Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
342/20.9T8PVZ-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL DOMINGOS FERNANDES
Descritores: ARROLAMENTO
INVENTÁRIO
DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA
SOCIEDADE COMERCIAL
Nº do Documento: RP20210308342/20.9T8PVZ-A.P1
Data do Acordão: 03/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Constituem requisitos do arrolamento: 1) ser titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar; 2) haver justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens.
II - Não se verifica o primeiro dos requisitos se a requerente pretende o arrolamento de bens titulados por uma sociedade, a pretexto de integram a herança aberta por óbito de seu pai que, conjuntamente com a sua mãe haviam transmitido, muitos anos antes do decesso do inventariado, para aquela sociedade por contrato de compra e venda.
III - Em situações como a descrita não se se pode recorrer à figura da desconsideração da personalidade colectiva na variante da confusão de patrimónios, para se concluir que os referidos bens embora formalmente titulados pela sociedade, fazem parte dos bens comuns do casal composto pelo inventariado e mulher.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 342/20.9T8PVZ-A.P1-Apelação
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo Local Cível da Póvoa do Varzim-J2
Relator: Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Miguel Baldaia
2º Adjunto Des. Jorge Seabra
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
B…, casada, residente no …, .., Vila do Conde, intentou o presente procedimento cautelar de arrolamento, como incidente da acção de inventário, contra C…, residente na Rua …, …, 4º Direito, Póvoa de Varzim; D…, residente na Rua …, .., 1º, Póvoa de Varzim; E…, residente na …, .., Póvoa de Varzim e F…, S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede no …, …, Vila do Conde, pedindo o arrolamento das participações sociais daquela sociedade, dos saldos das contas bancárias tituladas por aquela sociedade no Banco G…, S.A. e H…, S.A., bem como dos bens imóveis descritos nos autos.
Alegou, para tanto, em suma, que os referidos bens, titulados por aquela sociedade, fazem parte dos bens que integram a herança aberta por óbito de I…, a partilhar no âmbito do processo de inventário a que os presentes correm por apenso. Acresce que o cabeça de casal, nomeado naqueles autos, bem como o Requerido D…, na qualidade de administradores da referida sociedade, à revelia dos demais herdeiros, declararam as participações sociais da sociedade, junto do Registo Central do Beneficiário Efectivo, em nome de D… e com a sua anuência procederam à venda de duas fracções autónomas, tituladas por aquela sociedade, por valor inferior ao seu valor de mercado por forma a beneficiar a venda de duas outras fracções autónomas, parte integrante do mesmo prédio, tituladas pelo Requerido C….
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Regularmente citados, os Requeridos deduziram oposição invocando a sua ilegitimidade passiva e impugnando os factos alegados nomeadamente no que concerne à titularidade das participações sociais pelo inventariado. Concluíram pela improcedência do procedimento cautelar e pela condenação da Requerente como litigante de má fé em multa e indemnização condignas.
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Pronunciou-se a Requerente pugnando pela improcedência da excepção.
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Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal.
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A final foi proferida decisão que julgou o procedimento cautelar parcialmente procedente por provado e em consequência, ordenou o arrolamento dos seguintes bens:
- Saldo da conta bancária nº PT ………………….., titulada pela sociedade F…, S.A, sediada no Banco G…, S.A., até ao montante de 30.875,00 €, para o que determino se notifique tal instituição para o arrolamento do respectivo saldo;
- Saldo da conta bancária ………, titulada pela sociedade F…, S.A, sediada no H…, S.A., até ao montante de 30.875,00 €, para o que determino se notifique tal instituição para o arrolamento do respectivo saldo;
- Fracção autónoma designada pelas letras “CG”, correspondente à garagem nº .., na cave, “X…”, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs … e .. e Rua …, nº …, União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 2801 (freguesia da Póvoa de Varzim) e inscrito na matriz sob o artigo 5º da referida União de Freguesias, com o valor patrimonial de 5.237,40 €;
- Fracção autónoma designada pelas letras “CF”, correspondente à garagem nº .., na cave, “X…”, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs … e .. e Rua …, nº …, União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 2801 (freguesia da Póvoa de Varzim) e inscrito na matriz sob o artigo 5º da referida União de Freguesias, com o valor patrimonial de 5.237,40 €;
- Prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, sito na …, nº .., União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 3879 (freguesia da Póvoa de Varzim) e inscrito na matriz sob o artigo 5530º da referida União de Freguesias, com o valor patrimonial de 166.987,80 €;
- Fracção autónoma designada pela letra “P”, destinada a habitação no segundo andar direito centro, com entrada pelo nº .., parte integrante do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs .. e .., freguesia …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 2673 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 5800º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 100.048,55 €;
- Fracção autónoma designada pelas letras “FA”, composta pelo espaço nº 61 para um automóvel, na segunda cave, com entrada pelo nº .., parte integrante do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs .. e .., freguesia …, concelho do Porto, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 2673 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 5800º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 4.161,88 €;
- Metade indivisa do prédio rústico denominado “J…”, composto de mato, com 3800m2, sito no …, freguesia …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 1730 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 2105º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 1,70 €;
- Metade indivisa do prédio rústico denominado “J…”, composto de mato, com 3800m2, sito no …, freguesia …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 1731 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 2106º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 1,70 €;
- Prédio rústico denominado “K…”, composto por terreno a mato, sito na freguesia …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 590 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 401º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 174,30 €;
- Prédio misto denominado “L…”, composto casa de cave e rés-do-chão, com a área de 81 m2, dependência com a área de 70 m2, quintal com a área de 819 m2 e terreno com a área de 9.700 m2, sito na freguesia …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 991, e que abrange os prédios urbano inscrito na matriz sob o artigo 230º e rústico inscrito na matriz sob o artigo 199º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 29.983,10 € e 878,24 €, respectivamente.
