Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
261/14.8TYVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: PER
PLANO DE RECUPERAÇÃO
RECUSA DE HOMOLOGAÇÃO
VIOLAÇÃO NÃO NEGLIGENCIÁVEL
IGUALDADE DOS CREDORES
Nº do Documento: RP20150708261/14.8TYVNG.P1
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O processo especial de revitalização (PER) visa a viabilização ou recuperação do devedor, recuperação essa agora elevada a fim essencial do CIRE, devendo o Tribunal, em sede de juízo quanto à homologação do plano de recuperação, ter em conta o favor debitoris e a finalidade do PER de revitalização do tecido empresarial, apenas sendo de obstar à violação de normas imperativas e a resultados de todo não autorizados pela lei.
II - Devem ter-se por não negligenciáveis as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado não permitido pela lei, influindo na decisão do PER.
III - Se um credor, com crédito reclamado e reconhecido, manifestou a sua vontade de participar nas negociações, mas não lhe foi dada essa possibilidade de participação, assim o deixando afastado do iter que levou à aprovação e homologação desse plano, ocorre violação não negligenciável da norma do art.º 17.º-D, n.º 6, do CIRE.
IV - O princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles–proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
V - É, por isso, admissível, o estabelecimento, pelo plano de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
VI - A ofensa, pelo plano, do princípio da igualdade dos credores constitui uma violação não negligenciável e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 261/14.8TYVNG.P1-Apelação
Origem: Comarca do Porto-V. N. Gaia-Inst. Central-2ª Sec.Comércio-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Caimoto Jácome
2º Adjunto Des. Macedo Domingues
Sumário:
I- O processo especial de revitalização (PER) visa a viabilização ou recuperação do devedor, recuperação essa agora elevada a fim essencial do CIRE, devendo o Tribunal, em sede de juízo quanto à homologação do plano de recuperação, ter em conta o favor debitoris e a finalidade do PER de revitalização do tecido empresarial, apenas sendo de obstar à violação de normas imperativas e a resultados de todo não autorizados pela lei.
II- Devem ter-se por não negligenciáveis as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado não permitido pela lei, influindo na decisão do PER.
III- Se um credor, com crédito reclamado e reconhecido, manifestou a sua vontade de participar nas negociações, mas não lhe foi dada essa possibilidade de participação, assim o deixando afastado do iter que levou à aprovação e homologação desse plano, ocorre violação não negligenciável da norma do art.º 17.º-D, n.º 6, do CIRE.
IV- O princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles–proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes.
V- É, por isso, admissível, o estabelecimento, pelo plano de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
VI- A ofensa, pelo plano, do princípio da igualdade dos credores constitui uma violação não negligenciável e, consequentemente, causa fundada de recusa da sua homologação.
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
B… com domicílio profissional na Rua …, nº …, Porto, veio instaurar o presente Processo Especial de Revitalização.
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Foi apresentada a lista provisória de credores.
Foram deduzidas impugnações, que foram decididas.
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Foi apresentado plano de recuperação.
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A Credora D… veio requerer a não homologação do plano de recuperação.
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- No dia 06/03/2014, o devedor veio instaurar o presente PER e a 13/03/2014 foi publicado no Portal Citius o anúncio relativo à nomeação do Administrador Judicial Provisório (AJP), tendo, nessa sequência, a credora informado o Sr. AJP da sua intenção de participar nas negociações;
- A 27/05/2014, o devedor e o Sr. AJP acordaram a prorrogação do prazo para concluir as negociações por mais um mês, tendo sido tal requerimento publicado no Portal Citius a 28/05/2014;
- O devedor, por email datado de 30/06/2014, comunicou o plano de revitalização à devedora;
- Por correio registado, expedido no dia 30 de Junho de 2014, o Devedor, através da sua Ilustre Mandatária, enviou “o Plano de Recuperação da empresa, que resultou das negociações encetadas”, mais informando que “a votação é unicamente realizada por voto escrito, que deverá ser remetido e entregue ao Administrador Judicial provisório até ao dia 10 de Julho de 2014”;
- sucede que as negociações com a credora não existiram, não tendo a credora sido contactada pelo devedor ou pelo AJP para esse efeito, tendo a credora apenas sido notificada do plano de recuperação;
- tal comportamento não é legalmente admissível, tendo-se verificado a violação dos princípios da boa-fé negocial, da cooperação e da transparência;
- o CIRE apenas prevê a classificação dos créditos como “garantidos e privilegiados”, os créditos “subordinados” e “comuns”, não sendo possível a classificação de outro modo;
- sucede que o devedor divide os créditos noutras categorias que não as referias supra, dando tratamento diferente aos créditos comuns;
- o que constitui violação do conteúdo do plano (artº 195º, nº 1, do CIRE), como violação do princípio da igualdade entre credores (cfr. artigo 194.º do CIRE), não se vislumbrando a referência às razões objectivas das diferenciações operadas entre credores comuns pelo referido plano;
- não deve, portanto, o plano ser homologado;
- Ainda que inexistissem as violações ao princípio da igualdade supra mencionadas, sempre teria o Plano de Revitalização de referir a expressa derrogação do referido princípio–o que também não aconteceu (cfr. artº 195º, nº 2, al. e), do CIRE);
- pelo que deve ser rejeitada a homologação.
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Devidamente notificado veio o requerente pronunciar-se sobre o requerimento para recusa de homologação do plano apresentado, pugnando pela homologação, nos seguintes termos:
- impugnou a generalidade dos factos alegados pela credora, alegando a inexistência de elementos probatórios que os suportassem;
- mais indicou que a questão deste processo tem a ver com um estabelecimento comercial, que gira em nome individual, e não com a pessoa em si;
- é manifesto que inexiste violação do plano em si.
