Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
255/12.8TBSTS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE SEABRA
Descritores: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
VIGILÂNCIA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
DEVERES ACESSÓRIOS DE CONDUTA
CONTRATO DE SEGURO MULTIRRISCOS HABITAÇÃO
ACÇÃO SUB-ROGATÓRIA
JUROS MORATÓRIOS
CONTAGEM
Nº do Documento: RP20171127255/12.8TBSTS.P1
Data do Acordão: 11/27/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 663, FLS 138-172)
Área Temática: .
Sumário: I - A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter sempre que se mostre apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
II - De acordo com a teoria da causalidade adequada para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano é necessário que, em abstracto, isto é segundo as regras da experiência e do curso normal das coisas, o facto seja apto a produzir o dano.
III - A inactivação de um sistema de alarme e vigilância remota de um determinado edifício é, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, apta a causar um assalto não detectado a esse edifício e a consentir, assim, aos assaltantes a apropriação dos bens ali existentes.
IV - Deveres acessórios de conduta, são os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à correcta realização da prestação principal, interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas.
V - Não constitui violação de tais deveres acessórios de conduta, o facto de o cliente da empresa de segurança não ter comunicado a esta última a sua ausência em férias, não ter promovido a vigilância física do edifício onde veio a ocorrer o assalto ou, ainda, não ter revelado a esta os bens móveis que ali mantinha num cofre-forte, quando a obrigação principal da empresa de segurança é precisamente manter activado, na ausência do cliente, um sistema de vigilância e detecção de intrusão de estranhos no edifício e foi a desactivação negligente desse sistema que deu causa à intrusão não detectada e subsequente assalto.
VI - A mera circunstância de ser controvertido o valor da obrigação – por força de desacordo ou divergência relativamente à verificação ou interpretação de determinados factos ou circunstâncias – não é bastante para conferir à obrigação um carácter ilíquido.
VII - Se a indefinição do valor da obrigação resultar apenas da circunstância de as partes não estarem de acordo quanto à existência do crédito e do seu montante pecuniário, quantitativamente definido na petição inicial pelo credor, não estamos perante uma obrigação ilíquida, ainda que os factos atinentes ao apuramento do crédito e do seu montante careçam, não só de ulterior instrução e prova, mas ainda de oportuno pronunciamento e fixação na sentença a proferir.
VIII - Em tais circunstâncias, os juros de mora serão devidos a partir da citação do devedor e não apenas a partir da data da sentença.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 255/12.8TBSTS.P1 - Apelação
Origem: Póvoa do Varzim – Juízo Central Cível da Póvoa Varzim – J2
Relator: Des. Jorge Seabra
1º Adjunto Des. Maria de Fátima Andrade
2º Adjunto Des. Oliveira Abreu
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Sumário:
I. A reapreciação da prova pela Relação tem a mesma amplitude dos poderes da 1.ª instância e visa garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, sendo de manter sempre que se mostre apreciada em conformidade com os princípios e as regras do direito probatório.
II. De acordo com a teoria da causalidade adequada para que exista nexo de causalidade entre o facto e o dano é necessário que, em abstracto, isto é segundo as regras da experiência e do curso normal das coisas, o facto seja apto a produzir o dano.
III. A inactivação de um sistema de alarme e vigilância remota de um determinado edifício é, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, apta a causar um assalto não detectado a esse edifício e a consentir, assim, aos assaltantes a apropriação dos bens ali existentes.
IV. Deveres acessórios de conduta, são os que, não respeitando directamente, nem à perfeição, nem à correcta realização da prestação principal, interessam todavia ao regular desenvolvimento da relação obrigacional, nos termos em que ela deve processar-se entre os contraentes que agem honestamente e de boa-fé nas suas relações recíprocas.
V. Não constitui violação de tais deveres acessórios de conduta, o facto de o cliente da empresa de segurança não ter comunicado a esta última a sua ausência em férias, não ter promovido a vigilância física do edifício onde veio a ocorrer o assalto ou, ainda, não ter revelado a esta os bens móveis que ali mantinha num cofre-forte, quando a obrigação principal da empresa de segurança é precisamente manter activado, na ausência do cliente, um sistema de vigilância e detecção de intrusão de estranhos no edifício e foi a desactivação negligente desse sistema que deu causa à intrusão não detectada e subsequente assalto.
VI. A mera circunstância de ser controvertido o valor da obrigação – por força de desacordo ou divergência relativamente à verificação ou interpretação de determinados factos ou circunstâncias – não é bastante para conferir à obrigação um carácter ilíquido.
VII. Se a indefinição do valor da obrigação resultar apenas da circunstância de as partes não estarem de acordo quanto à existência do crédito e do seu montante pecuniário, quantitativamente definido na petição inicial pelo credor, não estamos perante uma obrigação ilíquida, ainda que os factos atinentes ao apuramento do crédito e do seu montante careçam, não só de ulterior instrução e prova, mas ainda de oportuno pronunciamento e fixação na sentença a proferir.
VIII. Em tais circunstâncias, os juros de mora serão devidos a partir da citação do devedor e não apenas a partir da data da sentença.
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO:
1. B... – Companhia de Seguros, S.A. veio propor a presente acção declarativa, com processo ordinário, contra C... – Companhia de Seguros, S.A., pedindo a condenação desta a pagar-lhe € 193.304,55, acrescidos de juros vencidos, cifrados em €5.386,03, e juros vincendos contados à taxa legal, desde a citação até integral cumprimento.
Para tanto alegou ter indemnizado D... e E... pela reparação de danos causados na sua habitação e pelo valor de diversos bens que lhes foram subtraídos por furto com arrombamento ocorrido na sua residência, em cumprimento de um contrato de seguro celebrado com estes.
Os segurados tinham celebrado com “F..., S.A. “, actualmente denominada “G..., S.A. “, um contrato de prestação de serviços de segurança e vigilância à sua habitação, nomeadamente para monitorização do sistema de alarme. Tal sociedade incumpriu tal contrato, o que foi causa do furto ocorrido e dos consequentes prejuízos.
A ré assumiu a responsabilidade contratual de “G...“ assim configurada mediante contrato de seguro.

2. Contestou a ré excepcionando culpa dos lesados na ocorrência do furto e ainda a redução equitativa da indemnização peticionada. No mais, impugnou diversa factualidade e conclusões de direito e concluiu pela improcedência da acção.

3. Replicou a autora, impugnando as excepções deduzidas.

4. Foi determinada a apensação aos presentes, para julgamento conjunto, do autos de acção declarativa com processo ordinário que corriam termos sob o n.º 275/12.2TBSTS, ora em apenso com o n.º 255/12.8TBSTS-A.
5. Foi realizada audiência prévia, proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.

6. Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância de todas as formalidades legais, sendo proferida sentença que julgou parcialmente procedente a causa e condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 193.304,55, acrescidos de juros vincendos contados desde a data da sentença, à taxa legal para obrigações civis, até integral pagamento.
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7. Inconformada com o decidido, veio a ré interpor recurso, deduzindo as seguintes
CONCLUSÕES
1ª. Pelas razões referidas nos pontos 4.1 a 4.4 desta alegação, aqui dadas como reproduzidas, deve eliminar-se a matéria do item d) da matéria de facto dada como provada (de que No dia 29 de Dezembro de 2009 desconhecidos…) e substituir-se por outra em que se diga simplesmente que “Em data desconhecida entre 22 (ou 24) e 29 de Dezembro de 2009, desconhecidos… e daí retiraram e levaram consigo objectos de ouro e prata e relógios diversos”;
2ª. Pelas razões referidas nos mesmos pontos desta alegação, em especial nos seus ponto 4.4 e 5.6, aqui dadas como reproduzidas, deve ser alterada a alínea f) da matéria dada como provada, no sentido de que “ tais desconhecidos retiraram e levaram consigo objectos de ouro, prata, jóias e relógios no valor global apurado de 213.302,49€ (fls. 537 do vol. III)”.
3ª. Os depoimentos testemunhais invocados na douta sentença (supra referidos em 4-C-a-bc) são inócuos, porquanto as pessoas referidas nem sequer conheciam a caixa forte e os objectos porventura nela guardados na data do alegado furto, sabendo apenas que os autores tinham muitos objectos de ouro, relógios e jóias que guardavam em dois cofres, um dos quais foi encontrado fechado pela GNR, e cujos valores ignoravam;
4ª. Pelas razões referidas em 5.2, 5.3 e 5.4, aqui dadas como reproduzidas, deve eliminar-se a parte conclusiva da parte final da alínea j) da douta sentença, ou seja a afirmação de que “pelo que à altura dos factos (…)”.Com efeito, ignora-se a razão por que o alarme disparou e o operador não conseguiu rearmá-lo (inclusive se por acção dos larápios e);
5ª. Aliás, não poderia imputar-se ao operador o facto de o sistema de alarme ter ficado desactivado por, violando o estabelecido na cláusula 7ª do contrato, o autor D... ter promovido a alteração do sistema de alarme por empresa diversa da G... [alínea l)] e em virtude do que a central de operações da G... deixou de ser automaticamente informada do estado de armado ou desarmado do sistema de alarme (mesma alínea l da douta sentença);
6ª. Contratualmente, a G... estava apena obrigada a avisar telefonicamente as pessoas designadas para o efeito de qualquer anomalia monotorizada na sua central, por sinal de alarme/intrusão recebido do sistema de alarme da habitação dos autores;
7ª. Monotorização e comunicação que ficaram inoperacionais a partir do momento da destruição do sistema de alarme dos autores e, em especial, do momento em que os larápios cortaram a linha telefónica que estabelecida a ligação entre as duas centrais [alíneas e) e h) da matéria de facto dada como provada]. Aliás, o operador tentou essa comunicação por duas vezes, sem sucesso. Tal como a testemunha H.... Dentro das suas possibilidades, a G... cumpriu as suas obrigações contratuais, sendo certo que, contrato o estabelecido nas cláusulas 6ª e 7ª, os autores incumbiram outra empresa da manutenção e alteração do sistema de alarme.