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Não se conformando com o assim decidido veio a executada interpor recurso rematando com as seguintes conclusões:
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Notificada a requerente contra-alegou concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação é apena uma a questão que importa apreciar:
a)- saber se estão, ou não, verificados os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar de arrolamento impetrada pela Requerente.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na decisão recorrida vem dada como e não provada a seguinte factualidade:
1. Em 28 de Abril de 2012, faleceu, na freguesia e concelho de Vila do Conde, I…, no estado de casado, mas separado judicialmente de pessoas e bens de E…, com última residência habitual na …, nº .., União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim.
2. Sucederam-lhe como herdeiros:
a) o seu filho C…, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com M…, contribuinte fiscal nº ………, residente na Rua …, nº …, 4º Direito, ….-… Póvoa de Varzim;
b) o seu filho D…, casado sob o regime da comunhão de adquiridos com N…, contribuinte fiscal nº ………, residente na Rua …, nº .., 1º, ….-… Póvoa de Varzim;
c) a sua filha B…, casada sob o regime da comunhão de adquiridos com O…, contribuinte fiscal nº ………, residente no …, nº .., ….-… Vila do Conde;
d) os seus netos, filhos do filho pré-falecido do inventariado P…:
d.1) Q…, casada sob o regime da separação de bens com P…, contribuinte fiscal nº ………, residente na Rua …, nº .., ….-… Póvoa de Varzim;
d.2) T…, solteiro, maior, contribuinte fiscal nº ………, residente na Rua …, nº .., ….-… Póvoa de Varzim.
3. No instrumento de habilitação de herdeiros foi nomeado cabeça-de-casal o herdeiro C….
4. A Requerente intentou, em 02.03.2020, processo de inventário, a que os presentes correm por apenso.
5. Por despacho proferido nos autos principais, a 04.03.2020, com a referência 412899212, foi nomeado cabeça-de-casal o herdeiro C…, citado para os termos dos autos principais e do identificado despacho no dia 16.03.2020.
6. Àquela data a sociedade F…, S.A., quarta Requerida, era proprietária dos seguintes bens imóveis:
1 – Fracção autónoma designada pela letra “C”, correspondente a um escritório no 1º andar direito frente, com 28 m2, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs .. e .. e arruamento a designar do lado sul, nº .., freguesia e concelho da Maia, descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº 375 (freguesia da Maia) e inscrita na matriz sob o artigo 4068º da referida freguesia.
2 – Fracção autónoma designada pela letra “D”, correspondente a um escritório no 1º andar esquerdo frente, com 35 m2, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs .. e .. e arruamento a designar do lado sul, nº .., freguesia e concelho da Maia, descrita na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº 375 (freguesia da Maia) e inscrita na matriz sob o artigo 4068º da referida freguesia.
3 – Fracção autónoma designada pelas letras “CG”, correspondente à garagem nº .., na cave, “…”, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs …. e .. e Rua …, nº …, União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim, descrita na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 2801 (freguesia da Póvoa de Varzim) e inscrita na matriz sob o artigo 5º da referida União de Freguesias, com o valor patrimonial de 5.237,40 €.
4 - Fracção autónoma designada pelas letras “CF”, correspondente à garagem nº .., na cave, “…”, parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs … e .. e Rua …, nº …, União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim, descrita na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 2801 (freguesia da Póvoa de Varzim) e inscrita na matriz sob o artigo 5º da referida União de Freguesias, com o valor patrimonial de 5.237,40 €.
5 – Prédio urbano composto por casa de rés-do-chão, primeiro e segundo andares, sito na …, nº .., União das Freguesias …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 3879 (freguesia da Póvoa de Varzim) e inscrito na matriz sob o artigo 5530º da referida União de Freguesias, com o valor patrimonial de 166.987,80 €.
6 – Fracção autónoma designada pela letra “P”, destinada a habitação no segundo andar direito centro, com entrada pelo nº .., parte integrante do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs .. e .., freguesia …, concelho do Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 2673 (freguesia …) e inscrita na matriz sob o artigo 5800º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 100.048,55 €.
