Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
382/18.8T8STS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANA PAULA AMORIM
Descritores: PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ACÇÃO PENAL
Nº do Documento: RP20200615382/18.8T8STS-A.P1
Data do Acordão: 06/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Da conjugação do art. 72/1 c) e 72/2 CPP resulta que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: CompMat-382/18.8T8STS-A.P1
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SUMÁRIO[1] (art. 663º/7 CPC):
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Acordam neste Tribunal da Relação do Porto
(5ª secção judicial – 3ª Secção Cível)
I. Relatório[2]
Na presente ação declarativa, que segue a forma de processo comum, em que figuram como:
- AUTOR: B…, solteiro, maior, residente na Rua …, loja nº …, …. – … Santo Tirso; e
- RÉU: C…, residente na Rua …, nº …, …. – … Vila Nova de Famalicão,
pede o autor a condenação do réu no pagamento da quantia de €8.000,00, a título de indemnização pelos danos sofridos, acrescido dos juros à taxa legal e até integral pagamento.
Alegou para o efeito e em síntese, que no dia 8 de Novembro de 2015, pelas 8h45m, na Rua …, em Santo Tirso o Réu C…, juntamente com dois outros indivíduos do sexo masculino, agindo em conjugação de esforços e de intentos e mediante um plano entre todos delineado, abordaram o Autor B….
Na execução desse plano, o Réu dirigiu-se ao Autor B… e fez-lhe uma “gravata” com um dos braços à volta do pescoço, obrigando-o a entrar no veículo automóvel da marca “Audi”, de cor…, com a matrícula “..-BQ-..”, conduzido pelo autor. No interior do veículo o ofendido ficou ladeado pelos dois indivíduos cuja identidade se desconhece, que lhe desferiram socos e pontapés no corpo, designadamente na face e cabeça.
Ato contínuo, o Réu conduziu o veículo automóvel até um local isolado, onde se muniu de um objeto contundente, e desferiu com o mesmo várias pancadas em diversas partes do corpo do autor, nomeadamente na cabeça, pernas e braços.
Posteriormente retiraram o Autor do veículo automóvel e deixaram-no num sulco existente no terreno, com cerca de 1,80m de altura, juntamente com o telemóvel e outros pertences, abandonando o local para parte incerta.
Como consequência direta e necessária da agressão de que foi vítima, o autor necessitou de receber assistência médica hospitalar, e foi submetido a exames médico legais, Sofreu dores e as lesões melhor descritas nos relatórios de exame médico, designadamente:
1. no crânio hematoma na região parietal esquerda com 3 cm de diâmetro;
2. no tórax equimoses múltiplas mas confluentes no 1/3 superior da região posterior do tórax com 50x8 cm de maiores dimensões,
3. equimoses múltiplas mas confluentes na região da omoplata esquerda com as dimensões de 21x12 cm,
4. equimoses múltiplas mas confluentes na região inferior à omoplata direita com as dimensões de 13x8 cm;
5. no abdómen equimose de 7 x3 cm na face lateral direita do 1/3 médio, equimose de 2x3 cm na face lateral esquerda do 1/3 médio;
6. no membro superior esquerdo equimoses múltiplas mas confluentes no 1/3 superior da face anterior do braço com as dimensões de 8x9 cm.
Mais alegou que tais lesões o impediram de trabalhar durante 15 dias.
O Réu e os seus amigos agiram em comunhão de esforços e de intentos, na sequência de um plano previamente delineado entre todos, com o propósito concretizado de, mediante o recurso à violência física, pelo menos, atentar contra a saúde física e o corpo do Autor, agindo de forma livre, deliberada e consciente, perfeitamente conhecedor de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Em consequência das lesões e circunstâncias descritas sofreu dores, incómodos vários que descreve na petição e que consubstanciam os danos morais.
Os factos descritos deram origem ao processo de inquérito nº 429/15.0PASTS, no qual foi já proferida decisão pelo Coletivo de Juízes do Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Proc. 429/15.0PASTS, no dia 09/10/2017.
No âmbito do processo acima identificado o Réu confessou integralmente a práticas dos factos descritos.
Alegou por fim, que pretende obter o ressarcimento dos danos sofridos, e reclama a indemnização peticionada.
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Citado o réu, contestou, defendendo-se por exceção e por impugnação.
Por exceção, suscitou a incompetência do tribunal em razão da matéria.
Alegou para o efeito que por acórdão datado de 9 de outubro de 2017, e já transitado em julgado, foi o arguido, ora R., absolvido da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, nº1 do C.P. e ainda, homologada a desistência de queixa do ofendido, ora A., extinguindo-se o procedimento criminal e arquivando-se os autos. De igual forma, proferiu-se sentença que homologou a confissão do arguido, ora R., enquanto demandado cível, condenando-o no pagamento ao Centro Hospitalar D…, E.P.E., a título de danos patrimoniais, da quantia de €196,86, acrescida de juros.