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O Sr. AJP veio também pugnar pela homologação do plano.
Para tanto alegou, em síntese, que:
- inexiste qualquer disposição legal que obrigue ao AJP (ou ao requerente do PER) que proceda à negociação do plano, com intervenção unitária dos credores, não sendo proibida a negociação inicial com alguns credores, prosseguindo depois a negociação com os demais credores;
- foi o que sucedeu neste processo, iniciando-se as negociações com o credor C…, prosseguindo depois as negociações com outros credores;
- é esta a natureza que tem que tem de ser interpretada a comunicação feita à ilustre mandatária da credora, datada de 30/16/2014;
- é inequívoca a recusa da credora em participar em qualquer negociação;
- inexiste qualquer violação não negligenciável das regras procedimentais;
- existe uma confusão entre o que seja um comerciante–ainda que em nome individual–e a pessoa singular, considerada fora do comércio;
- caso assim não fosse, este Tribunal seria incompetente, pois não lhe cabe aferir de revitalização de pessoas singulares;
- os créditos de natureza não comercial apenas subsistiam por se tratar de um crédito prestado a terceiro em contrato de crédito hipotecário;
- inexistem diferenciações operadas no plano quanto a credores comuns.
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Fixada a matéria factual foi, a final, proferida decisão que recusou a homologação do plano de recuperação apresentado.
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Não se conformando com o assim decidido veio o requerente interpor o presente recurso concluindo as suas alegações pela forma seguinte:
A – Versa o presente recurso a aliás douta, decisão que recusou a homologação do plano de revitalização que havia merecido o voto favorável da maioria legalmente necessária à aprovação daquele plano de recuperação;
B - Assentou tal decisão nas vertentes que se assinalam:
· Violação, cometida ao aqui Recorrente–rectius, ao Senhor Administrador Judicial Provisório-, das regras procedimentais, que emergiriam da estatuição legal objectivada n artigo 17.º- D, n.º 10 do CIRE; e
· Violação do princípio de igualdade entre os credores, imposto pelo artigo 194.º, n.º 1 do CIRE.
Tudo pelos fundamentos que melhor são referidos na decisão sob recurso.
C – Preceitua o n.º 10 do artigo 17.º - D do CIRE que “Durante as negociações os intervenientes devem actuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro”, importando, desde já, realçar que os ditos princípios orientadores impõem-se a todos os intervenientes … não apenas ao devedor;
D - No entender do Recorrente, são aqueles princípios orientadores os seguintes:
“Segundo Princípio–Durante todo o procedimento, as partes devem actuar de boa-fé, na busca de uma solução construtiva que satisfaça todos os envolvidos;
Terceiro Princípio–Deve ser garantida uma abordagem unificada por parte dos credores, que melhor sirva os interesses de todas as partes;
Quarto Princípio–Os credores envolvidos devem cooperar entre si e com o devedor de modo a concederem a este um período de tempo suficiente para obter e partilhar toda a informação relevante e para elaborar e apresentar propostas para resolver os seus problemas financeiros;
Nono Princípio – As propostas de apresentadas e os acordos realizados durante o procedimento, incluindo aqueles que apenas envolvam os credores, devem reflectir a lei vigente e a posição relativa de cada credor.”
É neste quadro que deverá decorrer a tentativa de lograr obter a adequada solução para a questão colocada;
E - No que tange à matéria de facto dada por assente, não pode o aqui Recorrente aderir ao que foi vertido ao n.º 5–no que concretamente se refere à prévia definição do plano com o credor C… -, por não resultar provado que assim fosse;
F - E, muito menos, com o sentido e finalidade que foram assumidos pelo Julgador, quando, no último parágrafo da pág. 12 da decisão em recurso, afirma:
“Contudo, já no caso do Credor C…, este foi contactado tendo com este definidos termos do plano que ira ser submetido à votação (cfr. Número 5 dos factos provados)”;
G - Nenhuma dúvida tem o Recorrente em aderir ao entendimento do Mer.mo Juiz a quo quanto à normalidade da actuação consistente na obtenção o prévio acordo com o Credor C…, dada a essencialidade do voto deste para a provação do plano, por ser esse o normal comportamento do devedor em situação similar, pois que sem o acordo deste credor resultaria a inviabilidade do plano, no que tange à sua aprovação;
H - Mas discorda o Recorrente do entendimento sufragado na decisão recorrida no que toca `”desconsideração” da posição do credor D… … e, muito menos, com a qualificação que é feita quanto à actuação do Recorrente e do AJP, em termos de ser subsumida a violação não negligenciável das regras comportamentais legalmente impostas em sede de CIRE.
