Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
8861/07.6TDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: BURLA
CONDUTA NEGLIGENTE
Nº do Documento: RP201012028861/07.6TDPRT.P1
Data do Acordão: 12/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: O enriquecimento obtido pelo agente à custa dos sucessivos erros cometidos por falta de diligência e/ou má organização da entidade bancária lesada elide o crime de burla: não há erro nem engano quando o queixoso não procede com a diligência mínima que lhe é exigível no tráfego comercial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: (proc. n º 8861/07.6TDPRT.P1)
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Acordam, em conferência, os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:
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I- RELATÓRIO
Na 3ª Vara Criminal do Porto, no processo nº 8861/07.6TDPRT, foi proferido acórdão, em 7/4/2010 (fls. 331 a 337), constando do dispositivo o seguinte:
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este tribunal colectivo em julgar improcedente, nos termos sobreditos, a acusação deduzida pelo Ministério Público e, consequentemente, deliberam absolver o arguido da prática dos crimes de que se encontra acusado.
Sem custas na parte crime por delas estar isento o Ministério Público.”
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Inconformada com esse acórdão, na parte em que absolveu o arguido B……… do crime de burla p. e p. nos arts. 217º e 218º do Código Penal de que vinha acusado, a assistente C………. – Companhia de Seguros de Vida, SA, interpôs recurso (fls. 341 a 346), apresentando as seguintes conclusões:
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O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso (fls. 349 a 353), concluindo pela manutenção do acórdão recorrido.
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Nesta Relação, no seu parecer (fls. 368 a 371), o Sr. Procurador-Geral Adjunto concordou com a resposta do Ministério Público na 1ª instância, concluindo pelo não provimento do recurso.
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Foi cumprido o disposto no art. 417 nº 2 do CPP.
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Colhidos os vistos legais realizou-se a conferência.
Cumpre, assim, apreciar e decidir.
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No acórdão sob recurso foram considerados provados os seguintes factos:
1- A B……….l, Companhia de Seguros de Vida, S.A, é uma sociedade comercial, sendo que, no âmbito da sua actividade celebrou com D………., dois contratos ………., titulados pelas apólices n°s ….40 e ….38;
2- Tais contratos diziam respeito a títulos de capitalização ao portador, com o capital garantido de cada título de esc. 300.000 $00 (€ 1500,00), pelo prazo de 8 anos, com a taxa de juro garantida de 3% sobre a prestação líquida de encargos;
3- A apólice n.° ….40 correspondia aos títulos n.°s ….51 a ….60 que se venciam em 29 de Junho de 2007;
4- A apólice n° ….38 correspondia aos títulos ….36 a ….45, cujo vencimento se verificava em 5 de Julho de 2007;
5- Em 20 de Maio de 2004, a titular das apólices comunicou à ofendida C……… a cessão dos seus direitos em partes iguais, a favor dos seus sobrinhos, E………. e de B………., este último com o n.° de contribuinte fiscal ……… e com o n.° de Bilhete de Identidade …….. e residente na Rua ………., na cidade do Porto;
6- As apólices n°s ……74 e ……75, resultaram do desdobramento das apólices iniciais com os n°s ….40 e ….38 solicitado pela segurada D……….;
7- Á apólice n° ……74 passaram a corresponder os títulos n°s ….56 a ….60 e à apólice n.° ……75 passaram a corresponder os títulos n°s ….41 a ….45, todos eles anteriormente compreendidos nas apólices n°s ….40 e ….38;
8- No entanto, por lapso dos serviços da ofendida, a gravação informática desta cessão ficou registada em nome do aqui arguido, B………., residente nas Rua ………, n.° .., .o esquerdo, na cidade do Porto.
