Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
407/19.0T8FLG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
OBRIGAÇÕES DE MEIOS
Nº do Documento: RP20200514407/19.0T8FLG.P1
Data do Acordão: 05/14/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados (EOCC), tal como o Código Deontológico dos Contabilistas Certificados (CDCC), visam a dignificação e valorização do exercício da profissão de contabilista certificado por um lado e, por outro, responsabilizar quem usufrua desses mesmos serviços.
II - O novo contabilista certificado tem somente a obrigação de envidar todos os esforços (obrigação de meios) para que a dívida ao seu antecessor (desde que líquida e exigível) seja liquidada. Não se lhe incumbindo a obrigação de conseguir que a mesma dívida seja, de facto, satisfeita (obrigação de resultado).
III - É que, o estabelecimento de uma obrigação de meios para o novo TOC, devendo este desenvolver todas as diligências junto do seu cliente para que este cumpra as suas obrigações para com o seu antecessor, deve bastar para o reforço dos laços de solidariedade entre todos os profissionais em causa, sem que essa solidariedade prejudique o interesse público basilar em que assenta o estatuto que legalmente é estabelecido para a mesma.
IV - As obrigações do novo TOC cumprem-se e esgotam-se em momento prévio ao da assunção das responsabilidades enquanto tal, cumprindo, nesse momento: 1. O dever de contactar, por escrito, o contabilista certificado cessante; 2. O dever de se certificar de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos – cit. artº 74º, nº2.
V - É esse, e apenas esse, o momento a ter em conta para aferir da responsabilidade do “novo” contabilista certificado, nos termos do disposto no artº 74º, nº3, do EOCC.
VI - Tão somente numa situação de declarado incumprimento dos referidos deveres é que faz sentido aferir da eventual responsabilidade do novo TOC (obrigação de pagamento dos valores em falta).
VII - O novo TOC não tem o ónus de fiscalização do cumprimento do acordo de pagamento da dívida de honorários e/ou despesas ao seu antecessor. Impor-lhe esse ónus era, na prática, deixá-lo à mercê de uma álea sobre a qual não tem qualquer domínio ou poder de direcção.
VIII - Não nos devemos ater a uma interpretação puramente literal do artº 74º do EOCC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. 407/19.0T8FLG.P1
Relator: Fernando Baptista
Adjuntos:
Des. Amaral Ferreira
Des. Deolinda Varão

I. RELATÓRIO

SUMÁRIO:
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Acordam na Secção Cível do tribunal da Relação do Porto

B…, Lda.”, com sede na …, …, …, ….-… Felgueiras, intentou acção declarativa de condenação contra C…, contabilista certificado, residente na Rua …, s/n, …, …. Felgueiras.
Pede a condenação do réu a pagar-lhe a quantia de 12.752,45 € (doze mil, setecentos e cinquenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos), acrescida de juros legais até integralmente pagamento.
Alega a Autora, para o efeito e sem síntese, que se dedica à prestação de serviços de contabilidade e consultadoria fiscal tendo, nesse âmbito, prestado serviços à sociedade
“D…, LDA.”.
Mais alega que, para efeito de pagamento dos serviços prestados, foi subscrita pela aludida sociedade um documento designado de “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento por Documento Particular Autenticado”, o qual veio a ser incumprido, uma vez que apenas algumas das respectivas prestações foram pagas.
Mais alega que o Réu veio a assumir a prestação de serviços de contabilidade da aludida empresa, sendo que, uma vez que a mesma deixou de liquidar as prestações a que se tinha obrigado, está o Réu obrigado a fazê-lo, de acordo com o previsto no artigo 74º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados.
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Citado, o Réu contestou, pugnando pela improcedência da acção, sustentando, em suma, que cumpriu todas as obrigações decorrentes do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, não lhe podendo ser assacada nenhuma responsabilidade pelo incumprimento, por parte da referida sociedade, quanto à assunção de dívida ulterior à sua assunção de funções.
Mais entende que a interpretação do artigo 74.º, n.º 2 a 4 do Estatuto dos Contabilistas Certificados, Lei n.º 139/2015 de 7 de Setembro e artigo 16.º, n.º 2, do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados no sentido de que os contabilistas certificados, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que anteriormente estivessem a cargo de outro contabilista certificado, apenas podem aceitar exercer tal cargo se os honorários, despesas e salários inerente à sua execução se encontrem pagos sob pena de ficarem constituídos na obrigação de pagamento dos valores em falta, desde que líquidos e exigíveis, é materialmente inconstitucional por violação dos princípios da legalidade e da proporcionalidade previstos nos artigos 266º e 18º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Foi proferido despacho saneador onde foram aceites, por acordo, o teor dos documentos juntos aos autos, bem como os factos elencados na respectiva acta.