Na verdade, não se vislumbra- mesmo atidos ao conteúdo da comunicação de 30 de Junho., em que foi dado conhecimento ao credor em questão da proposta de plano–pudesse ter sido coarctado qualquer direito do mesmo credor;
I - Aquela proposta tem de ser havida como uma verdadeira proposta negocial, sujeita a discussão e, a final, a votação;
J – Perscrutando, a dita credora, uma forma de, prevendo a eventual votação a que seria sujeito o plano, obstar à homologação dele, suscitando em tal sede a alegada violação as regras procedimentais, tudo em vez de manifestar a sua posição quanto à proposta de plano ou apresenta qualquer sugestão modificativa ou outra e pré-determinada a um fim que não pode merecer o acolhimento do regime legal a que está ela também sujeita;
L - Repetindo-se o que antes foi escrito e por referência aos princípios orientadores a que estão sujeito os intervenientes no PER, a vinculação aos deveres de boa-fé negocial e às regras procedimentais é extensiva a todos esses intervenientes, a assacar-se qualquer violação às regras procedimentais, teria de ser à identificada credora, com a assunção comportamental, manifestamente ilegal e censurável, que assumiu o processo;
M - De tudo decorre não ter o Recorrido–nem o AJP–violado qualquer regra comportamental, nomeadamente no que se refere àquelas que se impunham em sede negocial, inexistindo, consequentemente, qualquer violação ao estatuído no n.º 10 do artigo 17 – D, do CIRE;
N - Razão porque, nesta sede, não existe qualquer fundamento para a não homologação do plano de recuperação que logrou o voto favorável a maioria qualificada dos credores, o que constitui fundamento para a revogação da decisão sob recurso, com as legais consequências;
O - Preceitua o n.º 1 do citado artigo 194.º, o seguinte:
“1- O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objectivas”;
P - Importará, face a este preceito e ao seu conteúdo, tentar definir o que serão “diferenciações justificativas por razões objectivas”, nomeadamente tendente à subsunção da situação fáctica, no que tange ao plano de recuperação em questão;
Q - Nesse sentido, transcreve-se o comentário–a cujo conteúdo se adere-vertido à nota 4, a fls. 753, do CIRE Anotado, 2.ª edição, da autoria de Carvalho Fernandes e João Labareda:
“4. A razão objectiva porventura mais clara que fundamenta a diferença de tratamento dos credores assenta na distinta classificação dos créditos, nos termos que agora está assumida no artigo 47.ºdo Código” (com a remissão para a jurisprudência aí citada).
Para além disso, dentro da mesma categoria há motivos para destrinçar o grau hierárquico que couber aos vários créditos.
O que está vedado é, na falta de acordo dos lesados, sujeitar a regimes diferentes credores em circunstâncias idênticas.”
R - Complementarmente, poderá ainda ver-se, do mesmo autor João Labareda, Providências de recuperação de empresas, in Direito e Justiça, vol. IX, Tomo 2, sep., Lisboa, 1995, págs. 71 e 72;
S - Colocada assim a questão, como entende o Recorrente dever ela ser colocada, não se vislumbra como possa ser entendido que o plano de recuperação em apreço poderá comportar “violação groseira do princípio da igualdade”, como vem assumida na decisão sob recurso. E tudo atenta a categoria dos créditos em questão, de natureza inquestionavelmente diversa, sendo o do credor C… um rédito hipotecário, e o dos demais–no que se inclui o da Credora D…-créditos comuns;
T - E nem se diga, no sentido de sustentação de solução diversa, que a diferença entre o grau de cumprimento entre os créditos de diversa natureza é desta ou daquela percentagem … Não só a lei não determina o uso de tal critério, como não se concebe onde possa ele assentar;
U - Ao invés, solução diversa sempre imporia a consideração de que o não estabelecimento do plano de recuperação teria por efeito a declaração da insolvência do devedor, processo de liquidação universal, da qual resultaria a impossibilidade do recebimento pelos credores comuns do que quer que fosse, pelo singelo efeito de que, mesmo não considerado os pagamentos precípuos a fazer pela Massa Insolvente, sempre os créditos hipotecários prevaleceriam sobre os créditos comuns;
V - Face ao que vai dito, não se divisa de onde poderá resultar qualquer violação ao princípio da igualdade, de que poderia resultar o estabelecido no Plano de Revitalização;
X - Não ocorre no caso dos autos qualquer violação ao princípio da igualdade entre os credores legalmente estabelecido, pelo que, também nesta parte merece a decisão em recurso censura, devendo, por isso, ser revogada também nesta parte;
Z – Por tudo, deve ser dado provimento ao presente recurso, impondo-se a revogação da decisão objecto do presente recurso, por ofensa aos identificados preceitos legais, e a substituição dela por uma outra que decida a homologação do plano de revitalização, com todos os legais efeitos.
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Contra alegou a Credora D…, S.A., concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são duas as questões que importa apreciar:

a)- saber se houve, ou não, violação de normas procedimentais;
b)- saber se o plano de recuperação apresentado viola o princípio da igualdade.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1. O devedor “B…” instaurou o presente PER.
2. Por carta registada com aviso de receção, datada de 02/04/2014 e recebida em 03/04/2014, a Credora D… manifestou ao Sr. AJP a sua intenção de participar nas negociações.
3. Por email datado de 30/06/2014, a que se seguiu o envio por via postal, o devedor enviou à credora D… um documento denominado “plano de recuperação” conjuntamente com a seguinte declaração:
“Na sequência do Processo Especial de Revitalização (PER) empreendido por esta sociedade, vimos pelo presente meio (…) enviar a V. Ex.as o plano de Recuperação da empresa, que resultou das negociações encetadas.
Informamos que, nos termos da legislação que rege o PER, nomeadamente o artigo 17º-F do CIRE, a votação é unicamente realizada por voto escrito, que deverá ser remetido ao Administrador Judicial Provisório até ao dia 10 de Julho de 2014.
(…)
Desde já expressamos o nosso agradecimento pelo apoio de todos os nossos credores e esperamos merecer a confiança do voto favorável de V. Exas ao plano de recuperação proposto, aqui manifestando que tudo faremos para que se consiga atingir os objectivos propostos”.
4. Durante o período que decorreu entre o início deste PER e a missiva indicada no número 3., a Credora D… nunca foi contactada pelo devedor ou pelo Sr. AJP com o propósito de encetar negociações.
5. No período das negociações do PER, o devedor contactou o Credor C… para esse efeito, tendo com este definido os termos do plano que iria ser submetido à votação.
