Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
13081/19.4T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
DANOS PATRIMONIAIS FUTUROS
EQUIDADE
JUROS MORATÓRIOS
Nº do Documento: RP2022092613081/19.4T8PRT.P1
Data do Acordão: 09/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Para além dos danos de natureza não patrimonial, a afectação da integridade físico-psíquica de que o lesado fique a padecer é susceptível, enquanto dano biológico, de gerar danos patrimoniais, caso em que a indemnização se destina não só a compensar uma eventual perda de rendimentos futura pela incapacidade laboral, mas também as consequências dessa afectação, no período de vida expectável, seja no plano da vida pessoal e corrente, seja, ainda, no plano da vida laboral, ao nível da perda ou diminuição de outras oportunidades profissionais ou dos custos gerados pela maior onerosidade com o desempenho dessa actividade profissional.
II - O dano biológico, enquanto dano patrimonial futuro, deve ser, por via de regra, calculado em função do tempo provável de vida do lesado, ou seja, a esperança média da sua vida, e não apenas em função da duração da sua vida profissional, de forma a traduzir-se num capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a sua situação anterior e a actual até ao final daquele período temporal.
III - Na determinação equitativa da indemnização pelo dano (biológico) patrimonial futuro, devem ser ponderados em termos primordiais: - a idade do lesado à data do acidente; - a remuneração mensal e/ou outros rendimentos auferidos; - a evolução profissional e/ou salarial previsível; - a taxa média de inflação e a taxa de rentabilidade do capital, segundo um juízo de previsibilidade; - a gravidade das lesões e as suas consequências em termos de incapacidade ou défice funcional; - o recebimento antecipado e de uma só vez de todo o rendimento futuro.
IV - Na indemnização por danos não patrimoniais exige-se tão-só que os mesmos assumam gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito, devendo essa gravidade ser aferida segundo padrões objectivos e não à luz de critérios subjectivos.
V - Não prevendo a lei critérios normativos concretos que fixem o valor do seu montante indemnizatório, a sua quantificação deve ser feita igualmente através do recurso à equidade, considerando-se para esse efeito, nomeadamente, o grau de culpabilidade do responsável e do lesado, as condições económicas de ambos, a sua proporcionalidade em relação à gravidade do dano, levando em consideração as regras da justa medida das coisas e uma criteriosa ponderação das realidades da vida, sem perder de vista a peculiaridade do caso concreto e a exigência de que os danos em causa sejam condignamente compensados.
VI - Não se tendo operado na decisão um cálculo actualizado da indemnização ao abrigo do n° 2 do artigo 566° do Código Civil com apelo declarado, designadamente, aos índices de inflação entretanto apurados no tempo transcorrido desde a propositura da acção, os juros moratórios devem ser contabilizados a partir da citação e não apenas a partir da data da sentença de 1ª instância.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 13081/19.4T8PRT.P1
Origem:- Juízo Central Cível do Porto - Juiz 3.
Relator: Jorge Seabra
1º Juiz Adjunto: Desembargador Pedro Damião e Cunha
2º Juiz Adjunto: Desembargadora Maria de Fátima Andrade
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Sumário:
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Acordam, em colectivo, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. AA, melhor identificada nos autos, intentou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra X... Companhia de Seguros, SA, pedindo a condenação da Ré no pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do acidente de acidente de viação descrito nos autos, acidente este que, segundo alega, é imputável em exclusivo à conduta estradal do condutor do veículo ligeiro, matrícula ..-IG-.., sendo certo que a responsabilidade civil decorrente da circulação do mesmo veículo perante terceiros se encontrava validamente transferida, à data do acidente, para a dita Ré seguradora.
Concluiu, assim, naquele contexto, pedindo a condenação da Ré no pagamento da quantia global de € 84. 150, 00, acrescida de juros de mora desde a citação e, bem assim, do que se liquidar em ampliação do pedido ou incidente de liquidação, relativamente ao previsível agravamento das sequelas causadas pelo acidente.
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2. Citada a Ré, veio a mesma contestar a acção, assumindo a responsabilidade pelo acidente em causa, mas impugnando parcialmente os danos alegados e a sua quantificação.
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3. Prosseguindo os autos, realizou-se audiência de julgamento, vindo a ser proferida sentença em cujo decisório final foi a Ré condenada a pagar à Autora:
- a quantia de € 23. 003, 75, a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a citação e até integral pagamento, sendo devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da Portaria prevista no artigo 559º, do Código Civil;
- a quantia de € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da presente decisão (actualizadora) e até efectivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da Portaria prevista no artigo 559º, do Código Civil.
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4. Inconformada com a sentença, dela interpôs recurso de apelação a Ré, aduzindo as respectivas alegações e formulando, a final, as seguintes
CONCLUSÕES
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5. A Autora contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
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6. Mostrando-se observados os vistos legais, cumpre decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - artigos 635º, n.º 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção emergente da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento desta orientação, à luz do recurso interposto, as questões a decidir nesta instância são as seguintes:
I. Indemnização arbitrada a título de danos patrimoniais/dano biológico - danos futuros;
II. Despesas médicas e medicamentosas futuras;
III. Indemnização arbitrada a título de danos não patrimoniais.
IV. Juros de mora.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
1 – No dia 23 de Julho de 2016, pelas 23 horas e 20 minutos, a autora encontrava-se no passeio do lado direito, atento o sentido norte/sul, da avenida ..., no Porto, sensivelmente em frente ao prédio urbano com o número de polícia ....
2 – A faixa de rodagem da avenida ... forma ali uma longa recta, com várias centenas de metros de extensão, permitindo dois sentidos de trânsito, um por cada hemifaixa de rodagem.
3 – A faixa de rodagem tem a largura total de 12 metros, sendo cada uma das hemifaixa constituída por duas vias de trânsito, num total de quatro, sendo ladeada por passeios.
4 – O ocaso do Sol já tinha ocorrido, havendo no local iluminação pública em funcionamento.
5 – Não existe no local, em plena área urbana da cidade do Porto, sinalização alterando os limites gerais de velocidade instantânea.
6 – Existia nesse local, pintada sobre a faixa de rodagem da avenida ... e bem visível, uma passadeira destinada à travessia de peões, antecedida, nos dois sentidos de trânsito, do respectivo sinal vertical H7 (passagem de peões).
7 – Junto ao local, a avenida ... é entroncada pela rua ..., do seu lado esquerdo, antes da referida passadeira, atento o sentido norte/sul.
8 – Nestas condições de tempo e lugar, a autora decidiu atravessar a faixa de rodagem, em direcção ao passeio do lado oposto.
9 – Antes de iniciar a travessia, a autora olhou para o seu lado esquerdo e para o seu lado direito e verificou que, num espaço não inferior a 50 metros para cada lado, não se aproximava qualquer veículo automóvel.
10 – A autora iniciou a travessia da faixa de rodagem, perpendicularmente ao eixo da via, pela passadeira.
11 – Nestas condições de tempo e lugar, circulava pela rua ... o veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-IG-.., conduzido por BB, no sentido do entroncamento com a avenida ... (este/oeste).
12 – O veículo ..-IG-.. circulava a velocidade superior a 50 km/h.
13 – O condutor do ..-IG-.. conduzia distraído, sem atenção ao trânsito automóvel e aos restantes ocupantes da via.
14 – O condutor do ..-IG-.. pretendia entrar na avenida ... e, virando à esquerda, nesta passando a circular no sentido norte/sul
15 – Ao sair da rua ... e entrar na avenida ..., o condutor do ..-IG-.. não se apercebeu de que a autora efectuava a descrita travessia na passadeira.
16 – Quando a autora estava prestes a atingir o meio da faixa de rodagem, sobre a passadeira para peões, foi atropelada pelo veículo ..-IG-.., não tendo o seu condutor travado antes do atropelamento.
17 – Em virtude do atropelamento, a autora foi projectada alguns metros para a frente, caindo e ficando prostrada sobre a faixa de rodagem da avenida ....