Foi, por fim, proferida sentença na qual se julgou a acção improcedente e, em consequência, se absolveu o Réu do pedido.

Inconformada com esta sentença, dela recorreu a Autora B…, Lda, apresentando alegações que remata com as seguintes
CONCLUSÕES
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Foram apresentadas contra-alegações, ali se pugnando pela improcedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO
II.1. AS QUESTÕES

Tendo presente que:
- O objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (arts. 635º, nº4 e 639º, do C. P. Civil);
- Nos recursos se apreciam questões e não razões;
- Os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão suscitada no recurso consiste em saber se o Réu (contabilista certificado) cumpriu com as suas obrigações emergentes do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, e se, não as tendo cumprido, é então responsável pelo pagamento à Autora do montante em dívida por serviços prestados pelo anterior TOC (Técnico Oficial de Contas - igualmente certificado) ao seu cliente (D…, Lda, cuja contabilidade assumiu) antes de para este ter iniciado a prestação de tais serviços.
O que implica, também, aferir se acordo para pagamento em prestações daquela dívida, celebrado entre o devedor principal (D…, Lda) e a Autora (B… …, Lda), desonera o Réu (TOC) da obrigação (solidária) ínsita no artº 74º daquele Estatuto.

II.2. OS FACTOS
No tribunal a quo deram-se como provados os seguintes factos:
1. A Autora dedica-se à prestação de serviços de contabilidade e consultadoria fiscal.
2. O Réu exerce as funções de contabilista certificado, o que faz com carácter regular e lucrativo, encontrando-se inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados, com a cédula n.º 82198.
3. A Autora, no exercício da sua actividade manteve relações comerciais com a sociedade D…, Lda., sociedade por quotas, NIPC ………, com sede no …, …, ….-… Felgueiras, tendo-lhe prestado serviços de contabilidade e consultadoria.
4. Quer a empresa, quer o seu sócio de facto, quer o de direito, E… e F…, respectivamente, filho e pai, assumiram perante a Autora a liquidação da dívida em prestações, conforme se alcança do documento cuja cópia se junta sob o doc. n.º 2 e aqui se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais.
5. A Autora foi, em 10.10.2017, contactada pelo Réu, contabilista certificado, por intermédio de correio electrónico no qual lhe dava conhecimento ter sido contactado, para assumir a responsabilidade pela contabilidade da D…, escrevendo o seguinte: “…e em cumprimento do n.º 2, do Artigo 74.º, do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e do n.º 2, do Artigo 16.º, do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, sirvo-me da presente para solicitar que se pronuncie quanto à eventual existência de quantias em dívida (honorários e/ou despesas) inerentes à execução da contabilidade.
6. Em resposta, a Autora informou o Réu nos seguintes termos: “Confirmo que recebi hoje da parte da D… um comprovativo de transferência, no montante de € 1.722,00 para liquidação das avenças vencidas relativas aos meses de Abril a Julho de 2017. Mais informo que no dia 10/05/2017 foi celebrado um acordo de pagamento de dívida vencida (até Março de 2017), no montante de € 14.604,38, em 33 prestações mensais. Espero que a D… continue a cumprir o acordo pagando pontualmente o valor da mensalidade. Quanto à senha que solicita já foi ontem enviada por email para a D…, por isso agradeço que lhes peça directamente.
7. Sucede que, em face do incumprimento por parte da D…, Lda. (bem como dos seus fiadores na declaração de dívida de 10-05-2017), a Autora, por correio electrónico de 13-07-2018, notificou o Réu nos seguintes termos: “Caro colega, Venho dar-lhe conhecimento que a D…, Lda, apesar de todas as diligências da nossa parte, não cumpriu o pagamento da dívida que tem para com a B… e que lhe dei nota no email de 10-10-2017. Nesse sentido venho informá-lo que, nos termos do artigo 74.º, dos Estatutos da Ordem dos Contabilistas Certificados, está obrigado ao pagamento da dívida existente. Fico a aguardar que nos informe como pretende proceder à liquidação da referida dívida, pois caso contrário teremos de recorrer à via judicial.”
8. No dia 10 de Maio de 2017, foi celebrado entre a Autora, a sociedade D…, Lda., E… e F…, um documento denominado de “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento por Documento Particular Autenticado.”
9. Em que a primeira se confessa devedora à aqui Autora do montante de € 14.604,38, resultante de serviços a esta prestados pela primeira.
10. Que se comprometeu a efectuar o pagamento da quantia em dívida em trinta e três prestações mensais e sucessivas, sendo trinta e duas prestações no montante de € 450,00 e a última no montante de € 204,38.
11. Vencendo-se a primeira, no montante de € 450,00 no dia 10 de Maio de 2017 e as seguintes, em igual dia dos meses subsequentes.
12. Por referência aos artigos 54.º a 60.º da contestação, apenas foram pagas algumas prestações do acordo supra aludido.
13. No início do mês de Outubro de 2017 foi o Réu contactado pela gerência da empresa D…, Lda. para assumir a responsabilidade pela contabilidade de tal empresa.
14. Perante tal contacto, o Réu, C…, questionou imediatamente a gerência da empresa sobre a identificação do contabilista certificado que lhes havia prestado serviços de contabilidade até àquele momento.
15. Tendo sido informado de que o anterior contabilista certificado da empresa havia sido G….
16. Em momento seguido ao convite que lhe foi dirigido pela empresa, e antes de o aceitar, o Réu, C…, entrou imediatamente em contacto com o seu Colega de Profissão, G…, por escrito, em concreto, através de comunicação electrónica, questionando-o acerca da “eventual existência de quantias em dívida (honorários e/ou despesas) inerentes à execução da contabilidade.”
17. Tendo o identificado Contabilista Certificado respondido que “no dia 10-05-2017 foi celebrado um acordo de pagamento de dívida vencida (até Março de 2017), no montante de € 14.604,38, em 33 prestações mensais, tendo então acrescentado: "Espero que a D… continue a cumprir o acordo pagando pontualmente o valor da mensalidade".