7[1] - Ora, essa transferência de direitos, foi comunicada pela Companhia de Seguros C…….., aos cessionários, E………. e B………., sendo que, em relação a este último a carta de comunicação não foi enviada para a residência do mesmo, mas sim para a residência do arguido;
8- O arguido, quando recebeu tal carta de comunicação, sabia que a mesma só por lapso a si foi dirigida;
9- Apesar disso, em 27 de Junho de 2005, o arguido aproveitando o facto de ter o mesmo nome de um dos cessionários, dirigiu-se ao balcão do Porto, da companhia de seguros C………., e requereu o resgate antecipado de todos os títulos das suas apólices n.° ……74 e ……75;
10- Em 28 de Junho de 2005, o arguido com a intenção de levantar as quantias monetárias correspondentes aos títulos que alegava serem de sua propriedade, enviou um fax á ofendida, onde consignava que os títulos n° ….41 e ….46 da apólice n° ……75 e N.º….56 A ….60 da apólice nº ……74, não poderiam ser devolvidos em virtude de terem sido destruídos num incêndio de viatura automóvel;
11- Ora, o teor de tal documento não correspondia à verdade, o que era do conhecimento do arguido que nunca teve na sua posse os títulos das apólices;
12- Ora, a ofendida "C……….", não se apercebendo da situação, em 11 de Julho de 2005, efectuou o pagamento ao arguido, que se identificou com o seu nome, bilhete de identidade, n.° de contribuinte e residência, os capitais e juros garantidos, nos montantes de € 7.877,40 quanto aos títulos n°s ….56 a ….60 e de € 7.870,05 quanto aos títulos n°s ….41 a ….45;
13- Os pagamentos deveriam ter sido feitos contra a entrega dos originais dos títulos;
14- No entanto, como o arguido não tinha em seu poder os originais dos títulos, alegou falsamente " terem sido destruídos num incêndio de viatura automóvel";
15- O arguido ao receber as quantias monetárias correspondentes aos títulos, apesar de saber não ser o verdadeiro titular dos mesmos, causou um prejuízo à ofendida no montante de € 15.747,45;
16- A ofendida C………. efectuou o pagamento ao arguido na convicção de que este tinha sobre si um crédito resultante da titularidade de um determinado produto financeiro titulado pela mesma;
17- A intenção do arguido era obter benefício patrimonial em prejuízo da ofendida, logrando concretizar o seu propósito;
18- O arguido agiu de forma deliberada e livre, com consciência da censurabilidade da sua conduta;
19- O arguido não tem antecedentes criminais;
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II- FUNDAMENTAÇÃO
O objecto do recurso é demarcado pelo teor das suas conclusões (art. 412 nº 1 do CPP).
Neste caso, como acima já foi dito, a assistente conformou-se com a decisão na parte em que absolveu o arguido do crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n. º 1, al. d), do Código Penal, que lhe era imputado.
Recorre apenas invocando erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito, por entender que se impunha (em vez da absolvição) a condenação do arguido como autor de um crime de burla qualificado, p. e p. pelos artigos 217º e 218º, nº 1, do C. Penal, tal como estava acusado.
Argumenta que o arguido, bem sabendo que não tinha direito ao recebimento do montante correspondente aos títulos em questão (tendo plena consciência de que não era seu titular) e que não lhe era possível apresentar os títulos originais (o que era condição para exercer o direito de resgate) arquitectou um plano que passava pela alegação, que sabia ser falsa, de que os títulos tinham sido destruídos num incêndio no seu automóvel (nessa medida executando um comportamento activo - e não meramente passivo - para contornar a exigência da apresentação dos títulos originais), assim conseguindo determinar a assistente a entregar-lhe as respectivas quantias monetárias, com o seu consequente prejuízo.
Acrescenta que o erro da assistente não consistiu apenas na troca de identidade do titular dos títulos, mas igualmente em o arguido lhe ter apresentada uma justificação que a convenceu de que estavam preenchidos os requisitos para exercer o direito ao resgate, mesmo antes do vencimento dos mesmos títulos e, portanto, em ter cometido o crime de burla por acção, não sendo a sua atitude meramente passiva.
Assim, incumbe a este Tribunal da Relação apurar se os factos dados como provados integram ou não o alegado crime de burla pretendido pela recorrente.
Passemos então a apreciar o recurso aqui em apreço.
Quanto ao crime de burla dispõe o art. 217 nº1 do CP, na versão vigente à data dos factos que, nesse aspecto, não sofreu alterações com a revisão aprovada pela Lei nº 59/2007[2], de 4/9:
Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
Segundo o art. 218 nº 1 (burla qualificada) do mesmo código na versão vigente à data dos factos, que igualmente não sofreu alterações com a revisão aprovada pela Lei nº 59/2007, de 4/9:
Quem praticar o facto previsto no nº1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
A distinção entre os conceitos de ""valor diminuto", "valor elevado" e "valor consideravelmente elevado" é feita com recurso a critérios objectivos (cf. art. 202-a), b) e c) do CP revisto).
