recurso, que ocorre manifesta insuficiência da fundamentação de facto para se perceber de que modo o tribunal a quo chegou à decisão sobre os factos dados como provados e não provados, havendo uma descredibilização de toda prova que notoriamente em alguns pontos não é compreensível.
Acrescenta mesmo que a partir do texto da sentença absolutória se desconhece qual a prova em concreto que sustentou os factos dados como provados.
Contudo, lida a motivação de facto da sentença, mal se compreende alvitrada violação do art. 374º nº 2 do CPP, que sequer se mostra concretizada e aprofundada e da qual o Ministério Público tão pouco retira qualquer consequência, mormente a nulidade da sentença.
Parece querer arguir a nulidade da sentença, embora sem expressamente o dizer, com base em insuficiência da fundamentação.
Todavia, não se esconde, na verdade, é a clara concordância com a impugnação da matéria de facto por parte do recorrente.
Ora, perscrutada a motivação da decisão de facto da sentença imediatamente constatamos que dela consta a análise crítica da prova produzida em sede de audiência de julgamento, ali se enunciando os motivos que alicerçaram a convicção do tribunal recorrido para dar como provados e não provados todos os factos.
A sentença deve conter, sob pena de nulidade, o exame crítico da prova, que envolve a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas, os motivos de determinada opção por um ou outro dos meios de prova, as razões da credibilidade atribuída aos depoimentos, valoração de documentos e exames, que interferiram na formação da convicção do tribunal, de acordo com os comandos legais vertidos nos arts. 374º, nº 2 e 379º nº 1 alínea a) do CPP (sendo que este não é sequer mencionado pelo recorrente).
Pois sempre que observa o condicionalismo legal, a motivação de facto permite aos sujeitos processuais e ao tribunal superior a análise do percurso lógico ou racional em que se apoia a decisão de facto.
No entanto, o cumprimento da aludida exigência legal não impõe uma explanação total em que se descreva todo o caminho tomado pelo juiz para decidir, ou seja, todo o raciocínio lógico seguido, não sendo indispensável uma referência discriminada a cada facto provado e não provado e nem sequer a cada arguido, caso haja vários.
Exige-se, isso sim, é uma enunciação, ainda que sucinta, das provas que serviram para fundar a decisão e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido.
Ora, na decisão recorrida foi efectivamente levado a cabo o exame crítico do manancial probatório a que alude o citado art. 374º, nº 2, na medida em que da linear leitura da decisão recorrida é possível reter que dela consta a respectiva e obrigatória motivação da decisão da matéria de facto, na qual o tribunal explicita e examina de forma suficientemente detalhada em que se estribou para fixar a factualidade, analisando criticamente, naquilo que aqui se impunha, as provas de que se socorreu.
Efetivamente, a sentença recorrida inclui, em sede própria, a explanação do raciocínio lógico em que o tribunal a quo ancorou a decisão de facto, resultando, em suma, do narrado confronto dos meios de prova ali ponderados criticamente e sujeitos a contraditório em audiência, avaliados à luz das regras da experiência comum, como de resto decorre do principio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP).
Portanto, a sentença inclui menção completa da prova atendida e em que se ancora a convicção do tribunal, pelo que não ocorre falta de fundamentação daquela.
-
2.Da impugnação restrita da matéria de facto: erro notório na apreciação da prova e contradição insanável (alínea b e c) do n.º 2 do art.º 410 do C.P.P.
O recorrente suscita o erro de julgamento da matéria de facto, invocando a existência de erro notório na apreciação da prova, sendo que, no seu entender, face aos elementos probatórios por si indicados, não deveriam ter sido considerados provados os factos constantes dos n.ºs 1., 4. e 6, bem como, deveriam ter sido considerados provados os factos referidos nas alíneas A., C., E. e F.
Enquanto isso, o Ministério Público, já na segunda instância, vem invocar a contradição insanável entre os factos dados como provados, não provados e motivação de facto.
-
Os vícios decisórios – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova – previstos no nº 2 do art. 410º do CPP, traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, como dispõe a lei, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum.
Não é permitido, para a demonstração da sua verificação, o recurso a quaisquer elementos que sejam externos à decisão recorrida.
-
Da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Este vício ocorre, “(…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do Tribunal” – Ac STJ 13.10.99, Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano VII, Tomo III, p. 184.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques [1]: “Por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do nº2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.”