8ª. Ainda que o sistema de alarme tivesse ficado activado, a sua destruição pelos larápios conforme referido na alínea e) da matéria de facto dada como provada tê-lo-ia tornado inoperacional e não impediria a consumação do furto, pelo que não existe nexo de causalidade entre o facto de o alarme não ter sido reactivado e o furto;
9ª. Do mesmo modo, a G... não pode ser responsabilizada pelo facto de o seu operador não ter reactivado o sistema, por, em virtude das alterações ocorridas em Setembro de 2009, ter deixado de ser automaticamente informada do estado de armado ou desarmado do sistema de alarme dos autores [alínea l) da matéria de facto dada como provada].
10º. No termos do referido no ponto 4.2, 4.4C e 5.8, aqui dado como reproduzido, deve eliminar-se a 2ª parte da alínea f) da matéria de facto dada como provada, por ninguém ter alegado o título de aquisição dos bens furtados, nomeadamente se por usucapião, e ninguém se ter pronunciado sobre isso e a prova documental que se fez ter sido no sentido de que esses bens não foram adquiridos pelo Eng.º D... e mulher.
11ª. Por força dos deveres acessórios de conduta, cumpria ao segurado da autora B... e autores na acção apensa informar a G... da sua ausência prolongada da sua habitação (para que ela dobrasse de atenção a quaisquer sinais suspeitos), de deixar alguém a vigiar a sua habitação (com um tão valioso recheio) e de se absterem de actos que denunciassem a terceiros a sua ausência de casa, como, por falta de aviso, o padeiro ter continuado a deixar-lhes o pão à porta.
12ª. Ignorando-se em que momento foi praticado o furto, ou seja se antes, no momento ou depois da inutilização do alarme, não pode dar-se como provado que isso aconteceu por o alarme estar desactivado [ou seja a parte final da alínea j) da matéria de facto dada como 3.
13ª. Não deve considerar-se, para efeito do seguro, como “recheio geral de uma habitação” (ut apólice da B... a fls 473, 475, 477, 479, 481, 483, 485, 487 e 489), um tão valioso património em ouro, jóias e relógios não discriminados, guardados numa caixa forte dissimulada na cave de uma habitação, nem o seu furto poder ser imputado à empresa de vigilância (no caso a G...) no caso de, ao contratar a monitorização do sistema de alarme instalado por outrem, não lhe ter sido dado conhecimento da existência desse património;
14ª. Não podendo considerar-se como “recheio geral de uma habitação”, a autora B... não estava obrigada a indemnizar o furto desses bens e o seu pagamento não a colocou na situação de sub-rogada nos direitos do seu segurado.
15ª. Por força do alegado em 6.2, a responsabilizar-se a G... e a ré pelo dito furto, deve essa responsabilidade ser equitativamente repartida com o segurado da autora e com esta.
Concluiu, assim, a recorrente pela revogação da sentença e pelo decretamento da improcedência da presente acção.
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8. Por seu turno, também a Autora interpôs recurso da sentença, em cujo âmbito deduziu as seguintes
CONCLUSÕES [síntese]
I. A sentença recorrida não pode manter-se, na medida em que o Meritíssimo Juiz a quo, face ao pedido formulado pela Autora na petição inicial e à apreciação da prova posteriormente produzida, não logrou uma correcta aplicação do direito, ao entender que serão devidos juros de mora apenas após a prolação da mesma, impondo-se, por essa razão, a sua alteração, nos termos constantes do presente recurso e alegação.
II. Em conformidade, entende a ora Recorrente que a sentença em apreço não fez uma correcta subsunção dos factos ao disposto na norma dos arts. 804º a 807º do Cód. Civil e em especial a do art. 805º, n.º 3 do Código Civil, pelo que deverá ser revogada e substituída por outra que realize uma adequada e justa aplicação deste preceito, conforme se demonstrará.
III. Resulta da petição inicial deduzida pelo ora Recorrente, mais precisamente dos seus arts. 66º a 69º e do subsequente pedido, que o montante da dívida cujo pagamento se exige à Recorrida, através da presente acção declarativa condenatória, se encontrava desde logo fixado em € 193.304,55 e, como tal, clara e inequivocamente determinado no momento da citação, pelo que entende a Apelante ser manifesta a liquidez não só do pedido, como da própria obrigação.
IV. O pedido é líquido, concreto e conhecido da Ré Apelada logo no momento da citação, logo não se coloca a questão da sua iliquidez, mas quando muito a questão da prova dos prejuízos da Apelada e da sub-rogação que em nada interferem com a liquidez da dívida.
V. O facto de o montante de uma obrigação ser discutido entre as partes não significa que esta seja, em si mesma, ilíquida.
VI. Na verdade, não se afigura justo que pela mera contestação do montante da obrigação que lhe é exigida, um devedor se possa eximir ao pagamento dos juros que são devidos em virtude da sua mora. De contrário, a simples impugnação do valor de um crédito, que o tornasse litigioso, seria expediente para um propósito manifestamente injusto, que se não pode aceitar.
VII. Neste sentido, acompanhe-se o raciocínio expendido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 27.05.2014, a propósito de uma dívida de honorários pela prestação de serviços cujo valor não foi aceite pelo devedor.
VIII. Por fim, e sem prejuízo do exposto,
VIII. Cabe notar ainda que, mesmo na hipótese de se considerar que a obrigação peticionada seria ilíquida ao momento da propositura da presente acção, no que não se concede e apenas por mera cautela se considera, terá a sua utilidade trazer à colação a situação do incidente de liquidação em execução de sentença, que é analisada pelo Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 7.04.2005.
IX. Da leitura desse acórdão se retira que se, em face da liquidação de uma obrigação em execução de sentença, o apuramento do montante da obrigação com a conclusão do incidente de liquidação deixa “imperturbada a data a partir da qual a obrigação de juros passa a vencer”, caberá então, por maioria de razão, aplicar o mesmo postulado ao presente caso, em que um dos limites à sub-rogação (que se consubstancia no valor do prejuízo sofrido pelos lesados) não se encontrava determinado no pedido inicial tendo-se fixado apenas na sentença condenatória. Maioria de razão, entende-se, porque no caso sub judice, o valor do reembolso exigido pela presente acção já se encontrava apurado na petição inicial, apenas podendo vir a ser inferior ao peticionado na eventualidade de o valor do prejuízo sofrido pelos lesados vir a apurar-se em montante inferior ou de não se fazer prova do pagamento feito pela Apelante.
X. Pelo exposto, salvo o devido respeito, entende a Recorrente que deve a sentença proferida ser revogada e, em consequência, ser substituída por outra que condene a Ré no pagamento à Autora de 193.304,55, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos, calculados dia a dia, à taxa legal, sobre esse montante, contados desde a citação da Ré para a presente acção e até efectivo e integral pagamento, que perfazem, presentemente, 39. 148, 14. [sublinhado nosso]
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9. Foram oferecidas contra-alegações a ambos os recursos, pugnando ambas as partes pela improcedência do recurso interposto pela parte contrária.
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10. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas se mostrem de conhecimento oficioso - cfr. arts. 635º, n.º 3, e 639º, nºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil, na redacção da Lei n.º 41/2013 de 26.06 [doravante designado apenas por CPC].
No seguimento deste princípio, as questões a decidir na presente apelação são as seguintes:
a)- se o tribunal recorrido incorreu em erro de valoração e ponderação dos meios prova produzidos nos autos ao nível do julgamento dos pontos de facto impugnados pela ré recorrente;
b)- se o tribunal incorreu em erro de julgamento quanto ao incumprimento do contrato de prestação de serviços de vigilância a cargo da segurada “F...” ou “G...” e quanto ao nexo causal entre esse incumprimento e os prejuízos subsequentes, em razão do que a sentença recorrida deve ser substituída por outra que absolva a mesma ré do pedido formulado ou, ainda que assim não se entenda, sempre deve operar-se a redução equitativa do montante indemnizatório arbitrado;
c) – a manter-se a condenação da ré no pagamento à autora da quantia por esta última reclamada (integral ou parcialmente), se incorreu o tribunal em erro de julgamento quanto aos juros de mora considerados na sentença recorrida. [recurso interposto pela autora]
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III. IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO de FACTO:
Questão prévia:
Como resulta do relatório que antecede, quer a Autora, quer a Ré, nos presentes autos [n.º 255/12.8TBSTS], não se conformando com a sentença proferida em 1ª instância, vieram interpor recurso da mesma, ambas a título principal.