III. O DIREITO

Vejamos, então, as questões suscitadas no recurso.

Em causa está, como visto, saber se o Réu (contabilista certificado) cumpriu com as suas obrigações emergentes do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e se, não as tendo cumprido, é responsável pelo pagamento à Autora do montante em dívida por serviços prestados pelo anterior TOC (Técnico Oficial de Contas - igualmente certificado) ao seu cliente (D…, Lda, cuja contabilidade assumiu) antes de para este ter iniciado a prestação de tais serviços.
O que, como dissemos, implica, também, aferir se a existência do acordo para pagamento em prestações daquela dívida, celebrado entre o devedor principal (D…, Lda) e a Autora (B… …, Lda), desonera o Réu (TOC) da obrigação (solidária) ínsita no artº 74º daquele Estatuto.

Entendeu-se na sentença recorrida que, atenta a factualidade apurada, o Réu cumpriu com as obrigações que para si emergiam daquele Estatuto, nada mais se lhe sendo exigível, não devendo, como tal, responder por aquela dívida.
Quid juris?

Como consta da relação dos factos provados, entre a D…, Lda (juntamente com os seus sócios - pai e filho), e a Autora foi outorgado, em 10.5.2017, um documento intitulado de “Confissão de dívida e acordo de pagamento”, pelo qual aqueles assumiram (solidariamente) perante a Autora a liquidação, em prestações, da dívida emergente dos serviços de contabilidade prestados pela A. à D…, Lda., tudo nos termos que constam do mesmo documento.
Na pendência desse acordo de pagamento, a Autora foi (em 10.10.2017) contactada pelo Réu, contabilista certificado, sobre a possibilidade de assumir a responsabilidade pela contabilidade da D…, sendo que em tal comunicação constava, nomeadamente: “…e em cumprimento do n.º 2, do Artigo 74.º, do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e do n.º 2, do Artigo 16.º, do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, sirvo-me da presente para solicitar que se pronuncie quanto à eventual existência de quantias em dívida (honorários e/ou despesas) inerentes à execução da contabilidade.
A Autora respondeu a essa missiva do Réu, referindo que: Confirmo que recebi hoje da parte da D… um comprovativo de transferência, no montante de € 1.722,00 para liquidação das avenças vencidas relativas aos meses de Abril a Julho de 2017. Mais informo que no dia 10/05/2017 foi celebrado um acordo de pagamento de dívida vencida (até Março de 2017), no montante de € 14.604,38, em 33 prestações mensais. Espero que a D… continue a cumprir o acordo pagando pontualmente o valor da mensalidade. Quanto à senha que solicita já foi ontem enviada por email para a D…, por isso agradeço que lhes peça directamente.”[1].
Subsequentemente, no início do mês de Outubro de 2017, foi o Réu contactado pela gerência da empresa D…, Lda, para assumir a responsabilidade pela contabilidade dessa empresa, tendo, então, o Réu tido o cuidado de questionar imediatamente a gerência da empresa sobre a identificação do contabilista certificado que lhes havia prestado serviços de contabilidade até àquele momento, tendo-lhe, então, sido informado que o anterior contabilista certificado da empresa havia sido G….