6. Foi apresentado plano de recuperação pela devedora, no qual constava, além do mais, o seguinte:
“Plano de pagamentos
Dívidas de natureza não comercial
“Dada a especial natureza do devedor operar em regime em nome individual, existem dívidas de natureza particular que estão incluídas na relação de créditos e são separadas do plano apresentado, por não se integrarem na actividade comercial do devedor.
Abaixo são indicados os créditos de natureza não comercial
E… (…)
F… (…)
G… (…)
H… (…).
Estes créditos serão pagos a nível pessoal pelo devedor nos prazos e formas contratadas inicialmente.
(…)
Entidades Financeiras
Da actividade comercial com garantias reais e outras F…
Total: € 3.048.057,14
Pagamento do crédito, que englobará o capital e juros remuneratórios contratuais vencidos até à data do trânsito em julgado da sentença que homologar o acordo, em 180 prestações mensais compostas por capital e juros, a dívida é onerada à taxa Euribor a 6 meses com um spread de 2,5%;
(…)
Restantes credores
Pagamento de 10%do capital incluído no crédito reconhecido e verificado em 150 (cento e cinquenta prestações) mensais (…) Perdão dos juros vencidos e vincendos.
7. Na lista de credores:
- foi reconhecido ao credor F… (C…) um crédito de €3.156.690,79, correspondente a 79,84% dos créditos reconhecidos;
- foi reconhecido um crédito de €410.428,94, correspondente a 11,70% dos créditos reconhecidos.
8. Votaram favoravelmente o plano:
- I…;
- E… (crédito reconhecido de €246.108,32);
- F….
O que corresponde a um total de 87,57% dos créditos, considerando-se apenas os credores que exerceram o voto;
9. Votaram contra o plano:
- D…;
- J…;
- K…;
- L…;
O que corresponde a um total de 12,43% dos créditos, considerando-se apenas os credores que exerceram o voto.
10. Os restantes credores não exerceram o direito de votar o plano.
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Para além destes e fazendo uso do estatuídos no artigo 607.º, nº 4 do CPCivil aplicável ao presente acórdão ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal está ainda provado, com interesse para a decisão do presente recurso, o seguinte facto que corresponde ao artigo 3º do requerimento com a referência Citius nº 17354519:
11. Por cartas registadas com aviso de recepção, datadas e expedidas no dia 2 de Abril de 2014, a credora D… informou o requerente da sua decisão de participação nas negociações, tendo dado conhecimento de tal facto ao Senhor Administrador Judicial Provisório (cfr. cartas juntas com o requerimento apresentado nos presentes autos pela D… no dia 9 de Abril de 2014 e com a referência Citius 16501609).
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III. O DIREITO

Como supra se referiu a primeira questão colocada no recurso prende-se com:

a)- saber se houve, ou não, violação de normas procedimentais.

Respigando a fundamentação da decisão recorrida verifica-se que ela recusou a homologação do plano de recuperação assentando, essencialmente, em duas ordens de razões:
a)-Violação das regras procedimentais, que emergiriam da estatuição legal objectivada no artigo 17.º - D, n.º 10 do CIRE (diploma a que pertencerão as restantes normas citadas sem menção de origem); e
b)-Violação do princípio de igualdade entre os credores, imposto pelo artigo 194.º, n.º 1 do mesmo diploma legal.
Desde entendimento, dissente, porém, o recorrente.
Quid iuris?
A finalidade do processo especial de revitalização, criado pela Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, mostra-se definida no nº 1 do artigo 17.º-A que estatui: “O processo especial de revitalização destina-se a permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, mas que ainda seja susceptível de recuperação, estabelecer negociações com os respectivos credores de modo a concluir com estes acordos conducente à sua revitalização”.
Trata-se, portanto, sempre de um processo negocial em que o fim é a obtenção de um acordo entre o devedor e uma maioria de credores, que seja capaz de suportar a viabilização da empresa sendo certo que a eficácia do acordo, para lá da esfera dos que nele intervieram, pressupõe sempre a respectiva aprovação por uma maioria qualificada de créditos (artigo 17.º-F), que ocorrendo torna o acordo vinculativo para a generalidade dos credores.
Consagrou-se, pois, nos artigos 17.º-A a 17.º-I, um regime de cariz marcadamente voluntário e extrajudicial, deste processo por forma a fomentar o recurso ao procedimento extrajudicial de recuperação do devedor bem como a contribuir para o aumento do número de negociações concluídas com sucesso, dando primazia à vontade dos intervenientes (devedor e credores), com o dever de respeito dos princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros nº 43/2011, de 25 de Outubro (artigo 17.º-D nº 10).
De igual forma, se privilegiou o controlo pelos credores da conduta do devedor e do seu administrador (sendo a falta ou incorrecção das comunicações ou informações a estes prestada susceptível de gerar responsabilidade civil-cfr. nº 11 do citado artigo 17.º-D do CIRE), restringindo o controlo jurisdicional à gestão processual.
Por essa razão e pese embora o juiz, nos termos art. 17.º-F, nº 5, decida se deve homologar o plano de recuperação aprovado ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à recepção do plano de recuperação aprovado e de documento com o resultado da votação (nºs 2 e 4 do mesmo normativo), o facto é que, a intervenção daquele, se reconduz preponderantemente à sindicância da justeza da instauração do processo especial de revitalização (nº 2 do art. 1º do); às condições necessárias para a sua recuperação [cfr. artigos 17.º-A, 17.º-B e 17.º-C, nº.3, al. a) e nº4]; à decisão de impugnações de reclamações de créditos; ao julgamento da acção referida no nº 11 do citado art. 17.º-D; ao controlo do cumprimento das normas aplicáveis como requisito da homologação do plano de recuperação por forma a assegurar a legalidade do acordo alcançado pelos intervenientes (cfr. art. 17.º-F, nºs 3 e 5) ou à declaração de insolvência após a conclusão do “processo negocial”, sem a aprovação de qualquer plano de recuperação (cfr. art. 17.º-G).