A contradição insanável ocorre ainda nas situações em que existe um vício“(…) ao nível das premissas que determina uma formação defeituosa da conclusão: se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível.” [2]
A contradição insanável ocorre no seio da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão. A fundamentação, para efeitos deste preceito e do próprio conceito, é não só aquela que se reporta ao facto, mas, também a que se reporta à decisão e a esta na sua relação com a fundamentação de facto.
A contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, revela-se em desarmonia intrínseca insanável, em termos de que a sua interligação se apresenta com resultados opostos sobre a mesma factualidade, não sendo possível, face ao texto da decisão recorrida, ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, obter o facto seguro, sem dúvidas, saber qual a factualidade provada, percetível, consistente e conjugável harmonicamente entre si. – cfr. STJ 2015-03-12 (Pires da Graça) www.dgsi.pt.
Mas, a divergência de convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e aquela que o Tribunal formou não se confunde com qualquer vício do artigo 410º nº 2 do Código Processo Penal [3].
Nesta instância de recurso o Ministério Público desenvolve a arguição deste vício de julgamento com base no seguinte (transcrição):
“Assim, como se pode verificar da motivação de facto apresentada na sentença recorrida o que se afirma é que se desconhece a quem pertencia a propriedade dos veículos vendidos pelo arguido, em que termos o assistente entregou os veículos ao arguido, qual o acordo existente entre eles e de que forma iriam partilhar a venda dos veículos a terceiros.
Para melhor compreensão se consigna o excerto da motivação de facto a este propósito « A prova documental constante dos autos foi circunstanciadamente analisada (como infra se especificará), porém, não trouxe qualquer elemento que pudesse permitir ao Tribunal perceber em que moldes se processavam os negócios de compra e venda de veículos entre AA e GG, quais as condições que ambos estabeleceram para esses negócios (os veículos pertenciam a ambos ou ficavam apenas à “consignação” para venda do arguido?), qual o acordo no que respeita à formalização dos negócios perante terceiros (o arguido tinha plena liberdade, ou a concretização do negócio tinha de ser finalizada pelo assistente?), nem sequer qual o entendimento que tinham quanto ao pagamento dos veículos (haveria repartição dos valores obtidos, pagamento de comissão ao arguido, ou confronto/acerto de contas?), etc.
Por outro lado, como se pode verificar dos factos dados como não provados, «A. Que GG entregou a AA os veículos referidos em 1 dos factos provados na qualidade de proprietário dos mesmos”.
Ora, não estando provada a propriedade dos veículos identificados nos factos provados e afirmando-se na motivação de facto que não foi possível perceber os termos do acordo existente entre arguido e assistente para a venda dos veículos, não se entende, porque contraditório, de que forma se dá como provado que os arguidos acordaram vender os veículos a terceiros e que exerciam a actividade de compra e venda de veículos em conjunto, tendo ido ambos a França adquirir tais veículos.
Na lógica da motivação de facto apresentada pelo Tribunal a quo ficou por apurar não só a propriedade dos veículos como de que modo foram os mesmos vendidos a terceiros e de que forma arguido e assistente se relacionavam nesses negócios.
Mas, também em sede de motivação de facto se afirma que não foi possível apurar a propriedade dos veículos constantes dos factos dados como provados e ao mesmo tempo reconhece-se que não foi possível afastar a presunção de propriedade resultante do registo automóvel a favor do assistente relativamente aos dois veículos.
Assim, em termos documentais os veículos identificados nos factos provados são do assistente, mas em sede de sentença recorrida essa propriedade não está apurada, apesar de se afirmar que o arguido e assistente foram adquirir tais veículos a França e que exerciam em conjunto a actividade de compra e venda de veículos automóveis.
Mais uma vez se reporta o excerto da motivação de facto da sentença recorrida «não poderá ter-se por afastada a presunção registral dos veículos, mas também não pode ter-se por assente, dada a confusão de negócios jurídicos celebrados entre arguido e assistente e face à ausência de qualquer tipo de contabilidade, quais os reais termos em que ocorreu a detenção dos veículos por parte do arguido».
Ora, neste ponto, assiste razão ao Ministério Público nesta instância de recurso.