No que se refere ao recurso interposto pela autora, o mesmo, tal como emerge das suas conclusões recursivas, pressupõe a manutenção do decidido em 1ª instância quanto à condenação da Ré no valor [capital] ali sentenciado, pois que esgrime a recorrente apenas a questão dos juros de mora e a data juridicamente relevante para o seu cômputo inicial.
Destarte, considerando que a ré, ao invés, discorda do sentenciado e pugna, a título principal, pela sua total absolvição do pedido, por razões de lógica, conhecer-se-á em primeiro lugar do recurso desta última, e, se tal se vier a justificar (i.é, se se mantiver, total ou parcialmente, a condenação da ré), conhecer-se-á do recurso interposto pela autora, pois que a obrigação de pagamento de juros, enquanto obrigação acessória relativamente a um determinado crédito de capital, supõe a prévia afirmação da existência deste crédito, naufragando se este último não vier a ser judicialmente declarado e o seu inerente pagamento.
Feita esta consideração, cumpre, pois, em primeiro lugar, dirimir da apelação interposta pela ré “C..., SA”, começando, naturalmente, pela impugnação da decisão de facto por esta deduzida.
Nesta sede, a ré discorda do julgamento quanto aos factos consignados na alínea d) [quanto à data do assalto dada por provada 29.12.2009, sustentando que deveria o tribunal recorrido ter julgado como provado apenas que «em data desconhecida entre 22 (ou 24) e 29 de Dezembro de 2009, desconhecidos…») – conclusões 1ª -, na alínea f) [discordando de ter o tribunal recorrido julgado provado que desconhecidos retiraram e levaram consigo objectos de ouro, prata, joias e relógios no valor global de € 489.330,00, pois que, em seu entender, não foi feita prova do furto de tais bens e do seu valor ou, quando muito, a admitir-se essa prova, tais bens ascendem apenas ao valor apurado de € 213. 302, 49] – conclusões 2ª e 3ª -, na alínea j) [discordando de ter o tribunal recorrido ali dado por provado o segmento «… pelo que à altura dos factos (…)», segmento este que deverá ser julgado não provado e eliminado] – conclusão 4ª -, na alínea f), 2ª parte [por não ter sido alegado e provado o título de aquisição dos bens furtados por parte dos autores] – conclusão 10ª -, todas do seu recurso de apelação.
Vejamos.
Como é consabido, a reapreciação da prova produzida em 1ª instância, enquanto garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, está subordinada à observância de determinados ónus que a lei adjectiva impõe ao recorrente.
Na verdade, a apontada garantia não pode envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida na audiência final, impondo-se, por isso, ao recorrente, no respeito dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa-fé processuais, que proceda à delimitação com toda a precisão dos pontos da decisão que pretende questionar, dos meios de prova, disponibilizados pelo processo ou pelo registo ou gravação nele realizada, que imponham, sobre aqueles pontos, distinta decisão, e a decisão que, na sua visão crítica da prova produzida, deve ser encontrada para os pontos de facto impugnados.
Neste sentido, preceitua, sob a epígrafe «ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto», o art. 640º, n.º 1 do citado CPC que «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.»
Por seu turno, ainda, nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, sempre que «os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes
Por conseguinte, deve o recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso [sem possibilidade de convite ao aperfeiçoamento do requerimento recursivo [1]], delimitar com precisão os pontos da decisão de facto que pretende questionar, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões [2], motivar o seu recurso através da indicação dos meios de prova constantes dos autos ou que neles tenham sido registados e que impõem decisão diversa quanto a cada um dos factos impugnados, e relativamente aos pontos da decisão de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, cumpre-lhe, ainda, indicar as exactas passagens da gravação relevantes, sem prejuízo da transcrição (facultativa) de tais excertos. Por outro lado, ainda, terá o recorrente de deixar expressa a decisão que, no seu ver, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação aduzida e da (sua) apreciação crítica dos meios de prova produzidos.
No caso dos autos, a ré cumpriu de modo satisfatório os aludidos ónus de impugnação, pois que indicou os pontos de facto de cujo julgamento discorda, indicou a decisão que, na sua perspectiva, os mesmos deveriam merecer, indicou os concretos meios probatórios que sustentam essa sua diversa convicção quanto aos pontos de facto impugnados, e, ainda, fez menção no corpo das alegações, quanto aos meios de prova pessoal gravados em audiência, das exactas passagens da gravação, que, a seu ver, suportam diversa convicção quanto a tal factualidade.
Por conseguinte, atento o aludido cumprimento dos ónus legais, impõe-se a este Tribunal da Relação, ao abrigo dos poderes de reapreciação do julgamento da decisão de facto, conferidos pelo art. 662º, n.º 1 do CPC, conhecer e decidir da factualidade impugnada, como de seguida se expõe.
O primeiro ponto de facto de cujo julgamento discorda a recorrente refere-se à alínea d) da sentença recorrida.
Neste ponto, o tribunal recorrido julgou provado o seguinte:
«No dia 29 de Dezembro de 2009, desconhecidos introduziram-se na casa de habitação de D... e E..., sita na Rua ..., n.º ., Trofa, e aí retiraram e levaram consigo os objectos que infra se mencionam.»
A Recorrente sustenta, porém, que o tribunal deveria julgar provado apenas que em dia não determinado entre os dias 22 e 30 de Dezembro de 2009, o imóvel seguro na autora foi assaltado.
Para tanto, sustenta a recorrente que a data de 29.12 considerada na sentença parte do pressuposto errado de que se o sinistro foi detectado no dia 30 (pela testemunha H...) ele teria sucedido no dia anterior, quando, de facto, não há notícia nos autos do que sucedeu entre os dias 22 e o dia 30 de Dezembro na habitação em referência, podendo, pois, o furto ter ocorrido em qualquer dos dias do citado período temporal, que não foi possível apurar.
Não tem, porém, a nosso ver, razão a ré.
Não existem dúvidas – face aos elementos constantes dos autos - de que ninguém assistiu ao assalto em referência e também não existem dúvidas de que entre os dias 22 e 30 de Dezembro de 2009 [data em que a testemunha H... – que cuidava da manutenção da piscina existente na moradia em causa - deu pelo assalto e ali se deslocou a GNR para tomar conta da ocorrência – vide, além do mais, o auto de notícia policial a fls. 56 dos autos] a moradia esteve vazia, isto é sem ninguém a ali habitar [vide alínea k dos factos provados e que não se mostra impugnado].
Destarte, por princípio, à luz das regras da experiência, como refere a recorrente, não seria possível determinar o dia do assalto à moradia, pois que, em face dos sobreditos elementos, o assalto poderia ter tido lugar em qualquer um dos dias anteriores (ao dia 30.12.), entre 22 e 30, sem ser possível afirmar, com o mínimo de rigor e segurança exigível, em qual deles.
Sucede que, não existem nos autos, em termos probatórios, apenas aqueles elementos probatórios invocados pela ré e que sustentam a sua discordância face ao decidido; Desde logo, existe o relatório de averiguação elaborado pela empresa “Respc, Peritagens e Responsabilidade Civil, Lda.”, a solicitação da própria ré, relatório este que situa, de forma circunstanciada, como data do assalto a madrugada do dia 29.12, tendo por base as informações que é possível colher dos registos constantes do sistema de alarme existente na residência; É certo que o perito que subscreve o aludido relatório (Dr. I..., que foi inquirido em julgamento) não se compromete em definitivo com aquela data, mas é claro ao apontar que essa será a data mais provável do mesmo; Por outro lado, ainda, nesse conspecto, avultam os depoimentos das testemunhas J..., funcionário da “K...”, e L..., gerente da mesma empresa, os quais, por leitura e análise dos mesmos registos/informações a que teve acesso o perito da “Respc” já citado [informações que, como confirmado em sede de audiência de julgamento pela testemunha J... foram por si colhidas informaticamente a partir da memória do sistema da central de alarme existente na moradia, na deslocação que fez ao local no dia 30.12., após lhe ter sido participada ocorrência do assalto por familiares do lesado], confirmaram exactamente o mesmo, ou seja que o assalto ocorreu no dia 29.12, tudo indica durante a madrugada. O depoimento destas testemunhas, que por nós foi integralmente escutado, foi, neste conspecto, cuidadoso, rigoroso, lógico e coerente com os elementos colhidos da memória da central de alarme existente na moradia e que constam do relatório junto a fls. 46-52 dos autos.
Por consequência, face a tais elementos, considerando a razão de ciência evidenciada, decorrente da consulta de elementos objectivos/registados no sistema da central de alarme existente na moradia, e a leitura/interpretação coincidente e consistente de tais elementos, seja pelo perito, Dr. I..., que subscreveu o relatório solicitado pela ré [vide fls. 263-265 dos presentes autos], seja, ainda, pelas testemunhas J... e L..., mostra-se-nos prudente, séria e conforme à lógica e à experiência a convicção formada, nesta matéria, pelo tribunal recorrido, não evidenciando, bem pelo contrário, os meios probatórios convocados pela ré que uma tal convicção seja errónea ou indevida.