Mais refere que no processo penal vigora o princípio da adesão, pelo que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo – vide artigo 71º do C.P.P.. Apenas pode ser deduzido em separado excecionalmente, quando verificada alguma das exceções previstas no artigo 72º do C.P.P.
Considera que nos termos do artigo 342º do C.C., cabe ao A. o ónus de alegar e provar que se encontra numa dessas situações em que, excecionalmente, a lei processual penal contempla a dedução, em separado, de pedido cível fundado em crime, mas na petição inicial o autor não invocou qualquer das exceções previstas no referido normativo, nem se alegou qualquer facto suscetível de fazer tal prova, pelo que o pedido de indemnização civil em separado foi instaurado sem observância das condições estabelecidas no n.º 1 do art.º 72º do C.P.P., sendo o tribunal cível materialmente incompetente.
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O Autor veio pronunciar-se sobre a matéria da exceção, alegando em síntese que o Autor não se constituiu assistente no âmbito do processo crime, figurando neste apenas como lesado/ofendido.
No âmbito do processo crime não foi o lesado, aqui Autor, devidamente notificado para deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido pelos danos causados. (artigo 75.º do C.P. Penal) e naqueles autos crime não deduziu pedido de indemnização contra o arguido.
O Réu foi absolvido da prática do crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210, nº 1 do C.P. e não tendo sido deduzido pedido de indemnização cível pelo lesado naqueles autos, o Tribunal não proferiu decisão de condenação ou de absolvição cível.
Os factos nos quais o Autor assenta a causa de pedir na presente ação são exatamente os mesmo factos que foram confessados pelo arguido, aqui Réu, e provados pelo tribunal, que são os descritos no douto acórdão.
Alegou, ainda, que o autor desistiu da queixa crime apresentada contra o arguido, pela prática do crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido no artigo 143.º do C.P. e tal circunstância não lhe retira a possibilidade de, posteriormente, deduzir uma ação civil destinada ao ressarcimento de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais que lhe foram causados e decorrentes do comportamento delituoso do arguido, por ausência de qualquer decisão quanto à matéria cível quer de condenação quer de absolvição, ou mesmo por inutilidade superveniente da lide.
Mais alegou que nos casos em que exista processo-crime instaurado por factos geradores da obrigação de indemnizar, vigora o princípio da adesão obrigatória da ação cível à ação penal – art.º 71º CPP -, mas existem casos, porém, em que é possível deduzir pedido civil em separado (perante o tribunal civil), nos termos do disposto no artigo 72º, nº 1, do CPP. No caso verificam-se as exceções previstas nas alíneas b), c) e d) do nº 2 do artigo 77.º do Código Civil, que permitem a dedução do pedido de indemnização cível em separado pelo lesado, aqui Autor, sendo o Tribunal competente em razão da matéria para conhecer do pedido formulado pelo Autor.
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O Réu veio pronunciar-se sobre a resposta alegando para o efeito que o autor não pode vir em sede de resposta invocar um pressuposto processual que tinha, necessariamente, que ser invocado na petição inicial, recaindo sobre o autor o ónus de alegar e provar que podia em separado deduzir tal pretensão.
Mais alegou que o A. não preenche nenhuma das exceções previstas no nº1 do artigo 72º do C.P.P. e por si invocadas, designadamente, b), c) e d).
O processo penal em causa não foi arquivado, não foi suspenso provisoriamente, nem tampouco o procedimento se extinguiu antes de julgamento. – alínea b) do nº1 do artigo 72º do C.P.P. O arquivamento, a suspensão e ou a extinção têm de ocorrer antes do julgamento.
A desistência da queixa e consequente extinção do procedimento criminal ocorreu em sede de audiência de julgamento, pelo que, não se aplica a referida al. b) do citado artigo.
Relativamente à alínea c), o arguido, ora R., vinha acusado da prática de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º do Código Penal. Trata-se de um crime público, logo o procedimento não dependeu de queixa nem de acusação particular. Em sede de julgamento, por força da convolação jurídica dos factos, passou a ser imputado ao arguido o crime de ofensas à integridade física simples. No entanto tal sucedeu apenas em sede de julgamento, isto é, na fase final do processo e a dependência da queixa ou acusação particular tem de ser analisada no início do procedimento e não após a audiência de julgamento, pelo que, não se aplica a al. c).
Quanto à alínea d), atento os factos alegados pelo A., é manifesto que os danos eram conhecidos em toda a sua extensão aquando da acusação.