Na verdade, analisada a motivação da sentença, o tribunal a quo tanto afirma a sua dúvida séria e fundada sobre a propriedade dos veículos, invocando o princípio do in dubio pro reo, como contraditoriamente diz, discorrendo sobre a presunção legal da titularidade do registo, que esta presunção “não poderá ter-se por afastada” ou “é inelutável que não foi sequer alegado ter existido uma impugnação aos actos registrais, pelo que, a presunção de propriedade poderá funcionar”.
Mas, se equívoco houvesse, a contradição insanável fica ainda mais evidenciada na fundamentação de direito, quando ali se afirma que:
“No caso dos autos, tendo por base a subsunção dos factos ao Direito, ficou provado que AA se encontrava na posse de dois veículos automóveis, que os vendeu a terceiros e recebeu quantias monetárias suficientes para esse pagamento. Contudo, apesar de os veículos automóveis se encontraram com factura emitida em nome do assistente, bem como registados na sua titularidade, a verdade é que o Tribunal não conseguir, dos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento, retirar com a segurança e certeza suficientes, se efectivamente os veículos eram propriedade do assistente ou se eram da propriedade de ambos, o Tribunal não conseguiu alcançar um elemento basilar – dado que entre ambos existiam negócios informais de compra e venda de veículos automóveis a terceiros, não se percebendo sequer quem fez o pagamento dos veículos, nem qual a razão de se deixar actuar o principio de prova da propriedade.
No caso dos autos, tendo por base a subsunção dos factos ao Direito, ficou provado que AA se encontrava na posse de dois veículos automóveis, que os vendeu a terceiros e recebeu quantias monetárias suficientes para esse pagamento. Contudo, apesar de os veículos automóveis se encontraram com factura emitida em nome do assistente, bem como registados na sua titularidade, a verdade é que o Tribunal não conseguir, dos meios de prova produzidos em audiência de discussão e julgamento, retirar com a segurança e certeza suficientes, se efectivamente os veículos eram propriedade do assistente ou se eram da propriedade de ambos, o Tribunal não conseguiu alcançar um elemento basilar – dado que entre ambos existiam negócios informais de compra e venda de veículos automóveis a terceiros, não se percebendo sequer quem fez o pagamento dos veículos, nem qual a razão de se deixar actuar o principio de prova da propriedade.
“A presunção derivada do registo automóvel, decorrente das disposições conjugadas dos artigos 29.º do Decreto-lei n.º54/75, de 12 de Fevereiro, e do artigo 7.º do Código do Registo Predial, é uma mera presunção "juris tantum", ilidível mediante prova em contrário (…).
Dito de outra forma, a prova constante dos autos não é suficiente para que se possa ter por ilidida a presunção decorrente do registo”.
Na medida em que o tribunal a quo não deu como provada a propriedade dos veículos a favor do assistente, facto que seria desfavorável ao arguido, não decidiu contra este e, portanto, apesar da dúvida por si objetivamente expressa, não violou o princípio do in dubio pro reo.
Por aqui não existe erro notório na apreciação da prova (art.410º, nº2, al.c), do Código Processo Penal), por violação deste princípio de direito probatório em matéria de facto, ante a proibição de um non liquet.
Mas, se o tribunal não resolveu contra o arguido o estado de dúvida resultante da falta de convicção sobre a verdade do facto que o desfavorecia, no caso a propriedade dos veículos, certo é que colocou a descoberto a contradição das suas premissas.
Nada obsta a que o tribunal utilize para prova de um facto penalmente relevante uma presunção jurídica, de natureza legal e relativa (ou seja, iuris tantum) [4], no caso a presunção legal decorrente da titularidade do registo automóvel.
Mas, se a prova é bastante para criar uma dúvida séria, objetiva e fundada sobre o juízo de probabilidade do juiz relativamente ao facto presumido, por inferência da presunção judicial ou legal, sendo esse facto desfavorável ao arguido, deverá o mesmo ser dado como não provado por demonstração de que a presunção é infundada no caso concreto, seja pela prova do seu contrário, seja pela dúvida objetiva e séria sobre a base lógica da presunção.
A admissibilidade da prova por presunções em processo penal é propensa a dúvidas pela sua articulação com o princípio da presunção de inocência do arguido.