18 – A ré, enquanto seguradora, e T..., Lda., enquanto tomador, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de sinistros causados pelo veículo de matrícula ..-IG-.., nos termos constantes do documento intitulado apólice n.º ..., junto aos autos e que aqui se dá por transcrito, suportando a indemnização eventualmente devida a terceiros lesados.
19 – Em resultado do atropelamento referido:
a) Durante 5 dias, a autora viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
b) Durante 116 dias, a autora viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos actos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal;
c) Durante 121 dias, a autora viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos actos inerentes à sua actividade profissional;
d) A autora sofreu dor quantificável num grau 4, numa escala até 7 (quantum doloris);
e) A autora ficou definitivamente afectada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas actividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 6, numa escala até 100;
f) A autora ficou definitivamente afectada na sua integridade física e psíquica, com repercussão na sua actividade profissional, num grau 6, numa escala até 100;
g) A autora sofreu uma afectação da sua aparência (imagem estética) num grau 3, numa escala até 7;
h) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela autora ocorreu em 7 de Novembro de 2016.
20 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, a autora:
a) em 23 de Julho de 2016, foi admitida no serviço de urgência do Hospital ... (23h23m);
b) à entrada no Hospital ..., apresentava:
i) hematoma periorbitário esquerdo;
ii) contusão da região periorbitária esquerda;
iii) escoriações da pálpebra inferior;
iv) quemose ligeira (olho esquerdo);
v) hematoma epicraniano frontal esquerdo;
vi) ferida incisa com bordos não coaptados e exposição óssea na região frontal esquerda com cerca de 3 cm de maior diâmetro longitudinal;
vii) abrasão infraorbitário e hematoma peri orbitário homolateral;
viii) escoriações nos dedos das mãos;
ix) traços de fractura interceptando o teto e a parede medial da órbita esquerda, com desalinhamento dos topos na vertente superior da lâmina papirácea;
x) fractura cruza a vertente inferior do seio frontal esquerdo, identificando-se diminutas bolhas gasosas intracranianas fronto-basais esquerda, com incipiente lâmina hemática extra-axial;
xi) pequena bolha gasosa extracrónica ao longo da parede medial da órbita esquerda com incipiente sangue subperiosteal;
xii) músculo recto medial deformado pelos topos da fractura, sem evidente herniação;
xiii) incipiente foco de hiperdensidade na vertente sueromedial do hemisfério cerebeloso direito, sem edema circunjacente, não se excluindo a possibilidade de traduzir diminuta contusão hemorrágica;
xiv) vias de circulação de LCR alargadas em relação com redução do volume do parênquima encefálico de predomínio cortical fronto-parietal;
xv) discreto hemossinus etmoidal esquerdo, adjacente à fratura;
xvi) fractura da base do 3.º metacarpo direito;
xvii) fratura da rótula direita;
xviii) dor na mão direita, joelho direito e cervical;
xix) mobilidades cervicais dolorosas;
c) no Hospital ... efetuou:
i) limpeza e desinfecção;
ii) sutura com monofilamento não absorvível 2/0 em pontos separados da ferida frontal;
iii) tomografia computadorizada crânio-encefálica;
iv) raio-X de tórax e de membros;
v) tratamento conservador com tala gessada de Depuy (rótula direita);
d) em 24 de Julho de 2016, teve alta do Hospital ... (13h10m), medicada, com indicações para fazer cuidados de penso, tomar analgésicos, se necessário, e permanecer em repouso;
e) compareceu a consulta externa e efectuou exames complementares de diagnóstico:
i) em 15 de Agosto de 2016, compareceu a consulta de ortopedia, tendo sido retirada a tala da mão direita e mantido o tratamento conservador das fracturas;
ii) em 22 de Agosto de 2016, realizando ressonância magnética cerebral;
iii) em 25 de Agosto de 2016, tomografia computadorizada do joelho direito;
iv) em 07 de Setembro de 2016, realizando ressonância magnética coluna cervical;
v) em 14 de Setembro de 2016, realizando ressonância magnética do joelho direito;
vi) em 17 de Outubro de 2016, ressonância magnética do joelho direito;
vii) em 29 de Agosto de 2016, compareceu a consulta de ortopedia, retirando a tala do joelho e tendo indicações para iniciar tratamentos de fisioterapia;
f) em 19 de Setembro de 2016, teve alta da consulta externa no Hospital ...;
g) em 26 de Setembro de 2016, foi submetida a intervenção cirúrgica para correcção da cicatriz na região frontal;
h) a partir da alta da consulta externa no Hospital ..., passou a ser seguida e tratada pelos serviços clínicos da ré, na Casa de Saúde ..., onde frequentou consultas de ortopedia, dermatologia, oftalmologia, neurocirurgia e cirurgia plástica,
i) realizou 11 sessões de fisioterapia na Clínica ...;
j) foi medicada e tratada por dermatologia, em virtude de apresentar acentuada queda de cabelo posteriormente ao acidente;
k) na especialidade de neurocirurgia foi medicada com Neurotin 100 e Startonyl durante cerca de dois meses;
l) começou a sentir dificuldades na visão do olho esquerdo, razão pela qual também se submeteu a consultas de oftalmologia;
m) até 7 de Novembro 2016, a autora manteve consultas e tratamentos regulares, data em que os serviços clínicos da ré lhe deram alta definitiva;
n) apresenta permanentemente:
i) agravamento, mesmo com ajuste da sua medicação habitual, do seu síndrome depressivo (com evolução há cerca de 30 anos), que na altura do acidente estava em fase remissão;
ii) pequena região de alopécia em ambas regiões fronto parietais à esquerda e direita;
iii) dor residual na região orbital esquerda;
iv) cicatriz cirúrgica linear de 4 cm de direção sagital na região frontal esquerda da face;
v) cicatriz linear de 1,5 cm na pálpebra superior esquerda;
vi) cicatriz linear de 1,5 cm na base do dedo polegar direito da mão direita;
vii) cicatriz linear de 2 cm pouco notável na região anterior do joelho direito;
viii) necessidade de futuramente, e até ao final da sua vida, tomar pontualmente medicação para a dor.
o) sente:
i) cefaleias em contexto de síndrome comocional pós-traumático;
ii) dor residual na mão direita;
iii) dor residual no joelho direito;
iv) com maior intensidade as dores referidas com as mudanças de tempo;
v) dificuldade moderada em fazer caminhadas prolongadas, em correr, em saltar, em subir escadas e em executar prolongadamente tarefas domésticas, como fazer camas e efectuar limpezas profundas;
vi) dores no maxilar esquerdo, que se agravam com a mastigação de alimentos mais duros;
vii) tristeza e apreensão com a diminuição da sua capacidade de trabalho.
21 – A autora nasceu em .../.../1959.
22 – Na data do atropelamento, a autora exercia a profissão de Assistente Operacional por conta e ao serviço do Município ..., mediante contrato de trabalho por tempo indeterminado.
23 – Na data do atropelamento, a autora exercia a sua profissão numa escola e jardim-de-infância.
24 – Na data do atropelamento, a autora auferia uma retribuição mensal base de € 530,00, acrescida do montante mensal de € 89,67, a título de subsídio de alimentação.
25 – Durante o período em que esteve impossibilitada de trabalhar, a autora deixou de auferir os rendimentos do seu trabalho, tendo recebido da ré a quantia de € 1.000,00.
26 – Durante não mais de um mês, a autora de recorreu a serviços de terceira pessoa, para a ajudar na higiene pessoal e nas actividades diárias.
27 – Em despesas medicamentosas, a autora gastou a quantia global de € 48,00 (em Agosto e Novembro de 2016).
28 – Em transportes para acorrer a tratamentos, a autora despendeu quantia de € 123, 75.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
IV.I. Dano biológico – Montante da Indemnização:
Como emerge de forma clara do teor das conclusões do recurso interposto pela Ré – e que delimitam a actividade jurisdicional do Tribunal ad quem – a mesma não põe em causa a factualidade provada, nem, ainda, coloca em causa a verificação dos pressupostos da responsabilidade extracontratual afirmados na sentença recorrida e, em particular, a exclusiva responsabilidade do condutor do veículo ..-IG-.. pela ocorrência do acidente que vitimou a Autora e a consequente responsabilidade civil que se encontrava transferida mediante contrato seguro automóvel para a ora Ré/apelante.