Conclui que se preteriu o princípio da adesão obrigatória do pedido cível à ação penal, devendo o tribunal considerar-se incompetente em razão da matéria e, em consequência, ser o R. absolvido.
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Solicitou-se junto do competente processo informação sobre o cumprimento do art. 75º CPP, obtendo-se a informação que o autor foi notificado para deduzir querendo pedido de indemnização em sede de processo crime.
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Perante tal informação veio o autor esclarecer que por lapso, no artigo 4º da resposta, afirmou que no âmbito do processo crime não foi notificado nos termos e para os efeitos do artigo 75.º CPP, quando o que pretendia dizer é que, na verdade, foi notificado para o efeito. Pediu que fosse relevado o erro, ordenando-se a sua correção em conformidade.
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Em 24 de abril de 2019 proferiu-se o despacho que se transcreve:
“ Ora, tendo em conta que o pressuposto da causa de pedir nesta ação foi, designadamente a alegação pelo autor de que no âmbito do processo-crime não foi o lesado, aqui Autor, devidamente notificado para deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido pelos danos causados nos termos do artigo 75.º do C.P. Penal e daí não ter dado cumprimento do principio da adesão obrigatória do pedido de indemnização civil e tendo agora vindo esclarecer que tal alegação ficou a dever-se a uma manifesto lapso esclarecendo que afinal aquela notificação foi feita, notifique-se o autor para se pronunciar sobre o seu interesse no prosseguimento da lide, considerando os pressupostos previstos do art. 72º do CPP.
Prazo 10 dias”.
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O Autor veio responder ao convite alegando para o efeito e em síntese, que a presente ação (pedido de indemnização cível) é fundada na prática pelo Réu de crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. no artigo 143º do Código Penal.
O artigo 71.º do CPP, estabelece o princípio regra da adesão obrigatória do exercício do direito ao ressarcimento por factos qualificados na lei como crime ao regime processual penal.
O artigo 72.º do CPP, veio estabelecer exceções a essa regra, permitindo a formulação de pedido civil em separado, em determinadas situações taxativamente elencadas, entre elas, a possibilidade de ser deduzido pedido cível quando o procedimento criminal depender de queixa ou de acusação particular – alínea c) do citado normativo.
O Autor não deduziu no processo crime pedido de indemnização civil e não estava impedido de deduzir em separado o presente pedido de indemnização civil. O pedido cível é fundado na prática pelo Réu de um crime de ofensa à integridade física simples, de natureza semi - pública, ou seja, depende de queixa, o que por si só legitima que o autor possa deduzir em separado o pedido de indemnização civil.
Conclui que destas circunstâncias resulta a existência da continuidade de interesse processual (interesse em agir) do Autor na presente ação, pela necessidade justificada, razoável e fundada de lançar mão do processo ou de fazê-lo prosseguir, uma vez que é através deste que poderá obter satisfação/ressarcimento dos danos sofridos decorrentes da conduta ilícita do aqui Réu.
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Proferiu-se despacho saneador, no qual se tomou posição sobre a matéria da exceção, julgando a mesma improcedente, com os fundamentos que se transcrevem:
“O artigo 71º do CPP impõe o princípio da adesão obrigatória do pedido cível à ação penal, estabelecendo que “o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei”.
Por seu lado, o artigo 72º nº1 enumera casos em que o pedido civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, ou seja, “quando:
a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do artigo 82º, nº3;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante o tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos dos artigos 75º, nº1 e 77º, nº2”.
Ao dispor no artigo 71º que o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei, o Código de Processo Penal consagra, como regra, o princípio da adesão obrigatória da ação cível ao processo penal e como exceção a dedução do pedido civil fora do processo penal.
Este princípio da adesão, está diretamente ligado a inegáveis vantagens processuais, como sejam a exclusão de julgamentos contraditórios e a economia processual, tendo ainda a vantagem de permitir uma realização mais rápida, mais barata e mais eficaz do direito dos lesados à indemnização, e por isso o nosso sistema jurídico-penal o assumiu como princípio estruturante.
Contudo, em matéria de exceções ao princípio da adesão, podemos distinguir duas situações distintas. A primeira é constituída pelos casos em que o pedido de indemnização cível pode ser deduzido, ab initio, em separado, perante o tribunal civil, são os casos previstos no artigo 72º, do CPP.
A segunda é constituída pelos casos em que, “dada a dificuldade, a complexidade ou a natureza das questões postas, o juiz penal entenda não estar em condições de decidir sobre o pedido cível ou em que tal possa causar uma sensível demora à decisão da causa penal” (cfr. ponto n.º 14 do n.º 2 do artigo 2º da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro, que concedeu autorização legislativa ao Governo para aprovar o atual Código de Processo Penal). São os casos previstos no artigo 82º, n.º 3, do CPP.