Como acima se referiu, nos termos do nº 5, daquele art. 17º-F, o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação aprovado ou recusar a sua homologação, nos 10 dias seguintes à recepção da documentação mencionada nos números anteriores, ou seja, nos dez dias seguintes à recepção do plano de recuperação aprovado e de documento com o resultado da votação, cfr. nºs 2 e 4 do mesmo artigo, aplicando-se à homologação ou não homologação do plano, com as necessárias adaptações, as regras previstas no titulo IX do CIRE, em especial nos artigos 215.º e 216.º.
Donde se conclui que, o tribunal deve recusar a homologação, designadamente, no caso de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao conteúdo do acordo, artigo 215.º, nº 1, bem como em caso de violação do princípio da igualdade dos credores, artigo 194.º, ou ainda se tal lhe for solicitado, pelo devedor ou por algum credor, nos termos do art. 216.º.
Isto dito, a primeira questão colocada no recurso insere-se, na sindicância da violação ou não do regime procedimental.
Como noutro passo já se referiu o tribunal recorrido, neste segmento, entendeu que a credora D… foi completamente desconsiderada no período das negociações, sendo-lhe apenas apresentado um plano de recuperação terminado e fixado um prazo para votar, não tendo, por isso, o requerente cumpriu os deveres que se lhe impunham nos termos estatuídos no artigo 17.º-D, nº 10.
O citado preceito do CIRE–n.º 10 do artigo 17.º–D–preceitua o seguinte:
“Durante as negociações os intervenientes devem actuar de acordo com os princípios orientadores aprovados pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 43/2011, de 25 de Outubro.”
De entre os referidos princípios, relevam, tendo em conta a decisão proferida, o princípio da negociação tendo em vista a obtenção de acordo entre devedor e credores (1º), o princípio da boa fé e da busca de uma solução que satisfaça todos os envolvidos (2º), o princípio da cooperação (4º) e o princípio da transparência na actuação do devedor.
Vejamos, então, convocando a matéria factual que o tribunal recorrido deu como assente e que, diga-se, nem vem posta em causa no recurso[1], se, efectivamente, houve violação de alguns dos referidos princípios.
Provou-se que o devedor, por email datado de 30/06/2014, a que se seguiu o envio por via postal, enviou à credora D… um documento denominado “plano de recuperação” conjuntamente com a seguinte declaração:
“Na sequência do Processo Especial de Revitalização (PER) empreendido por esta sociedade, vimos pelo presente meio (…) enviar a V. Ex.as o plano de Recuperação da empresa, que resultou das negociações encetadas.
Informamos que, nos termos da legislação que rege o PER, nomeadamente o artigo 17º-F do CIRE, a votação é unicamente realizada por voto escrito, que deverá ser remetido ao Administrador Judicial Provisório até ao dia 10 de Julho de 2014.
(…)
Desde já expressamos o nosso agradecimento pelo apoio de todos os nossos credores e esperamos merecer a confiança do voto favorável de V. Exas ao plano de recuperação proposto, aqui manifestando que tudo faremos para que se consiga atingir os objectivos propostos” (cfr. número 3 dos factos provados).
Por cartas registadas com aviso de recepção, datadas e expedidas no dia 2 de Abril de 2014, a credora D… informou o requerente da sua decisão de participação nas negociações, tendo dado conhecimento de tal facto ao Senhor Administrador Judicial Provisório (cfr. nº 11 dos factos provados).
Durante o período que decorreu entre o início deste PER e até esta missiva, a Credora D… nunca foi contactada pelo devedor ou pelo Sr. AJP com o propósito de encetar negociações (cfr. número 4. dos factos provados).
Contudo, já no caso do credor credor C…, este foi contactado tendo com este definido os termos do plano que iria ser submetido à votação (cfr. número 5 dos factos provados).
Ora, será que esta factualidade preenche a factie species da norma do artigo 215.º do CIRE já acima citada?
Ou seja, será que ocorra violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza?
A despeito da vacuidade do conceito de vicio não negligenciável, não parece suscitar dúvidas que um tal vício se verifica apodicticamente quando o plano não descreve com a devida concretização as medidas necessárias à sua execução (n°2 do artigo 195.°) ou não objectiva a forma como ulteriores declarações de vontade que o plano pressupõe devam ser prestadas (n° 2 do artigo 217.°).
Dir-se-á, com efeito, que são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infracções que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.[2]
Como referem Luís A. Carvalho Fernandes e João Laberada[3] e a propósito do que seja “violação não negligenciável” “(…) verdadeiramente do que se trata para decidir se ela justifica ou não a recusa de homologação de um plano aprovado pelos credores-que é afinal de contas aquilo que aqui está em causa-,é de avaliar a relevância, ou não, da violação constatada.
Aqui chegados parece razoável atender ao critério geral que a própria lei processual utiliza no artigo 201.º do C.P.Civil. O que importa é, pois, sindicar se a nulidade observada é susceptível de interferir com a boa decisão da causa, o que significa valor se interfere ou não com a justa salvaguarda dos interesses protegidos ou a proteger-nomeadamente no que respeita à tutela devida à posição dos credores e do devedor nos diversos domínios em que se manifesta-tendo em conta o que é, apesar de tudo, livremente renunciável”.
