Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1565/17.3T8CHV-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FILIPE CAROÇO
Descritores: EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
PRECLUSÃO
Nº do Documento: RP201901241565/17.3T8CHV-A.P1
Data do Acordão: 01/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 160, FLS 166-175)
Área Temática: .
Sumário: I – Na interpretação do contrato, a regra consiste em o sentido da declaração negocial ser aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, exceptuando-se, apenas, os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou se o declaratário conhecer a vontade real do declarante.
II – No Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, havendo dúvida interpretativa de cláusulas ambíguas, prevalece o sentido mais favorável ao aderente.
III – Sob pena de preclusão, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, com excepção dos incidentes que a lei mande deduzir em separado. Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita, passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.
IV – Para a consideração de factos novos, complementares de factos essenciais oportunamente alegados pela parte, a lei processual não exige um requerimento da parte interessada no sentido de se prevalecer dessa factualidade, mas tem de haver exercício do contraditório sobre a mesma, que deve também resultar da discussão da causa em 1.ª instância, devendo então ser dados como provados ou não provados na sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 1565/17.3T8CHV-A.P1 (apelação)
Comarca do Porto – Juízo de Execução da Maia – J2

Relator: Filipe Caroço
Adj. Desemb. Judite Pires
Adj. Desemb. Aristides Rodrigues de Almeida

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I.
B..., executada nos autos de execução que lhe moveu a SANTA CASA DA MISERICÓRDIA C...[1], deduziu embargos por requerimento de 4 de abril de 2018, alegando essencialmente que o crédito exequendo está prescrito nos termos do art.º 317º, al. a), do Código Civil e --- sem prescindir --- que a embargante não é responsável pelo pagamento da dívida, por não ser familiar da utente/executada D..., nunca se ter vinculado a qualquer pagamento de serviços prestados pela exequente e ter intervindo no contrato apenas na qualidade de “Amiga”, numa situação de representação informal.
Como tal, concluiu que lhe é inexigível o pagamento da quantia exequenda, devendo julgar-se os embargos de executado procedentes, com extinção da execução relativamente à embargante.
Notificada, a embargada apresentou contestação pela qual aceitou parcialmente os factos alegados no requerimento da embargante e, tendo negado a prescrição do crédito exequendo, invocou os termos do contrato para concluir que, não só a utente dos seus serviços, mas também a embargante, o subscreveu em nome e direito próprio e em representação do utente, pelo que também é, na sua perspetiva, responsável pelo pagamento da quantia dada à execução.
Foi proferido despacho saneador, com dispensa da audiência prévia.
Julgou-se ali improcedente a exceção perentória da prescrição presuntiva do crédito da exequente.
Foi fixado o objeto do processo e foram especificados os temas de prova:
Realizada a audiência final, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo, ipsis verbis:
«Nos termos e fundamentos expostos, julgo os embargos deduzidos por B... procedentes por provados e, em consequência, julgo extinta em relação a esta última a execução instaurada pela Santa Casa da Misericórdia C....
Sem custas, por a exequente/embargada se encontrar isenta do seu pagamento.».
*
Inconformado com a decisão sentenciada, a embargada interpôs recurso de apelação em cujas alegações formulou as seguintes CONCLUSÕES:
«Salvo o devido respeito, não pode a Recorrente concordar com a douta Sentença;
Porque no nosso modesto entendimento, a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como a documental constante dos autos, impõe decisão diversa da recorrida.
Da matéria de Facto dada como Provada – na alínea b) dos Factos Provados – resulta que a Embargante assinou o contrato de admissão de utente e de prestação de serviços em nome e direito próprio e em representação da utente D....
Mais resultou provado – alínea c) – que a Embargante, na qualidade de utente e/ou responsável, assinou o boletim de inscrição da D..., referindo-se no ponto 12 das Condições de Internamento que a utente e/ou os seus familiares irão comparticipar com a mensalidade de 600 € mês, visto a utente não possuir qualquer tipo de reforma e a vaga ocupada não está abrangida pelo acordo de cooperação (…).
A morada da utente e a morada da responsável (embargante) é a mesma – vide boletim de inscrição.
Resulta da fundamentação da douta Sentença, não se entendendo porque essa matéria não foi dada como provada, o que é relevante do nosso ponto de vista, que a Embargante pagou as mensalidades da utente, no valor de 600,00€, até ao ano de 2012.
Tais pagamentos, durante cerca de dois anos e três meses (16.09.2009 até inícios de 2012), foram feitos directamente da conta bancária da E..., pertencente à Embargante para a conta da Embargada – cfr. documentos juntos aos autos.
Ora, entendemos que no caso “sub judice” a questão a decidir e que consta dos temas de prova se reconduzia a saber se a Embargante interveio no contrato, celebrado com a Embargada em 16.09.2009, sem se obrigar ao pagamento de qualquer valor e na exclusiva qualidade de amiga da utente e ainda apurar se a Embargante subscreveu o aludido contrato em representação informal da utente e porque esta não tinha capacidade para o fazer por si.