Imediatamente após esse convite que lhe foi dirigido pela D…, e antes de o aceitar, o Réu entrou em contacto com o seu Colega de Profissão, G…, por escrito, em concreto, através de comunicação electrónica, questionando-o acerca da “eventual existência de quantias em dívida (honorários e/ou despesas) inerentes à execução da contabilidade.”, ao que este informou o Réu que “no dia 10-05-2017 foi celebrado um acordo de pagamento de dívida vencida (até Março de 2017), no montante de € 14.604,38, em 33 prestações mensais”, tendo, ainda, acrescentado: "Espero que a D… continue a cumprir o acordo pagando pontualmente o valor da mensalidade".

Ou seja, resulta, inequivocamente, desta factualidade que o réu foi diligente no cumprimento das obrigações que sobre si impendiam, pois que, só depois de fazer as aludidas diligências – quer junto da D…, quer junto do anterior contabilista dessa firma e obter as referidas informações, em especial a informação de que havia sido celebrado o acordo de pagamento da dívida entre a Autora e a devedora principal, D…, Lda – o Réu aceitou assumir as funções de contabilista da D…, Lda.
Postura correcta do Réu que nos não merece censura ou reparo.
Por outro lado, atente-se que – como resulta da factualidade apurada – só bastante tempo após ter iniciado a prestação dos serviços de contabilidade para a sua cliente D…, Lda., é que a Autora informou o réu (por correio electrónico de 13-07-2018) que a D… havia incumprido o aludido acordo de pagamento da dívida, nessa mesma missiva lhe dando ainda conta de que “… nos termos do artigo 74.º, dos Estatutos da Ordem dos Contabilistas Certificados, está obrigado ao pagamento da dívida existente…”.

Pergunta-se: atentos estes factos, é exigível (agora) ao Réu o pagamento da peticionada?
Não nos parece.

Prescreve o art.º 74º da Lei 139/2015 de 7 de Setembro[2] (ESTATUTO DA ORDEM DOS CONTABILISTAS CERTIFICADOS):
“Deveres recíprocos dos contabilistas certificados
1 - Nas suas relações recíprocas, constituem deveres dos contabilistas certificados colaborar com o contabilista certificado a quem tenham sido cometidas as funções anteriormente a seu cargo, facultando-lhe todos os elementos inerentes e prestando-lhe todos os esclarecimentos por ele solicitados.
2 - Os contabilistas certificados, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro contabilista certificado, devem, previamente à assunção da responsabilidade, contactar, por escrito, o contabilista certificado cessante e certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.
3 - A inobservância dos deveres referidos no número anterior constitui o contabilista certificado, a sociedade profissional de contabilistas certificados e ou o diretor técnico da sociedade de contabilidade na obrigação de pagamento dos valores em falta, desde que líquidos e exigíveis.
4 - Sempre que um contabilista certificado tenha conhecimento da existência de dívidas ao contabilista certificado anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade.”.
Em sintonia, diga-se, com o estatuído no artigo 56º nº 2 do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados (EOCC), aprovado pelo Decreto-Lei nº 452/99, de 05/11, na versão dada pelo Decreto-Lei nº 310/2009, de 26/10[3].