Na verdade, ponderando de forma lógica e segundo as regras da experiência os ditos meios de prova, tudo aponta, com muito elevado grau de probabilidade (que não de certeza absoluta ou naturalística, que não é, por via de regra, alcançável em juízo), que o assalto tenha, de facto, ocorrido no dia 29 de Dezembro, não obstante, não exista, no caso, como é usual neste tipo de assaltos, prova directa, por visionamento, da sua realização e, portanto, da sua precisa data; Na verdade, e como também é consabido, neste tipo de assaltos os seus autores procuram, precisamente, levá-los a cabo em condições que garantam o maior secretismo possível, como meio de assegurar o êxito da actividade criminosa a que se dedicam.
Todavia, se assim é, importa não olvidar que a prova não visa alcançar, sob pena de sistemático e rotundo falhanço, uma certeza naturalística ou científica da realidade do facto, mas apenas um muito elevado grau de probabilidade, como o que, a nosso ver, resulta dos meios de prova a que vimos aludindo.
Por conseguinte, dito isto, face aos meios probatórios antes referidos e deles fazendo, nesta instância, uma sua leitura e análise prudente, séria, objectiva e crítica, não se vêm motivos bastantes para divergir da convicção e do julgamento firmados pelo tribunal recorrido quanto a esta matéria, que, a nosso ver, se deve manter.
Em segundo lugar, manifesta, ainda, o recorrente a sua discordância quanto aos factos provados sob a alínea f) e, em específico, que tenha o tribunal recorrido julgado provado que «na sequência do descrito em d) e e) [isto é, do aludido assalto], desconhecidos retiraram e levaram consigo os seguintes bens, num total de € 489.330,00, que os autores mantinham na sua residência e deles fruíam na convicção de exercerem o correspondente direito de propriedade: [segue-se a descrição dos bens furtados e o respectivo valor individual, numa listagem de 88 artigos].
Neste conspecto, em sustento da sua discordância face ao julgamento proferido em 1ª instância, invoca a Ré que as relações de bens constantes dos autos são da autoria do próprio segurado da aqui autora, assim como são da sua autoria as relações apresentadas na GNR, na sequência do (alegado) furto e subsequente participação policial, ou, ainda, as relações apresentadas aos peritos que fizeram a averiguação do sinistro (“M...“ e “Respc“), que não foram juntas pelos autores as facturas de tais bens, que as (poucas) facturas juntas aos autos estão emitidas em nome de “N..., SA “ e não dos autores, que não foi produzida prova que tais bens existissem ou se encontrassem no cofre à data do assalto, pois que os depoimentos das testemunhas O..., P... e Q... são inócuos ou irrelevantes para a prova de tais factos – não confirmando sequer a existência do cofre-forte (que nunca viram, nem os bens alegadamente existentes no seu interior).
Como assim, segundo a Ré não é possível afirmar, com um mínimo de segurança, como tido por demonstrado na sentença recorrida, que os assaltantes retiraram e levaram consigo os bens constantes da relação elaborada pelo lesado, nem tão pouco que os mesmos ascendiam ao valor de € 489.330,00; Quando muito, esse valor só poderá ser, a seu ver, de € 213.302,49.
Relativamente à matéria em causa, o tribunal recorrido, em sede de motivação, aduziu o seguinte: «Nos contratos de seguro respeitantes a recheio de habitações é relativamente vulgar anexar à própria proposta de seguro uma relação dos objectos de maior valor, elemento que se torna útil quando ocorre um sinistro.
Neste caso este elemento existe, e constitui um bom princípio de prova a respeito da efectiva existência dos bens, particularmente a relação anexa à proposta de actualização do seguro junto da B... de 29/07/2009, junta em 10/03/2014 (fls. 468). Menos conseguida foi a explicação sobre a considerável diferença entre esta relação e a relação de objectos reclamados como furtados cinco meses depois. O tribunal aceitaria facilmente alguma diferença em alguns objectos de valor, aquisições mais recentes, mas a diferença é ainda bastante considerável, sobretudo nos relógios. Inquirido a respeito em declarações de parte D... deu a insatisfatória explicação que a sua mulher era de opinião que não deviam comunicar a existência de certos bens ao seguro para não chamar demasiado a atenção.
Já a estranheza manifestada pelas rés quanto à existência de tão valioso património acabou excluída da ponderação pelas várias propostas de actualização do seguro junto da B..., juntas em 10/03/2014 (fls. 454 e ss) e pelas várias referências nos relatórios de peritagem caracterizando os lesados como pessoas abastadas e elencando mesmo as várias sociedades comerciais dominadas pelo lesado, facto de resto alegado na contestação da ré G... no apenso A.
Foi também discutido o facto de alguns dos objectos de ourivesaria terem sido facturados a sociedades dominadas pelo lesado, sendo isso demonstração de não ser seu proprietário. Este facto foi referenciado no relatório C... e repetido em audiência pelo seu autor, I..., e foi por fim ilustrado nas facturas juntas em 9 de Dezembro de 2015 (fls. 1002 e ss.), em nome de N..., S.A., a primeira sociedade elencada no art. 42.º da contestação da ré G... como dominada pelo lesado. O tribunal não valorizou particularmente este argumento. É relativamente vulgar que empresários que dominam uma ou várias sociedades adquiram bens para uso próprio mas os facturem em nome das sociedades, tendo nomeadamente em vista vantagens fiscais. Acresce ainda que uma factura está bastante longe de ser um título de propriedade de um bem móvel. Seria no entanto cogitável que esses bens fossem adquiridos para ofertas a clientes ou fornecedores importantes, e viessem agora ser reclamados como furtados. Esta possibilidade está no entanto bastante relativizada pelas mencionadas facturas, que embora tenham descritivos bastante pobres, chegam a mencionar vários bens que com bastante nitidez não se incluem na relação de bens indicados como furtados.
Feitas estas referências, cumpre ter presente também a especial dificuldade de apresentar provas cabais da existência e posse de bens móveis que foram subtraídos, e por isso já não estão presentes, mesmo tratando-se de jóias e relógios de valor considerável. Neste desiderato probatório, foram sobretudo tidas em conta as relações emitidas por diversas ourivesarias de referência, juntas por D... e E... em 10/02/2014 (fls. 289 e ss.), as averiguações descritas nos relatórios B... e C..., este último mais detalhado nesta parte da averiguação, e fotografias juntas.
As relações emitidas pelas ourivesarias foram reforçadas nomeadamente pelos depoimentos de S... e T..., que detalharam o método de elaboração das listas de forma credível, e chegaram a identificar várias peças nas fotografias juntas ao relatório C....
As mesmas relações foram ainda reforçadas pela junção de facturas. As juntas em 8 de Julho de 2014 por U... (fls. 756) foram relativamente pobres do ponto de vista descritivo. Muito mais descritivas e com capacidade de cruzamento com as relações foram as juntas por V... em 8 de Julho de 2014 (fls. 763).
O tribunal valorou também os depoimentos de O..., P..., e Q.... identificou alguns objectos de memória, com um depoimento marcado por referências espontâneas, e algumas correcções a pontuais sugestões da instância. P... teve também com boas marcas, preocupação de fidelidade à sua razão de ciência e alguma espontaneidade. Q... teve também um depoimento com boas marcas, bons apontamentos de espontaneidade quando confrontada com fotografias, e digressões espontâneas.
Conjugando toda esta prova não foram muitos os objectos que não encontraram uma referência documental, fotográfica ou testemunhal credível. Foram esses que acabaram excluídos da lista.
Referências pontuais com algum destaque apontamos as canetas e botões de punho, objectos referenciados credivelmente, mas não quantificados, por P... e Q.... O tribunal aceitou sem dificuldade a inexistência de registos documentais da aquisição destes objectos, uma vez que são muitas vezes ofertas. O valor foi obtido por estimativa prudente, no quadro do conjunto de objectos preciosos furtados.
Quanto à restante avaliação, o tribunal partiu do relatório B..., do relatório C..., e das relações juntas por cada uma das ourivesarias.
O relatório B... tem uma fundamentação mais sucinta com referências breves a informação no mercado. Embora não fosse mau ponto de partida, o tribunal não deixou de notar que o relatório C... tinha uma fundamentação mais cuidada e circunstanciada sobre a avaliação, que transmitiu uma ideia de maior rigor. No entanto, o tribunal não pôde acompanhar as deduções de valor neste último relatório. Assim, na determinação do valor necessário à reposição do património perdido, o valor de IVA deve ser considerado no preço dos bens, uma vez que, não sendo os lesados uma empresa, e embora sendo o lesado empresário, não está demonstrado que pudessem facilmente deduzir o IVA. Quanto ao desconto comercial, embora resulte de algumas facturas juntas em 8 de Julho de 2014 que os lesados beneficiavam de descontos, tais descontos não eram sempre de 10% nem ocorriam sempre. Está também longe de ser demonstrado que na recompra ou venda do mesmo tipo de artigos fosse observado tal desconto. Por último, tratando-se de jóias e artigos de ourivesaria, uma taxa de depreciação generalizada também se afigura deslocada.