A Embargante na sua douta petição alegou incapacidade da utente e da matéria factual dada como provada não resultou prova dessa factualidade. Pelo contrário, o douto Tribunal “a quo” refere na douta Sentença o seguinte: “Por motivo que se desconhece – embora haja sido mencionado em julgamento, a realidade é que o contrato não torna claro tal facto – a executada D... não assina e contrato em nome próprio”.
10ª Deste modo, caberia à Embargante o ónus da prova daquela alegada incapacidade ou inabilitação da utente – cfr. art. 342º do C.C. – o que não logrou conseguir.
11ª Pelo que dos Temas de Prova restaria à Embargante provar que interveio no contrato na qualidade de mandatária ou procuradora da utente porque não foi junta qualquer procuração, nem tão pouco foi feita prova da ratificação da mandante, o que não poderia acontecer porque aquela invocou na sua contestação a incapacidade da utente, nem tão pouco resultou provado que lhe incumbisse a respectiva tutela.
12ª Pelo contrário, entendemos que a tese defendida pela embargada ficou provada:
13ª Resulta da experiência e é de mediana evidência, se a referida utente, à data em que foi admitida, não auferia qualquer tipo de reforma e que a vaga ocupada não estava abrangida por um acordo de cooperação, alguém, que não ela teria de assumir a responsabilidade pelo pagamento dos serviços contratualizados e prestados.
14ª Mais resulta da factualidade dada como provada que a Embargante assinou e subscreveu o dito contrato em nome e direito próprio e foi pagando mensalmente, ao longo de cerca de dois anos e três meses, as mensalidades da utente, no valor de 600,00€.
15ª Deste modo, um declaratário normal, colocado na posição do declaratário ficaria convencido que a Embargante assumiu o pagamento e as outras obrigações contratuais, porque assinou em nome e direito próprio e pagou as mensalidades durante dois anos e três meses.
16ª Ora, nos termos do disposto no nº 1 do art. 236º do C.C., na busca do sentido da declaração negocial são atendíveis todos os elementos e circunstâncias que um declaratário medianamente instruído, diligente, sagaz, colocado na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta: os termos do contrato e os interesses que nele estão em jogo e a finalidade prosseguida pelo declarante, bem como as negociações prévias e as precedentes relações negociadas entre as partes.
17ª Porém, na nossa modesta opinião, nada disso foi tido em consideração pelo douto Tribunal “a quo”, pelo que incorreu em erro de apreciação da prova e da aplicação e determinação das normais legais aplicáveis.
18ª Pelo que, perante a prova constante dos autos, deveria o douto Tribunal “a quo” ter julgado improcedentes os embargos, com as legais consequências.
19ª Ao não decidir assim, violou, entre outras, as seguintes disposições legais – arts. 342º e 236º, ambos do C.C., o que se invoca para os devidos e legais efeitos.» (sic)
Termina pedindo que seja declarada a embargante como responsável pelo pagamento da quantia exequenda.
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Não foram oferecidas contra-alegações.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II.
Com exceção do que for do conhecimento oficioso, as questões a decidir estão delimitadas pelas conclusões da apelação da exequente/embargada, acima transcritas (cf. art.ºs 608º, nº 2, 635º e 639º do Código de Processo Civil).

Somo chamados a decidir se, nos termos do contrato celebrado entre a embargante e a embargada, aquela pode ser responsabilizada pelo pagamento da quantia exequenda.
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III.
São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância[2]:
a) Deu entrada em 22.06.2017 no Balcão Nacional de Injunções um requerimento de injunção com o n.º 60269/17.9YIPRT, em que intervém como requerente a Santa Casa de Misericórdia C... e como requerida D... e B..., ambas identificadas como tendo residência na Rua ..., n.º ...., na Maia, peticionando a requerente que lhe seja paga a quantia de € 11.981,04, valor de capital e juros emergente de contrato de fornecimento de bens ou serviços, constando da exposição sucinta de factos que a requerente aceitou a admissão da 1ª requerida aos seus cuidados, aceitando, em contrapartida, ambas as requeridas, efectuar uma comparticipação mensal de € 600,00, a que acresceriam despesas extraordinárias, tendo sido emitidas facturas que identifica – entre 03.01.2012 e 03.05.2013 -, que não foram pagas na data do respectivo vencimento; em 09.10.2017 foi conferida força executiva ao requerimento de injunção (cfr. doc. de fls. 14 e 15 dos autos principais, cujo teor se tem por reproduzido).