Na mesma senda vai o Código Deontológico dos Contabilistas Certificados (CDCC), aprovado pelo Decreto-Lei 310/2009, de 26/10, na redacção dada por tal diploma, estabelecendo no artigo 17º nº 2 que “Sempre que um técnico oficial de contas seja solicitado a substituir outro técnico oficial de contas deve, previamente à aceitação do serviço, solicitar-lhe esclarecimentos sobre a existência de quantias em dívida, não devendo aceitar as funções enquanto não estiverem pagos os créditos a que aquele tenha direito, desde que líquidos e exigíveis”.

Visa-se com tais normativos a dignificação e valorização do exercício da profissão, socialmente relevante, de contabilista certificado por um lado e, por outro, responsabilizar quem usufrua desses mesmos serviços, dessa forma se “impedindo o seu aviltamento, quer por terceiros, não pagando os respectivos serviços, quer pelos próprios, propiciando os actos desses terceiros com actos de disputa de clientela. A defesa deste valor é prosseguida com a interacção entre o novo técnico e o técnico anterior, em ordem a que o serviço em causa só possa continuar a ser prestado e recebido desde que pago o respectivo preço”[4].

Várias questões ou dúvidas, porém, se podem, aqui, suscitar, tais como:
1. Pressupondo a obrigação de pagamento dos valores em dívida aludidos no aludido artº 74º, nº3, que os mesmos sejam líquidos e exigíveis, será que na situação sub judice se pode dizer que tais requisitos da liquidez e exigibilidade estavam preenchidos?
2. Qual o momento a ter em conta para aferir da responsabilidade do “novo” contabilista certificado: bastará atender apenas ao momento prévio ao da sua assunção da prestação de serviços de contabilidade?
3. Qual o âmbito ou dimensão da obrigação do novo contabilista certificado, quando contactado para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro contabilista certificado, antes de aceitar tal responsabilidade – o que pressupõe, então, a abordagem dos seguintes pontos:
- Que tipo de obrigação é a sua?
- Devemo-nos bastar com uma interpretação literal daquele artº 74º?

Vejamos.

• O montante em dívida pela D… à Autora à data da assunção pelo réu da contabilidade daquela era líquido e exigível?
Estamos, sem dúvida, perante obrigação líquida, na medida em que é (era) de “quantum” determinado: os €14.604,38. Foi, apenas, acordado (em 10.5.2017) que o seu pagamento fosse repartido no tempo, em 33 prestações mensais e sucessivas.
Já, porém, não nos parece que a obrigação fosse, então, exigível. É que a exigibilidade verifica-se com o tempo do vencimento (ut artigo 777.º do Código Civil). E, por via do dito acordo de pagamento – livremente aceite pela ora Autora, acentue-se –, foi “reformulada” a forma de pagamento da dívida, disseminando-a ou estendendo-a no tempo. Logo, à data da assunção da contabilidade da D… pelo réu C…, a dívida aqui peticionada não era exigível.
Veja-se que dos factos assentes resulta que à data em que o réu deu a saber à Autora que havia sido contactado para assumir a responsabilidade pela contabilidade da D…, Lda, esta (a devedora) estava a cumprir o aludido acordo de pagamento da dívida.
Não se verifica, portanto, o citado pressuposto da exigibilidade da obrigação de pagamento, exigido por aquele artº 74º do Estatuto – embora, diga-se, sempre continue a pairar no ar a dúvida sobre se a actuação do Réu foi bastante para se poder considerar ter cumprido, cabalmente, o previsto no Estatuto que rege a sua profissão, nos sobreditos termos (artº 74º - e, outrossim, artº 17º do Código Deontológico).