Em 2005, “valor elevado” era o o que fosse superior a € 4.450,00 até € 17.800,00 - cf. art. 202-a) e b) do CP revisto.
São pressupostos típicos do crime de burla qualificado previsto nos arts. 217 nº 1 e 218 nº 1 do CP:
1º - a obtenção para o agente ou terceiro de um enriquecimento ilegítimo;
2º - que o agente, para obtenção de um enriquecimento ilegítimo, astuciosamente induza em erro ou engane outrem;
3º - que através desses meios, determine outrem à prática de actos causadores de prejuízos patrimoniais;
4º- que o valor do prejuízo patrimonial causado seja “elevado” (art. 218 nº 1 do CP).
Traduz-se, assim, este crime numa forma de subtracção do património alheio, distinguindo-se do furto porque a coisa, objecto do crime, transita para o agente por entrega voluntária do proprietário ou detentor.
Essa passagem da coisa do poder do proprietário ou detentor para o poder de outrem é conseguida por meio de fraude do burlão.
Como ensina Cavaleiro de Ferreira[3] "o uso ou emprego de meio típico de burla tem de ser idóneo para induzir em erro, ou, mais claramente, toda a acção típica na burla é indução em erro mediante o uso ou emprego de determinados meios; estes meios são o fio condutor do engano".
«É preciso que essa conduta enganatória seja causa determinante do erro de outrem, erro que, por sua vez, deve ser causa da "entrega" de disposição do património»[4].
Tem, pois, de existir uma relação directa entre o engano ou erro produzido e os actos que directamente vão defraudar o património do burlado ou do terceiro lesado[5].
A propósito da “configuração material que o crime de burla pode assumir”, refere A. M. Almeida Costa[6] que se distinguem “3 modalidades: a primeira ocorre quando o agente provoca o erro de outrem descrevendo-lhe, por palavras ou declarações expressas (sob a forma oral ou escrita), uma falsa representação da realidade; a segunda observa-se na hipótese de o erro ser ocasionado, não expressis verbis, mas através de actos concludentes, isto é, de condutas que não consubstanciam, em si mesmas, qualquer declaração, mas, a um critério objectivo – a saber, de acordo com as regras de experiência e os parâmetros ético-sociais vigentes no sector da actividade, se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto passado, presente ou futuro; em terceiro lugar, refere-se a burla por omissão[7]: ao contrário do que sucede nas situações anteriores, o agente não provoca, agora, o engano do sujeito passivo, limitando-se a aproveitar o estado de erro em que ele já se encontra”. Nesta última hipótese (“burla por omissão”), o sancionamento criminal deve ser limitado «aos casos em que o agente se encontra investido num “dever de garante” pela não verificação do resultado»[8].
Paulo Pinto de Albuquerque[9], a propósito da conduta enganosa e astuciosa (consistindo o engano ou erro “na provocação de uma falsa representação da realidade”), assinala que são actos concludentes do engano “aqueles que têm um sentido social inequívoco, que não corresponde à vontade do agente do crime, mas que ele aproveita para enganar o burlado”, acrescentando mais à frente que “não há erro nem engano quando o queixoso não procede com a diligência mínima que lhe é exigível no tráfego comercial”, apontando como “regra para a delimitação do dever de diligência”, a seguinte: “o dever de diligência é tanto maior quanto maior for o poder económico da vítima, como sucede no caso dos bancos, seguradoras ou outras grandes instituições financeiras e comerciais.”
Sobre o nexo de causalidade entre “a conduta enganosa e astúcia do agente”, a “prática de certo actos pelo burlado” e a circunstância de esses actos do burlado deverem “ser causa adequada da verificação do prejuízo patrimonial do ofendido”, refere o mesmo Autor que terá de verificar-se “um duplo nexo de causalidade” (…), “também identificado como um triplo nexo de causalidade entre a conduta astuciosa e o engano, entre o engano e o cometimento de actos pelo burlado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial do ofendido” (citando aqui a opinião de Fernanda Palma e Rui Pereira, 1994: 323 e 324), “ou mesmo como um quádruplo nexo de causalidade entre a conduta astuciosa e o engano, entre o engano e a alteração da capacidade volitiva do burlado, entre esta alteração da vontade do burlado e o cometimento de actos pelo burlado e entre estes actos e o prejuízo patrimonial do ofendido (segundo António Barreiros, 1996: 176)”.