Muitos destes artigos tendem mesmo a valorizar, como resulta por exemplo da relação de V... de 10/02/2014 (fls. 292).
Nestas relações emitidas por ourivesarias, o tribunal tendeu a credibilizar mais V.... As relações de U..., Y... e Z... tiveram tendência a inflacionar bastante os próprios valores indicados pelos lesados, sem grande fundamentação, em contraste com relações emitidas pelas mesmas ourivesarias, juntas ao relatório C....»
Descrita, assim, a fundamentação exposta pelo tribunal recorrido, cumpre, no que se refere à reapreciação da prova em segunda instância, referir que este controlo, em particular quando o mesmo tem por base a gravação dos depoimentos prestados em audiência ou documentos sujeitos à livre apreciação pelo julgador, como é o caso, não pode postergar ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída na base da imediação e da oralidade.
De facto, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 607.º n.º 5 do CPC, que está deferido ao tribunal da 1ª instância no âmbito do julgamento de facto, sendo que, como é consabido, na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, antes podendo para ela contribuir outros elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação da produção de tais meios de prova; Como assim, à partida, a intrínseca valoração probatória de determinado depoimento é algo de imperceptível apenas e só por via da sua simples gravação (ou transcrição), antes decorrendo da sua apreciação individual e da sua compatibilidade ou conjugação com todos os demais meios probatórios produzidos perante o juiz, à luz das regras da experiência, da lógica e da ciência, ou seja da apreciação conjunta e crítica dos meios probatórios produzidos.
Com efeito, ao contrário do que sucede no sistema de prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada por lei, no sistema de livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
Neste sentido, referia J. ALBERTO dos REIS [3], o princípio da livre apreciação da prova não quer significar que o «julgador possa proceder arbitrária e caprichosamente na avaliação da prova, não quer reconhecer-lhe a faculdade de julgar como lhe aprouver, sem provas ou contra as provas produzidas no processo (…).
O alcance do dito princípio é o de que «o tribunal julga segundo a sua consciência ou segundo a convicção que formou; a convicção forma-a, não em obediência a regras legais preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos pela lei, mas através da influência que no seu espírito exerceram as provas produzidas, avaliadas segundo o seu juízo e a sua experiência.» [sublinhados nossos]
Em suma, como sintetiza ainda o Ilustre Professor, «prova livre não quer dizer prova apreciada caprichosa e arbitrariamente, mas prova apreciada segundo os critérios de valoração racional e lógica do julgador e segundo a sua experiência.» [4] [sublinhados nossos]
Em idêntico sentido, em sede de motivação da decisão de facto e seu posterior controlo, refere MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, que «é necessário e imprescindível (…) que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela [convicção] sobre o julgamento do facto como provado ou não provado.» [sublinhados nossos] [5]
Trata-se de, através da motivação, o julgador passar de convencido da realidade de determinado facto ou asserção de facto a convincente, expondo o raciocínio lógico-dedutivo, o fio condutor do seu raciocínio que o levou a julgar provada ou não provada determinada facticidade.
De facto, a lei determina expressamente a exigência de motivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador - artigo 607.º, n.º 4 do CPC -, ou seja os fundamentos probatórios que, no espírito do julgador, conduziram à demonstração ou não demonstração de uma certa realidade factual.
Todavia, sem prejuízo daquela plena liberdade no julgamento de facto e na formação da convicção, confiada, em primeira linha, ao Tribunal de 1ª instância (que beneficia, em termos irrepetíveis, da oralidade e imediação face à produção dos meios probatórios), a própria Relação, na busca da sua autónoma convicção, procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, com a mesma amplitude de poderes e sujeita às mesmas regras de direito probatório da 1.ª instância. [6]
Impõe-se-lhe, assim, que «analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada.» [7] [sublinhados nossos]
Por outro lado, neste conspecto, é de referir, como já antes se deu nota, que a actuação jurisdicional, enquanto actividade humana, comporta uma (inevitável) margem de incerteza e aleatoriedade no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, relevando, no entanto, que uma tal margem de incerteza ou de erro se reduza tanto quanto possível, através de uma actividade cognitiva crítica, isto é que assente nas regras da experiência, advindas da observação das coisas da vida e dos comportamentos humanos, dos princípios da lógica e/ou das regras científicas eventualmente convocáveis à decisão. [8]
No entanto, a reconstrução da realidade não pode realizar-se de forma parcelar e desconexa, atendendo apenas a determinados meios de prova, ou partes deles, e ignorando todos os demais, assim como, nessa espinhosa tarefa, não pode o julgador reduzir-se à recolha acrítica de depoimentos ou informações resultantes do acervo documental, ou, ainda, conformar-se a uma análise parcial transmitida pelos litigantes, antes se lhe exigindo, em busca da verdade material, uma ponderação dialética de todos os meios de prova, avaliando a sua força probatória própria e sua compatibilidade com todos os demais, segundo um raciocínio ponderado, prudente e conforme à lógica e à experiência humana.
Neste preciso sentido, refere-se em recente aresto desta Relação que «a realidade não se constrói apenas a partir de um depoimento isolado ou de um conjunto disperso de documentos, ainda que confirmadores de uma determinada versão factual, antes se deve conformar com um património fáctico consolidado de forma sólida, coerente, transmitido por elementos probatórios com idoneidade e aptidão suficientes a conferir-lhe indiscutível credibilidade.» [9] [sublinhado nosso]
Na verdade, no âmbito da livre apreciação da prova e da aferição da suficiência dos meios probatórios para a demonstração dos factos sujeitos a instrução e prova, como também se refere em outro recente aresto desta Relação, «por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz – meio da apreensão e não critério da apreensão – a ideia de que mais do que ser possível (pois não é por haver a possibilidade de um facto ter ocorrido que se segue que ele ocorreu necessariamente) e verosímil (porque podem sempre ocorrer factos inverosímeis), o facto possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que se a prova produzida for apenas residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.
Esta não é, seguramente, uma regra imutável. Pelo contrário, é uma regra que carece de adequação prática pelo julgador, o qual, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, terá de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção
Com efeito, como se refere no mesmo aresto, «o julgador não pode nunca esquecer que num processo subordinado ao princípio do contraditório a colocação de um padrão de prova particularmente exigente pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito, mas a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam.» [10] [sublinhados nossos]

Por outro lado, ainda, como já se referiu, guiando-se o julgamento humano por padrões de razoabilidade e probabilidade objectiva e nunca de certeza absoluta ou científica, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre o facto deve incidir nos casos de desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.
Por conseguinte, sem embargo do duplo grau de jurisdição em matéria de facto e do papel decisivo que, nesse conspecto, se mostra hoje conferido às Relações ao nível da reapreciação do julgamento de facto, para que a decisão da 1ª instância seja alterada, haverá que averiguar se algo de «anormal» se passou na formação da «prudente convicção», isto é, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, e que são aplicáveis também ao Tribunal da Relação na formação da sua independente e autónoma convicção, nomeadamente aferir da razoabilidade da convicção formulada pelo juiz da 1.ª instância, face aos meios probatórios produzidos e à sua leitura ou interpretação às regras da experiência e da lógica.
Tudo, no entanto, repete-se, sem prejuízo do poder conferido à Relação de formular, nesse seu próprio julgamento, e à luz dos meios probatórios convocados pelo apelante ou de outros que tenham sido produzidos, uma nova convicção, eventualmente diversa, com renovação, ao nível desta instância superior, do mesmo princípio da livre e crítica apreciação da prova.
Como assim, tendo por assentes e por nós aceites estes princípios orientadores, importa, pois, enfrentar a questão colocada pela Ré e recorrente.
Em situações com a que retratam os autos – assalto em habitação, não detectado e não presenciado, com furto de bens móveis existentes no respectivo interior – revela-se tarefa particularmente melindrosa e difícil o apuramento dos bens furtados pelos respectivos autores e o seu valor, pois que, pela própria natureza do sinistro, os bens já não estão no poder do lesado e na larga maioria das situações não são, infelizmente, recuperados, ao menos em tempo útil, em ordem a aferir do seu estado e do seu exacto valor. No caso, tanto quanto revelam os autos, os objectos não foram recuperados.
Por outro lado, ainda, não obstante a estranheza que tal suscita na recorrente, certo é, como já referido na sentença, que é usual nosso país, não obstante todas as iniciativas para alterar o estado das coisas, adquirirem-se bens (mesmo de significativo valor) sem factura ou outro documento legal [para evitar cruzamento de informações a nível fiscal e consequente apuramento de rendimentos superiores aos efectivamente declarados], assim como é usual adquirirem-se bens a coberto de empresas (dominadas pelo comprador, pessoa individual), também para assim colher benefícios fiscais legalmente disponíveis às sociedades comerciais, mas inacessíveis ao próprio comprador, individual ou pessoalmente considerado.