Sendo assim incontestada a responsabilidade na eclosão do acidente a que se referem os autos há que determinar o quantum indemnizatório, atinente aos denominados danos patrimoniais sofridos pela Autora, enquanto primeira questão essencial trazida a este Tribunal ad quem, sendo que, na perspectiva, da Ré/apelante esse valor deveria ter sido fixado apenas em € 7.500,00, a título de dano biológico, pois que, segundo advoga, não existe nos autos factualidade provada que demonstre a alegada perda futura de rendimentos por parte da Autora e que esteve na base da fixação na sentença recorrida de uma outra indemnização, a título de perda (futura) de rendimentos, no valor de € 10.000,00.
Cumpre decidir, não deixando, à partida, de reconhecer o fundamento da discordância da Ré/apelante em face do decidido nesta matéria na sentença recorrida.
Vejamos.
Como é consabido, quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação – artigo 562º, do Cód. Civil.
Este normativo consagra o princípio da reconstituição natural, entendendo-se por dano, segundo a lição de Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I volume, 7ª edição, pág. 591, a perda in natura que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito ou a norma visada visam tutelar.
Os danos patrimoniais, para o que ora interessa, compreendem, não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter na sequência da lesão, ou seja, os danos emergentes e os lucros cessantes.
Neste contexto, a indemnização em dinheiro é fixada em dinheiro quando a reconstituição natural não se mostre possível, quando não repare integralmente os danos, ou seja excessivamente onerosa para o devedor – artigo 566º, n.º 1, do Cód. Civil -, sendo que a indemnização pecuniária tem como medida a diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo Tribunal e a que teria nessa data se não existissem danos – artigo 566º, n.º 2, do mesmo Código -, sem deixar de se avaliar, em concreto, o dano efectivamente sofrido.
Por outro lado, dentro dos denominados danos patrimoniais ressarcíveis, além dos danos já verificados, impõe o n.º 2 do mesmo artigo 564º que sejam tidos em conta os danos futuros desde que previsíveis, isto é, os danos certos – porque redundam no desenvolvimento inelutável de um dano actual – ou, pelo menos, suficientemente prováveis ou razoavelmente prognosticáveis em função do estado de saúde do lesado e das lesões sofridas no acidente.
Trata-se, assim, neste âmbito, de ressarcir danos que ainda não se concretizaram, mas que, de acordo com o curso normal das coisas, de acordo com o que é previsível em face das circunstâncias, sempre virão a concretizar-se no futuro. Assim, a previsibilidade pressuposta no ressarcimento dos danos futuros assenta na probabilidade e na verosimilhança da sua posterior ocorrência.
Todavia, importa, ainda, dar nota que é ao lesado que incumbe, segundo a regra que emerge do princípio geral do artigo 342º, n.º 1, do Cód. Civil, conjugada com a previsão normativa do artigo 483º, n.º 1, do mesmo diploma legal, fazer prova dos danos por si sofridos em consequência (adequada) do acidente, nomeadamente, quanto à perda de rendimentos futuros em consequência das lesões por si sofridas no sinistro em causa, ou seja, dito de outra forma, cabe-lhe demonstrar que, fruto das sequelas físico-psíquicas geradas pelo acidente, os seus rendimentos salariais (ou outros) sofrerão uma redução para futuro.
Com efeito, constituindo o dano, em qualquer uma das suas modalidades, um elemento constitutivo da pretensão indemnizatória do lesado, não restam dúvidas, segundo cremos, que a sua prova incumbe ao lesado (credor), sendo certo que, a este nível, inexiste qualquer presunção (legal ou judicial) que dispense o lesado daquele ónus probatório.
Dito isto, que cremos ser pacífico, no caso dos autos, à luz da factualidade provada não existe, de facto, como sustenta a Ré/apelante e ao contrário do que se afirma na douta sentença recorrida, prova de uma qualquer redução dos rendimentos salariais futuros auferidos pela Autora após o acidente (salvo os atinentes ao período em que esteve totalmente incapacitada para o exercício da sua actividade profissional e que não estão ora em discussão), mas apenas que esta última, fruto das sequelas físicas-psíquicas originadas pelo acidente dos autos, ficou definitivamente afectada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas suas actividades diárias, incluindo familiares e sociais, e na sua actividade profissional, afectação essa que se cifra no grau 6 de uma escala de 100 – Vide factos provados em 19, alíneas e), f).
Todavia, este quadro factual, que é o que emerge da factualidade provada, é, com o devido respeito, radicalmente distinto daquele outro em que a Autora, fruto daquelas sequelas físico-psíquicas originadas pelo acidente dos autos, passou a ficar total ou parcialmente impossibilitada de continuar a exercer a profissão habitual que exercia à data do mesmo – o que não emerge, de todo, da factualidade provada - ou, ainda, que, fruto da afectação do seu estado de saúde físico-psíquico, passou a sofrer uma redução dos rendimentos salariais que auferia à data do acidente em causa enquanto assistente operacional por conta da CM de ... – o que também não resulta do quadro factual apurado nos autos -, ou seja que, ultrapassado o período de total impossibilidade para o desempenho das suas funções laborais (que, insiste-se, não está em causa pois que se mostra ressarcido na sentença recorrida a título de rendimentos perdidos em termos que a Ré não coloca em causa), a Autora não tenha deixado de poder retomar aquela sua actividade profissional habitual e, assim, tenha continuado a ser remunerada nos mesmos termos do que sucedia antes do acidente.
Ora, sendo assim, como se nos afigura em face da factualidade provada, não colhe, segundo julgamos, estabelecer-se, como se fez na sentença recorrida, uma distinção entre um valor indemnizatório (patrimonial), a título de «dano biológico», enquanto afectação do estado de saúde físico-psíquico da Autora, e um outro valor indemnizatório, a título de perda de rendimentos, partindo do pressuposto, neste último segmento, de uma perda de rendimentos futuros que não se mostra, no caso dos autos, demonstrada.
Em nosso julgamento, no segmento ora em causa, os danos patrimoniais (futuros) reportam-se estritamente ao denominado dano biológico, na sua vertente de afectação do estado de saúde da Autora e do seu comprovado deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica de 6 pontos, sendo que as lesões por si sofridas em virtude do acidente, não obstante a sua repercussão na vida pessoal diária da lesada (a nível pessoal, familiar e social) e no desempenho da sua actividade profissional (que exigirá, fruto daquela afectação da sua saúde, esforços acrescidos e uma maior penosidade em termos de desempenho da mesma actividade profissional que antes a Autora exercia para angariação do mesmo valor salarial), não colocam em causa o exercício da sua actividade profissional habitual e não importam uma redução do seu salário mensal, nele compreendido o estrito salário e o subsídio de alimentação que auferia à data do acidente.
Ora, neste outro enquadramento que perfilhamos, não suscita controvérsia na doutrina e na jurisprudência, a caracterização deste dano como um dano corporal, um dano na saúde (que atinge o estado normal de integridade físico-psíquica do indivíduo), futuro, pois que as suas consequências ou sequelas se projectam para futuro e com tendência para se agravarem com o avançar da idade, e previsível, por corresponder à «evolução lógica, habitual e normal do quadro clínico constitutivo da sequela». [1]

Assim caracterizado como um dano na saúde, é pacífico que um deficit funcional permanente da integridade físico-psíquica constitui, «de per si», um dano definitivo na pessoa e na sua saúde, dano este que, enquanto dano biológico, independentemente da redução de rendimentos dele decorrente ou do concreto grau de incapacidade laboral por ele causada, dá sempre origem à obrigação de indemnizar a cargo do respectivo responsável civil.