(…)
O que haverá então de peculiar a observar-mas isto em consequência do que o próprio artigo 215º CIRE prescreve-é que o próprio tribunal deve, ele mesmo, agindo ex officio, relevar a nulidade, sem necessidade de arguição de quem quer que seja, o que implicará recusar a homologação do plano, à semelhança, aliás, do que sucede com outras nulidades tipificadas na lei, como se vê do que determina o art.° 202.° do C.P.Civil.[4]
Ora, pensamos, salvo o devido respeito por opinião contrária de que, tal como foi decidido, foi aqui violado regra de carácter não negligenciável na concepção supra referenciada.
Repare-se, desde logo, que a credora D… informou o requerente da sua decisão de participação nas negociações, tendo dado conhecimento de tal facto ao Senhor Administrador Judicial Provisório.
Facto este relevantíssimo que quer o requerente quer o Sr. Administrador Provisório não deviam ter descurado, pois que, o credor com o envio desta missiva manifestava o seu propósito de exercer um direito decorrente da lei (artigo 17.º, nº 7).
A verdade é que, até ao email datado 30/06/2014 e missiva enviada nessa sequência, a credora D… nunca foi contactada pelo devedor ou pelo Sr. AJP com o propósito de encetar negociações.
Coisa que já ocorreu com o credor C…, já que este foi contactado e com ele definido os termos do plano que iria ser submetido à votação.
Aliás, embora se possa dizer que antes da votação a credora D… teve conhecimento do plano que iria ser proposto para homologação, a verdade é que da missiva enviada não se retira, ainda que de forma implícita, qualquer convite à negociação.
Pelo contrário, aquela missiva limita-se a remeter à credora em causa a versão final do Plano de Revitalização unicamente para votação, ou seja, tal como se diz e bem na decisão do que se tratou foi apenas de uma verdadeira “imposição”.
Não se olvida que nos parece razoável que o devedor, primeiro, obtivesse o acordo com o C… (credor que, só por si, tinha uma percentagem de créditos superior aos 66,66% necessários para a aprovação do plano de recuperação).
Mas subsequentemente, impunha a boa fé nas negociações que o plano fosse enviado à credora D…, para esta se pronunciar e de fazer observações antes do plano ser submetido à votação.
É esta conduta, de boa fé nas negociações, que, genericamente, é imposta designadamente pelo segundo princípio orientador da Resolução do Concelho de Ministros nº 43/2011, de 29/09 atrás referida, e que não ocorreu neste processo.
A credora D… foi completamente desconsiderada no período das negociações, sendo-lhe apenas apresentado um plano de recuperação terminado e fixado um prazo para votar.
Evidentemente que o devedor não cumpriu os deveres que se lhe impunham durante as negociações (cfr. artº 17º-D, nº 10, do CIRE).
Verifica-se, assim, uma violação das regras procedimentais e de uma violação não negligenciável.
Importa, sopesar que a credora D… é detentora de um crédito de mais de 400.000,00 euros e, portanto, não podia ter sido desconsiderada desta forma.
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Neste segmento recursivo, deixa-se apenas uma última nota acerca do requerimento de não homologação do Plano, apresentado pela recorrida junto do tribunal a quo, referindo-se que é hoje pacificamente aceite ser este um direito que assiste aos credores no âmbito do Processo Especial de Revitalização, por força do disposto nos artigos 215.º e 216.º do CIRE (aplicáveis ex vi artigo 17.º-F n.º 5 do CIRE).
Como referem Luís Carvalho Fernandes e João Labareda[5] quanto à questão “de saber quais as vias disponibilizadas aos interessados para agir em defesa da sua pretensão de recusa da homologação, seja ela fundada na alegação de que perfaz a previsão do art.º 215.º, seja por ocorrerem circunstâncias conducentes a que o plano crie uma situação menos favorável para o requerente, do que aquela que previsivelmente teria lugar sem ele ou, independentemente disso, proporcionem a algum credor um valor nominal superior ao que tem direito a receber”, defendem os referidos Autores[6], que “apesar da omissão da lei, não pode razoavelmente recusar-se ao interessado a faculdade de, em requerimento autónomo dirigido ao tribunal, mesmo antes de concluído o processo de votação–e de, consequentemente, apurado o respectivo resultado-, solicitar a não homologação, precisamente na previsão de que o acordo possa reunir as maiorias de aprovação, ficando, embora, a apreciação condicionada a que tal seja documentado no processo”.
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E, tendo havido violação de norma procedimental não negligenciável tanto bastava para improceder o recurso.
Ainda assim, não se deixará de dizer que se verifica, tal como foi decidido, violação do princípio da igualdade.
Analisando.
O processo de insolvência é uma execução colectiva ou universal (artigo 1.º nº 1).
Na acção executiva promove-se, em geral, a realização coactiva de uma única prestação contra um único devedor e, em observância de um princípio de proporcionalidade, apenas são penhorados e excutidos os bens do devedor que sejam suficientes para liquidar a dívida exequenda (artigos 735.º, nº 3 e 813.º, nº 1 do CPCivil).
Esta execução distingue-se do processo de insolvência que é uma execução universal, tanto porque nela intervêm todos os credores do insolvente, como porque nele é atingido, em princípio, todo o património deste devedor (artigos 1.º, 47.º nºs 1 a 3, 128.º, nºs 1 e 3 e 149.º, nºs 1 e 2).
Como o devedor se encontra em situação de insolvência, quer dizer, impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, todos os credores, podem reclamar os seus créditos e todo o património do devedor responde pelas suas dívidas (artigo 3.º nº 1).
Na execução singular, um credor pretende ver satisfeito o seu direito a uma prestação; esse credor necessita de uma legitimação formal, que é um título executivo e se o devedor for solvente obtém na acção executiva a satisfação do seu crédito (53 nº 1 do CPCivil).
No processo de insolvência podem apresentar-se todos os credores do insolvente, ainda que não possuam qualquer título executivo, porque todos eles podem concorrer ao pagamento rateado do seu crédito, através do produto apurado na venda de todos os bens arrolados para a massa insolvente.