A que momento deve atender-se para aferir da responsabilidade do “novo” contabilista certificado (o Réu)? Bastará atender ao momento prévio ao da sua assunção da prestação dos serviços de contabilidade?
Cremos que basta.
Efectivamente, sem embargo de compreendermos a argumentação da Apelante, custa-nos sobremaneira aceitar que sobre o Réu deva impender o ónus de fiscalização do cumprimento do acordo celebrado para pagamento da dívida de honorários e/ou despesas decorrentes da prestação de serviços do contabilista seu antecessor.
O que nos parece dever ser analisado – e tanto basta – é se o réu cumpriu com os seus deveres à data em que foi solicitado para a prestação dos serviços de contabilidade, ou seja, se cumpriu tais deveres antes de aceitar assumir tais responsabilidades.
Ora, é, no nosso ver, de todo, inaceitável que o Réu fosse obrigado a permanecer impedido de aceitar assumir a contabilidade da D…, Lda durante todo o período em que perdurasse o acordo de pagamento: durante os quase…3 anos, correspondentes às 33 prestações mensais do acordo! Veja-se que, v.g., caso as prestações viessem a ser satisfeitas regularmente durante dois anos e meio, deixando apenas então de o ser, o réu, para além de se ver impedido de exercer a contabilidade do cliente durante todo esse longo período temporal (o que, diga-se, podia ocorrer com vários outros potenciais clientes, em idêntica situação, que lhe houvessem solicitado a prestação de serviços), ainda teria de suportar, durante todo esse período de cumprimento do acordo de pagamento, uma “espada de Dâmocles”, qual seja, ter ainda de, passado todo esse tempo, pagar a dívida remanescente!
Temos como seguro que o mais razoável (e justo) é aceitar que o dever do novo TOC se cumpre e esgota em momento prévio ao da assunção das responsabilidades enquanto tal e desde que, é claro, se cumpra.
Não pode, nunca, olvidar-se que a Autora não era obrigada a aceitar o acordo de pagamento. Se o aceitou foi porque quis, logo, assumindo as inerentes consequências. Sibi imputet. Não faz sentido que queira manter a responsabilidade do Réu durante todo o período da renegociação do prazo de pagamento da dívida – ou seja, fazer acrescentar aos três devedores (solidários) que já constam do dito acordo de pagamento (a D…, Lda., e os seus sócios), ainda mais um (o ora Réu).
Nesta senda, cremos que razão assiste à decisão recorrida, quando refere que impor que o novo TOC fiscalize o cumprimento de um acordo de pagamento que, à data da assunção de responsabilidades, se encontrava em cumprimento, é onera-lo de forma injustificada e excessivamente onerosa. É, na prática, deixa-lo à mercê de uma álea sobre a qual não tem qualquer domínio ou poder de direcção e, por outro, votar o cliente (que se encontrava em cumprimento) a uma possibilidade séria de não ter quem assuma a contabilidade, por não estar disposto a correr esse risco.

• Em conjugação com o já explanado, questiona-se, então, sobre qual o âmbito ou dimensão da obrigação do novo contabilista certificado, quando contactado para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro contabilista certificado, antes de aceitar tal responsabilidade? O que implica, designadamente, perguntar:
- Que tipo de obrigação é a sua?
- Basta-nos uma interpretação literal daquele artº 74º?

Como visto, o artº 74º, nº2 do estatuto reza que os contabilistas certificados, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro contabilista certificado, devem, previamente à assunção da responsabilidade, contactar, por escrito, o contabilista certificado cessante e certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.
Daqui ressalta serem dois os deveres que sobre si impendem: 1. Contactar, por escrito, o contabilista certificado cessante; 2. Certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.

Ora, já vimos que tais deveres devem ser cumpridos em momento prévio ao da sua assunção da prestação dos serviços de contabilidade.
E, como igualmente observámos, o Réu cumpriu esses mesmos deveres (por via da missiva que endereçou à Autora e, outrossim, da que endereçou ao seu antecessor na contabilidade da D…, Lda).
E, é claro, tão somente numa situação de declarado incumprimento por parte do réu/Recorrido dos deveres previstos no nº 2 do citado artigo 74.º – que não vemos que tenha ocorrido – é que faria sentido aferir da sua eventual responsabilidade: é a lei a dizer, de forma expressa, no nº 3 daquele preceito, que apenas a inobservância dos deveres ali aludidos – no nº 2 – constitui o contabilista certificado na obrigação de pagamento dos valores em falta.
Ao que acresce o que igualmente ficou dito: não tinha o novo TOC (o Réu) o ónus de fiscalização do cumprimento do acordo de pagamento da dívida, acordo esse que – percute-se – se encontrava em cumprimento à data da assunção de responsabilidades.