Nesta perspectiva, o segmento indemnizatório aqui em apreciação situa-se no âmbito do que a jurisprudência e a doutrina têm vindo a apelidar como dano biológico ou fisiológico, que constitui, no fundo, um dano à saúde, violador da integridade física e do bem-estar físico, psíquico e social do lesado, com reflexos negativos, não só a nível pessoal (na via diária, corrente, de natureza individual, familiar e social), como, ainda, a nível laboral, exigindo maiores esforços e uma maior penosidade para o desempenho da mesma actividade e com comprometimento das possibilidades de evolução/progressão naquela actividade (ou outra alternativa, compatível com o nível de habilitações do lesado) e consequentes melhorias salariais.
Neste contexto, a jurisprudência, de forma maioritária, tem vindo a considerar este dano biológico como sendo de cariz patrimonial e, por isso, indemnizável nos termos do artigo 564º, n.º 2 do Cód. Civil, sendo que a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, porque determinante de consequências negativas ao nível da sua actividade geral e da sua actividade profissional, justifica a sua indemnização no âmbito daquele tipo de dano.
Dito isto, é sobejamente reconhecido o melindre e a dificuldade na fixação do valor indemnizatório pela perda da capacidade aquisitiva futura, na medida em que se funda em parâmetros de incerteza quanto ao tempo de vida do lesado, quanto ao tempo de vida com capacidade de ganho, a par de outras circunstâncias atinentes à evolução profissional e/ou salarial e à evolução da inflação, tudo factores dotados de grande imprevisibilidade, imprevisibilidade agravada pela pandemia que ainda nos atinge e agora agravada pela situação de guerra na Europa que atinge, não só a economia Europeia, como toda a economia global, com inevitáveis reflexos no nosso país.
Atendendo à delicadeza desta realidade, com que somos confrontados, o critério último a recorrer há-de ser, este contexto, a equidade, em conformidade com a previsão legal do n.º 3 do artigo 566º, do Cód. Civil, ante a dificuldade de averiguar com exactidão os danos sobrevindos.
Com efeito, segundo o dito normativo, não podendo ser quantificada, em termos exactos, a extensão dos danos, julgará o tribunal equitativamente, sempre dentro dos limites que tiver por provados.
Perante a constatação das aludidas dificuldades associadas à fixação do montante indemnizatório para reparação pela perda da capacidade aquisitiva futura, a jurisprudência foi fazendo uso de diferentes critérios que oscilaram entre o recurso às tabelas de cálculo das pensões de incapacidade laboral e sua remição, critério que foi rapidamente abandonado, o recurso a tabelas financeiras, a fórmulas matemáticas e outros critérios mais ou menos objectivos. No entanto, a própria jurisprudência não deixou de ir acentuando que os critérios sucessivamente aplicados se assumiam como índices meramente informadores ou orientadores da fixação do cálculo do valor indemnizatório, ou seja, como simples instrumentos auxiliares de orientação do julgador, não dispensando nunca o recurso à equidade, que pressupõe uma solução em sintonia com a lógica e o bom senso, com apelo às regras da boa prudência, da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem apelo a critérios subjectivos e tendo sempre em conta a gravidade do dano comprovado e as demais circunstâncias do caso concreto.
Nesta perspectiva, a equidade corresponderá ao prudente e casuístico arbítrio do tribunal, norteada pela justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei, de forma que se tenham em conta, mais uma vez se sublinha, as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.
Como assim, o cálculo do quantum indemnizatório, fixado para reparação pela perda de capacidade aquisitiva futura, tem, necessariamente, por base critérios de equidade que assentam numa ponderação prudencial e casuística, dentro de uma margem de discricionariedade que ao julgador é consentida, ainda que sem colidir com critérios jurisprudenciais actualizados e generalizantes, de forma a não por em causa a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade.
Neste contexto, e sobretudo ao nível da Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, a atribuição de indemnização por perda de capacidade geral de ganho, segundo um juízo equitativo, tem variado em função dos seguintes factores essenciais: i) a idade do lesado; ii) o seu grau de incapacidade geral permanente; iii) as suas potencialidades de aumento de ganho, antes da lesão, tanto na profissão habitual, ou previsível profissão habitual, como em profissão ou actividade económica alternativas, aferidas, em regra, pelas suas qualificações, a par com outro factor que contende com a conexão entre as lesões físico-psíquicas sofridas e as exigências próprias da actividade profissional habitual do lesado, ou da previsível actividade profissional habitual do lesado, assim como de actividades profissionais ou económicas alternativas, tendo em consideração as concretas competências do lesado. [2]
Neste contexto, e como se salienta no AC STJ de 10.11.2016, “[N]ão parece efectivamente que a vertente patrimonial do dano biológico – consistente essencialmente em determinar em que medida é que, para além da perda efectiva de rendimentos ocorre também a perda de chance profissional como consequência das sequelas das lesões sofridas – se possa cindir ou autonomizar totalmente da quantificação do dano patrimonial futuro – sendo este precisamente o resultado da adição ou soma dos prováveis rendimentos profissionais futuros perdidos, face ao grau de incapacidade que afecta permanentemente o lesado, e da perda inelutável de oportunidades profissionais futuras, inviabilizadas irremediavelmente pelas limitações físicas de que passou a padecer de modo definitivo. E, assim sendo, considera-se que, ao avaliar e quantificar o dano patrimonial futuro, pode e deve o tribunal reflectir também na indemnização arbitrada a perda de oportunidades profissionais futuras que decorra do grau de incapacidade fixado ao lesado, ponderando e reflectindo por esta via na indemnização, não apenas as perdas salariais prováveis, mas também o dano patrimonial decorrente da inevitável perda de chance ou oportunidades profissionais por parte do lesado.“ [3]
No mesmo sentido, refere-se no AC STJ de 19.04.2018 que “A vertente patrimonial do dano biológico tem como base e fundamento a substancial e relevante restrição às possibilidades de exercício de uma profissão ou de uma futura mudança, desenvolvimento ou reconversão de emprego pela lesada, implicando flagrante perda de oportunidades, geradoras de possíveis e futuros acréscimos patrimoniais, frustrados irremediavelmente pelo grau de incapacidade que definitivamente a vai afectar.” [4]
Por conseguinte, em função da posição que vem sendo afirmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da indemnização do dano biológico e na sua vertente patrimonial de dano futuro não está em jogo apenas e só a futura e previsível perda de capacidade de ganho, associada a uma incapacidade que afecta o lesado por via da afectação do seu estado de saúde físico-psíquico, reflectida em termos de uma eventual diminuição dos rendimentos salariais (ou outros), mas, ainda, independentemente disso, a perda de oportunidades profissionais futuras, num mercado de trabalho cada vez mais instável e exigente, oportunidades essas inviabilizadas ou dificultadas pelas limitações físicas de que passou a padecer em definitivo, assim como a maior penosidade e esforço que o lesado sempre terá que empenhar na sua actividade profissional habitual para obter os rendimentos que auferia antes do acidente.
Neste sentido, como se refere, a título exemplificativo, no AC STJ de 16.06.2016, relatado pelo Sr. Juiz Conselheiro Tomé Gomes, disponível no mesmo sítio oficial, “O dano biológico abrange um espectro alargado de prejuízos incidentes na esfera patrimonial do lesado, desde a perda do rendimento total ou parcial auferido no exercício da sua actividade profissional habitual até à frustração de previsíveis possibilidades de desempenho de quaisquer outras actividades ou tarefas de cariz económico, passando ainda pelos custos de maior onerosidade no exercício ou no incremento de quaisquer dessas actividades ou tarefas, com a consequente repercussão de maiores despesas daí advenientes ou o malogro do nível de rendimentos expectáveis. Assim, em caso de não verificação de incapacidade permanente para a profissão habitual, a consideração do dano biológico servirá para cobrir ainda, no decurso do tempo de vida expectável, a supressão ou restrição de outras oportunidades profissionais ou de índole pessoal, mesmo fora do quadro da profissão habitual ou para compensar custos de maior onerosidade com o desempenho ou suprimento dessas actividades ou tarefas, assumindo assim uma função complementar.” [5]

Neste contexto, e conforme é também posição pacífica da jurisprudência, a indemnização para reparação da perda de capacidade futura de ganho deve apresentar como conteúdo pecuniário “um capital produtor do rendimento que o lesado deixará de perceber em razão da perda da capacidade aquisitiva futura e que se extinguirá no termo do período de vida, atendendo-se, para o efeito, à esperança média de vida do lesado“, sem deixar, ainda, “de levar em consideração a natural evolução dos salários“.