7 - Fracção autónoma designada pelas letras “FA”, composta pelo espaço nº .. para um automóvel, na segunda cave, com entrada pelo nº .., parte integrante do prédio em regime de propriedade horizontal, sito na Rua …, nºs .. e .., freguesia …, concelho do Porto, descrita na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o nº 2673 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 5800º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 4.161,88 €.
8 – Metade indivisa do prédio rústico denominado “J…”, composto de mato, com 3800 m2, sito no …, freguesia …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 1730 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 2105º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 1,70 €.
9 - Metade indivisa do prédio rústico denominado “J…”, composto de mato, com 3800 m2, sito no …, freguesia …, concelho da Póvoa de Varzim, descrito na Conservatória do Registo Predial da Póvoa de Varzim sob o nº 1731 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 2106º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 1,70 €.
10 – Prédio rústico denominado “K…”, composto por terreno a mato, sito na freguesia …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 590 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 401º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 174,30 €.
11 – Prédio misto denominado “L…”, composto casa de cave e rés-do-chão, com a área de 81 m2, dependência com a área de 70 m2, quintal com a área de 819 m2 e terreno com a área de 9.700 m2, sito na freguesia …, concelho de Vila Nova de Famalicão, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 991, e que abrange os prédios urbano inscrito na matriz sob o artigo 230º e rústico inscrito na matriz sob o artigo 199º da referida freguesia, com o valor patrimonial de 29.983,10 € e 878,24 €, respectivamente.
7. A sociedade F…, S.A., tem índole familiar, para a qual foi transferida parte do património imobiliário do casal composto pelo inventariado e E….
8. Por decisão datada de 29 de Abril de 2004, transitada em julgado na mesma data, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens do inventariado e E….
9. No âmbito do aludido processo foi junta a relação especificada de bens comuns do casal.
10. Por escritura celebrada no dia 29 de Dezembro de 2004, no então Segundo Cartório Notarial de Aveiro, E… e I… declararam vender à sociedade U…, S.A., actualmente denominada F…, S.A., os bens melhor identificados no documento complementar elaborado ao abrigo do artigo 64º, nº 2 do Código do Notariado a ela anexo, que inclui os bens descritos sob nº 6.
11. A sociedade U…, S.A foi adquirida pelo inventariado.
12. No dia 24 de Maio de 2004 foi deliberado, pelos então accionistas da sociedade em causa, nomear a Requerente, Primeiro e Segundo Requeridos como membros do Conselho de Administração da referida sociedade.
13. Após a celebração da escritura mencionada em 10 a sociedade não adquiriu quaisquer outros imóveis.
14. E… outorgou no dia 4.07.2019 procuração a favor dos filhos C…as e D…, que lhes permite administrar os seus bens, nos termos que melhor constam do documento junto a fls. 292, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
15. D… dirigiu correio electrónico aos interessados nos autos de inventário a solicitar os respectivos elementos identificativos para cumprimento da declaração junto do Registo Central do Beneficiário Efectivo da sociedade F…, S.A.
16. C… e D…, na qualidade de administradores da sociedade F…, S.A., declararam junto do Registo Central do Beneficiário Efectivo que as participações da sociedade eram detidas por E….
17. Por documento particular autenticado celebrado a 27.03.2020–data posterior à citação para os autos principais–o cabeça-de-casal C… e o interessado D…–nas qualidades, respectivamente, de Presidente e Vice-Presidente do Conselho de Administração da sociedade F…, S.A., venderam à sociedade W…, Lda, as seguintes fracções autónomas:
a) pelo preço de 30.875,00 € a fracção autónoma identificada pela letra “C”, correspondente a escritório no 1º andar direito frente, com entrada pelo nº .., com 28 m2, na freguesia da Maia, concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 4068º, com o valor patrimonial actual correspondente à fracção de 28.775,00 €; e
b) pelo preço de 30.875,00 € a fracção autónoma identificada pela letra “D”, correspondente a escritório no 1º andar esquerdo frente, com entrada pelo nº .., com 35 m2, na freguesia da Maia, concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 4068º, com o valor patrimonial actual correspondente à fracção de 35.992,21 €.
18. Ambas as fracções fazem parte do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Avenida …, nºs .. e .. e arruamento a designar do lado sul, nº .., freguesia e concelho da Maia, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial da Maia sob o nº 375 (freguesia da Maia).
19. Sem disso darem prévio conhecimento quer à aqui Requerente–Vogal, do Conselho de Administração da referida sociedade F…, S.A. quer aos restantes herdeiros e interessados, Q… e T….