b) De documento designado como CONTRATO DE ADMISSÃO DE UTENTES E PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ASSINADO ENTRE A SANTA CASA DA MISERICÓRDIA E OS SEUS UTENTES consta como teor que em 16.09.2009, compareceram o Sr. F..., Provedor da Santa Casa da Misericórdia C..., como primeiro outorgante, a senhora D..., que actua em nome próprio, como segundo outorgante, e a senhora B..., que actua em nome e direito próprio e em representação do utente acima indicado, na qualidade de amiga, mencionados no contrato como utente e/ou seu representante; mais consta do referido contrato que a utente dará entrada na casa em regime de lar; na cláusula quarta do contrato consta que nenhum candidato será excluído por motivo de pobreza, estabelecendo as condições em que os utentes contribuem com as suas pensões, mais se estabelecendo que se as pensões forem muito reduzidas deverão completar as mensalidades mínimas com bens próprios ou dos seus familiares, estabelecendo a cláusula nona que o utente e/ou os seus familiares, conforme estabelecido na cláusula quarta, aceita completar o pagamento da mensalidade indicada com uma mensalidade suplementar de € 600,00, que serão pagos até ao dia 8 do mês em referência; o referido contrato mostra-se assinado pelo utente ou seu representante, B... e pelo provedor da Santa Casa, ali 1º e 2º outorgantes (cfr. doc. de fls. 14 a 17, cujos demais termos aqui se dão por reproduzidos).
c) A embargante, na qualidade de utente e ou responsável, assinou o boletim de inscrição de D..., referindo-se no ponto 12 das condições de internamento que a utente e/ou os seus familiares irão comparticipar com uma mensalidade de 600 euros mês, visto a cliente não possuir qualquer tipo de reforma e a vaga ocupada não está abrangida pelo acordo de cooperação; todas as despesas com saúde e outras alheias ao normal funcionamento e atendimento será da responsabilidade do utente ou dos familiares; dos dados de admissão consta que em 16.09.2009 a utente D... tinha 59 anos de idade (cfr. doc. de fls. 10 a 13, cujo restante teor se tem por reproduzido).
d) A exequente dirigiu à embargante as cartas cujo teor consta de fls. 26 a 33 dos presentes autos, solicitando o pagamento das quantias referentes ao internamento da utente D... (cfr. doc.cit. cujo teor se tem por reproduzido).

Consignou ainda a instância recorrida: “Não existem outros factos com relevância para a decisão da causa, reflectindo o essencial da matéria articulada pelas partes meras alegações conclusivas ou interpretações de cariz jurídico.”
*
IV.
Descritos os factos dados como provados, debrucemo-nos sobre o thema decidendum do recurso.
A questão que nos é colocada por via do recurso assenta, na sua essência, na análise interpretativa de um contrato de prestação de serviços celebrado em setembro de 2009 entre a exequente Santa Casa da Misericórdia C...[3] e a embargante, B..., pelo qual aquela se disponibilizou para admitir nas suas instalações e a nelas prestar (como admitiu e prestou) os seus serviços de assistência em regime de lar de idosos a favor de D..., mediante remuneração.
O contrato é de prestação de serviço e enquadra-se no âmbito de aplicação do art.º 1154º do Código Civil, segundo o qual “(…) é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição”, sendo-lhe aplicáveis as disposições relativas ao mandato, com as necessárias adaptações (art.º 1156º do Código Civil).
Na perspetiva da exequente, a embargante assumiu a responsabilidade pelo pagamento da mensalidade de € 600,00, por a utente não possuir qualquer tipo de reforma e a vaga ocupada não estar abrangida por acordo de cooperação; daí ser responsável pelo pagamento da quantia exequenda. Porém, a embargante entende que, do contrato, não emerge para a própria qualquer obrigação de pagamento, por nele ter intervindo como representante informal da utente D... e não ser sua familiar.
A interpretação de um contrato consiste em determinar o conteúdo das declarações de vontade e, consequentemente, os efeitos que o negócio visa produzir, em conformidade com essas declarações.”[4]
Convoquemos o art.º 236º do Código Civil, segundo o qual:
1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.
Nos casos duvidosos, o sentido da declaração, prevalece, nos negócios jurídicos gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações (art.º 237º do Código Civil); ou seja, caso a interpretação conduza a um resultado duvidoso sobre o sentido da declaração, quando se trate de um negócio oneroso prevalece o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.
Tratando-se de negócios formais --- aqueles em que a declaração negocial carece de forma legalmente prescrita (art.º 220º do Código Civil) --- de acordo com o art.º 238.º, n.º 1 do Código Civil, “não pode a declaração valer com um sentido que não tenha o mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”, mas, de acordo com o subsequente n.º 2, “esse sentido pode, todavia valer, se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes de forma do negócio se não opuserem a essa validade”. Nestes casos, a doutrina sofre desvios no sentido de um maior objetivismo, não podendo a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.º 238º, nº 1, do Código Civil). Ainda que se admita o recurso a elementos de interpretação não contidos no contrato, esta será sempre o ponto de partida da interpretação.
No caso sub judice está afastada a aplicação do nº 2 do art.º 236º, por não terem sido alegados e provados factos donde resulte qual foi a vontade real concordante das partes quanto à questão do pagamento das prestações devidas à embargada pela prestação dos seus serviços.
A lei não prevê forma especial para o contrato em causa, pelo que não se trata de um negócio formal.