Feitas estas breves considerações teóricas, vejamos o que sucede no caso dos autos, sendo certo que, não se verificando qualquer dos vícios aludidos no art. 410 nº 2 do CPP e não ocorrendo qualquer nulidade de conhecimento oficioso, está definitivamente fixada a decisão sobre a matéria de facto, acima transcrita, a qual se mostra devidamente sustentada e fundamentada.
Invoca a recorrente que o crime de burla em questão foi cometido por acção, através da prática de actos que a induziram em erro.
Tal como configura o recurso, afasta a possibilidade de o mesmo crime ter sido cometido por omissão, de acordo, aliás, com a posição sustentada pela 1ª instância que, apesar de aderir à tese da possibilidade do cometimento do crime de burla por omissão, considerou não se verificarem os respectivos pressupostos uma vez que “o arguido não estava investido de um dever de garante, não incidindo sobre ele um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar o resultado” (aqui se remetendo para o que se fez constar da fundamentação de direito do acórdão recorrido).
Não está, por isso, aqui em causa a discussão teórica sobre a possibilidade do crime de burla poder ser ou não cometido por omissão.
Daí que, esta Relação não tenha que tomar posição sobre essa matéria, sendo certo que, mesmo para quem defende que o crime de burla pode ser cometido por omissão, neste caso concreto, não se verificavam os respectivos pressupostos desde logo porque sobre o arguido não recaía qualquer dever jurídico que pessoalmente o obrigasse a evitar o resultado (artigo 10º, nº 2, do Código Penal).
Para sustentar a sua tese do crime de burla em questão ter sido cometido por acção invoca a recorrente os factos dados como provados nos pontos nº 8 (repetido que corresponderia ao nº 10, com o seguinte teor: O arguido, quando recebeu tal carta de comunicação, sabia que a mesma só por lapso a si foi dirigida;), nº 10 (que corresponderia ao nº 12, com o seguinte teor: Em 28 de Junho de 2005, o arguido com a intenção de levantar as quantias monetárias correspondentes aos títulos que alegava serem de sua propriedade, enviou um fax á ofendida, onde consignava que os títulos n° ….41 e ….46 da apólice n° ……75 e N.º….56 A ….60 da apólice nº ……74, não poderiam ser devolvidos em virtude de terem sido destruídos num incêndio de viatura automóvel;), nº 11 (que corresponderia ao nº 13, com o seguinte teor: Ora, o teor de tal documento não correspondia à verdade, o que era do conhecimento do arguido que nunca teve na sua posse os títulos das apólices;), nº 14 (que corresponderia ao nº 16, com o seguinte teor: No entanto, como o arguido não tinha em seu poder os originais dos títulos, alegou falsamente "terem sido destruídos num incêndio de viatura automóvel";), nº 15 (que corresponderia ao nº 17, com o seguinte teor: O arguido ao receber as quantias monetárias correspondentes aos títulos, apesar de saber não ser o verdadeiro titular dos mesmos, causou um prejuízo à ofendida no montante de € 15.747,45;) e nº 18 (que corresponderia ao nº 20, com o seguinte teor: O arguido agiu de forma deliberada e livre, com consciência da censurabilidade da sua conduta;), esquecendo-se, porém, de os articular com os demais factos dados como provados, sendo de especial interesse para a decisão da questão colocada (entre outros) os pontos nº 8 (devidamente numerado, cujo teor é o seguinte: No entanto, por lapso dos serviços da ofendida, a gravação informática desta cessão ficou registada em nome do aqui arguido, B………, residente nas Rua ………, n.° .., .o esquerdo, na cidade do Porto.), nº 7 repetido (que corresponderia ao nº 9, com o seguinte teor: Ora, essa transferência de direitos, foi comunicada pela Companhia de Seguros C…….., aos cessionários, E…….. e B…….., sendo que, em relação a este último a carta de comunicação não foi enviada para a residência do mesmo, mas sim para a residência do arguido;), nº 9 (que corresponderia ao nº 11, com o seguinte teor: Apesar disso, em 27 de Junho de 2005, o arguido aproveitando o facto de ter o mesmo nome de um dos cessionários, dirigiu-se ao balcão do Porto, da companhia de seguros C…….., e requereu o resgate antecipado de todos os títulos das suas apólices n.° ……74 e ……75;), nº12 (que corresponderia ao nº 14, com o seguinte teor: Ora, a ofendida "C………", não se apercebendo da situação, em 11 de Julho de 2005, efectuou o pagamento ao arguido, que se identificou com o seu nome, bilhete de identidade, n.° de contribuinte e residência, os capitais e juros garantidos, nos montantes de € 7.877,40 quanto aos títulos n°s ….56 a ….60 e de € 7.870,05 quanto aos títulos n°s ….41 a ….45;), nº 13 (que corresponderia ao nº 15, com o seguinte teor: Os pagamentos deveriam ter sido feitos contra a entrega dos originais dos títulos;) e nº16 (correspondente ao nº 18, com o seguinte teor: A ofendida C…….. efectuou o pagamento ao arguido na convicção de que este tinha sobre si um crédito resultante da titularidade de um determinado produto financeiro titulado pela mesma;).