Uma palavra sobre a natureza da obrigação que impedia sobre o Réu, para dizer que, obviamente, não faz qualquer sentido falar-se aqui em obrigação de…resultado: conseguir o efectivo pagamento da dívida por banda da D…, Lda., à Autora. Pois que isso está dependente de terceiro, que ele/Réu não pode controlar – nem é exigível que se lho exija.
Trata-se, ao invés, de uma obrigação de meios.
O que as distingue? Na obrigação de meios, o seu conteúdo consiste num comportamento com referência a um modelo de conduta – melhor dito, é aquela em que o devedor promete apenas realizar determinado esforço ou diligência para a produção de um resultado ou efeito[5]; na obrigação de resultado, esse conteúdo reside numa alteração na realidade física[6].
Melhor: nas obrigações de resultado o devedor fica adstrito, em benefício do credor, à produção de um certo efeito útil, que actua satisfatoriamente o interesse creditório final ou primário (respondendo o devedor perante o credor no caso de frustração de tal resultado, salvo se provar que se ficou a dever a facto fortuito ou de força maior); já nas obrigações de meios o devedor obriga-se apenas a desenvolver uma actividade ou conduta diligente em direcção ao resultado final, mas sem assegurar que o mesmo se produza[7].
Para o devedor se libertar da responsabilidade nas obrigações de meios, bastar-lhe-á provar a sua ausência de culpa. Ao contrário, tratando-se de uma obrigação de resultado, terá de provar a impossibilidade superveniente da prestação por causa não imputável ao devedor.
Ou seja, o devedor de uma prestação diligente liberta-se provando que utilizou a diligência devida. Não se liberta pelo facto da responsabilidade ser distinta, pois a regra da responsabilidade é sempre a mesma, mas liberta-se porque, provando a diligência, provou que cumpriu[8].

Tal obrigação de meios foi cumprida pelo réu/Recorrido (única a que estava obrigado), qual seja: de contactar, por escrito, o contabilista certificado cessante e se certificar de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos.
Teve lugar aquele contacto: por escrito, junto do contabilista cessante e bem assim junto da Autora; e também se certificou de que a dívida, se não estava toda ela já paga, estava, porém, a ser regularizada, nos termos do acordo subscrito e livremente aceite pela própria Autora, acordo esse vigente, portanto e como vimos, à data da aceitação pelo Réu das funções de contabilista da sociedade devedora.

Poder-se-á argumentar: será esta a posição que melhor se “encaixa” na letra da lei (cit artº 74º do Estatuto)?
Na letra pode até nem ser.
Há, porém, que ir além duma interpretação literal do preceito.
A especificidade do caso e razões de justiça (e mesmo de equidade) a tal obrigam.
Veja-se, por exemplo, o que aconteceria se o devedor dos honorários ao contabilista cessante tivesse feito com este um acordo de pagamento da dívida por 10 ou mais anos e se obrigasse (precisamente com suporte na dita interpretação literal daquele artº 74º, nº2 do Estatuto) o novo contabilista certificado a ter de aguardar que “os honorários, despesas e salários inerentes” aos serviços prestados pelo contabilista cessante “se encontram pagos” (nº2 do cit artº 74º): cairíamos numa situação absolutamente inaceitável. E mesmo insustentável para a empresa devedora, na medida em que durante todo esse período (de 10 ou mais anos) ficaria impedida de recorrer aos serviços do novo contabilista. O mesmo é dizer que se não morresse da cura, morria da doença, pois a normalidade da sua actividade económica ficaria seguramente comprometida. E então, “nem pau, nem bola”: não podia funcionar e, por arrastamento, também acabaria por deixar de poder pagar a dívida acordada!

Nesta senda, é, de todo, propositado trazer aqui à liça a Recomendação nº 2/B/2011 do Senhor Provedor de Justiça, Dr. Alfredo José de Sousa[9].
Diz-se ali:
Dada a imprescindibilidade, em certas situações, de intervenção de um TOC no cumprimento de obrigações para com o Estado, a solução normativa em causa determina como que uma “morte fiscal” (…)
…a existência de dívidas ao antecessor não constitui razão profissional para a não aceitação de um cliente pelo sucessor
(…)
…não obstante incumbir-se o novo Técnico de envidar todos os esforços para que o seu antecessor seja efectivamente pago”
(…)
…não parece que no caso dos TOC portugueses a sucessão e substituição de profissional deva ser mais exigente ou ir além do que está legalmente consagrado para outras profissões, como os Advogados ou os Revisores Oficiais de Contas, ou da prática vigente noutros países e por organizações profissionais internacionais, no âmbito de profissão similar.
O estabelecimento de uma obrigação de meios para o novo TOC, devendo este desenvolver todas as diligências junto do seu cliente para que este cumpra as suas obrigações para com o seu antecessor, deve bastar para o reforço dos laços de solidariedade entre todos os profissionais em causa, sem que essa solidariedade prejudique o interesse público basilar em que assenta o estatuto que legalmente é estabelecido para a mesma.”[10].