Por último, é ainda de registar que, “sendo a indemnização paga de uma só vez, o que permitirá ao seu beneficiário rentabilizá-la em termos financeiros”, importará “introduzir um desconto no valor achado, condizente com o rendimento de uma aplicação financeira sem risco e que, necessariamente, deverá ser tida em consideração pelo tribunal, que julgará equitativamente.” [6] Todavia, como se salienta no AC STJ de 29.10.2019, antes citado, este recebimento de uma só vez do montante indemnizatório não releva actualmente como em tempos mais recuados já relevou, tendo em conta que a taxa de juro remuneratório dos depósitos a prazo pago pelas entidades bancárias é ainda muito reduzido, o que implica, por si só, a elevação do capital necessário para garantir o mesmo nível de rendimento ao lesado.
Tendo isto presente, no caso dos autos, mostra-se provado que a Autora ficou a padecer de uma incapacidade permanente geral de 6 pontos, com repercussão, não só na sua vida pessoal diária, ao nível familiar, social e de lazer, assim como na sua actividade laboral habitual.
Por outro lado, ainda, a Autora, à data do acidente (Julho de 2016), tinha 56 anos, tendo nascido a .../.../1959.
A data da consolidação das lesões ocorreu no dia 7.11.2016.
Mais acresce que à data do acidente a Autora exercia funções como assistente operacional na CM de ... (trabalhando numa escola e jardim de infância), auferindo um salário mensal de € 530,00, acrescido do subsídio de alimentação mensal de € 89, 67.
Em consequência do acidente e das suas consequentes lesões, a Autora esteve totalmente impossibilitada da realização dos seus actos da vida diária, familiar e social durante 5 dias, esteve parcialmente condicionada na realização dos mesmos actos da vida corrente diária durante 116 dias e totalmente impossibilitada de exercer as suas funções profissionais durante 121 dias; Passou, ainda, a sofrer, a título permanente, de dificuldade moderada em fazer caminhadas prolongadas, em correr, em saltar, em subir escadas e em executar tarefas domésticas, como fazer as camas ou efectuar limpezas profundas; Viu agravado o seu síndrome depressivo que, à data do acidente, já se encontrava em estado de remissão; Tem também necessidade de futuramente, e até ao final da sua vida, de tomar pontualmente medicação para a dor, sendo certo, ainda, que passou a sofrer de cefaleias em contexto de síndrome comocional pós-traumático.
Estas repercussões a nível físico e bem-estar pessoal da Autor terão tendência, como é natural, para se agravarem com o evoluir da sua idade e o seu consequente envelhecimento.
Por último, em conformidade com os elementos disponíveis, a esperança média de vida para um indivíduo do sexo feminino é actualmente (por referência ao último ano disponível - 2020) de 83, 4 anos. [7]
Por conseguinte, convertendo os elementos antes referidos numa fórmula matemática, tão só orientadora, que conjuga os critérios objectivos seguidos pela jurisprudência e antes expostos, teremos um primeiro valor atinente ao quantum indemnizatório e a fixar para reparação pela perda da capacidade aquisitiva futura, relativamente à Autora, resultante do seguinte cálculo [€ 8.496,00 – rendimento anual - x 6% = € 509,76, por ano] x 26 anos [diferença entre a idade da Autora à data da consolidação das lesões (57 anos) e a esperança média de vida antes referida – (83-57=26).
Portanto, considerando o valor anual de € 509,76 x 26 anos, alcançar-se-á um valor indicativo ou orientador de cerca de € 13.253,76.
Ora, tendo presente o valor assim obtido, tendo presente as repercussões a nível físico-psíquico emergentes do acidente dos autos, tendo presente que a Autora não ficou impossibilitada (total ou parcialmente) para o desempenho da sua actividade profissional habitual e, ainda, que inexiste uma perda no seu salário, mas também não olvidando, como acima se expôs, que a afectação físico-psíquica decorrente das lesões que sofreu no acidente implica, naturalmente, maiores esforços e penosidade para a realização das mesmas funções e angariação do mesmo nível de rendimentos, que se vai agravando com o evoluir da idade da Autora, e coloca também em causa as possibilidades de ulterior progressão na sua carreira ou de exercício de uma outra actividade profissional alternativa, tendo presente a sua idade (56 anos, à data do acidente), a expectável evolução salarial no período temporal em causa, os índices de inflação e a expectável evolução dos juros, afigura-se-nos, segundo um juízo equitativo e casuístico, fixar-se, no caso dos autos, o valor indemnizatório correspondente à perda de capacidade aquisitiva futura sofrida pela Autora no valor total e único de € 11.000,00 (abatendo ao valor acima referido de 13.253,76 cerca de 20%, atento o adiantamento/pagamento da indemnização numa única prestação), ao invés do valor global de € 17.500,00 considerado na sentença recorrida a título de dano biológico e de perdas de rendimento futuro, ou seja, desdobrado em dois montantes indemnizatórios distintos, um de € 7.500,00 e um outro de € 10.000,00.
Nesta perspectiva, deve, pois, em nosso julgamento, proceder, ainda que apenas parcialmente, a apelação interposta pela Ré, sendo a mesma condenada, a título de dano biológico, na vertente de dano patrimonial futuro, no pagamento à Autora da quantia de € 11.000,00 (onze mil euros), sem prejuízo dos demais valores consignados na sentença a título de rendimentos perdidos no período de incapacidade total para o desempenho da sua profissão (€ 1.802,00), a título de despesas com deslocações para tratamentos (€ 123,75) e a título de € despesas médicas e medicamentosas efectuadas (€ 48,00), sendo certo que estes outros valores (danos emergentes) não são colocados em crise pela Ré/Recorrente no presente recurso e, portanto, se mostram definitivamente aceites/fixados.
Procede, assim, neste segmento, ainda que apenas parcialmente, o recurso interposto pela Ré, com a sobredita alteração da sentença recorrida.
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IV.II. Despesas médicas/medicamentosas futuras a efectuar pela Autora:
A discordância da Ré estende-se também ao valor indemnizatório fixado na sentença recorrida a título de despesas médicas/medicamentosas que a Autora terá no futuro (até ao final da sua vida) que vir a efectuar, em particular as despesas atinentes ao tratamento das dores de que ficou a padecer fruto das lesões que sofreu no acidente dos autos.
A este título fixou-se na sentença recorrida um valor de € 10,00 mensais, € 120,00 anuais e um valor total de € 2.500,00, levando em consideração a idade da Autora à data da sentença (62 anos) e a esperança média de vida acima referida de 83-84 anos, ou seja, multiplicando aquele valor anual de € 120,00 pelos ditos 22 anos de diferencial.
Contra esta condenação insurge-se a Ré argumentando que as dores de que sofre a Autora são pontuais, assim como é pontual a sua necessidade de tal medicação e, ainda, que o custo de uma caixa de “Benuron” é de cerca de € 2,79, sendo, pois, na sua perspectiva, exagerado o valor mensal de € 10,00 fixado na sentença recorrida para cobrir as ditas despesas futuras com tal medicamentação.
Com o devido respeito, não se pode acompanhar a Ré em tal argumentação, a qual desconsidera, em nosso ver, a factualidade provada e parte do pressuposto, totalmente infundado, de que, para debelar as dores e outras consequências do sinistro, a Autora carecerá apenas de tomar, como medicação para tal efeito, “Benuron”...