20. Na mesma data, e pelo mesmo contrato, o Primeiro Requerido e cabeça- de-casal C…, declarou vender à mesma sociedade compradora, pelo preço global de 61.750,00 €, as seguintes fracções autónomas:
a) pelo preço de 30.875,00 € a fracção autónoma identificada pela letra “E”, correspondente a escritório no 1º andar esquerdo traseiras, com entrada pelo nº .., com 25 m2, na freguesia da Maia, concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 4068º, com o valor patrimonial actual correspondente à fracção de 23.695,82 €; e
b) pelo preço de 30.875,00 € a fracção autónoma identificada pela letra “F”, correspondente a escritório no 1º andar direito traseiras, com entrada pelo nº .., com 32 m2, na freguesia da Maia, concelho da Maia, inscrito na matriz sob o artigo 4068º, com o valor patrimonial actual correspondente à fracção de 30.349,85 €.
21. Ambas fazem parte integrante do prédio constituído em regime de propriedade horizontal identificado.
22. As 4 referidas fracções eram utilizadas, em conjunto, pelo cabeça de casal, como instalações de clinica médica.
Factos não provados
Não se provou que:
1. Fazem parte do acervo hereditário do inventariado 10.000 acções, com o valor nominal de 5,00 €, cada uma, que aquele detinha na sociedade F…, S.A., anteriormente denominada U…, S.A., pessoa colectiva nº ………, com sede social no …, nº …., freguesia e concelho de Vila do Conde, e com o capital social de 50.000,00 €.
2. O inventariado era titular da totalidade do capital social da referida sociedade.
3. A sociedade U… foi adquirida entre o dia em que ocorreu a conferência que formalizou a separação de pessoas e bens do inventariado e E… e o dia em que foi celebrada a escritura de compra e venda de imóveis com a referida sociedade.
4. A compra das participações sociais da sociedade por parte de cujus foi efectuada em data posterior à nomeação da Requerente e Primeiro e Segundo Requeridos como membros do Conselho de Administração da referida sociedade.
5. Ao administrador delegado – o aqui Requerido cabeça-de-casal – foram, nessa data, conferidos poderes que se destinavam a regularizar a sociedade.
6. A partir da aquisição as participações da sociedade em causa, por determinação da sua vontade, todos os actos de relevo à actividade da mesma mormente a alienação de qualquer um dos imóveis que constituíam o seu património - teriam de ser praticados com a anuência sua e de todos os seus filhos, tendo aquele voto de qualidade.
7. Tal unanimidade ocorreu com a alienação do único imóvel que pela sociedade foi vendido–o que se encontra identificado sob o nº 2 do documento complementar elaborado nos termos do artigo 64º, nº 2 do Código do Notariado anexo à escritura de compra e venda.
8. O cabeça de casal vem gerindo contas bancárias onde se encontravam depositadas quantias monetárias pertença do inventariado.
9. D… reconheceu os interessados nos autos de inventário como accionistas da sociedade F…, S.A.
10. A fracção designada pela letra “C”, a que se refere o artigo 17 dos factos provados, tem um valor de mercado de 38.500,00 € e a fracção designada pela letra “D” tem um valor de mercado de 48.125,00 €.
11. As acções representativas do capital social da sociedade F…, S.A. sempre foram propriedade de E….
12. Os Requeridos C… e D… colocaram à venda o prédio rústico denominado “K…”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 590 (freguesia …) e inscrito na matriz sob o artigo 401º da referida freguesia, bem como o prédio misto denominado “L…”, descrito na Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Famalicão sob o nº 991, e que abrange os prédios urbano inscrito na matriz sob o artigo 230º e rústico inscrito na matriz sob o artigo 199º da referida freguesia.
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III- O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar:
a)- saber se estão, ou não, verificados os pressupostos de que depende o decretamento da providência cautelar de arrolamento impetrada pela Requerente.
Nos termos do artigo 403.º CPCivil sob a epígrafe “Fundamento” prevê-se:
“1. Havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, pode requerer-se o arrolamento deles.
2. O arrolamento é dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas”.
Por sua vez, quanto à legitimidade do requerente, o n.º 1 do artigo 404.º do mesmo código dispõe que: “ O arrolamento pode ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens ou dos documentos”.
Face às disposições legais transcritas, pode sintetizar-se que constituem requisitos do arrolamento: 1) ser titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar; 2) haver justo receio de extravio, ocultação ou dissipação desses bens.
No que respeita ao direito sobre os bens a arrolar, diz o Prof. Alberto dos Reis[1] “Aqui, o direito ao serviço do qual são postas as providências, apresenta esta configuração: interesse na conservação dos bens. Trata-se, é claro, de interesse jurídico, interesse derivado de determinada posição ou pretensão jurídica”.
Ainda a propósito do “interesse na conservação dos bens” a que alude o n.º 1 do artigo 404.º como pressuposto material da legitimidade de requerer o arrolamento, o mesmo Professor[2] esclarece “Ter ou não interesse equivale a ter ou não direito (certo ou eventual) aos bens que se pretendem por a coberto do risco de extravio ou dissipação. Segue-se daí que, embora pareça tratar-se de uma condição de legitimidade, na realidade trata-se de um a condição de fundo, de um requisito de procedência do pedido”. E assim, “se o requerente não tiver direito algum aos bens, o pedido não pode ser atendido, a providência não pode ser decretada”.