O que resulta do conjunto dos factos provados é que o arguido, em 11.7.2005, obteve um enriquecimento seu causa (no valor total de € 15.747,45) à custa de cinco sucessivos erros cometidos pela falta de diligência (e eventualmente má organização) dos serviços da assistente C………. Portugal, Companhia de Seguros, SA (que é uma companhia de seguros notoriamente conhecida), a saber:
1. Por lapso dos serviços da ofendida/assistente, esta fez a gravação informática da cessão de direitos aludida nos pontos 1 a 7 provados, no que se refere ao sobrinho da segurada D………., com o nome de B………, com o n.° de contribuinte fiscal ……… e com o n.° de Bilhete de Identidade …….. e residente na Rua ………., na cidade do Porto, em nome do aqui arguido B………., residente na Rua ………., nº .., .º esquerdo, Porto, sendo que essa transferência de direitos foi comunicada pela assistente aos cessionários, mas a carta dirigida ao B……… foi enviada para a residência do arguido (que tendo o mesmo nome do verdadeiro cessionário, todavia, tem residência, número de contribuinte e número de bilhete de identidade diferentes dos do sobrinho daquela segurada);
2. Apesar do arguido, em 27.6.2005, se ter dirigido ao balcão do Porto, da assistente, requerendo o resgate antecipado de todos os títulos das suas apólices n.° ……74 e ……75, como decorre dos factos provados, a assistente nem sequer teve o cuidado de, perante esse requerimento, conferir o número de bilhete de identidade e o número de identificação fiscal, para verificar se correspondiam ao do verdadeiro cessionário;
3. Tendo recebido o fax enviado pelo arguido em 28.6.2005, a assistente nem sequer detectou que um dos títulos estava identificado com um número errado (no fax fez-se referência a 4 títulos, entre eles o nº ….46, quando o verdadeiro e correspondente título teria antes o nº ….45) e que os números de bilhete de identidade e de identificação fiscal indicados não correspondiam aos do verdadeiro cessionário;
4. Resulta dos factos dados como provados que, a assistente agindo sem um mínimo de diligência não se apercebeu da situação e convenceu-se erradamente (desde logo por nem ter tido o cuidado de conferir ao menos o número de bilhete de identidade e número de identificação fiscal do arguido, que eram diferentes do verdadeiro cessionário, o mesmo sucedendo com a residência que era diversa) que o arguido tinha sobre si um crédito resultante da titularidade de um determinado produto financeiro titulado pelo mesmo (o que mostra bem a incúria e mau funcionamento dos serviços da assistente naquela altura, a qual deveria ter de imediato detectado o erro);
5. Em 11.7.2005 a assistente efectuou o pagamento ao arguido, que se identificou com o seu nome, bilhete de identidade, nº de contribuinte e residência (os quais não correspondiam aos do verdadeiro cessionário, mas que a assistente nem teve o cuidado de conferir como lhe incumbia, tanto mais que os pagamentos deveriam ter sido feitos contra a entrega dos originais dos títulos, o que não fora feito pelo arguido, com o pretexto de terem sido destruídos em incêndio de viatura automóvel), dos títulos com os nºs ….56 a ….60 e n°s ….41 a ….45, sendo que este último até era diferente do nº ….46 indicado no fax enviado pelo arguido em 28.6.2005.