Tem, pois, de se determinar o sentido do contrato em causa atenta a solução que decorre do citado n.º 1 do art.º 236º, de onde resulta o grande princípio da interpretação negocial ao consagrar a conhecida doutrina da impressão do destinatário: o sentido decisivo é aquele que se obtenha do ponto de vista de um declaratário normal colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante.
Atualmente tem-se comummente aceite a doutrina objetivista da interpretação, temperada “por uma salutar restrição de inspiração subjectivista”, como referem P. de Lima e a. Varela[5]. Tal regra consiste em o sentido da declaração negocial ser aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, excetuando-se, apenas, os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n° 1), ou de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n° 2). O declaratário normal deve ser uma pessoa com razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas fixando-a na posição do real destinatário, isto é, acrescentando as circunstâncias que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.[6]
Entre as circunstâncias atendíveis, deve levar-se em conta, nomeadamente, as precedentes relações entre declarante e declaratário sobre o assunto objeto da declaração, as negociações prévias, a envolvência do conjunto negocial em que, porventura, ela esteja inserida, os interesses em jogo, os usos da prática em matéria terminológica, e o modo como, posteriormente, foi dada execução ao negócio, a finalidade prosseguida pelo declarante, os usos e os hábitos do declarante e a conduta das partes após a conclusão do negócio.[7]
De entre os vários elementos atendíveis para a fixação do sentido normal da declaração negocial sobressaem, segundo Calvão da Silva[8], os termos do negócio, os interesses nele em jogo e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento, a finalidade prosseguida, as negociações prévias, etc.
Na perspetiva de Luís Carvalho Fernandes[9], surgem como elementos essenciais – a que deve recorrer-se para a fixação do sentido das declarações – “a letra do negócio, as circunstâncias de tempo, lugar e outras, que precederam a sua celebração ou são contemporâneas desta, bem como as negociações respectivas, a finalidade prática visada pelas partes, o próprio tipo negocial, a lei e os usos e os costumes por ela recebidos”. Ou, como exemplifica Manuel de Andrade[10] “os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática, em matéria terminológica, ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de outros meios ou profissões), etc.”.
Como resultado final da interpretação deve sempre prevalecer o sentido objetivo que se obtenha do ponto de vista do declaratário concreto, mas supondo-o uma pessoa razoável (e não mais do que isso).
Numa síntese notável, Ferrer Correia[11] defende que o declarante responde “pelo sentido que a outra parte pode atribuir à sua declaração, enquanto esse seja o conteúdo que ele próprio devia considerar acessível à compreensão dela”.
Pois bem.
Na conclusão 6ª da apelação, a Santa da Casa da Misericórdia C... alegou que “resulta da fundamentação da douta Sentença, não se entendendo porque essa matéria não foi dada como provada, o que é relevante do nosso ponto de vista, que a Embargante pagou as mensalidades da utente, no valor de 600,00€, até ao ano de 2012”.
A propósito daqueles pagamentos, escreveu-se na sentença, apenas em sede de aplicação do Direito:
«Ora, sendo a intervenção da embargante exclusivamente em nome da utente (por indiciada incapacidade desta para assinar por si), jamais se identificando como sua familiar ou assinando como terceira responsável pelo pagamento de qualquer quantia (o contrato tem apenas e só dois outorgantes, cabendo à embargante a representação informal da sua amiga), teremos que concluir que da letra do documento nenhuma obrigação emerge para a embargante, que, a ter pago quaisquer valores até ao ano de 2012 (que se supõe que deverá coincidir com a data em que passou a ser paga a reforma à executada Adelaide, que a exequente não menciona ou deduz aos valores facturados), o fez em cumprimento de uma obrigação natural, isto é, uma obrigação que se funda num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a um dever de justiça (art. 402º do Código Civil). Sendo tal prestação espontânea, é inviável a exigência coactiva do seu pagamento, como resulta do disposto no art. 404º do Código Civil.»
Como é evidente, o tribunal não considerou provado que a embargante pagou quaisquer valores à embargada até ao ano de 2012, designadamente em nome da utente. Simplesmente admitiu, por mera hipótese, que o tivesse feito, para desenvolver o raciocínio (também este necessariamente hipotético, incerto e dependente da prova daquele facto condicionante) de que, se assim tivesse acontecido, nem por isso lhe era exigível o pagamento das prestações em falta, por ter agido no cumprimento de um dever de ordem moral ou social (uma obrigação natural), não exigível judicialmente.
A recorrente diz não entender a razão pela qual tal facto não foi dado como provado.
A razão tem uma explicação fácil.
Sendo uma das principais emanações do princípio do dispositivo que impera no processo civil, compete às partes o ónus de alegarem os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas (art.º 5º, nº 1, do Código de Processo Civil). Essa alegação deve ser feita nos articulados, onde as partes expõem os fundamentos da ação e da defesa, formulando os respetivos pedidos (art.º 147º, nº 1, do Código de Processo Civil). São eles os articulados normais (necessários e eventuais) do processo (petição inicial, contestação e réplica) e ainda o articulado superveniente (art.ºs 552º, nº 1, al. d), 572º, al. c), 583º, nº 1, 584º, nºs 1 e 2 e 588º, nº 1, do Código de Processo Civil).