Analisando os requisitos do arrolamento e estabelecendo o seu confronto com os requisitos do arresto, aquele Professor diz ainda o seguinte[3]: “o arrolamento funciona como meio de obter a conservação dos bens [que é o que também diz o n.º 1 do artigo 404.º da código actual], e não como garantia do pagamento de dívidas [que é a finalidade do arresto]. Em princípio, só pode socorrer-se do arrolamento a pessoa que se arrogue direito certo ou eventual aos bens a arrolar; não é lícito, portanto, em regra, ao credor requerer o arrolamento dos bens do devedor, a título de que está em perigo a satisfação do seu direito de crédito”.
A única excepção é a que ora consta do n.º 2 do artigo 404.º do CPCivil, ou seja, “nos casos em que haja lugar à arrecadação da herança”. Esses casos, segundo esclarece o mesmo Professor, são apenas aqueles em que a herança está jacente, ou seja, “quando a herança está aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado” (cfr. art. 2046.º do Código Civil actual). Nesses casos, compete ao requerente alegar e provar: 1) que tem a qualidade de credor; 2) que a herança está jacente.
Isto dito na decisão recorrida propendeu-se para o entendimento de que, no caso concreto, estavam verificados os dois apontados requisitos.
É contra este entendimento que se insurgem os recorrentes.
Quid iuris?
Importa, desde logo, realçar que nas alegações recursivas não vem impugnada a matéria de facto e, portanto, é apenas com base nela se há-de decidir se estão, ou não, verificados os requisitos que levaram ao decretamento da providência cautelar.
No que concerne ao primeiro dos apontados requisitos (probabilidade séria da existência do direito da Requerente sobre os bens a arrolar) o tribunal recorrido enveredando pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade demandada F…, S.A., conclui que os bens imóveis referidos no ponto 6º da fundamentação factual, cujo direito de propriedade se encontra inscrito a favor da referida sociedade, fazem parte do património comum do casal composto pelo inventariado e sua mulher sendo, portanto, a Requerente sua herdeira.
Será que assim é?
Analisando.
Salvo pontual estatuição (artigos 84.º, 501.º e 270.º-F, nº 4 do CSComerciais), o instituto do levantamento da personalidade jurídica colectiva não tem consagração expressa no nosso ordenamento jurídico e foi a sua construção doutrinal que o corporizou em função das teorias do abuso ou da penetração institucional e da aplicação da norma ou do fim da norma.
Como refere Catarina Serra[4] “.No contexto da primeira, afasta-se a separação entre a sociedade e o sócio sempre que a utilização da pessoa jurídica é desconforme à ordem jurídica, recorrendo-se ao conceito de abuso do direito. (…) No contexto da segunda, os concretos problemas do afastamento da personalidade resolvem-se tomando em conta o sentido e a finalidade das normas no quadro do ordenamento jurídico geral
E continua a mesma autora[5]:
Em Portugal, o afastamento da personalidade jurídica foi invocado pela primeira vez, tanto quanto se sabe, por Ferrer Correia, em 1948 (sete anos antes de Rolf Serick ter baptizado e desenvolvido a teoria). A verdade é que (ainda) hoje não há nenhuma norma de carácter geral que o consagre.
Não é fácil, por isso, reconhecer-se-lhe a categoria de instituto jurídico-de instituto jurídico autónomo-e isto repercute-se na sua aplicação (rara).
Tentou-se suprir a insuficiência, convocando vários institutos-sem grande sucesso. Os institutos convocados não abrangem todos os casos e são, também eles, imprecisos. O que mais bem se harmoniza com o afastamento é o abuso do direito (cfr. art. 334.º do CC), na modalidade do abuso institucional-uma vez que está em causa não exactamente um abuso do direito (não o direito de constituir sociedades comerciais ou de exercer actividades por meio delas nem o direito de invocar a separação patrimonial) mas um abuso do instituto (a personalidade jurídica das sociedades comerciais ou a separação dos patrimónios)”.
Ora, a desconsideração da personalidade jurídica de uma sociedade comercial significa o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros, ou seja, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que actuam por detrás dela.
Como também diz Pedro Cordeiro[6] “Todas as instituições de criação humana estão sujeitas a abusos. A esta realidade também o instituto sociedade comercial não se furta. Como Fischer reconhece, até a melhor lei possível não poderá impedir totalmente o abuso, a fraude ou a sua própria insuficiência”.
Nos casos de desconsideração o que se passa é que a própria pessoa colectiva foi desviada da rota que o ordenamento jurídico lhe traçou. A sociedade é utilizada para mascarar uma situação; ela serve de véu para encobrir uma realidade.[7]
Alguma jurisprudência portuguesa também se pronunciou sobre o assunto.