Uma tal realidade, independentemente da censura que nos possa (e deva) merecer e da dificuldade acrescida que coloca em termos probatórios - para o interessado em demonstrar a respectiva aquisição, ou seja, no caso dos autos, os próprios lesados, a quem incumbe o ónus de prova de aquisição e existência dos bens, segundo a regra do art. 342º, n.º 1 do Cód. Civil - é indesmentível, e, assim, estando em causa apurar a aquisição, a existência e propriedade de certos bens móveis, alguns adquiridos sob a veste de uma empresa (dominada ou controlada pelo lesado e esposa) e outros adquiridos sem factura ou outro comprovativo, não pode ser desconsiderada pelo julgador, no sentido de que tais circunstâncias, por si só, não excluem a possibilidade de se demonstrar que os bens foram adquiridos pelos lesados e, independentemente, de outros juízos e outras averiguações (v.g., de natureza fiscal), e não devem, por princípio, depor, sem mais, contra os lesados, em detrimento de outros meios de prova que eventualmente os mesmos tenham logrado oferecer nos autos e permitam alcançar a prova que aos mesmos incumbe.
A questão passa, pois, a nosso ver, por saber que meios de prova se mostram produzidos nos autos para que o tribunal possa, em sã, prudente e séria convicção, julgar os factos em apreço como provados, sem deixar de considerar, também, como já se referiu, que incumbe aos lesados o ónus de prova em causa e que perante a dúvida fundada sobre a realidade do facto que lhes incumbe demonstrar, a decisão lhes deve ser desfavorável, como decorre do princípio geral consagrado no art. 414º do CPC.
Partindo, assim, destas considerações, e não obstante a dificuldade probatória antes assinalada e suas consequências para a parte onerada com tal encargo, essa dificuldade não constitui, em última análise, obstáculo intransponível ao apuramento da realidade e, no caso de que ora tratamos, ao apuramento dos bens existentes à data do furto e à determinação dos valores dos mesmos.
O ponto de partida, como, aliás, também se deixou consignado na sentença recorrida, em termos de normalidade, não pode deixar de ser a listagem ou listagens dos bens fornecidas pelo lesado, em particular, se existir, como é o caso, a listagem que o segurado fez juntar à apólice do seguro de recheio da habitação, ou, ainda, outra listagem que o segurado forneça para posterior averiguação e eventual confirmação decorrente das diligências instrutórias.
Destarte, ao contrário do que sustenta a recorrente, nada tem de censurável, em termos de formação de convicção do julgador, que este tome por referência inicial essa ou essas listagens de bens, pois que, dizem-nos as regras da experiência e da lógica, que o ponto de partida de uma averiguação deste género, tem, necessária e inelutavelmente (pois que os bens já não estão ao alcance/disponibilidade do lesado), que partir das listagens elaboradas pelo próprio, sejam elas anteriores ao sinistro (como é o caso da listagem associada ao seguro de recheio), sejam posteriores (como é o caso da listagem entregue na GNR da Trofa e que foi elaborada pelo próprio lesado logo após o assalto – oito dias depois - e quando não existia, em tal data, sequer um litígio com os eventuais responsáveis pelo sinistro, nomeadamente a operadora “F...“ ou “G...” e a sua seguradora, ora ré).
Na verdade, é o lesado o único em condições de as fazer, seja por recurso a elementos documentais que possua em seu poder ou que tenha obtido de possíveis vendedores dos bens em causa, seja por recurso, em última instância, na falta de elementos documentais, à própria memória. Nada de «errado» ou de contrário à experiência se vislumbra em tal método ou raciocínio, sendo certo que da circunstância de essas listagens serem da autoria do lesado não resulta, sem mais e como regra, como parece sustentar a ré, que as mesmas não tenham correspondência à realidade.
Partindo deste princípio, a questão que se deve colocar, a nosso ver, não é pois, como sustenta a recorrente, a da simples autoria das listagens, mas, antes, a da credibilidade que as mesmas podem merecer ou não por parte do julgador e, portanto, como já antes se expôs, quais os demais meios de prova que corroboram ou sustentam – ou não – essa credibilidade e, logicamente, a prudente, equilibrada e sensata convicção do tribunal formada pelo tribunal.
Dir-se-á, assim, que neste contexto, não nos situamos já ao nível do conteúdo intrínseco das listagens, que constituem apenas o ponto de partida ou a referência inicial para efeitos probatórios, mas dos demais meios probatórios que, mostrando-se validamente produzidos no processo, se revistam ou não como suporte bastante para que o julgador possa, em termos de formação da sua prudente convicção, ter-se por convencido da seriedade, do rigor, da veracidade – isto é da correspondência com a realidade que o tribunal procura reconhecer em juízo – do teor de tais listagens, seja quanto à existência dos bens ali referenciados à data do furto, seja ainda do seu respectivo valor individual.
Ora, nesse conspecto, em termos probatórios, avultam, desde logo, os relatórios de averiguação e avaliação efectuados pelas empresas “Respc” [sob pedido da própria ré] e da empresa “M...” [este sob pedido da autora “B...”], e, em particular, pelo seu maior pormenor descritivo dos objectos em causa e pelas diligências efectuadas pelo perito para a aferição/confirmação dos valores dos objectos em causa, o relatório da “Respc”.
E, quanto a estes relatórios, como se pode constatar da sua leitura integral, pormenorizada e atenta, é possível constatar, em especial, do dito relatório da “Respc”, mas também do relatório da “M...”, que a larguíssima maioria dos bens descritos na alínea f) dos factos provados, não obstante terem sido indicados pelo lesado, D..., possuíam, de facto, suporte probatório quanto à sua existência e aquisição pelo mesmo e sua esposa (ainda que, por razões de ordem fiscal, a que já fizemos referência, em nome de empresas tituladas pelos mesmos, nomeadamente “N..., SA”), como seja em facturas, em certificados de garantia (em particular dos relógios de homem e senhora adquiridos), em fotos em que tais bens surgem na posse dos lesados (em particular da esposa, E...), na listagem associada ao seguro de recheio da habitação já referido e anexo ao mesmo, na posse da autora/seguradora ou, ainda, na listagem entregue pelo lesado à GNR da Trofa imediatamente a seguir ao assalto (a 8.01.2010), em momento anterior ao actual litígio, sendo certo, aliás, como resulta das actualizações do capital associado a tal seguro de recheio, que esse capital foi evoluindo, de um capital inicial de 75 mil euros (em 2003) até ao capital, em 30.07.2009, cinco meses antes do sinistro, superior a 750 mil euros. (10 vezes mais)
Por outro lado, ainda, como emerge dos citados relatórios de averiguação, não quedaram quaisquer dúvidas quanto ao muito significativo poder aquisitivo dos lesados, tornando, pois, em conjugação com toda a demais prova a que vimos fazendo referência, em termos de normalidade e de lógica, perfeitamente plausível e crível que os bens em causa e elencados em f) da sentença tivessem, de facto, sido adquiridos pelos lesados e existissem no seu património e na sua residência à data do assalto em causa.
Aliás, nesta matéria, compulsados os ditos relatórios e considerando os próprios depoimentos prestados em audiência de julgamento pelos peritos que os subscreveram, Dr. I... (que subscreveu o relatório da “Respc”) e AB... (que subscreveu o relatório da “M...“), sem prejuízo das dúvidas suscitadas pelos peritos, por ausência, à data, de prova documental quanto a parte dos bens reclamados -, resultou evidente, por um lado, que não foram constatados quaisquer sinais ou indícios de simulação do assalto em apreço, de cuja realidade nenhum dos peritos (ou qualquer outra entidade oficial e judicial) suscitou a mais pequena dúvida, nem, ainda, de qualquer tentativa dos lesados de empolamento ou inflacionamento dos valores dos bens em causa; De facto, como a esse nível se pode constatar do relatório da “Respc”, que em matéria de avaliação dos bens mostra um particular detalhe e evidente rigor, os valores atribuídos pelos lesados aos bens em causa - os referidos na alínea f da sentença – foram prática e integralmente confirmados por contacto directo do perito com os comerciantes que efectuaram a venda dos bens ou por contacto com outros comerciantes congéneres.
Ora, a nosso ver, todos estes elementos probatórios, considerados e ponderados de forma conjunta e crítica, corroboram, em termos que cremos seguros, sérios e objectivos, a credibilidade das listagens apresentadas pelo lesado, sendo certo, ainda, que, além dos já aludidos meios probatórios, essas listagens foram, ainda, corroborados pelos documentos juntos aos autos a fls. 289 (relação de bens adquiridos na Y...), a fls. 290 (relação de bens adquiridos na Z...), a fls. 291 (relação de bens adquiridos na U...) e a fls. 292-296 (relação de bens adquiridos na V...); Mais acresce que quanto a estas relações, e, em concreto, as relações juntas a fls. 291 e a fls. 292-296, foram elas, em termos claros, objectivos e devidamente fundamentados, explicitadas em audiência pelas testemunhas S... (funcionário da V...) e T... (funcionário da U...), que descreveram as diligências encetadas, a pedido dos lesados, para comprovar a aquisição de tais bens e elaboração das listagens (por consulta dos livros de facturas e/ou dos diários das vendas), apresentando-se-nos os seus depoimentos como serenos, objectivos e rigorosos, não se tendo evidenciado da sua audição integral nesta instância quaisquer razões para os colocar em dúvida.