Contudo, a presunção de inocência não é limitadora do princípio da liberdade de prova em processo penal nos termos do art.125º, do Código Processo Penal, aqui incluída a prova por presunção, em parte alguma proibida, antes legalmente prevista nos art.s 349º a 351º, do Código Civil [5].
Como bem refere o ac RC 29-11-2006 (Belmiro Andrade) www.dgsi.pt, “uma coisa é a presunção de inocência, outra, diferente, são os meios de prova relevantes para a prova do facto submetido a juízo, com respeito do exercício amplo do contraditório, designadamente a admissibilidade de um meio de prova legalmente previsto, a prova por presunção(…). Toda a presunção consiste em obter a prova de um determinado facto (facto presumido) partindo de um outro ou outros factos básicos (indícios) que se provam através de qualquer meio probatório e que estão estreitamente ligados com o facto presumido, de maneira tal que se pode afirmar que, provado o facto ou factos básicos, também resulta provado o facto consequência ou facto presumido”.
Contudo, na prova por presunção legal ou judicial não só há-de resultar provado(s) o(s) facto(s) básico(s), mas há-de determinar-se ainda a existência ou conexão racional entre esse(s) facto(s) e o facto consequência.
Daí se permitir, afirma o referido aresto, acompanhando Carlos Climent Duran, La Prueba Penal, p. 578-579, a análise de toda a prova produzida em sentido contrário, com vista a desvirtuar quer os indícios quer a conexão racional entre esses indícios e o facto consequência.
O conceito jurídico de presunção refere-se “à presunção em concreto, uma vez que deixou de ser uma norma ou regra abstracta, por ter-se praticado, ou podido praticar-se, a prova do contrário, com o que então a presunção deixa de ser uma conjectura e se converte em certeza plena. Portanto convém assentar na afirmação de que a presunção jurídica produz uma certeza completa ou prova plena, e não é equiparável à simples conjectura, suspeita ou possibilidade probatória que é própria da presunção vulgar” – ob. cit. p. 577-578.
“Sendo a presunção abstracta constituída por uma norma ou regra de presunção, susceptível da prova em contrário, pode ter sido estabelecida pela lei ou por decisão judicial, apoiando-se, em ambos os casos, em alguma máxima da experiência. Apresentando uma estrutura em que os factos básicos estão conexionados através de um juízo de probabilidade, que por sua vez se apoia na experiência, de maneira tal que a prova de um envolve a prova de outro.
Enquanto a presunção concreta supõe a projecção da presunção abstracta sobre o caso ajuizado ou, se se preferir, a subsunção do caso concreto dentro da presunção abstracta, uma vez que se tenha praticado ou podido praticar a correspondente contraprova e se tenha comprovado judicialmente a existência de uma ligação racional entre os indícios e o facto presumido, com descarte de qualquer outro possível facto presumido. Aqui, em rigor já não cabe falar de facto presumido, mas antes de facto provado. Porque o seu fundamento já não assenta no juízo de probabilidade, mas antes no juízo de certeza (certeza moral), como qualquer outro meio probatório ao qual a presunção se parifica”. – cfr. ob. cit. p. 587.
Daí que, como conclui o citado ac RC 29-11-2006 (Belmiro Andrade) www.dgsi.pt, “radicando o meio de prova por presunção uma presunção concreta no sentido explanado, assente em dados objectivos concretos, ou em “factos indiciários típicos”, aceites como tais no ramo da actividade em que se inserem, devidamente explicitados, com efectiva possibilidade de serem contraditados, nada impede, legalmente, mesmo em processo penal, a sua utilização como meio de prova legal que é”.
Não sendo afastada a sua relevância no processo penal, por qualquer disposição legal, a presunção legal ou judicial constituirá meio(s) de prova permitido, dentro do princípio geral do art. 125º do CPP: São admissíveis todas as provas que não forem proibidas por lei. «No entanto, a utilização de presunções em direito penal, por efeito da necessidade de convívio com os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, exige, da parte do tribunal, um particular esforço de fundamentação, dado que não incide directamente sobre o facto probando, antes se inferindo de outro facto provado.