Em suma: o novo contabilista certificado tem somente a obrigação de envidar todos os esforços (obrigação de meios) para que a dívida ao seu antecessor (desde que líquida e exigível) seja liquidada. Não se lhe incumbindo a obrigação de conseguir que a mesma dívida seja, de facto, satisfeita (obrigação de resultado).
E essa obrigação – ou deveres – foi satisfeita pelo Réu/Recorrido, na medida em que cumpriu com o que emana dos citados arts. 74º do seu Estatuto e 17º do seu Código Deontológico.

O que, como dito, está em sintonia com o que se passa com outras profissões.
Atente-se, com efeito, no que reza o artº 112º, nº2, do Estatuto da AO (Lei nº 145/2015, de 09 de Setembro): “O advogado a quem se pretende cometer assunto anteriormente confiado a outro advogado não deve iniciar a sua atuação sem antes diligenciar no sentido de a este serem pagos os honorários e demais quantias que a este sejam devidas, devendo expor ao colega, oralmente ou por escrito, as razões da aceitação do mandato e dar-lhe conta dos esforços que tenha desenvolvido para aquele efeito – destaque nosso.
Também aqui, portanto, temos uma obrigação de meios, como não podia deixar de ser.
Não se almeja que o “novo” mandatário esteja impedido de exercer o mandato antes dos ditos “honorários e demais quantias que a este sejam devidas” estarem, efectivamente, liquidados. Impedimento que inexiste, de facto, bastando que leve a cabo as aludidas diligências para o efeito.

Improcede, assim a (ou as) questão suscitada – desta forma claudicando todas as doutas conclusões da apelação.

IV. DECISÃO

Termos em que acordam os Juízes da Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.

Custas pela Apelante.

Porto, 14.05.2020
Fernando Baptista
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
____________
[1] Destaques nossos.
[2] Transforma a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas em Ordem dos Contabilistas Certificados, e altera o respetivo Estatuto, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 452/99, de 5 de novembro, em conformidade com a Lei n.º 2/2013, de 10 de janeiro, que estabelece o regime jurídico de criação, organização e funcionamento das associações públicas profissionais.
[3] “Os técnicos oficiais de contas, quando sejam contactados para assumir a responsabilidade por contabilidades que estivessem, anteriormente, a cargo de outro técnico oficial de contas, devem, previamente à assunção da responsabilidade, contactar, por escrito, o técnico oficial de contas cessante e certificar-se de que os honorários, despesas e salários inerentes à sua execução se encontram pagos”. Acrescentando o nº 3 que “A inobservância dos deveres referidos no número anterior constitui o técnico oficial de contas, a sociedade profissional de técnicos oficiais de contas ou a sociedade de contabilidade na obrigação de pagamento dos valores em falta, desde que líquidos e exigíveis”. Sendo que o nº 4 estabelece que “Sempre que um técnico oficial de contas tenha conhecimento da existência de dívidas ao técnico oficial de contas anterior, ou de situação de reiterado incumprimento, pela entidade que o contratou, das normas legais aplicáveis, não deve assumir a responsabilidade pela contabilidade”.
[4] Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 19/12/2013, processo 3725/12.4TBFUN.L1-7, disponível em www.dgsi.pt.
[5] ANTUNES VARELA, Das Obrigações, 3ª ed., 2.°, pág. 72.
Para ALMEIDA COSTA, existe obrigação de meios quando o devedor apenas se compromete a desen­volver prudente e diligentemente certa actividade para a obtenção de um deter­minado efeito, mas sem assegurar que o mesmo se produza (in Direito das Obrigações, 3.a ed., pág. 758).
[6] Neste sentido, ALMEIDA COSTA, Direito das Obrigações, 4.ª ed., pág. 733 e FRANCISCO JORDANO FRAGA, La Responsabilidade Contratual, Editorial Civitas, S.A., 1987, 1.ª ed., pág. 174/175.
[7] RICARDO LUCAS RIBEIRO, Obrigações de Meios e Obrigações de Resultado, Coimbra Editora, 2010, p. 19.
[8] Autores e obs. cit. págs. 733 e 176, respectivamente.
[9] Disponível in www.provedor-jus.pt
[10] Destaques nossos.