De facto, nesta sede, importa ponderar que a Autora passou, fruto do acidente em causa, a sofrer de agravamento do seu síndrome depressivo que já se encontrava em fase de remissão, sendo, pois, natural e expectável, segundo as regras da normalidade e da experiência comum, que venha também a efectuar despesas médicas para o tratamento deste seu síndrome depressivo, o que supõe, não apenas medicação, mas, ainda, consultas médicas para o efeito.
Por outro lado, ainda, além de dores, a Autora passou a sofrer também de cefaleias em contexto de síndrome comocional pós traumático, sendo também expectável e natural que possa vir a ter que tomar medicação para debelar ou atenuar os seus efeitos.
Acresce, ainda, que a Autora, fruto do acidente em causa, passou a sofrer de dores residuais na mão direita, dores residuais no joelho direito, dores estas que se agravam com as mudanças de tempo, assim como passou a sentir também dores no maxilar esquerdo, dores que se agravam com a mastigação de alimentos mais duros.
Ora, se levarmos em consideração, como é exigível, todo o sobredito quadro factual, com o devido respeito, o valor mensal de € 10,00 e anual de € 120,00, que foi fixado na sentença recorrida, se peca não é, seguramente, em nosso julgamento, por excesso, mas por defeito, pois que se mostra, em nosso ver, aquém do valor que a Autora terá, segundo um juízo de prudente e razoável prognose, que vir a despender até ao final da sua vida (83-84 anos), para o tratamento das dores e outras sequelas originadas pelo acidente em causa acima referidas (cefaleias e síndrome depressivo) e para as quais, recorde-se, em nada contribuiu, pois que foi atropelada quando circulava numa passadeira de peões e em condições de total visibilidade para o condutor do veículo automóvel causador do acidente.
Nestes termos, neste outro segmento condenatório posto em causa pela Ré/recorrente no presente recurso, nenhuma censura nos pode merecer a sentença recorrida, sendo, manifestamente, de manter o valor global ali fixado em termos equitativos de € 2.500,00, a título de despesas médicas/medicamentosas que a Autora terá, segundo o que é prudente, razoável e previsível, que efectuar até ao final da sua vida e levando em consideração a sua esperança média de vida.
Improcede, assim, sem outras considerações, que temos por despiciendas, nesta parte, a apelação, sendo de manter, neste segmento, a sentença recorrida.
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IV.III. Indemnização por danos não patrimoniais.
Dirimida a questão atinente aos danos patrimoniais nas duas vertentes antes analisadas, cumpre agora conhecer da questão atinente aos danos não patrimoniais, sendo que também neste conspecto, a Ré sustenta que o valor fixado na sentença recorrida de € 20.000,00 é excessivo, devendo, em função do que emerge da factualidade provada e ao já decidido em casos similares, fixar-se em valor próximo dos € 12.500,00.
Como é consabido, os danos não patrimoniais são indemnizáveis, quando pela sua gravidade, sejam merecedores da tutela do direito, conforme decorre do preceituado no artigo 496º, n.º 1 do Cód. Civil, inciso que é consequência do princípio geral da tutela da personalidade previsto no artigo 70º do mesmo Código.
A gravidade mede-se por um padrão objectivo, de normalidade, de bom senso prático, o que afastará, à partida, o ressarcimento dos danos não patrimoniais decorrentes de sensibilidades particularmente embotadas ou especialmente requintadas, ou seja anormais ou incomuns.
Por outro lado, ainda, a tutela do direito depende dessa gravidade: o dano deve ser significativo e grave para que, em face das circunstâncias concretas do caso, se justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
No caso em apreço, não existem dúvidas que as consequências do sinistro relativamente à Autora assumem evidente gravidade e dignidade significativas, sendo, por isso, justificativas do seu ressarcimento, a título de danos não patrimoniais. Aliás, como se vê dos termos do recurso, não está posto em causa que assim seja, antes se esgrimindo apenas o seu quantum indemnizatório em termos de valor pecuniário.
Nesta matéria é de notar que, estando em causa a lesão de interesses imateriais (isto é que não atingem de forma directa ou imediata o património do lesado), o objectivo, em termos de ressarcimento, não é (nem pode ser), face à sua evidente impossibilidade, a reconstituição natural da situação anterior ao sinistro, ou, face à insusceptibilidade da sua avaliação pecuniária, a fixação de um montante pecuniário equivalente ao «mal» sofrido, mas apenas atenuar ou, de algum modo, compensar os danos sofridos pelo lesado.
Como escreve nesta matéria o Prof. A. VARELA “[a]o lado dos danos pecuniariamente avaliáveis, há outros prejuízos (como as dores físicas, os desgostos morais, os vexames, a perda de prestígio ou de reputação, os complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens (como a saúde, o bem estar, a liberdade, a beleza, a honra ou o bom nome) que não integram o património do lesado, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente, sendo esta mais uma satisfação do que uma indemnização.» [8]
Em igual sentido escreveu o Prof. VAZ SERRA que “a satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização, visto não ser um equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, tratando-se antes de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é susceptível de equivalente.
É, assim, razoável que no seu cálculo se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselhe sejam tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante.” [9]
Nestas hipóteses, e conforme é posição pacífica da doutrina e da jurisprudência, o que está em causa é a fixação de um benefício material, aferido em termos pecuniários (único possível) que se traduza, pelas utilidades, prazeres ou distracções que proporciona, numa compensação ou atenuação pelos bens imateriais da pessoa humana (o lesado) atingidos pelo evento ilícito e culposo.
Por isso mesmo, a compensação deste tipo de danos não pode, por definição, ser feita através da teoria da diferença prevista no artigo 566º, n.º 2 do Cód. Civil, mas outrossim, o seu montante há-de resultar, nos termos dos artigos 496º, n.º 3 e 494º, do Cód. Civil, de uma aferição equitativa pelo tribunal, que atenderá ao grau de culpa do lesado e do lesante, à situação económica dos mesmos, às demais circunstâncias do caso, nomeadamente, por assim o imporem os princípios da proporcionalidade e igualdade, aos critérios e valores usualmente acolhidos na jurisprudência em casos similares. [10]
Como se salienta, neste conspecto, no AC STJ de 18.06.2015, «não podendo apurar-se o valor exacto de tais danos, atenta a sua natureza, o respectivo montante deverá ser fixado pelo tribunal segundo critérios de equidade (…), fazendo apelo a todas as regras de prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (…) e tendo em atenção a extensão e gravidade dos prejuízos, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e demais circunstâncias do caso.» [11]
E, ainda, nesta temática, refere-se no mesmo aresto, «nos parâmetros gerais a ter em conta considerou o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 19 de Abril de 2012 (proc. n.º 3046/09.0TBFIG.S1, acessível em www.dgsi.pt) serem ainda de destacar a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico correspondente à União Europeia e o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito à integridade física e à qualidade de vida, e, bem assim, que a jurisprudência deste mesmo Supremo Tribunal tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização em causa deve constituir um lenitivo para os danos suportados e não ser orientada por critérios hoje considerados miserabilistas, por forma a, respondendo actualizadamente ao comando do artigo 496º, traduzir uma efectiva possibilidade compensatória para os danos suportados e a suportar. “
No entanto, como se dá nota no AC STJ de 17.12.2015 e nos variadíssimos arestos ali elencados, a utilização de critérios de equidade não deve impedir que se tenham em conta as exigências do princípio da igualdade, o que implica a procura de uma tendencial uniformização de critérios, naturalmente não incompatível com a devida atenção às circunstâncias específicas de cada caso concreto. [12]
Neste sentido, conforme se colhe da mesma jurisprudência do Supremo, o recurso à equidade não pode, nem deve conduzir à subjectividade ou arbitrariedade, salientando-se que não devem os tribunais «contribuir de nenhuma forma para alimentar a ideia de que neste campo as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. Se a justiça, como cremos, tem implícita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade, é no âmbito do direito civil que a afirmação destes vectores se torna mais premente e necessária, já que eles conduzem em linha recta à efectiva concretização do princípio da igualdade consagrado no art. 13º da Constituição.» [13]
Por último, neste âmbito, é ainda de salientar que à obrigação indemnizatória, a título de danos não patrimoniais, se deve reconhecer, não só um papel de reparação ou compensação, mas também uma função de censura dirigida ao agente do facto lesivo.