Obviamente que o arguido, de forma censurável, se foi aproveitando dos sucessivos erros da assistente, os quais apenas se podem compreender por a mesma não ter agido com um mínimo de diligência, tal como era de esperar e lhe era exigível.
Determinante da entrega do dinheiro ao arguido, como bem diz o Sr. PGA, foi o lapso da assistente decorrente do errado registo da cessão dos direitos sobre os títulos – erro esse “não astuciosamente provocado pelo arguido, de que este se aproveitou de forma reprovável, mas não penalmente censurável”.
Tendo o arguido se identificado com o seu nome, número de bilhete de identidade e com o seu número de identificação fiscal, quer quando se apresentou ao balcão a resgatar os títulos, quer quando enviou o fax (cf. fls. 11 e 14, que se incluem dentro dos indicados na fundamentação do acórdão sob recurso), o factor determinante da entrega das quantias relativas aos títulos em questão foi a circunstância da assistente, por lapso dos seus serviços, ter registado os mesmos títulos em nome do arguido (em vez de ser em nome do verdadeiro cessionário, que sabia ter nº de bilhete de identidade, nº de identificação fiscal e residência diferente, tal como lhe fora indicado pela sua segurada D……….) e de nem sequer ter tido o cuidado de conferir o seu número de bilhete de identidade e de identificação fiscal.
Mesmo o facto falso, comunicado pelo arguido, relativo à destruição dos títulos cujo resgate havia requerido à assistente, não era determinante da entrega das quantias neles tituladas, pois, como bem diz o Sr. PGA, resulta dos factos provados que “os pagamentos deveriam ter sido feitos contra a entrega dos originais dos títulos.”
Com efeito, não bastava escrever num fax que não podia devolver os originais dos títulos (o que era verdade), por terem sido destruídos num incêndio (o que o arguido sabia ser falso porque nunca teve na sua posse os títulos em questão), para a assistente os pagar.
Perante o teor do requerimento a pedir o resgate e o teor do fax do arguido (sendo este apenas verdadeiro quanto ao facto do arguido não dispor dos títulos em questão), sem averiguar e esclarecer o alegado pelo arguido (o que era fácil de fazer, bastando para tanto consultar o seu número de bilhete de identidade e o seu número de identificação fiscal, que não correspondiam aos do verdadeiro cessionário, que lhe haviam sido comunicados pela segurada D………) como lhe incumbia (já que os pagamentos deveriam ser feitos contra a entrega dos originais dos títulos e, assim sendo, não sendo estes apresentados - como não foram - deveria a assistente ter tido o cuidado mínimo, antes de pagar indevidamente, de averiguar sobre a veracidade do motivo do seu extravio, sendo básico conferir previamente a identificação, ao menos com o número de bilhete de identidade, do requerente do pedido de resgate), só se pode concluir que foi a assistente que decidiu pagar-lhe os montantes a que se referiam aqueles títulos (e, portanto, nem sequer se pode considerar, como pretende a recorrente, que teria sido a conduta enganatória do arguido que fora causa determinante do erro da assistente quando pagou).
O fax enviado pelo arguido à assistente a comunicar que não podia devolver os títulos por terem sido destruídos no incêndio do automóvel (o que o arguido sabia não corresponder à verdade porque nunca teve na sua posse os ditos títulos) não era sequer meio idóneo para convencer a recorrente/companhia de seguros de que era ele o proprietário dos títulos em questão, por virtude da dita cessão de direitos da segurada D………..
Ou seja, a referida conduta do arguido não era apta a enganar a assistente, determinando-a a que lhe pagasse o valor dos títulos em questão (o que era evidente por serem diferentes os bilhetes de identidade e número de identificação fiscal entre o arguido e o verdadeiro cessionário).
De qualquer modo, como diria Paulo Pinto de Albuquerque, neste caso sempre seria de considerar que nem havia erro nem engano provocado pelo arguido uma vez que a assistente/companhia de seguros não procedeu «com a diligência mínima que lhe é exigível no tráfego comercial”» (desde logo porque nem sequer teve o cuidado mínimo, antes de pagar indevidamente, de conferir previamente a identificação, ao menos com o número de bilhete de identidade, do arguido, quer quando este requereu o pedido de resgate, quer quando enviou o fax a dizer que não tinha os originais dos títulos em questão, por alegadamente se terem extraviado no incêndio que falsamente invocou como motivo da sua destruição).