Por último, ainda, não obstante a desvalorização que deles empreende a ré recorrente, é de referir que os depoimentos das testemunhas O..., P... e Q... lograram também, em termos sérios, objectivos, imparciais e fundados – alicerçados no contacto que, enquanto amigos próximos do casal (as testemunhas O... e P...) e seus familiares (a testemunha Q..., irmã de E... e cunhada de D...), com o mesmos iam mantendo com regularidade (em festas e em convívios/jantares na moradia dos lesados) – confirmar a aquisição e o uso pessoal pelos lesados (em particular a lesada E...) dos bens constantes da listagem referida em f) da sentença, não tendo sido possível constatar nos seus depoimentos prestados em audiência e que também por nós foram integralmente escutados, qualquer razão para deles duvidar ou pôr em crise, embora, a nosso ver, naturalmente, as testemunhas não tenham revelado um conhecimento circunstanciado ou detalhado dos objectos, pois que apenas os viram em uso em momentos de festas ou de que tiveram conhecimento por lhes ter sido dado conta da sua aquisição ou oferta pela lesada E..., o que se têm como razoável e perfeitamente conforme com as regras da experiência e da lógica.
Por outro lado, é evidente, e foi, aliás, confirmado de forma espontânea e sem hesitações pelas testemunhas, que nenhuma delas visionou o cofre-forte ou conhecia a sua localização e o conteúdo do mesmo antes do assalto; De facto, a nosso ver, não seria comum ou razoável que os lesados divulgassem, mesmo a pessoas da sua amizade/familiares e com quem convivem socialmente, a localização precisa do cofre-forte na moradia ou, ainda, que exibissem o interior e o conteúdo do mesmo aos seus convivas ou familiares; Na verdade, não obstante as dúvidas ou perplexidades manifestadas pela ré, constitui, em nosso julgamento, comportamento lógico e verosímil que quem possui bens de significativo valor pecuniário – como é o caso - os procure manter em sigilo ou sob reserva, não os exibindo, assim como não os divulgue ou refira, ainda que a familiares ou amigos, a localização do cofre onde guarda esses objectos e o seu conteúdo. O contrário é que, a nosso ver, seria pouco razoável ou crível, em particular por razões de segurança ou até de privacidade.
Por último, ainda, a nosso ver, e em termos de regras de normalidade e de experiência comum, apenas colhe sentido e lógica os lesados possuírem um seguro de recheio com o valor particularmente elevado a que já fizemos referência (superior a 750 mil euros) e apetrecharem a moradia onde residem com o sistema de alarme que os autos ilustram (e que foi sendo actualizado em termos tecnológicos) se, de facto, pretenderem acautelar, não só, a sua própria segurança individual, como, ainda, o próprio recheio da habitação, designadamente da sua apropriação ilícita, por conhecerem esse recheio e o seu elevado valor económico.
Destarte, ponderando todos os elementos probatórios antes referidos, procedendo ao seu cruzamento e à sua devida análise crítica, em conformidade com as regras da experiência humana e da lógica, não se vislumbram razões fundadas e sérias para divergir da convicção firmada pelo tribunal recorrido, a qual, ao invés, nesta instância recursiva, e quanto a este segmento, ora se corrobora.
Por conseguinte, a factualidade julgada provada na alínea f) é de manter como provada, seja quanto ao desaparecimento dos bens ali descritos por ocasião do assalto, seja quanto ao seu valor, seja, ainda, quanto à sua pertença ou propriedade por parte dos autores [na acção apensa] D... e E....
Neste âmbito, impõe-se-nos, não obstante o decidido, duas considerações.
A primeira é que, quanto à verba n.º 6 do elenco da alínea f, certamente por lapso, se atribui à mesma [relógio de homem de marca Hublot Big Bang 44 mm Euro 2008] o valor de € 12.974,00.
Ora, como resulta do relatório de averiguação lavrado pela empresa “Respc” – a que antes se fez referência – o valor de tal verba é de € 12.000,00 [vide fls. 235 dos autos].
Como assim, impõe-se corrigir aquela verba quanto ao seu valor.
Por seu turno, o valor global – resultante do somatório matemático do valor das 88 verbas ali elencadas, com a alteração do valor da verba n.º 6 –, ascende a € 488.392,00 e não a € 489.330,00, como decretado na alínea f.
Assim, a alínea f) deverá sofrer as consequentes alterações, o que ora se determina.

Por último, como resulta da petição inicial dos autos (em que é demandante “B...” e demandada a ré “C...“) e a ré bem compreendeu na sua contestação, impugnando tal factualidade, a demandante invocou que os bens furtados eram pertença ou propriedade do tomador do seguro de recheio da habitação, D...; Aliás, como é bom de ver, só assim se justificaria o pagamento da indemnização por parte da ora demandante ao tomador – o aludido D... - e que a mesma, por via da presente acção, reclama da ré, a título de sub-rogação (art. 136º, n.º 1 da Lei do Contrato de Seguro – DL n.º 72/2008 de 16.04, que entrou em vigor a 1.01.2009 - ou do anterior art. 441º do Cód. Comercial), isto é, sucedendo ela na posição e na acção que o mesmo tomador e proprietário de tais bens teria, não fosse aquele pagamento, contra o responsável civil “F...“/”G...“ ou, como é o caso, contra a ré “C...“, enquanto seguradora que cobria os riscos de danos causados a terceiros no exercício da actividade de segurança privada e vigilância a que se dedica aquela alegada responsável civil.
Como assim, e resultando, como já antes se expôs, demonstrada a propriedade do tomador do seguro (e esposa) sobre os bens furtados, esse facto deverá, obviamente, ter-se como demonstrado sob a alínea f), embora com redacção diversa da que ali figura, pois que, de facto, como sustenta a ré, a quem, nessa parte, assiste razão, a factualidade ali feita constar como provada, pelo menos nestes autos, não se mostra alegada em tais termos.
De todo o modo, quanto ao fundo da questão, qual seja a pertença de tais bens ao segurado e sua esposa, dúvidas não existem, perante todo o antes exposto, que tal factualidade se mostra demonstrada, devendo, pois, figurar como tal na aludida alínea f).
Procede, pois, apenas neste segmento, a impugnação.
Em terceiro lugar impugna, ainda, a ré recorrente a matéria factual constante da alínea j), na parte em que na mesma se julgou provado «…pelo que à altura dos factos descritos em d) e e) [isto é, data do assalto] o sistema de alarme estava desactivado e não detectou qualquer intrusão
Neste âmbito, sustenta a recorrente que, não se sabendo o dia certo do assalto, mas possivelmente tendo ele ocorrido a 24.12 de madrugada (quando o alarme da central disparou), não é possível dar-se como provado que à data do assalto o alarme já se encontrava desactivado (desde 24.12.), uma vez que não se sabe se o sistema ficou inoperacional por não ter sido rearmado pelo funcionário da “G...“ ou antes por via dos danos causados pelos assaltantes na central de alarme existente na moradia e corte da ligação telefónica.
Segundo cremos resultar patente da posição já adoptada em sede de impugnação da factualidade constante da alínea d), e pelas razões que ali se invocaram, o assalto não ocorreu no dia 24.12, de madrugada. Aliás, com o devido respeito, ninguém no decurso da audiência de julgamento, nem ninguém nos relatórios de averiguação subsequentes ao sinistro aventou a possibilidade de o assalto ter ocorrido nesse dia. Trata-se, pois, de asserção que não tem qualquer apoio na prova produzida.
No dia 24.12, como resulta do registo/informações constantes da memória da central de alarme da moradia e foi expressamente confirmado de forma que, a nosso ver, se apresentou objectiva e irrefutável, pelas testemunhas J... e L..., da “K...“, e pela testemunha AC... (funcionário da F..., primeiro, e depois da “G...“, até junho de 2014), não ocorreu qualquer incidente que possa traduzir a realização do assalto em apreço, durante o qual, como resulta da factualidade provada, além do mais, foi cortada a linha telefónica, foi desligada a luz e foi ainda destruída a própria central de alarme, nomeadamente os seus teclados. Ora, sendo certo que, como consta do histórico das comunicações entre a central de alarme da residência e a central privativa de alarmes da própria empresa de vigilância electrónica “F...”/“G...“ e foi também reafirmado pelas testemunhas J... e L..., já mencionadas, não foi constada a indicação de qualquer falha de comunicação entre as duas centrais entre 24.12 e 29.12. (o que evidencia que nesse período não houve corte de electricidade, nem corte da linha telefónica), tal significa, necessariamente, por um lado, que o assalto não ocorreu a 24.12., ao contrário do que ora sustenta a ré/recorrente, mas, ainda, que teve ele lugar a 29.12., data esta em que se mostram registados na memória da central de alarme da moradia, a que a testemunha J... teve acesso a 30.12., após o restabelecimento da energia no local, vários sinais que são, sem qualquer dúvida, confirmadores do assalto nos termos já referidos.
Como assim, a nosso ver, à luz dos meios probatórios referidos e, uma vez mais se salienta, em particular, perante o relatório de averiguação da empresa “Respc”, que confirma o salientado pelas testemunhas, resulta a inequívoca demonstração que desde o dia 24.12.2009, cerca das 5 h 38 m da madrugada, o sistema de alarme da moradia em causa manteve-se desactivado, por actuação do funcionário da empresa de videovigilância, que interveio no sistema para o desactivar em face de disparos do alarme e não o voltou a rearmar ou activar, em razão do que, no dia 29.12., por ocasião do assalto, não foi detectada pelo sistema a intrusão dos assaltantes no prédio, e, logicamente, nenhum alarme foi activado e nenhum procedimento de segurança foi encetado, nomeadamente os contactos com as pessoas que o deveriam ser em caso de intrusão detectada pelo sistema de vigilância a cargo da “F...“ ou “G...“.