No caso dos autos, cumpre-nos averiguar se, não tendo o autor deduzido no processo-crime o pertinente pedido cível, o poderia fazer agora – em 01.02.2018, quando a petição inicial deu entrada -, em separado, perante o tribunal cível, sabido que o pedido de indemnização se funda na prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1 do CP, cujo procedimento criminal depende de queixa, nos termos do n.º 2 deste artigo, queixa essa apresentada pelo autor no processo crime no qual foi proferida sentença de homologação da desistência de queixa do ofendido, ora A.,, extinguindo-se o procedimento criminal e arquivando-se os autos.
Como já vimos, uma das exceções ao princípio da adesão, consagrada na alínea c) do n.º 1 do artigo 72.º do CPP, é a do procedimento criminal depender de queixa ou de acusação particular.
Também já vimos que o crime que fundamenta o pedido de indemnização civil, depende de queixa.
Estabelece o n.º 2 do artigo 72.º do CPP que “No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil, pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação, vale como renúncia a este direito”.
Ou seja, a lei estabelece exceção ao princípio da adesão obrigatória para os casos em que o procedimento depender de queixa e esclarece que a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil, vale como renúncia ao direito de queixa.
O que a lei não diz é o que acontece se já tiver sido exercido o direito de queixa no momento em que se deduz o pedido perante o tribunal civil.
Ora, não determinando a lei qualquer consequência/cominação para a dedução do pedido civil perante o tribunal civil, depois de exercido o direito de queixa, funcionará, sem mais, a alínea c) do n.º 1 do mesmo artigo, quando estipula que o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado perante o tribunal civil quando o procedimento depender de queixa ou de acusação particular.
É que, o n.º 2 reporta-se à hipótese de prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelo titular do direito do direito de queixa, ou seja, antes da instauração do processo-crime.
Só nesse caso, é que o pedido cível em separado vale como renúncia ao direito de queixa, extinguindo o procedimento criminal.
A situação contrária, ou seja, a dedução do pedido cível posteriormente à queixa-crime, não está prevista no n.º 2.
Portanto, como se concluiu no Acórdão da Relação do Porto de 05/11/2002, processo n.º 0221011, in www.dgsi.pt, “o titular do direito à indemnização civil por crime semipúblico pode sempre exercê-lo perante o tribunal cível, nos termos do art. 72.º n.º 1 c) do Código de Processo Penal.
Mas se o fizer previamente à queixa-crime, vale como renúncia ao direito de queixa (n.º 2), o que determina a extinção do procedimento criminal, ficando apenas a ação cível”.
Ou seja, o pedido de indemnização pode, neste caso, ser deduzido em separado.
Veja-se, também, a este propósito, “Prova na ação de responsabilidade civil fundada na prática de crime e factos provados na fundamentação da sentença penal” Cristina Dá Mesquita, Revista Julgar Online, janeiro de 2018, pág. 7 e 8 “A amplitude dos casos em que cessa a obrigatoriedade de adesão e a margem de livre decisão do lesado nessa sede revelam que o ordenamento tem subjacente a suscetibilidade de pendência simultânea de dois processos independentes fundados em factos constitutivos similares, um sobre a responsabilidade criminal e outro relativo à responsabilidade civil. Hipóteses em que a tramitação da ação civil é exclusivamente regulada pela lei processual civil, em sintonia com a sua independência. Independência da ação de responsabilidade civil fundada na prática de um crime relativamente ao processo penal que conforma as diferenças de estatutos dos sujeitos processuais, repercutidas na perda do estatuto de arguido e preservação apenas do de demandado civil, a qual foi objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional no acórdão de fiscalização concreta n.º 269/97 (Bravo Serra). Diferenciação de estatutos (arguido/parte civil) também analisada pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, nomeadamente, destacou que a legitimidade de algumas limitações à intervenção das partes civis no processo penal depende da possibilidade de exercerem os seus direitos processuais em supervenientes ações cíveis (acórdãos Menet contra França, de 14/6/2005, § 47, e Berger contra França, de 3/12/2002, §§ 35-38). A preservação da natureza de ação civil e não penal foi considerada como nuclear na apreciação pelo Tribunal Europeu noutros acórdãos (acórdãos Lagardère contra França, de 12/4/2012, § 55, e Y contra Noruega, de 11/2/2003, §§ 35-38), tendo esse tribunal sublinhado que as noções de equidade ou fair trial aplicáveis num e noutro processo são distintas (acórdão Dombo Beheer contra Holanda, de 27/10/1993, § 32)”.
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O Réu veio interpor recurso do despacho.