Sob pena de preclusão, toda a defesa deve ser deduzida na contestação, com exceção dos incidentes que a lei mande deduzir em separado. Depois da contestação só podem ser deduzidas as exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente (princípios da concentração e da preclusão ---art.º 573º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Não sendo um facto essencial e nuclear para a defesa da embargada, o pagamento de prestações pela embargante a favor daquela na sequência da formação do contrato de prestação de serviços em que interveio, é um facto complementar daqueles, parte do conjunto de circunstâncias com notória relevância para a interpretação do negócio.
De modo diferente do que ocorria no anterior Código de Processo Civil (cf. art.ºs 264º, nº 3 e 650º, nº 2, al. f)), o novo Código, no citado art.º 5º, nº 2, al. b), não exige um requerimento da parte interessada no sentido de se prevalecer dessa factualidade, mas tem de haver exercício do contraditório sobre a mesma que deve também resultar da discussão a causa.[13]
Tais factos complementares ou concretizadores dos essenciais alegados que compõem a causa de pedir ou a matéria de exceção nos termos do art.º 5º do Código de Processo Civil, para poderem ser tomados em consideração pelo tribunal têm que ser considerados como provados na sentença e previamente a tal ser dado conhecimento às partes que irão ser atendidos.[14]
Compulsadas as duas atas da audiência final, delas não resulta que aquela matéria de facto (não alegada) ali tivesse sido discutida, que o tribunal tivesse facultado às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre ela, cumprindo o contraditório (art.º 3º, nº 3, do Código de Processo Civil) e que se tivesse procedido ao seu aproveitamento para efeitos de prova. Em consequência, essa matéria não consta do elenco da matéria dada como provada e não provada na sentença, não podendo agora ser discutida nem considerada, ex novo, no recurso.
Prosseguindo…
A grande questão é saber se a embargante se obrigou, nos termos do contrato, a pagar as prestações mensais a favor da embargada pelos serviços prestados à utente.
No mesmo dia em que o contrato de prestação de serviços foi assinado e a utente foi admitida nas instalações da embargada (16.9.2009), foi preenchido um documento fornecido pela própria Santa Casa, por ela parcialmente pré-preenchido e denominado de Boletim de Inscrição de Utente, de onde resulta, sob o respetivo ponto 12, que a utente e/ou os seus familiares, irão comparticipar com uma mensalidade de 600 Euros mês, (…). Todas as despesas com saúde e outras alheias ao normal funcionamento e atendimento será da responsabilidade do utente ou dos seus Familiares”[15]. Este ponto intitula-se, no modelo apresentado, de “DESIGNAÇÃO DAS CONDIÇÕES DE INTERNAMENTO”, mas o respetivo quadro, com os referidos dizeres foi preenchido em função das condições particulares da utente, como dele resulta evidente, até pelo estabelecimento de uma mensalidade que varia em função das suas condições pessoais (cf. cláusula 4ª do contrato de admissão de utentes e prestação de serviços e ponto b) dos factos provados).
Dali, da sua letra, não emerge, com toda a evidência, qualquer obrigação de pagamento para qualquer pessoa que não seja a utente ou familiares dela.
Do quadro 11 do mesmo Boletim, designado pela Santa Casa como “MOTIVO DO PEDIDO”, fez-se constar “A D. D... solicita internamento em lar de C... (…)”. Nestas palavras, é ela que solicita o seu próprio internamento.
Devidamente analisado, o Contrato de Prestação de Serviços corresponde a um cotrato-tipo previamente elaborado e proposto pela Santa Casa, ao qual os utentes aderem. Em quase tudo quanto dele consta está pré-preenchido em letra de forma para o universo de candidatos à prestação de serviços e cuidados ali referidos. É, por isso, um contrato de adesão: um conjunto de cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, cujo aderente se limita a subscrever (art.º 1º, nº 1 do Decreto-lei nº 446/85, de 25 de outubro, que estabelece o Regime Jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais)[16]. A interpretação dessas cláusulas obedece às regras previstas nos art.ºs 10 e 11º daquele RJCCG.
Mas, nem tudo o que consta daquele contrato são cláusulas contratuais gerais. Nele se evidencia, a negrito, tudo o que, no caso, foi particularmente preenchido: a data, o nome da utente, o número do seu BI e o respetivo arquivo, a qualidade de quem interveio em representação da utente e respetivo domicílio. Esses dizeres, no conjunto das circunstâncias em que ficaram escritos, devem ser interpretados segundo as já referidas regras gerais de interpretação.
Não só o Boletim de Inscrição, mas também o modelo contratual utilizado estão elaborados para viabilizar a responsabilização da utente e de seus familiares pelo pagamento daquelas prestações.