Este processo baseia-se na impossibilidade de o devedor saldar todas as suas dívidas e, portanto, orienta-se por um princípio de distribuição de perdas ou de sacrifícios, ou de comunhão de riscos entre os credores.
Admite-se, por isso, a par das reclamações preferenciais, a reclamação dos créditos comuns.
Abstraindo de soluções intermédias, a posição relativa recíproca dos credores em processos concursais, pode organizar-se de harmonia com dois sistemas: um deles fundamenta-se no princípio da prioridade e expressa-se na máxima prior tempore, prior iure, dado que atribui ao credor que primeiro obteve a penhora ou acto equivalente de bens do devedor uma preferência em relação aos demais credores que não sejam titulares de quaisquer garantias reais sobre esses mesmos bens; outro sistema possível é o da igualdade ou da par conditio (omnium) creditorum, que não concede ao exequente qualquer preferência resultante da penhora em relação aos demais credores comuns do executado.[7]
Todavia, a diferença entre o sistema da par conditio creditorum e o sistema da prioridade não corresponde, verdadeiramente, a qualquer contraposição entre igualdade e a desigualdade dos credores. Qualquer dos sistemas baseia-se num pressuposto de igualdade entre os credores: o que é diferente é a igualdade que está subjacente a qualquer dos sistemas.
No sistema da par conditio, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor impedir a satisfação integral dos créditos dos outros credores; no sistema da prioridade, a igualdade manifesta-se na possibilidade de qualquer credor conseguir a satisfação integral do seu crédito. Um sistema prejudica, de forma igual, todos os credores; o outro pode beneficiar, também de forma igual, qualquer credor.[8]
Seja como for, à igualdade dos credores na admissão ao concurso não corresponde necessariamente uma igualdade na satisfação dos créditos reclamados, em razão de uma diferente ponderação pelo legislador dos interesses da generalidade dos credores e, designadamente, dos titulares de direitos preferenciais de pagamento.
Os créditos sobre a insolvência separam-se em três classes: os créditos garantidos e privilegiados–que são os que beneficiam, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente; os créditos subordinados; os créditos comuns, que são nitidamente a categoria residual [artigo 47.º nºs 1, 2 e 4 a) a c)].
Os créditos subordinados–categoria inovatoriamente introduzida pelo CIRE– recebem da lei um nítido tratamento de desfavor, de que o exemplo mais acabado é a circunstância de independentemente da sua fonte, serem graduados e, portanto, satisfeitos, depois de todos os restantes créditos sobre a insolvência (artigo 48.º, corpo, 2ª parte, e 177 nº 1 do CIRE).
Outro ponto em que é visível o tratamento de desfavor dos créditos subordinados diz respeito ao direito de voto: os créditos subordinados não conferem direito de voto, excepto se a deliberação tiver por objecto a aprovação de um plano de insolvência (artigo 77.º, nº 3). A solução compreende-se em vista do drástico efeito que, na ausência de estatuição expressa constante do plano de insolvência, decorre para os créditos subordinados da sua aprovação: o perdão total dos créditos dessa classe [artigo 197.º b)].
Na insolvência, os créditos são satisfeitos de harmonia com o princípio da satisfação integral sucessiva, isto é, segundo a ordem da sua graduação, regra de que decorre esta consequência: um crédito só pode ser pago depois de o crédito anteriormente graduado se encontrar totalmente solvido (artigo 173.º e 604.º, nº 1, 1ª parte, do Código Civil). Assim, mesmo que o produto obtido com a venda dos bens apreendidos para a massa seja insuficiente para satisfazer todos os créditos graduados, isso não obsta à satisfação daqueles que, segundo a sua graduação, puderem ser integralmente pagos (artigos 174.º, nº 1 e 175.º, nº 1). Apesar dessa insuficiência, não há qualquer pagamento proporcional de todos os créditos graduados, ou seja, não se realiza qualquer rateio entre eles.
O problema do rateio apenas se coloca no tocante ao pagamento dos créditos que gozem da mesma garantia e tenham sido graduados a par e, naturalmente, quanto aos créditos comuns, quando a massa insolvente se mostrar insuficiente para a respectiva satisfação integral (artigos 175.º, nº 1 e 176.º e 604.º, nº 1, 2ª parte, do Código Civil). Quando isso suceda, o pagamento da pluralidade de créditos faz-se por rateio, segundo o princípio da proporcionalidade, assegurando-se o princípio da igualdade entre os créditos da mesma espécie, ou melhor, distribuindo por todos os credores da mesma categoria, proporcionalmente, as respectivas perdas.
Os credores da insolvência são tratados de forma igual–mas segundo a qualidade dos seus créditos. Nestas condições, em vez de par conditio creditorium talvez de devesse falar, com maior propriedade, de par aut conditio credito.
É a esta luz que deve ser lido o princípio da igualdade dos credores que o plano de insolvência deve acatar, princípio que a norma que proclama, de resto, logo admite a sua restrição, desde que a diferenciação se justifique por razões objectivas (artigo 194.º nºs 1 e 2).
O plano deve, pois, orientar-se pelo princípio da satisfação paritária dos interesses credores, ou, pela negativa, deve impedir que algum credor possa obter uma satisfação mais eficaz–mais rápida ou mais completa–do que–em prejuízo de–os restantes credores.
Seja como for, o princípio da igualdade dos credores não proíbe ao plano de insolvência que faça distinções entre eles–proíbe apenas diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, sem uma justificação razoável, segundo critérios objectivos relevantes. O princípio da igualdade dos credores tolera, pois, a previsão de diferenciações no tratamento jurídico de situações que se afigurem, sob um ou mais pontos de vista, idênticas, desde que, por outro lado, apoiadas numa justificação ou fundamento razoável, sob um ponto de vista que possa ser considerado relevante.