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Nas alegações que apresentou o apelante formulou as seguintes conclusões:
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O Autor veio responder ao recurso, formulando as seguintes conclusões:
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O recurso foi admitido como recurso de apelação.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II. Fundamentação
1. Delimitação do objeto do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso – art. 639º do CPC.
As questões a decidir:
- nulidade do despacho, nos termos do art. 615º/1 d) CPC;
- da competência em razão da matéria para apreciar pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime.
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2. Os factos
Com relevância para a apreciação das conclusões de recurso cumpre ter presente os seguintes factos provados no tribunal de 1ª instância:
- No Proc. 429/15.0PASTS que correu termos no Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por acórdão datado de 9 de outubro de 2017, e já transitado em julgado, foi o arguido, ora R., absolvido da prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210º, nº1 do C.P. e ainda, homologada a desistência de queixa do ofendido, ora A., extinguindo-se o procedimento criminal e arquivando-se os autos.
- Proferiu-se sentença que homologou a confissão do arguido, ora R., enquanto demandado cível, condenando-o no pagamento ao Centro Hospitalar D…, E.P.E., a título de danos patrimoniais, da quantia de €196,86, acrescida de juros.
- No processo crime o autor foi notificado para deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido pelos danos causados ao abrigo do art. 75º do CPP.
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3. O direito
- Nulidade do despacho -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 1 a 11, suscita o apelante a nulidade do despacho, com fundamento no art. 615º/1 d) CPC, porque no despacho não se tomou posição sobre a questão colocada a respeito da omissão de alegação na petição dos pressupostos para deduzir pedido cível em separado.
Nos termos do art. 615º/1 d) CPC, por remissão do art. 613º/3 CPC, a omissão de pronúncia sobre questões que o juiz devesse apreciar ou o conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento constitui um dos fundamentos de nulidade dos despachos.
O conhecimento de questões de que não podia tomar conhecimento, constitui um vício relacionado com a norma que disciplina a “ordem de julgamento“ – art. 608º/2 CPC.
Com efeito, resulta do regime previsto neste preceito, que o juiz na sentença: deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A respeito do conceito “questões que devesse apreciar“ refere ANSELMO DE CASTRO que deve “ ser entendida em sentido amplo: envolverá tudo quanto diga respeito à concludência ou inconcludência das exceções e da causa de pedir ( melhor, à fundabilidade ou infundabilidade dumas e doutras ) e às controvérsias que as partes sobre elas suscitem. Esta causa de nulidade completa e integra, assim, de certo modo, a da nulidade por falta de fundamentação. Não basta à regularidade da sentença a fundamentação própria que contiver; importa que trate e aprecie a fundamentação jurídica dada pelas partes. Quer-se que o contraditório propiciado às partes sob os aspetos jurídicos da causa não deixe de encontrar a devida expressão e resposta na decisão”[3].
LEBRE DE FREITAS por sua vez tem a respeito de tal matéria uma visão algo distinta, pois considera que devendo: “o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (art. 660º/2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da da sentença, que as partes hajam invocado”[4].
Para melhor precisar o seu entendimento remete para o estudo do Professor ALBERTO DOS REIS cuja passagem se transcreve:
“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação “ não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito ( art. 511º/1 ), as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido: por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas ( art. 664º ) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”[5].
Seguindo os ensinamentos dos ilustres Professores, atendendo ao regime processual vigente, afigura-se-nos ser esta a interpretação que melhor reflete a natureza da atividade do juiz na apreciação e decisão do mérito das questões que lhe são colocadas, pois o juiz não se encontra vinculado às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas.
Resulta desta interpretação que a sentença não padece de nulidade porque não analisou um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.
No caso concreto, o apelante suscitou tão só a exceção de incompetência material do tribunal cível, com fundamento na preterição do principio da adesão obrigatória (art. 71º CPP).
Efetivamente, o apelante argumentou que nos termos do artigo 342º do C.C., cabia ao A. o ónus de alegar e provar que se encontra numa dessas situações em que, excecionalmente, a lei processual penal contempla a dedução, em separado, de pedido cível fundado em crime, mas na petição inicial o autor não invocou qualquer das exceções previstas no referido normativo, nem se alegou qualquer facto suscetível de fazer tal prova, pelo que o pedido de indemnização civil em separado foi instaurado sem observância das condições estabelecidas no n.º 1 do art.º 72º do C.P.P.,
Conforme decorre da transcrição dos fundamentos do despacho, verifica-se que no despacho se apreciou a exceção, partindo dos factos que a sustentam e aplicou-se o direito. O juiz não estava obrigado a analisar todos os argumentos apresentados pelo apelante, pois o tribunal não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5º/3 CPC).