Isso mesmo emana do contrato escrito:
- Da cláusula Primeira, quando refere que o Regulamento Interno da instituição “está sempre ao dispor do Utentes e dos seus familiares”;
- Da cláusula quarta, onde consta que “(…) os Utentes devem contribuir com as suas reformas, incluídas o 13º e 14° mês” e que “se as reformas forem muito reduzidas, e isso for possível, deverão completar as mensalidades mínimas acima indicadas com bens próprios ou dos seus familiares”; e
- Da cláusula nona, segundo a qual “O Utente e e/ou os seus familiares, conforme fica estabelecido na clausula Quarta, aceitam completar o pagamento da mensalidade indicada, com uma mensalidade suplementar de 600 Euros, que serão pagos até ao dia oito (8) do mês em referência”.
Ou seja, não é apenas o que consta pré-preenchido no modelo contratual utilizado que aponta para a responsabilização apenas do utente e dos seus familiares pelo pagamento das prestações devidas à Santa Casa; também o que foi particularmente estabelecido/preenchido no Boletim de Inscrição no mesmo dia em que o contrato foi assinado não deixa dúvida alguma de que os responsáveis pelo pagamento da mensalidade de € 600,00 são a utente e/ou os seus familiares.
Ora, a embargante B..., tanto nos termos do contrato, como no teor do Boletim de Inscrição, está identificada como “Amiga” e “pessoa próxima” da utente/cliente D..., até com a mesma residência (cf. ponto 4 do Boletim de inscrição e cabeçalho do contrato), mas nunca como sua familiar.
Pode dizer-se, sinteticamente, que são dois os requisitos essenciais para a formação de um contrato: o consenso (art.º 232º do Código Civil) e a adequação formal (art.ºs 220º a 223º do mesmo código). Acima de quaisquer elementos objetivos, o elemento fundamental a considerar é sempre constituído pela vontade dos contraentes.
Existe uma eficácia comum a todos os contratos que se consubstancia no princípio da força vinculativa ou da obrigatoriedade; significa que, uma vez celebrado, o contrato plenamente válido e eficaz, constitui lei imperativa entre as partes.
Almeida Costa[17] define ainda a regra da eficácia vinculativa através dos seguintes princípios:
- O da pontualidade, utilizando a lei a palavra “pontualmente” com o alcance de que o contrato deve ser executado ponto por ponto, quer dizer, em todas as suas cláusulas e não apenas no prazo estipulado[18]; e
- Os da irretratabilidade ou da irrevogabilidade dos vínculos contratuais e da intangibilidade do seu conteúdo, fundindo-se estes no que também se designa por princípio da estabilidade dos contratos.
Como refere Enzo Roppo, cada um “é absolutamente livre de comprometer-se ou não, mas, uma vez que se comprometa, fica ligado de modo irrevogável à palavra dada: pacta sunt servanda”[19], sendo certo que, é “nesta estrutura de confiança que se intercala o laço social instituído pelos contratos e pelos pactos de todos os tipos que conferem uma estrutura jurídica à troca das palavras dadas”, e que, o “facto de os pactos deverem ser observados é um princípio que constitui uma regra de reconhecimento que ultrapassa o face a face da promessa de pessoa a pessoa”[20].
Por isso, não teria sido necessário fazer constar, como as partes fizeram na parte inicial do contrato, que “Ambas as partes se reconhecem legitimamente competentes para assinar este contrato e assumir a obrigação de o cumprir”.
De forma algo incongruente ou, pelo menos, incoerente, fez-se constar do contrato, por forma pré-preenchida que a embargante atua “em nome e direito próprio e em representação do Utente acima indicado”, que passam apenas a ser “mencionados desde agora como Utente e/ou seu representante”, para, no final, estar assinado apenas pela embargante (e pelo Provedor da Santa Casa) na qualidade também pré-preenchida de “O Utente ou seu Representante/2º outorgante”. Isto é, a embargante, primeiramente referida como tendo agido também em nome próprio no contrato, passa depois a ser ali tratada apenas como representante da utente.
Agir em nome próprio, significa diretamente e no seu interesse pessoal do declarante, por si e para si próprio, sem intermediação, podendo constituir, modificar ou extinguir obrigações e direitos próprios no contrato em que intervém e subscreve. Mas, deverá então cumprir tudo aquilo a que se vinculou no contrato e não todas as obrigações que no contrato validamente se constituíram.