O plano deve, pois, tratar de forma igual o que é igual e desigualmente o que é desigual. O princípio da igualdade dos credores supõe, assim, uma comparação de situações, a realizar a partir de determinado ponto de vista. E, justamente, a perspectiva pela qual se fundamenta essa desigualdade e, consequentemente, a justificação para o tratamento desigual que não podem ser arbitrárias.
Um fundamento objectivo–porventura o mais claro–de diferenciação dos credores é precisamente a distinta classificação dos créditos da insolvência, designadamente a que os separa em comuns e privilegiados.[9]
Outra razão objectiva, razoável, susceptível de justificar diferença de tratamento, é, por exemplo, a fonte dos diversos créditos ou a finalidade visada com a contracção de um e de outros. Realmente parece razoável tratar de forma diferente o crédito contraído para aquisição de habitação e o crédito assumido para aquisição de bens de consumo. Outro motivo objectivo de diferenciação é, por exemplo, o valor dos créditos que, v.g., pode justificar prazos diferenciados para o seu pagamento.
Originariamente, a finalidade única e última do processo de insolvência era a satisfação dos interesses dos credores (artigo 1.º do CIRE, na redacção anterior àquela que lhe foi impressa pelo artigo 2.º da Lei nº 16/2012, de 20 de Abril). Este objectivo podia, todavia, ser prosseguido por dois modos diferenciados: através da liquidação universal do património do devedor e a partilha ou a repartição do respectivo produto pelos credores, de acordo com o esquema supletivo disposto na lei; através da satisfação dos credores pela forma regulada num plano de insolvência aprovado pelos credores, que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente (artigos 1.º e 192.º nº 1 do CIRE).
O plano de insolvência constitui, por isso, na lógica do CIRE um meio alternativo à liquidação universal dos bens do devedor, que decorre segundo o modelo supletivo traçado na lei. Com o plano de insolvência, procura-se dar ao problema da insolvência do devedor uma resposta diferente da pura e simples liquidação, universal e colectiva, do seu património, segundo o modelo supletivo desenhado no CIRE.
Postos estes considerandos, torna-se evidente, ter sido violado no caso em apreço o princípio da igualdade.
Efectivamente, o credor F… (credor garantido) recebe o capital mais juros remuneratórios contratuais vencidos até à data do trânsito em julgado da sentença que homologar o acordo, em 180 prestações mensais compostas por capital e juros, a dívida é onerada à taxa Euribor a 6 meses com um spread de 2,5%-cfr. número 6. dos factos provados.
Os outros credores, como é o caso da D…:
- não recebem juros vencidos ou vincendos;
- o capital é reduzido em 90% (apenas recebem 10% do capital em dívida), em 150 prestações.
De um lado, uns recebem todo o capital e juros. Do outro, aqueles que recebem apenas 10% do capital, sem juros.
Dito doutro modo: a revitalização do devedor é conseguida à custa do sacrifício grave ou severo de apenas alguns credores.
O conteúdo do plano não tem ínsito apenas um tratamento diferenciado, mas sobretudo um tratamento privilegiado de alguns credores. Há, pois, um tratamento desigual sem uma justificação material da desigualdade que, aliás, nem sequer está devidamente comprovada. Não é, portanto, possível identificar um fundamento racional e objectivo, justificador da distinção entre os credores, patente no plano de recuperação homologado.
Neste sentido, o plano de recuperação viola, realmente, o princípio da igualdade dos credores, entendido como limite objectivo da discricionariedade ou da liberdade de conformação desse mesmo plano, dado que não é possível encontrar, para a diferenciação assumida pelo plano, um fundamento razoável, objectivo e racional.
A esta luz não há realmente que duvidar da correcção da decisão impugnada e, correspondentemente, pela falta de bondade do recurso.
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Improcedem, assim, todas as conclusões formuladas pelo apelante e, com elas, o respectivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta improcedente por não provada e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas da apelação pelo requerente apelante (artigo 527.º nº 1 do C.P.Civil).
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Porto, 8 de Julho de 2015
Manuel Domingos Fernandes
Caimoto Jácome (dispensei o visto)
Macedo Domingues (dispensei o visto)
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[1] Com efeito, embora nas alegações recursivas o recorrente discorde da factualidade constante do ponto 5. da fundamentação factual, o certo é que não impugnou a decisão da matéria de facto, dado que, como se torna evidente não deu cumprimento aos ónus impostos pelo artigo 640.º do CPCivil.
[2] Luís A. Carvalho Fernandes e João Laberada in Código da Insolvência e Da Recuperação de Empresas Anotato, pág. 713.
[3] Obra citada pág. 714.
[4] No mesmo sentido vai Luís Meneses Leitão in Direito da Insolvência Almedina “Violações consideradas menores, que não ponham em causa o interesse do devedor e dos credores afectados não constituirão causa suficiente para que o juiz possa recusar a homologação do plano”.
[5] Obra citada Lisboa 2013, pág. 174.
[6] Obra citada mesma pág.
[7] Catarina Serra, A Falência no Quadro da Tutela Jurisdicional dos Direitos de Crédito, Coimbra Editora, Coimbra, 2009, págs. 150 e ss.
[8] Miguel Teixeira de Sousa, A Reforma da Acção Executiva, Lisboa, Lex, 2004, págs. 40 e 41.
[9] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Iuris, Lisboa, 2013, pág. 753, e Acs. da RL de 12.07.07, CJ, XXXII, III, pág. 110, e de 23.01.14 e da RG de 04.03.13.