Por outro lado, a referida indicação em falta não constitui qualquer requisito de validade da interposição da ação por parte do autor, como o apelante defende[6].
No despacho recorrido o juiz do tribunal “a quo” apreciou da exceção suscitada, tomou posição sobre a mesma e proferiu decisão. Não omitiu a apreciação da única questão que lhe era colocada.
Conclui-se que o despacho não padece do vício que lhe vem imputado, improcedendo nesta parte as conclusões sob os pontos 1 a 11.
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- Da competência material do tribunal -
Nas conclusões de recurso, sob os pontos 12 a 18, insurge-se o apelante contra o segmento do despacho que julgou improcedente a exceção de incompetência material e concluiu que na situação concreta se verificava uma situação de exceção à regra da adesão obrigatória da ação cível à ação penal.
Considera para o efeito que o crime em causa, perante a acusação, revestia a natureza de crime público e por isso, não tinha aplicação a exceção do art. 72º/2 c) CPP, devendo o pedido cível ser deduzido no prazo concedido para esse efeito e a contar da data da notificação.
A questão que se coloca consiste em saber se o tribunal cível tem competência em razão da matéria para apreciar o pedido de indemnização formulado na ação, quando estando em causa factos de natureza criminal, funciona a regra da adesão obrigatória da ação cível ao processo penal (art. 71º CPP).
A competência do tribunal constitui um pressuposto processual que resulta do facto do poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos tribunais.
A competência abstrata de um tribunal designa a fração do poder jurisdicional atribuída a esse tribunal.
A competência concreta do tribunal, ou seja, o poder do tribunal julgar determinada ação, significa que a ação cabe dentro da esfera de jurisdição genérica ou abstrata do tribunal.
A competência em razão da matéria distribui-se por diferentes espécies ou categorias de tribunais que se situam no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia ( de subordinação ou dependência ) entre elas.
Neste domínio funciona o princípio da especialização, de acordo com o qual se reserva para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito[7].
A “insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida de jurisdição suficiente para essa apreciação”, determina a incompetência do tribunal[8].
Nos termos do art. 211º da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais constituem a regra dentro da organização judiciária e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Gozam de competência não discriminada.
Estabelece o art. 40º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei 62 /2013 de 26 de agosto), que os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
Daqui decorre que os restantes tribunais, constituindo exceção, têm a sua competência limitada às matérias que lhes são especialmente atribuídas e a competência dos tribunais judiciais comuns é residual.
A competência do tribunal em razão da matéria determina-se por referência à data da instauração da ação e afere-se em razão do pedido e da causa de pedir tal como se mostram estruturados na petição[9].
No âmbito do direito processual penal, encontra-se consagrado o princípio de adesão, nos termos do qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respetivo, só podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei (art. 71.º do CPP).
O princípio de adesão obrigatória[10], com tradição no direito português (artigos 29.º, do CPP/1929, 12.º e 13.º, do DL n.º 605/75, de 3 de novembro), é justificado, desde logo, pelos fins penais e ainda, pela economia processual e uniformização de julgados.
A aludida adesão obrigatória tem, necessariamente, vantagens, importando economia processual, dado que num mesmo e único processo se resolvem todas as questões atinentes ao facto criminoso, sem necessidade de fazer correr mecanismos diferentes e em sede autónomas, outrossim, por razões de economia de meios, uma vez que os interessados não necessitam de despender e dispersar custos, a par das razões de prestígio institucional, porquanto se evitam contradições de julgados.
Aprecia-se, pois, num só Tribunal os mesmos factos, na sua essencialidade, importando uma análise global do acontecimento, quer na perspetiva penal, quer na perspetiva civil, afastando-se a possibilidade de contradição de julgados entre as duas Jurisdições, importando, pois, que o pedido de indemnização civil, tenha de ser deduzido no processo penal, tendo como factos jurídicos donde emerge a pretensão do lesado, os mesmos factos que são pressuposto da responsabilidade criminal do arguido.
Neste sentido se tem pronunciado a jurisprudência, como disso dão nota, entre outros, os Ac. STJ 22 de novembro de 2018, Proc. 199/17.7T8TCS.C1.S1, Ac. STJ 30 de abril de 2019, Proc. 1286/18.0T8VCT-A.G1.S1, Ac. STJ 23 de maio de 2019, Proc. 9918/15.5T8LRS.L1.S1( todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No entanto, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, nos casos especificados no art. 72.º, n.º 1, do CPP e de acordo com a previsão do art. 82º CPP.