Admissível a prova indiciária em processo penal, a qual equivale à prova por presunção judicial em processo civil (art.351º, do Código Civil), não existe razão para excluir do princípio da liberdade da prova em processo penal (art.125º, do Código Processo Penal) o funcionamento pleno da prova por presunção legal (art.350º, do Código Civil), “sempre que com base num facto plenamente acreditado e demonstrado, dele possa inferir-se a existência de um outro, por haver entre ambos um enlace preciso e directo segundo as regras do critério humano mediante um processo mental racional”.
A presunção legal (no sentido de prevista na lei) contanto que não constitua uma presunção de ilicitude ou de culpa do arguido, mas apenas uma presunção de natureza fáctica, probatória, de conteúdo semelhante às presunções judiciais de prova do facto, é perfeitamente admissível no estrito âmbito da liberdade da prova em processo penal (art.125º, do Código Processo Penal).
Dito isto, se o tribunal a quo afirma que não pode afastar a presunção da titularidade resultante do registo automóvel, então também não poderá deixar de concluir pela propriedade dos veículos a favor do assistente.
O que o tribunal não pode, sem incorrer em contradição insanável, é dizer isto e simultaneamente o seu contrário, escrevendo como honesta e razoável a dúvida sobre o facto presumido, que é dizer a dúvida sobre a aquisição e propriedade dos veículos.
A valoração da prova por presunções também se encontra sujeita em última instância ao princípio in dubio pro reo, donde decorre que, perante a dúvida razoável sobre o facto constitutivo do crime (desfavorável ao arguido) deve ter-se como não provado o facto presumido.
Contudo, ter-se-á igualmente em conta que a presunção legal de inocência do arguido não pode nunca ser convertida em presunção de verdade das suas declarações (negação simples ou motivada) em relação aos factos que o favorecem constitutivos do crime.
Da dúvida sobre a realidade do facto desfavorável ao arguido, quando integradores do tipo de crime, não resulta que o tribunal deva julgar provado o facto alegado pelo arguido contrário ao facto da acusação, ou seja, julgarem-se provados os factos duvidosos favoráveis ao arguido – cfr. RE 20.10.2015 (António Latas) www.dgsi.pt.
No caso concreto, só depois de clarificado na fixação e motivação de facto se algum dos veículos ou ambos pertenciam ou não ao assistente e, na afirmativa, em que medida, se pode inferir de forma segura, na conjugação com a restante prova, que também o assistente acordou com o arguido na sua venda a terceiros e tinha ou não direito ao recebimento e/ou compensação ao respetivo preço de revenda.
De resto, se alguma dúvida séria e objetiva vem expressa na sentença é precisamente sobre a existência e os termos do acordo de revenda das viaturas por parte do arguido e/ou do assistente.
Percorrido o texto da motivação também não se vê escrito qual o meio de prova, sujeito à analise critica do julgador, que serviu para dar como provado no ponto 4. que foi após maio de 2020 que o assistente ficou na posse do Opel ..., com a matrícula ..-LS-...
Da mesma forma que não se percebe, só contraditoriamente se compreende, porque razão se deu como não provada a alínea B), isto é, o veículo Opel ... referido em 2 dos factos provados serviu de parte do pagamento do veículo identificado em 1, alínea b) dos factos provados, quando, paradoxalmente se deu como provado que tal viatura foi recebido anteriormente da mesma EE como retoma na venda pelo arguido do ..., com a matrícula ..-..-GV.
Neste concreto ponto recorda-se com o ac RP de 7/6/2017 (Jorge Langweg) www.dgsi.pt, que “o exame crítico dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento “só será suficiente quando identificar cabalmente o percurso lógico-dedutivo que presidiu à convicção firmada, não se confundindo com referências genéricas que, de tão abstratas, genéricas e esvaziadas de conteúdo preciso, ou que apenas reproduzam – total, ou parcialmente - o teor da prova produzida, não permitam perceber o que de útil, em concreto, o tribunal extraiu e valorou de cada meio concreto de prova produzido em julgamento e o motivo pelo qual assim decidiu.”.
Já quanto ao ponto 6. dos factos provados nenhuma contradição existe, mas trata-se de facto inócuo, saber se o arguido e assistente se dedicavam conjuntamente à compra e venda de veículos e se se deslocaram juntos a França para fazer a aquisição destes dois veículos.
A deslocação de ambos a França nada diz sobre a titularidade da aquisição, como é irrelevante se conjuntamente exerciam a atividade de compra e venda de veículos. Apenas a compra para revenda das duas viaturas, ..., com a matrícula ..-..-FP, e ..., com a matrícula ..-..-GV, estão em causa.