E, inexistindo erro, também não existe nexo de causalidade entre a conduta do arguido (que nem sequer pode ser considerada astuciosa porque era facilmente verificável pelo seu nº de bilhete de identidade e nº de identificação fiscal, apesar da coincidência do seu nome com o do beneficiário que, como a assistente sabia, por tais dados lhe terem sido fornecidos pela sua segurada D………., tinha bilhete de identidade e de identificação fiscal diferentes) e os actos praticados pela assistente/recorrente (quando resolveu pagar os montantes em questão ao arguido, apesar deste bem saber que não lhe eram devidos).
O erro da recorrente, de nem sequer ter conferido o bilhete de identidade e o número de identificação fiscal do arguido, quer quando este fez o pedido de resgate, quer quando enviou o fax com conteúdo em parte falso, não pode ser imputado ao arguido (mas antes à própria negligência ou falta de cuidado mínimo da assistente).
Por isso, também, a falsa informação prestada pelo arguido no fax (sobre a destruição dos títulos em incêndio de veículo automóvel) não pode ser considerada como causal dos actos da recorrente quando decidiu pagar indevidamente os montantes em questão de que aquele se locupletou, sem causa justificativa (artigo 473 do CC).
Assim, se é certo que a conduta do arguido foi errada e é reprovável, a mesma apenas pode ser censurada civilmente (por enriquecimento sem causa), como o foi, e já não no domínio penal (por não se verificarem todos os pressupostos do crime de burla que lhe era imputado).
Isto significa que o afastamento dos pressupostos em que assenta a responsabilidade penal, não interfere com a existência de pressupostos que consubstanciam a responsabilidade civil do arguido (tendo sido o arguido já condenado no foro cível).
De resto, não se pode confundir a responsabilidade civil do arguido com os pressupostos acima indicados do crime de burla que também lhe foi imputado.
Assim, sem necessidade de mais dilatadas considerações, conclui-se pela improcedência do recurso, confirmando-se a decisão sob recurso, a qual não violou as normas legais invocadas pela recorrente.
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III- DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes desta Relação, em negar provimento ao recurso interposto pela C………. – Companhia de Seguros de Vida, SA e, consequentemente, confirmar o acórdão proferido nestes autos.
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A recorrente vai condenada em 4 UCs de taxa de justiça.
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(Processado em computador e revisto pela 1ª signatária. O verso das folhas encontra-se em branco – art. 94 nº 2 do CPP).
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Porto, 2/12/2010
Maria do Carmo Saraiva de Menezes da Silva Dias
Luís Augusto Teixeira

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[1] Anote-se que há lapso na numeração dos factos dados como provados a partir deste segundo e repetido ponto nº 7 que corresponderia ao nº 9, com as consequentes alterações na numeração dos pontos seguintes.
[2] Ver, ainda, a Declaração de Rectificação nº 102/2007 de 31/10.
[3] Cavaleiro de Ferreira, in parecer publicado na S.J., XIX, 1970, 301 ss.
[4] Ibidem.
[5] Lopes de Almeida, A. C. Lopes do Rego, Guilherme da Fonseca, J. Marques Borges e M. Varges Gomes, Crimes contra o património em geral (notas ao CP, artigos 313 a 333), Rei dos Livros, Lisboa, 1983, p. 12 ss.
[6] A. M. Almeida Costa, em “anotação ao art. 217 (burla), in Figueiredo Dias, Jorge (dir.), Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 301.
[7] Sobre a admissibilidade ou não da burla por omissão, ver considerações feitas por A. M. Almeida Costa, ob. cit., p. 306-309.
[8] Por sua vez, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2008, p. 601, defende que o crime de burla não pode ser cometido por omissão não só pela sua nova formulação na versão do Código Penal de 1982 (quando suprimiu a palavra “aproveitou” do tipo legal previsto no Projecto de Eduardo Correia), como por se tratar de um crime de execução vinculada, “a invocação de um dever de garante está afastada nos termos da parte final do artigo 10º, nº 1” do mesmo código, concluindo que não é burla “a mera omissão baseada no aproveitamento astucioso do engano por parte do arguido”.
[9] Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., pp. 599 e 600.