Prevê o art. 72º CPP:
“1 - O pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, quando:
a) O processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo;
b) O processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente, ou o procedimento se tiver extinguido antes do julgamento;
c) O procedimento depender de queixa ou de acusação particular;
d) Não houver ainda danos ao tempo da acusação, estes não forem conhecidos ou não forem conhecidos em toda a sua extensão;
e) A sentença penal não se tiver pronunciado sobre o pedido de indemnização civil, nos termos do n.º 3 do artigo 82.º;
f) For deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade meramente civil, ou somente contra estas haja sido provocada, nessa ação, a intervenção principal do arguido;
g) O valor do pedido permitir a intervenção civil do tribunal coletivo, devendo o processo penal correr perante tribunal singular;
h) O processo penal correr sob a forma sumária ou sumaríssima;
i) O lesado não tiver sido informado da possibilidade de deduzir o pedido civil no processo penal ou notificado para o fazer, nos termos do n.º 1 do artigo 75.º e do n.º 2 do artigo 77.º
2 - No caso de o procedimento depender de queixa ou de acusação particular, a prévia dedução do pedido perante o tribunal civil pelas pessoas com direito de queixa ou de acusação vale como renúncia a este direito.
Nos termos do artº 82º do CPP sob a epígrafe: “Liquidação em execução de sentença e reenvio para os tribunais civis”, prevê-se:
1 - Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.
2 - Pode, no entanto, o tribunal, oficiosamente ou a requerimento, estabelecer uma indemnização provisória por conta da indemnização a fixar posteriormente, se dispuser de elementos bastantes, e conferir-lhe o efeito previsto no artigo seguinte.
3 - O tribunal pode, oficiosamente ou a requerimento, remeter as partes para os tribunais civis quando as questões suscitadas pelo pedido de indemnização civil inviabilizarem uma decisão rigorosa ou forem suscetíveis de gerar incidentes que retardem intoleravelmente o processo penal.”

Neste contexto não se pode acolher os argumentos do apelante quando no ponto 14 das conclusões se refere que se deve atender ao momento da notificação da acusação, para se verificar se é obrigatória a adesão do pedido cível à ação penal.
Para aferir da competência em razão da matéria, por aplicação do princípio da adesão obrigatória, importa atender aos factos alegados na petição e pedido formulado, sendo certo que só os factos com natureza criminal que de igual forma tenham sustentado ou sustentam o procedimento criminal relevam para este efeito[11].
Depois, sendo obrigatória a adesão como determina o art. 71º CPP, as situações de exceção são aquelas que vêm previstas nos citados preceitos – art. 72º e 82º CPP – o que significa que não é por referência à notificação da acusação que se avalia da relação de dependência entre a ação penal e o pedido cível. Apenas nas situações previstas na lei pode ser deduzido o pedido cível em separado, o que revela o caráter excecional do regime.
No caso concreto, interessa de modo particular a exceção ao princípio da adesão prevista no art. 72º/1 c) CPP, por ser esse o fundamento acolhido na decisão recorrida.
Nos termos do art. 72º/1 c) CPP admite-se a dedução em separado do pedido cível quando o procedimento depende de queixa ou de acusação particular.
Esta norma, porém, tem como complemento o disposto no art. 72.º, n.º 2, do CPP, nos termos do qual a dedução do pedido perante o tribunal civil vale como renúncia ao direito de queixa ou de acusação.
Da conjugação destes preceitos resulta que, havendo ação penal, sem renúncia de queixa ou de acusação, o pedido de indemnização civil tem, obrigatoriamente, de ser deduzido na ação penal.
Como se observa no Ac. STJ 30 de abril de 2019, Proc. 1286/18.0T8VCT-A.G1.S1(www.dgsi.pt):”[p]or isso, para a ação em separado, não basta que o procedimento dependa de queixa ou de acusação particular, é indispensável que não se exerça o direito de queixa ou de acusação, isto é, que o lesado renuncie ou esteja em situação equivalente a renúncia a tal direito. De outro modo, para além de não se seguir a melhor interpretação legal, estar-se-ia a comprometer em grande parte o princípio de adesão, dada a extensão dos crimes semipúblicos e particulares”.
No caso presente, os factos alegados na petição configuram a prática pelo réu de um crime de ofensas corporais, cujo procedimento criminal está dependente de queixa.
Os factos que sustentam a pretensão do autor não configuram um crime de natureza pública, suscetível de ser enquadrado no art. 210º CP, como refere o apelante no ponto 12 das conclusões.
Os factos alegados na petição e ainda outros (mas que não foram alegados na petição) constituíram objeto da acusação no Proc. 429/15.0PASTS que correu termos no Juízo Central Criminal de Vila do Conde – Juiz 1 – Tribunal Judicial da Comarca do Porto. Nesse processo o réu foi acusado pela prática em coautoria de um crime de roubo, mas em sede de julgamento os factos foram convolados para o crime de ofensas corporais. O autor, lesado no âmbito do processo penal, desistiu da queixa e o processo penal terminou com a desistência de queixa. No processo crime não foi formulado pedido de indemnização.