Daí que este facto probatório (ponto 6.), que não consta sequer da acusação, nem contestação (esta – aliás - não apresentada pelo arguido), deva ser tido como não escrito ou eliminado.
De resto, se bem interpretamos a expressão do raciocínio seguido na motivação da sentença, a incerteza sobre a propriedade das viaturas acabou por inquinar os restantes factos não provados conexionados com a mesma e constantes das alíneas C) a F).
A não ser assim, não se compreende, senão contraditoriamente, que se dê como não provado, já que no essencial é consensual entre o arguido e o assistente, que o arguido não entregou ao assistente qualquer dinheiro recebido da revenda das viaturas, nem qualquer destas, apesar de instado por este para o efeito.
Não se alcança da motivação da sentença a razão para se dar como não provado que o arguido não restituiu o veículo ..., com a matrícula ..-..-FP ao ofendido, apesar de instado pelo mesmo para esse efeito, independentemente de ser ou não proprietário da viatura.
Em resumo, tendo-se como não escrito o ponto 6. dos factos provados, no mais, a motivação de facto é contraditória ou inexistente para fundamentar de forma correta e segura:
a) a decisão sobre os factos provados nos pontos 1.,
b) o segmento “mas situada após o mês de Maio de 2020” do ponto 4º
c) a decisão sobre os factos não provados nas alíneas A) a F) inclusivas.
Por conseguinte, não se afigurando ser possível nesta sede de recurso suprir o vício e, portanto, decidir a causa, impõe-se o reenvio do processo para novo julgamento, limitado a toda a matéria de facto dada como não provada e à matéria de facto provada sob ponto 1) e o segmento “mas situada após o mês de Maio de 2020” do ponto 4º.
Entende-se assim que a eliminação deste vício passa pela necessidade de renovação parcial do julgamento sobre aquela matéria de facto, já que em face dos elementos disponíveis não é suscetível de sanação pelo tribunal ad quem.
A decisão de reenvio parcial prejudica o conhecimento das demais questões colocadas no recurso.
No mais, eliminado o ponto 6º dos factos provados, mantem-se incólume a matéria de facto assente na sentença, que como se analisou não foi impugnada.
***
3. DECISÃO
Nesta conformidade, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento parcial ao recurso interposto pelo recorrente assistente e em consequência:
a) eliminado o ponto 6º dos factos provados;
b) julgar verificado o vício da alínea b) do nº 2, do art. 410º do CPP, determinando, em consequência, o reenvio parcial do processo ao tribunal recorrido para novo julgamento limitado aos factos supra referidos, nos termos do disposto nos artigos 426.º, n.º 1, e 426.º-A do CPP, proferindo-se então nova sentença em que, suprido o vício aludido, se decida em conformidade.

Sem tributação.

Notifique.

(Elaborado e revisto pelo relator – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
-
Porto, 17 de maio de 2023
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Carla Oliveira
_____________________
[1] Código de Processo Penal, 2ª ed. II vol, pág.379.
[2] Ac do STJ de 28/10/1998 no Proc. Nº JSTJ00035662.
[3] Ac STJ 13/07/2005 e STJ de 17/03/2004, ambos do Cons. Henriques Gaspar, in www.dgsi.pt
[4] A presunção de inocência, tendo como corolário o princípio do in dubio pro reo, perante a incerteza de um facto probando constitutivo do crime, mas que também poderá abranger os factos extintivos, modificativos ou justificadores do crime, embora não seja entendida pela generalidade da doutrina como uma verdadeira presunção legal em sentido técnico jurídico, não deixa de ser tratada como uma regra em matéria de direito probatório – cfr. Alexandra Vilela, in Considerações acerca da presunção de inocência em Direito Processual Penal, 2000, Coimbra Editora, pg.83.
[5] Nos termos do artigo 349º do C. Civil “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido”.
Sob a epigrafe “Presunções legais”, o art.350º, do Código Civil, estabelece: “1. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz. 2. As presunções legais podem, todavia, ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir”.
Esclarecendo o artigo 351º do mesmo diploma que “As presunções judiciais só são admitidas nos casos e termos em que é admitida a prova testemunhal”.