O Acórdão do STJ de 07.11.2017[8] decidiu nos seguintes termos: “O princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades e da separação de patrimónios, ficção jurídica que é, não pode ser encarado, em si, como um valor absoluto e não pode ter a natureza de um manto ou véu de protecção de práticas ilícitas ou abusivas–contrárias à ordem jurídica–, censuráveis e com prejuízo de terceiros.
Assim, quando exista uma utilização da personalidade colectiva que seja, ou passe a ser, instrumento de abusiva obtenção de interesses estranhos ao fim social desta, contrária a normas ou princípios gerais, como os da boa-fé e do abuso de direito, relacionados com a instrumentalização da referida personalidade jurídica, deve actuar a desconsideração desta, depois de se ponderarem os verdadeiros interesses em causa, para poder responsabilizar os que estão por detrás da autonomia (ficcionada) da sociedade e a controlam”.
E ainda o acórdão do STJ de 10.05.2016[9]
A desconsideração da personalidade jurídica, também designada por levantamento da personalidade colectiva das sociedades comerciais, “disregard of legal entity”, tem, na sua base, o abuso do direito da personalidade colectiva, ou seja, o instituto deve ser usado, se e quando, a coberto do manto da personalidade colectiva, a sociedade ou sócios, dolosamente, utilizarem a autonomia societária para exercerem direitos de forma que violam os fins para que a personalidade colectiva foi atribuída em conformidade com o princípio da especialidade, assim almejando um resultado contrário a uma recta actuação”.
Também o Acórdão do STJ de 12.05.2011 discorreu do seguinte modo[10]:
Como é sabido, o ordenamento jurídico acolhe, a par das pessoas singulares, as pessoas colectivas. Comporta, assim, no seu seio, novos entes dotados de personalidade jurídica. Desta personalidade jurídica emerge a titularidade de direitos e obrigações autónomos e, inerentemente, além do mais, a distinção entre as pessoas singulares que são, ao mesmo tempo, membros da pessoa colectiva e esta. Os direitos e as obrigações duns não se confundem com os direitos e obrigações dos outros.
Veio-se, porém, ao longo do tempo, a constatar que casos havia em que o conceder à linha demarcadora um valor absoluto não seriam de admitir. Paulatinamente, doutrina e jurisprudência anglo-americanas e alemãs, foram construindo a figura–que cremos ainda em forte evolução–da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas colectivas ou, porque, de longe, reportada a maior parte das vezes a sociedades comerciais, a figura da desconsideração da personalidade jurídica das sociedades comerciais.
Já Castro Mendes afirmava que: “Não devemos antropomorfizar a pessoa colectiva a ponto de perdermos de vista que–ao contrário da pessoa singular, fim em si mesma–ela não é mais que um instrumento de realização de interesses humanos. Inclusivamente, a personificação pode ser, ou passar a ser, instrumento de abuso; e deve neste caso ponderar quais os verdadeiros interesses humanos em causa. Esta atitude é o que os juristas anglo-saxónicos chamam romper o véu da pessoa colectiva”(Teoria Geral do Direito Civil, ed. da AAFDL, I, 246). No mesmo sentido, se pode ver Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 141, nota de pé de página, dizendo também Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 183) que a “autonomia pessoal e patrimonial das pessoas colectivas é susceptível de ser abusada.” Por sua vez, Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, I, Tomo III, 617 e seguintes), ainda que afastando-se da terminologia habitual, tece longas considerações sobre esta figura, à qual Pedro Cordeiro (A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais) dedicou também aturado estudo.
Segundo este autor (ob. cit., pág. 19), deve entender-se por desconsideração “o desrespeito pelo princípio da separação entre a pessoa colectiva e os seus membros ou, dito de outro modo, desconsiderar significa derrogar o princípio da separação entre a pessoa colectiva e aqueles que por detrás dela actuam”. Existe, na desconsideração, um atingimento de pessoa jurídica diferente da visada. Será directa, se se ultrapassar a sociedade para atingir os sócios e indirecta se se partir dos sócios, se atingir a sociedade (cfr-se, Oliveira Ascensão, Direito Comercial, IV, 58).
Pelo menos em grande parte dos casos, a desconsideração ocorre por exigência da boa fé (assim Menezes Cordeiro, ob. e vol. Cits., 648). A lei não contem referência expressa àquela figura, mas as dimensão deste princípio–emergente, no essencial do que aqui nos importa, do artigo 762.º, n.º2, concatenado com o artigo 334.º, ambos do Código Civil–alcança-a”.
Dentre os casos enquadrados pela doutrina na figura da desconsideração da personalidade jurídica conta-se o controlo da sociedade por um sócio, mas esse mero controlo não desencadeia, só por si, qualquer tipo de reacção jurídica. É necessário que o sócio use o controlo societário para a satisfação dos seus interesses pessoais, de carácter extra-social, que não tenham em vista o lucro para o património social, antes redundem em prejuízo do ente societário e dos credores sociais.[11]
Assim, o recurso ao instituto do levantamento da personalidade colectiva tem em vista corrigir comportamentos ilícitos de sócios que abusaram da personalidade colectiva da sociedade, actuando em abuso do direito, em fraude à lei ou com violação das regras de boa fé e em prejuízo de terceiros e, apesar disso, quando essa conduta envolva um juízo de reprovação ou censura e não exista outro fundamento legal que a invalide.