Na data em que foi instaurada a ação e deduzido o pedido cível, em separado, não estava pendente processo penal. O procedimento extinguiu-se por desistência de queixa. A dependência pretendida viu-se frustrada pelo próprio interessado e nessa medida, não está impedido de deduzir em separado o pedido de indemnização, sendo certo que apenas a prévia instauração de ação cível determina a extinção do procedimento criminal, mas não o contrário.
A exceção da alínea c) tem como objetivo evitar o recurso obrigatório ao processo criminal, por parte do ofendido de crimes particulares ou semipúblicos.
Argumenta, ainda, o apelante que o ofendido foi notificado com a acusação para deduzir pedido cível, o que não fez de forma livre.
A notificação do lesado para deduzir pedido de indemnização, ao abrigo do art. 75º CPP, apenas limita o prazo no processo para a prática do ato, mas não afeta o direito à indemnização[12]. Apenas o regime previsto no art. 72 CPP estabelece as condicionantes para o exercício do direito em separado.
Só nesta ação e apenas com base nos factos que configuram o crime de ofensas corporais, cujo procedimento depende de queixa e depois de renunciar ao procedimento criminal, veio o autor exercer o direito à indemnização. Não se verifica, assim, a dependência obrigatória da ação cível ao procedimento penal, por se verificar a exceção do art. 72º/1c) CPP.
Conclui-se que não merece censura o despacho.
Improcedem as conclusões de recurso, sob os pontos 12 a 18.
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Nos termos do art. 527º CPC as custas são suportadas pelo apelante.
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III. Decisão:
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar o despacho recorrido.
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Custas a cargo do apelante.
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Porto, 15 de junho de 2020
(processei e revi – art. 131º/6 CPC)
Assinado de forma digital por
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes
Miguel Baldaia de Morais
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[1] Texto escrito conforme o Novo Acordo Ortográfico de 1990. [2] Consigna-se: na elaboração do relatório consultou-se o processo principal através do sistema Citius, porque o apenso não continha todas as peças processuais relevantes e em formato suscetível de ser editável e ainda, na descrição dos factos enunciados na petição anotaram-se os lapsos de escrita (que resultam do contexto) quando se confunde a pessoa do autor e réu/arguido ( art. 10º, 11º, 13º da petição ).
[3] ANSELMO DE CASTRO Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Coimbra, Almedina, 1982, pag. 142.
[4] JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO Código de Processo Civil Anotado, Vol.II, 2ª edição, Coimbra, Coimbra Editora, 2008, pag. 704.
[5] JOSÉ ALBERTO DOS REIS Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra, Coimbra Editora Lim, 1984, pag. 143.
No mesmo sentido pode ainda ler-se o ANTUNES VARELA et al Manual de Processo Civil, ob. cit., pag.688.
[6] Cfr. Ac. Rel. Lisboa 18 de fevereiro de 2016, Proc. 245/07.2TBALM-A.L1-2, acessível em www.dgsi.pt. Contudo, não se ignora que a posição contrária foi defendida, entre outros, nos Ac. Rel. Lisboa 12 de fevereiro de 2015, Proc. 9083/11.7TBCSC.L1-6 e Ac. Rel. Lisboa de 15 de março de 2007, Proc. 1412/07-2, ambos acessíveis em www.dgsi.pt, com argumentos que não perfilhamos.
[7] Cfr. ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1985, pag. 195.
JOÃO DE CASTRO MENDES Direito Processual Civil , vol I, Lisboa, AAFDL, 1980, 646.
[8] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, Lisboa, Lex, 1997, 128.
[9] Cfr. MANUEL A. DOMINGUES DE ANDRADE Noções Elementares de Processo Civil, reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, Limitada, 1993, pag. 91.
Na jurisprudência, entre outros, podem consultar-se: Ac. Rel. Porto 31.03.2011 – Proc. 147/09.8TBVPA.P1 endereço eletrónico: www.dgsi.pt; Ac. STJ, CJ/STJ, 1997, I, 125; Ac. Rel. Porto 07/11/2000, CJ, Tomo V/2000, pág. 184.
[11] MAIA GONÇALVES Código de Processo Penal Anotado, Almedina, Coimbra, 1987, págs. 121 e 122
[12] Cfr. Ac. Rel. Porto 05 de novembro de 2018, Proc. 2261/17.7T8PNF-A.P1 (acessível em www.dgsi.pt)
[13] Cfr. Ac. Rel. Porto 26 de maio de 2003, Proc. 0250567 (acessível em www.dgsi.pt)