O interesse manifestado pela embargante no contrato de prestação de serviços e no Boletim de Inscrição subscritos a 16.9.2009 foi o de que a sua Amiga D... beneficiasse dos serviços da Santa Casa da Misericórdia C..., apresentando-a ali como uma pessoa de idade, com falta de autonomia física e psíquica para praticar os atos indispensáveis à satisfação das necessidades básicas da vida quotidiana (cf. ponto 11 do Boletim de Inscrição). Representou-a na inscrição no Lar da Santa Casa. Todavia, não sendo a utente nem sua familiar, em parte alguma do contrato se obrigou pessoalmente a pagar qualquer prestação a favor da embargada. Exigir-lhe, pessoal e diretamente, o pagamento da quantia exequenda, que o contrato impõe à utente e familiares, é exigir o cumprimento de uma obrigação alheia a que a embargante não está contratualmente obrigada, que ela não assumiu. O pagamento é, nos termos do contrato, uma obrigação exclusiva da utente e dos seus familiares.[21]
Qualquer declaratário normal, colocada na posição da embargada, ficaria convencido de que, não obstante tivesse intervindo no contrato, não sendo a utente nem um seu familiar, não teria que suportar os custos do serviço. É desde logo este o sentido da sua letra. É essa a senda da declaração negocial e dos elementos do Boletim de Inscrição aos olhos de uma pessoa medianamente esclarecida, não podendo relevar aqui, por se desconhecer a relação que desde então, verdadeiramente, se estabeleceu entre a exequente e a embargante, designadamente se esta pagou àquela alguma prestação da D... e, na afirmativa, porquê que pagou.
Com base nos elementos disponíveis, não é objetivamente razoável admitir que a B..., com os termos do contrato, houvesse de ficar convencida de que era sua obrigação suportar o custo dos serviços que iriam ser prestados à utente, tal como não é razoável admitir que, com assento nos mesmos elementos, aquele fosse o sentido da declaração que a própria exequente devesse considerar acessível à compreensão da embargante, pessoa amiga e próxima da utente (não sua familiar).
Mas, mais. Se a qualidade de Amiga da utente constante do Boletim de Inscrição e do Contrato corresponde, à evidência, a um registo particular do contrato, uma qualidade relacional que resultou da informação prestada pela embargante, quiçá, também pela utente, na formação do contrato, já a expressão referida à embargante “que actua em nome e direito próprio e em representação do Utente acima indicado”[22] integra o modelo contratual utilizado pela exequente, a parte não negociada a que a embargante supostamente aderiu ao subscrever o contrato.
Como assim, tem de ser interpretada, à semelhança dos outros escritos não negociados e integrantes da proposta para adesão, de acordo com os citadas art.ºs 10º e 11º do RJCCG, de onde ressalta que tais cláusulas têm o sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real e que, na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente, valendo o contexto de cada contrato singular em que estejam incluídas.
Deste modo, a fortoiri rationem, sempre deveria ser considera ambígua a referência à atuação em nome e direito próprio da B... com o sentido de assunção do pagamento da remuneração dos serviços prestados pela exequente, numa interpretação que sempre afastaria essa responsabilidade à embargada.
A recorrente defende que a embargante deveria ter demonstrado que que interveio no contrato na qualidade de mandatária ou procuradora da utente, porque não foi junta qualquer procuração, nem foi feita prova da ratificação do mandato.
Esta é uma questão trazida pela exequente apenas nesta sede de recurso, que não nos cumpre conhecer, por não ter sido suscitada nos articulados na ação.
Por regra, cabe ao tribunal de recurso apenas reapreciar as matérias anteriormente submetidas à apreciação do tribunal a quo, ficando por isso vedada a apreciação de questões novas que não sejam de conhecimento oficioso.
Não podem olvidar-se os princípios da concentração da defesa na contestação e da preclusão (art.º 573º, nº 1). Toda a defesa deve ser deduzida naquela peça processual, sendo proibida uma defesa por fases, a não ser que se trate de uma exceção superveniente ou de que o tribunal deva conhecer oficiosamente (nº 2 do mesmo dispositivo processual)[23].
Noutra perspetiva ainda, o objeto do recurso não se confunde com o objeto do litígio e, por regra, o recurso ordinário é recurso de revisão ou de reponderação da decisão recorrida. É um meio processual que visa reapreciar uma decisão proferida num certo quadro factual e não a obtenção de uma decisão sobre uma questão que ainda não havia sido suscitada e que não seja de conhecimento oficioso. Os recursos justificam-se para que um tribunal hierarquicamente superior reaprecie uma questão já vista pelo tribunal hierarquicamente inferior. Trata-se de uma reponderação de questões de facto ou de direito já conhecidas pelo tribunal a quo, assim se garantindo ao cidadão um duplo grau de apreciação jurisdicional.[24]
A jurisprudência tem repetido uniformemente e desde o início da vigência do Código de Processo Civil de 1939 que os recursos visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova.
Na contestação, afirmou-se que a embargante agiu em nome próprio, mas não se negou que tivesse agido também como representante da utente, nem se colocou a questão da validade da representação, agora suscitada.
A questão aqui em causa é nova, só agora colocada, e não é do conhecimento oficioso.
Sempre se dirá que a recorrente parece confundir as noções de representação e de mandato. Pode haver representação sem mandato, como sucede na representação voluntária, que não tem origem no mandato, mas num negócio unilateral: a procuração, que, por regra, reveste a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar[25] (art.º 262º do Código Civil). Enquanto o mandato pode ser apenas fonte de obrigações, a procuração não é fonte de obrigações, mas apenas fonte de poderes.[26]
Aliás, resulta do contrato que a D... esteve presente, agiu em nome próprio na sua feitura (e, simultaneamente, representada pela B...), tendo então a Santa Casa aceitado e feito consignar toda essa situação, com que se conformou na negociação.