Isto dito importa agora, no caso concreto, tomar posição sobre se deve ser tomado em conta o caminho da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade em causa para, com base nela, se julgar verificado o primeiro dos enunciados requisitos exigidos na lei para o decretamento da providência.
Ora, salvo o devido respeito por diferente opinião, a resposta terá de ser negativa.
Não obstante não se mostrar consensual, têm sido identificadas, doutrinalmente, várias situações tidas enquanto casos típicos de crise da função da personalidade jurídica colectiva e em que, consequentemente, se poderá justificar o levantamento do véu para imputar a autoria e a responsabilidade ao real titular dos interesses humanos que a instrumentalizaram para fins contrários à ordem jurídica e/ou a princípios gerais.
Entre esses grupos de casos figura a confusão de patrimónios, modalidade que para a situação dos autos assume relevo já que foi, fundamentalmente, com base nela que o tribunal recorrido concluiu pela desconsideração da sociedade demandada.
A mistura material de patrimónios verifica-se quando existe uma suficiente indiferenciação das esferas patrimoniais da sociedade e do sócio, o que pode ocorrer por inobservância de regras societárias (e/ou contabilísticas) ou assentar em factos puramente objectivos como seja o uso do património social para fins exclusivamente pessoais.
Neste grupo de casos, o sócio (ou o grupo de sócios) age como se não houvesse separação entre o seu património e o património societário, em clara contravenção da imposição de distinção entre os respectivos acervos.
Só ocorre uma verdadeira mistura de patrimónios quando, na prática, seja inviável (ou quase) distinguir os bens que integram cada um desses acervos patrimoniais e individualizar os actos concretos que atentam contra a autonomia patrimonial.
Acontece que, nada disso ocorre na situação em apreço.
Respigando quadro factual o que dele resulta é que:
8. Por decisão datada de 29 de Abril de 2004, transitada em julgado na mesma data, foi decretada a separação judicial de pessoas e bens do inventariado e E….
9. No âmbito do aludido processo foi junta a relação especificada de bens comuns do casal.
10. Por escritura celebrada no dia 29 de Dezembro de 2004, no então Segundo Cartório Notarial de Aveiro, E… e I… declararam vender à sociedade U…, S.A., actualmente denominada F…, S.A., os bens melhor identificados no documento complementar elaborado ao abrigo do artigo 64º, nº 2 do Código do Notariado a ela anexo, que inclui os bens descritos sob nº 6.
11. A sociedade U…, S.A foi adquirida pelo inventariado”.
Como assim, transmitir legitimamente por venda parte do património comum do casal (concretamente 12 imóveis de um total de 26 verbas da relação especificada de bens comuns) para uma sociedade de promoção e gestão imobiliária (U…), não implica de per si qualquer mistura de patrimónios.
Aliás, outro entendimento levaria, a que fosse negada a autonomia patrimonial e a personalidade jurídica autónoma das sociedades comerciais, pois que, então, nunca existiria na actividade económica qualquer sociedade comercial, uma vez que o seu património ou capital social adviriam do património dos sócios e qua tale sempre haveria confusão entre património dos sócios e da sociedade, o que manifestamente não pode ser.
Por outro lado, os considerandos tecidos por Catarina Serra a que noutro passo já nos referimos e invocados na decisão nada têm a ver com o caso dos autos, posto que aqui não há qualquer disposição do património da sociedade pelos sócios como se fosse coisa própria, não há qualquer pagamento de dívidas da sociedade com valores depositados em contas bancárias pessoais, não há qualquer recurso à tesouraria da sociedade para liquidar dívidas pessoais, não há qualquer realização em nome da sociedade de negócios jurídicos para proveito próprio ou de terceiros.
E mesmo se pode dizer em relação à demais jurisprudência citada na decisão recorrida.
Dizer-se, como diz a sentença recorrida, que resultando dos factos indiciados que “(...) os bens descritos nos autos, embora formalmente titulados pela sociedade, fazem parte dos bens comuns do casal composto pelo inventariado e mulher” e que, como tal, se verifica “confusão entre património da sociedade e do inventariado que importa acautelar sob pena de prejuízo dos seus herdeiros na partilha dos bens que compõem o acervo hereditário”, é postergar completamente a realidade factual de que em 29 de Dezembro de 2004 houve uma venda, perfeitamente legítima à data, desse património comum à sociedade, sem recurso a qualquer ilicitude, abuso de direito ou fraude à lei e sem qualquer prejuízo para quem quer que fosse, máxime para credores terceiros ou os herdeiros que nessa data nem sequer o eram, posto que o inventariado viria a falecer apenas em 2012 ou seja oito anos depois.