Com efeito, como se salienta no AC STJ de 30.10.96, BMJ 460º, 444, citado pelo AC STJ de 26.01.2016, «no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização tem uma natureza acentuadamente mista, pois visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada, não lhe sendo, porém, estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente

Tendo presentes as considerações que antecedem e no que ora releva, resulta da factualidade provada o seguinte:
a) – A Autora não teve qualquer culpa na eclosão do acidente, antes este ficou a dever-se em exclusivo à conduta estradal ilícita e culposa do condutor do veículo automóvel, que veio a atropelar a Autora quando esta efectuava a travessia da via em passadeira para peões devidamente assinalada e visível;
b)- em consequência do acidente, a Autora foi transportada ao Hospital ..., no Porto, apresentando o conjunto de lesões descritas sob o ponto 20 da factualidade provada, com vários hematomas, contusões e fractura da rótula direita.
c)- Efectuou vários tratamentos e exames, incluindo 11 sessões de fisioterapia e, ainda, uma cirurgia tendo em vista a correcção de uma cicatriz na região frontal.
d)- Sofreu um quantum doloris de grau 4 numa escala de 1 a 7 - facto provado em 19, alínea d);
e)- Sofreu um dano estético quantificável no grau 3 de uma escala de 1 a 7 – facto provado em 19, alínea g).
f)- A consolidação médico-legal das lesões veio a ter lugar em Novembro de 2016, ou seja, cerca de 4 meses após o acidente.
g) – Terá que tomar pontualmente, até ao fim da sua vida, medicação para a dor.
h) – À data do acidente a Autora tinha 56 anos;
i) Passou a sentir-se triste e apreensiva com a diminuição da sua capacidade de trabalho.
Ora, perante o sobredito circunstancialismo que emerge da factualidade provada, julgamos que o valor de € 20.000,00 fixado equitativamente na sentença recorrida a título de danos não patrimoniais, ponderando não apenas a idade da Autora à data do acidente (56 anos), mas sobretudo o quantum doloris sofrido (4/7), o prejuízo estético decorrente do acidente (3/7), a cirurgia a que foi submetida, todos os demais tratamentos médicos/exames e fisioterapia a que foi submetida e que teve que realizar (ainda que estes tenham tido lugar durante um período de tempo relativamente curto de cerca de 4 meses), ponderando a sua modesta condição económica (assistente operacional) e, ainda, a circunstância de nenhuma culpa lhe poder ser assacada na eclosão do acidente em apreço, se mostra conforme às regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e sem olvidar também os casos similares ao dos presentes autos e os valores arbitrados pela nossa jurisprudência nesses outros casos, independentemente das especificidades de cada caso submetido a decisão judicial.
Com efeito, e apenas a título meramente exemplificativo dos critérios que vêm sendo perfilhados na jurisprudência do STJ, em caso de lesada com incapacidade geral permanente de 6 pontos, com 40 anos, costureira, que sofreu quantum doloris de 4/7 foi fixada como indemnização a quantia de € 20.000,00, a título de danos não patrimoniais; Em caso de lesado com 43 anos com incapacidade geral permanente também de 6 pontos, com um quantum doloris de 5/7 e dano estético de 4/7 foi fixada a indemnização de € 25.000,00, a título de danos não patrimoniais; Em caso de lesado com 33 anos, com o mesmo grau de incapacidade de 6 pontos, com quantum doloris de 4/7 e dano estético de 4/7 foi fixada a indemnização de € 30.000,00, a título de danos não patrimoniais – Vide, respectivamente, AC STJ de 16.06.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro Tomé Gomes, AC STJ de 16.12.2020, relator Sr.ª Juíza Conselheira Maria Graça Trigo, ambos disponíveis in www.dgsi.pt e AC STJ de 8.03.2018, relator Sr. Juiz Conselheiro Lima Gonçalves, este último disponível in www.stj.pt (sumários de acórdãos das secções cíveis do ano 2018).
Por conseguinte, no caso concreto dos presentes autos, dentro destes parâmetros perfilhados pela nossa jurisprudência (e outros acórdãos poderiam ser citados em abono de tais montantes ou outros muito próximos do fixado na sentença recorrida) e não deixando de reconhecer a dificuldade inerente a uma estrita comparação entre cada caso concreto, não se vislumbram, ainda assim, razões bastantes, face à factualidade provada e relevante nesta matéria – acima exposta –, para divergir do valor indemnizatório fixado a título de danos não patrimoniais na sentença recorrida e para acolher o valor proposto no recurso pela Ré/Recorrente de € 12,500,00, valor este que temos, com o devido respeito, por aplicável em casos de menor gravidade do que o ora está em apreciação, seja ao nível do quantum doloris sofrido pelo lesado, seja ao nível do prejuízo estético decorrente das sequelas físicas do acidente, factores estes que, no caso dos autos, em sentido diverso do que advoga a Recorrente, atingem graus significativos e, como tal, devem consequentemente merecer do julgador um maior significado em termos indemnizatórios, enquanto expressão do reclamado reconhecimento pelo sistema jurídico da dignidade e protecção da integridade físico-psíquica do lesado, sobretudo quando este, como é o caso dos autos, nenhuma contribuição deu para a eclosão do acidente que o veio a atingir e, ademais, era, segundo o que evidencia a factualidade provada, antes do acidente, uma pessoa sem qualquer afectação física limitadora da sua vida pessoal, familiar e social e da respectiva qualidade de vida.
Como assim, neste outro segmento, em nosso julgamento, improcede a apelação, sendo de manter o montante indemnizatório ora em causa e fixado a título de danos não patrimoniais.
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IV.IV. Juros de mora:
A última questão suscitada pela Ré/Recorrente contende com os termos de contagem dos juros de mora sobre os valores arbitrados na sentença recorrida a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros (dano biológico) e, em particular, com a questão de saber se os ditos juros de mora devem ser contados a partir da data da sentença em 1ª instância ou, ao invés, a partir da data da citação.
Vejamos.
Relativamente ao montante fixado na sentença recorrida a título de danos não patrimoniais – e que antes se manteve – de € 20.000,00, não se nos evidencia qualquer divergência no caso dos autos, pois que, como resulta do decisório da sentença feito constar da respectiva alínea b), os juros de mora sobre tal valor a título de danos não patrimoniais mostram-se fixados apenas a partir da data da sentença de 1ª instância, ou seja, a partir de 1.03.2022, sendo que se refere expressamente na fundamentação da sentença nessa parte que a decisão é tida como actualizadora, ou seja, o valor fixado teve por referência a data da prolação da decisão do Tribunal de 1ª instância.
A questão coloca-se, pois, apenas quanto à quantia de € 11.000,00 fixada no presente acórdão a título de dano biológico, ou seja, a título de indemnização pela perda de capacidade aquisitiva da Autora fruto da afectação permanente da sua integridade físico-psíquica fixada em 6 pontos (numa escala de 1 a 100) e nos termos sobreditos.
Decidindo.
Nesta matéria, segundo o n.º 1 do artigo 804º, do Cód. Civil, a simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.
Por outro lado, segundo a regra do n.º 1 do artigo 805º, do mesmo Código, o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.
No entanto, no que ora releva, segundo a alínea b) do n.º 2 do mesmo artigo 805º, existe mora do devedor, independentemente de interpelação, se a obrigação provier de facto ilícito.
Todavia, segundo o n.º 3 do mesmo artigo, cuja redacção foi alterada pelo DL n.º 262/83, de 16.06, “Se o crédito for ilíquido, não há mora enquanto se não tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor; tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou pelo risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que já haja então mora, nos termos da primeira parte deste número.
Digamos que, por via de regra, na responsabilidade por facto ilícito (ou pelo risco) – como é o caso dos autos -, o devedor constitui-se em mora a partir da citação, sendo, pois, por princípio, esta a data relevante para efeitos de início da contagem dos juros de mora contra o devedor.