No essencial e mais relevante, é-nos vedado conhecer desta questão.
A apelação deve ser julgada improcedente.
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil):
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V.
Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em julgar a apelação improcedente e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
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Sem custas da apelação, apesar do decaimento, por delas estar isenta a recorrente, Santa Casa da Misericórdia C... (art.º 4º, nº 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais).
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Porto, 24 de janeiro de 2019
Filipe Caroço
Judite Pires
Aristides Rodrigues de Almeida
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[1] Adiante designada também por Santa Casa.
[2] Por transcrição.
[3] Adiante também identificada por Santa Casa.
[4] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3ª ed., pág. 444.
[5] Código Civil Anotado, vol. I. 2.ª edição, pág. 207.
[6] Paulo Mota Pinto, Declaração Tácita e Comportamento Concludente, 1995, pág. 208. Ainda, Heinrich Ewald Horster, A Parte Geral do Código Civil Português - Teoria Geral do Direito Civil, 1992, pág. 511.
[7] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil", 3.ª ed., 450/1 e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Maio de 2001, Colectânea de Jurisprudência do Supremo, T. II, pág. 82.
[8] Estudos de Direito Civil e Processo Civil (Pareceres), Almedina, Coimbra, 1996, pág. 124.
[9] Teoria Geral do Direito Civil”, vol. II, pág. 344.
[10] Teoria Geral da Relação Jurídica”, II, pág. 213.
[11] Erro e Interpretação na Teoria do Negócio Jurídico”, pág. 201.
[12] O sublinhado é nosso.
[13] Neste sentido, Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, pág. 19, citando nomeadamente o acórdão da Relação do Porto de 5.6.2014, proc. 11586/10.1TBVNG.P1; Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, 2014, vol. I, pág.s 40 e seg.s; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 1.10.2015, proc. 903/11.7TBFND.C1.S1, in www.dgsi.pt; blogue do IPPC no seguinte “post”: “Causa de pedir; factos complementares; factos instrumentais”. No sentido (diverso) de que é necessário requerimento/iniciativa da parte de se aproveitar o facto novo complementar, Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3ª edição, Coimbra, pág. 166.
[14] Acórdão da Relação de Coimbra de 7.11.2017, proc. 1335/13.8TBCBR.C1, in www.dgsi.pt).
[15] O sublinhado é nosso.
[16] … e alterações subsequentes. Nesta noção, avultam três características essenciais na definição dos contratos de adesão em sentido estrito: a pré-disposição, a unilateralidade e a rigidez.
São contratos normalmente celebrados com base em cláusulas ou condições gerais previamente redigidas. Por isso, a aludida predisposição consiste, via de regra, na elaboração prévia de cláusulas que irão integrar o conteúdo de todos os contratos a celebrar no futuro ou, pelo menos, de certa categoria de contratos: trata-se, hoc sensu, de cláusulas contratuais gerais. A esta característica da generalidade anda associada uma outra, a indeterminação: as cláusulas são previamente redigidas para um número indeterminado de pessoas. O aderente limita-se a aceitar o texto que a outra parte contratual lhe oferece, sem qualquer possibilidade de alteração.
[17] Direito das Obrigações, Almedina 1979, pág. 232.
[18] Cf. também Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 2ª edição, 2.° vol., pág. 13.
[19] O Contrato, 1989, pág. 34.
[20] Paul Ricoeur, O Justo ou a Essência da Justiça, Instituto Piaget, 1997, pág. 32.
[21] Podendo discutir-se se estes são parte no contrato, não o tendo assinado, nem concedido poderes para o efeito e se podem ser por ele obrigados (mas esta é uma questão que nem sequer aqui podemos abordar, por estar fora do âmbito do recurso e até do litígio e do processo).
[22] Note-se que, não sendo escrita a negrito, até está no género masculino.
[23] A possibilidade de continuar a desenvolver essa defesa para além dessa fase, mas por factos anteriores, conduziria à invalidação do benefício trazido pela sentença à parte vencedora, quiçá, à destruição do caso julgado, criando as condições para a perturbação, ineficácia e invalidade persistente das decisões, sem estabilidade nem segurança no Direito.
[24] Na jurisprudência, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2007 e da Relação de Coimbra de 14.12.2006, cujo sumário se transcreve em Abílio Neto, Código de Processo Civil anot. 21º edição, pág. 1002.
[25] Esta declaração negocial é feita por uma das modalidades previstas no art.º 217º e, em princípio, sem necessidade de observância de forma legal (art.º 219º). Pode até ser concedida por via tácita. Só se o negócio a realizar pelo procurador estiver sujeito a forma é que também o ato de atribuição da procuração o estará (Heinrich Ewald Hörster, Aparte Geral do Código Civil Português, Almedina, 5ª reimpressão, pág. 484.
[26] Carlos Ferreira de Almeida, Contratos I, Almedina, 2013, 5ª edição, pág. 154.