Diga-se, aliás, que no tocante à referida venda de parte do património comum do casal em 29 de Dezembro de 2004, nem sequer foi alegado pela Requerente, administradora e herdeira Q… qualquer ilicitude, fraude à lei ou abuso de direito ou prejuízo de terceiros, tanto mais que o que invocou expressamente no artigo 17º do seu requerimento inicial foi que “(...) a Norfilam-Sociedade de Investimentos Imobiliários, SA se trata de uma sociedade, de índole familiar, para a qual, por razões de gestão e optimização de custos, foi transferida parte substancial do património imobiliário do de cujus”, sociedade esta de que a Requerente era administradora já nessa data (cfr. ponto 12º da fundamentação factual).
Repare-se que o tribunal recorrido utiliza o instituto da desconsideração da personalidade jurídica da mencionada sociedade, recorrendo à figura da confusão de patrimónios, para deslegitimar a venda feita pelo casal de património comum a essa sociedade, ou seja, a confusão de patrimónios está para o tribunal recorrido situada a montante e não já a jusante do referido momento.
Ora, como se torna evidente a figura de confusão da patrimónios apenas pode ocorrer não no momento de aquisição de património por parte da sociedade, mas sim em momento posterior, ou seja, no momento em que o sócio (ou o grupo de sócios) age como se não houvesse separação entre o seu património e o património societário, em clara contravenção da imposição de distinção entre os respectivos acervos, isto é, o sócio ou os sócios tratam e dispõem do património da sociedade como se fosse “coisa própria” (e vice-versa).
Destarte, não havendo qualquer facto indiciado de ilicitude, fraude ou abuso de direito a montante, fosse ele prejuízo de credores ou prejuízo de herdeiros que ainda não o eram à data, não pode ser conclusivamente imputado a jusante um comportamento abusivo e fraudulento à accionista única E…, apenas pelo singelo facto, sem mais, de ter outorgado conjuntamente com o seu marido a escritura de 29 de Dezembro de 2004, sublinha-se em que vendeu apenas parte (concretamente doze imóveis em vinte e seis verbas que constam da relação especificada de bens comuns do casal) do património comum do casal e que também era seu.
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Do exposto resulta que falha logo o primeiro dos pressupostos de que depende o decretamento da providência: a Requerente não é titular de um direito, certo ou eventual, sobre os bens a arrolar, os referidos bens são propriedade da sociedade F…, SA, e não do património comum do ex-casal e, por lógica implicância, não fazem parte do acervo deixado por óbito do falecido I…, de que a Requerente seria herdeira.
E, não pertencendo os referidos bens ao acervo hereditário deixado por óbito do referido I…, torna-se evidente que também não se verifica o segundo dos enumerados requisitos, isto é, o extravio, ocultação ou dissipação de bens.
Com efeito, ao contrário do que se refere na decisão recorrida, o cabeça-de-casal não vendeu qualquer bem da herança, nem apresentou qualquer inexacta ou deficiente descrição dos bens que a constituem.
Efectivamente, quem procedeu à venda de duas fracções autónomas não foi o cabeça-de- casal mas sim a sociedade proprietária F…, de que o cabeça de casal é o Presidente do Conselho de Administração, (cfr. ponto 12º da fundamentação factual) estando nessa qualidade vinculado aos deveres de cuidado, de diligência de um gestor criterioso e ordenado e de lealdade no interesse da sociedade, nos termos preceituados no artigo 64.º, n.º 1, als. a) e b) do CSComerciais.
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Procedem, desta forma, as conclusões 1ª a 17ª e 26ª a 35ª formuladas pelos recorrentes e, com elas, o respectivo recurso.
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V- DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação interposta procedente por provada e, consequentemente, revogando a decisão recorrida indefere-se a providência cautelar de arrolamento impetrada pela Requerente.
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Custas pela da apelação pela recorrida (cfr. artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 08 de Março de 2021
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Seabra
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[1] Cfr. Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª edição–reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 104.
[2] Cfr. ob. cit. p. 120.
[3] Cfr. ob. cit. p. 116.
[4] In “Desdramatizando o afastamento da personalidade jurídica (e da autonomia patrimonial) ”in Revista Julgar, nº 9, págs. 113/114.
[5] Loc. cit, págs 116-117.
[6] In “A Desconsideração da Personalidade Jurídica das Sociedades Comerciais”, pág. 17.
[7] Pedro Cordeiro, ob. cit. pág, 73, nota 75.
[8] Proc.º nº 919/15.4T8PNF.P1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.
[9] Proc.º nº 136/14.0TBNZR.C1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.
[10] Proc.º nº 280/07.0TBGVA.C1.S1, in www.dgsi.pt/jstj.
[11] Cfr. Maria de Fátima Ribeiro, A Tutela dos Credores da Sociedades por Quotas e a “Desconsideração da Personalidade Jurídica”, Almedina, 2012, pág. 240.