Sucede, no entanto, que este n.º 3 do artigo 805º, do Cód. Civil, veio a ser objecto de uma interpretação restritiva por via do Acórdão Uniformizador do STJ n.º 4/2002, de 9.05.2002, publicado no DR, Iª série - A, de 27.06.2022, no qual se consignou que “Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do n.º 2 do artigo 566º do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto no artigo 805º, n.º 3 (interpretado restritivamente), e artigo 806º, n.º 1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação.”
Digamos que, segundo a fundamentação do Acórdão Uniformizador, no domínio da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito (ou pelo risco), visando a contagem dos juros de mora a partir da citação e a actualização da indemnização na decisão judicial proferida, proteger o lesado/credor pelos (mesmos) prejuízos decorrentes do não pagamento tempestivo da indemnização, a actualização desta, seja ela de natureza patrimonial ou não patrimonial, afasta a regra que emerge da 2ª parte do n.º 3 do artigo 805º, qual seja a de que os juros de mora devem ser contabilizados a partir da citação, sob pena de vir a ocorrer um duplo ressarcimento dos mesmos prejuízos que ambas as figuras visam cobrir. [14]
Por conseguinte, como vem sendo salientado pelo STJ o sentido da uniformização é o de que, se não há cálculo actualizado, os juros contam-se desde a citação e, se há cálculo actualizado, ao invés, os juros contam-se apenas a partir da decisão actualizadora: “onde há actualização não há juros; onde não há actualização, há juros.” – AC STJ de 8.03.2022, relator Sr. Juiz Conselheiro Nuno Pinto de Oliveira, disponível no mesmo sítio oficial.
Ora, dito disto, no caso dos autos, como consta da sentença recorrida e quanto aos danos patrimoniais ali considerados, nele incluindo o dano biológico/danos patrimoniais futuros, o valor atribuído (e não obstante o mesmo ter sido alterado nesta instância, pelas razões antes apontadas), não foi objecto de decisão actualizadora – levando em linha de conta os índices de inflação entre a data da propositura da acção e a data da prolação da sentença.
De facto, em princípio, os montantes indemnizatórios (atinentes a danos patrimoniais ou não patrimoniais) deverão ser, todos eles, reportados à data da citação, de harmonia com a regra geral plasmada nos artigos 804.º, nº 1 e 805.º, nº 3 do Cód. Civil. Só não será assim se, em data subsequente à da citação, vier a ser emitida uma qualquer decisão judicial actualizadora expressa que contemple, por majoração (e com base na estatuição-previsão do nº 2 do artigo 562.º do Cód. Civil), esses cômputos indemnizatórios, com apelo aos factores/índices da inflação e/ou da desvalorização ou correcção monetária.

Ora, sendo assim, e não se colhendo da sentença recorrida, nem mesmo deste acórdão quanto a tais danos patrimoniais, mesmo socorrendo-nos para tal efeito, como cremos dever ser, em termos essenciais de critérios de equidade, que tenha existido (mesmo tacitamente) uma decisão actualizadora para os efeitos assinalados no douto Acórdão Uniformizador, os juros de mora devem ser – como foram na sentença recorrida e ora se mantém – contabilizados a partir da citação e não a partir apenas da sentença em 1ª instância.
Por conseguinte, nesta parte improcede a apelação.
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V. DECISÃO:
Pelo antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Ré, revogando parcialmente a sentença recorrida nos seguintes termos:
a) Condena-se a Ré a pagar à Autora AA, a título de danos patrimoniais (danos emergentes) a quantia de € 1.973,75 (mil novecentos e setenta e três euros e setenta e cinco cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde a data da citação e até integral pagamento;
b) Condena-se a Ré a pagar à mesma Autora, a título de danos não patrimoniais na quantia de € 20.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença em 1ª instância e até integral pagamento.
c) Condena-se a Ré, a título de dano biológico, na vertente de dano patrimonial futuro, no pagamento da quantia global de € 11.000,00 (onze mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, sucessivamente aplicável, desde a data citação e até integral pagamento.
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Custas em ambas as instâncias pela Autora e pela Ré na proporção do respectivo decaimento (artigo 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC), sem prejuízo do apoio judiciário de que aquela beneficie.
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Porto, 26.09.2022
Jorge Seabra
Pedro Damião e Cunha
Fátima Andrade

(O presente acórdão não segue na sua elaboração o Novo Acordo Ortográfico)
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[1] TERESA MAGALHÃES, DIOGO PINTO da COSTA, “Avaliação do dano na pessoa em sede de Direito, Perspectivas Actuais.”, Revista da Faculdade de Direito do Porto, págs. 427, 442 e 443.
[2] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 23.05.2019, relator Sr. Juiz Conselheiro OLIVEIRA ABREU, AC STJ de 29.10.2019, relator Sr. Juiz Conselheiro RICARDO COSTA, ambos com indicação de outros arestos no mesmo sentido, que nos escusamos a aqui repetir, ambos disponíveis in www.dgsi.pt
[3] AC STJ de 10.11.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro LOPES do REGO, disponível no mesmo sítio oficial.
[4] AC STJ de 19.04.2018, relator Sr. Juiz Conselheiro ANTÓNIO PIÇARRA, disponível no mesmo sítio oficial.
[5] Vide, ainda, no mesmo sentido, com indicação de vasta jurisprudência sobre o conceito e âmbito de aplicação do dano biológico, por todos, o recente AC STJ de 21.06.2022, relator Sr. Juiz Conselheiro ISAÍAS PÁDUA, também disponível in www.dgsi.pt
[6] Vide, neste sentido, por todos, os AC STJ de 23.05.2019 e 29.10.2019, antes citados.
[7] Disponível in www.pordata.pt
[8] A. VARELA, “Das Obrigações …”, cit., pág. 571. No mesmo sentido, L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, I volume, 7ª edição, pág. 339-341 e, ao nível da jurisprudência, por todos, AC STJ de 8.01.2017, relator Sr. Juiz Conselheiro ARMÉNIO SOTTOMAYOR, AC STJ de 9.01.2018, relator Sr. Juiz Conselheiro JOSÉ RAINHO e AC STJ de 4.06.2015, relator Sr.ª Juíza Conselheira MARIA dos PRAZERES P. BELEZA, todos in www.dgsi.pt
[9] VAZ SERRA, in RLJ, ano 113º, pág. 104.
[10] Vide, neste sentido, AC STJ de 28.01.2016, relator Sr.ª Juíza Conselheira MARIA da GRAÇA TRIGO, AC STJ de 26.01.2016, relator Sr. Juiz Conselheiro FONSECA RAMOS e AC STJ de 4.06.2015, relatora Sr.ª Juíza Conselheira MARIA dos PRAZERES P. BELEZA, antes citado, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[11] AC STJ de 18.06.2015, relator Sr.ª Juíza Conselheira FERNANDA ISABEL PEREIRA, in www.dgsi.pt
[12] AC STJ de 17.12.2015, relator Sr.ª Juíza Conselheira MARIA dos PRAZERES P. BELEZA, AC STJ de 20.12.2017, relator Sr.ª Juíza Conselheira MARIA do ROSÁRIO MORGADO, ambos in www.dgsi.pt
[13] Vide, por todos, neste sentido, AC STJ de 7.04.2016, relatora Sr.ª Juíza Conselheira MARIA GRAÇA TRIGO, AC STJ de 18.06.2015, relator Sr.ª Juíza Conselheira FERNANDA ISABEL PEREIRA, já citados, e, ainda, AC STJ de 31.01.2012, relator Sr. Juiz Conselheiro NUNO CAMEIRA, todos disponíveis in www.dgsi.pt
[14] Vide, neste sentido, por todos, MARIA da GRAÇA TRIGO/MARIANA NUNES MARTINS, anotação ao artigo 805º, do Código Civil, in “Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações”, I volume, UCE, pág. 1132-1133 e, ainda, AC STJ de 21.06.2022, já antes citado.