Com efeito, como foi salientado pelas testemunhas J... e L..., da “K..., o sistema efectuava todos os dias, pelas 12 h, um teste automático à linha de comunicação entre a central de alarme da moradia e a central de alarme da operadora/prestadora de serviços de vigilância, constatando-se da análise dos registos de tais comunicações [constantes a fls. 46-52 dos autos], que entre o dia 24 e o dia 29.12, o aludido teste automático não evidenciou qualquer anomalia ou falha a esse nível [«periodic test: transmission»].
Ora, de tais elementos, segundo as regras da normalidade e da lógica, é possível extrair, com a indispensável segurança e certeza, que o assalto não ocorreu no dia 24.12, uma vez que, perante os danos causados na execução do assalto e perpetrados no interior da moradia [o que exige a prévia invasão, não detectada, do perímetro exterior da moradia], como salientado, em termos cabais, pelas testemunhas J... e L..., o sistema de comunicações entre as centrais no dito período de 24.12 a 29.12 não poderia funcionar – como funcionou - em termos regulares, como se evidencia do citado relatório das comunicações e do teste automático diário efectuado à linha de comunicação nesse período temporal, o qual, repete-se, nunca evidenciou qualquer falha.
O que vale, pois, por dizer que à luz das regras da experiência e da lógica, a intrusão, não detectada, dos assaltantes na moradia, nomeadamente no seu espaço exterior e posteriormente no seu interior (até os assaltantes lograrem destruir ou danificar gravemente o sistema de alarme existente no interior), ocorreu a 29.12.2009 e por, nessa data, o alarme (na central da prestadora de serviços de vigilância) se encontrar desactivado, desde o dia 24.12., por intervenção imprevidente do operador/funcionário que nesse dia (24.12.) se encontrava encarregue da vigilância à moradia e que, como já se aludiu, desactivou e não rearmou o sistema de alarme, deixando, pois, a moradia sem o controle e a vigilância remota que era suposto existir no estrito cumprimento do contrato celebrado.
O que, em conclusão, importa, neste segmento, a improcedência da impugnação deduzida pela ré, sendo, pois, de manter a factualidade já dada por provada em 1ª instância, com as alterações a que antes fizemos referência.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
À luz do antes exposto, os factos a considerar provados são os seguintes:
a) D... e um representante de F..., S.A. apuseram as suas assinaturas no escrito junto por cópia como documento n.º 3 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente: “ Entre as partes outorgantes é estabelecido o presente contrato de prestação de serviços, que se rege pelas cláusulas seguidamente mencionadas:
Cláusula 1.ª – Objecto 1 – F... manterá permanentemente ligado à Central privativa de alarmes que explora o dispositivo de alarme instalado na Rua ..., . - ... - Trofa. 2- No caso de registo de qualquer sinal de alarme/intrusão, a F... avisará telefonicamente as pessoas e entidades designadas, conforme os procedimentos de segurança acordados com o cliente. Cláusula 2.ª - Início e vigência – O presente contrato tem início de execução no dia 1 de Janeiro de 2008 e vigorará até 31 de Dezembro de 2008, renovando-se subsequentemente, por períodos iguais e sucessivos de um ano, salvo denúncia de qualquer das partes, feita com antecedência de noventa dias, por carta registada com aviso de recepção. Cláusula 3.ª – Preços – Em contrapartida dos serviços prestados ao abrigo deste contrato, F... receberá a avença anual de 216,00 euros (Duzentos e dezasseis euros), acrescida de IVA à taxa legal. Os valores mencionados nesta cláusula serão reajustados anualmente com referência ao dia 1 de Janeiro de cada ano, independentemente da data do presente contrato, com base no Índice de Preços no Consumidor. (…) Cláusula 5.ª - Caso fortuito e de força maior – F... não responderá pela manutenção dos serviços contratados em caso de inoperacionalidade da linha telefónica do Cliente e em todos os casos de situação de guerra, cataclismo ou calamidade que impossibilite a normal execução do serviço e, ainda em caso de proibição legal ou interdição da actividade. (…) ”;
b) Para efeitos de contacto telefónico nos termos previstos na cláusula 2.º, n.º 2, D... indicou-se a si próprio, à sua mulher E...;
c) G..., S.A. incorporou por fusão F..., S.A.;
d) No dia 29 de Dezembro de 2009, desconhecidos introduziram-se na casa de habitação de D... e E..., sita na Rua ..., n.º ., Trofa, e daí retiraram e levaram consigo os objectos que infra se mencionam;
e) Para o efeito, escalaram o muro de vedação do logradouro, estroncaram a porta da cozinha, violaram e removeram do lugar o sistema de alarme e de videovigilância instalado num armário existente no hall de entrada, cortaram as ligações das câmaras de vigilância existentes no exterior da habitação, que assim ficaram inoperacionais, cortaram o cabo de ligação telefónica à residência e ainda o cabo de alimentação de energia eléctrica, arrombaram e cortaram a porta da caixa-forte existente na cave da residência;
f) Na sequência do descrito em d) e e), tais desconhecidos retiraram e levaram consigo os seguintes bens pertencentes a D... e esposa E..., num valor total de € 488.392,00, que os mesmos mantinham na sua residência:
1. 1 relógio de homem de marca Girard Perragaux/Ferrari, no valor de € 5.000,00
2. 1 relógio de homem de marca Panerai Luminor 44 mm aço, no valor de € 6.000,00
3. 1 relógio de homem de marca Panerai Luminor Marina 44 mm, no valor de €5.000,00
4. 1 relógio de homem de marca Panerai Radiomir 45 Blackseal Ceramics, no valor de €6.000,00
5. 1 relógio de homem de marca Panerai Radiomir Chrono Rattrapante, no valor de €10.000,00
6. 1 relógio de homem de marca Hublot Big Bang 44 mm Euro 2008, no valor de €12.000,00
7. 1 relógio de homem de marca Vacheron Constantin 33093/006, no valor de €9.500,00
8. 1 relógio de homem de marca A. Lange@sohne Grande Lange1, no valor de €24.000,00
9. 1 relógio de homem de marca Zenith Chronomaster, no valor de € 5.000,00
10. 1 relógio de homem de marca IWC Portuguese Chronograph, no valor de € 6.000,00
11. 1 relógio de homem de marca Cartier ouro branco rectangular cronografo, no valor de € 10.000,00
12. 1 relógio de homem de marca Rolex GMT-Master, no valor de € 3.500,00
13. 1 relógio de homem de marca Cartier Pasha aço, no valor de € 5.000,00
14. 1 relógio de homem de marca Frank Muller Casablanc Chronograph, no valor de €13.000,00
15. 1 relógio de homem de marca Baume Mercier ouro, 25 anos, no valor de € 3.500,00
16. 1 relógio de homem de marca Louis Vuitton Diving, no valor de € 3.900,00
17. 1 relógio de homem de marca Raymond Weil, no valor de € 2.200,00
18. 1 relógio de homem de marca Hugo Boss Dual Time, no valor de € 350,00
19. 1 relógio de homem de marca Omega World Timmer, no valor de € 2.000,00
20. 1 relógio de homem de marca Baume Mercier Aço, no valor e € 1.400,00
21. 1 relógio de homem de marca Tissot Porto PO 203, no valor de € 723,00
22. 1 relógio de homem de marca Cartier Roadstar ouro, no valor de € 20.000,00
23. Canetas em quantidade não determinada, no valor de €3.000,00
24. Botões de punho em quantidade não determinada, no valor de €1.000,00
25. 1 relógio de senhora de marca Cartier Pasha ouro 42 mm, no valor de € 14.500,00
26. 1 relógio de senhora de marca Cartier Panthere aço/ouro, no valor de € 3.000,00
27. 1 relógio de senhora de marca Patek Philippe aço/36 diamantes, no valor de €7.700,00
28. 1 relógio de senhora de marca Cartier Ouro Tank, no valor de €7.500,00
29. 1 relógio de senhora de marca Emile Pequignet, no valor de €1.200,00
30. 1 relógio de senhora de marca Cartier Pasha aço/Cautchu, no valor de € 5.000,00
31. 1 relógio de senhora de marca Frank Muller Casablanca 6850, no valor de € 6.900,00
32. 1 relógio de senhora de marca Saint Honoré, no valor de € 200,00
33. 1 relógio de senhora de marca Claude Helier, no valor de € 700,00
34. 1 relógio de senhora de marca Cartier Roadstar aço, no valor de €4.670,00
35. 1 relógio de senhora de marca Rolex Daytona, 25 anos, no valor de € 7.690,00
36. 1 par de brincos brilhantes quadrados € 2.000,00
37. 1 Solitários pequenos € 6.000,00
38. 1 anel em ouro branco cravejado a brilhantes largo € 5.000,00
39. 1 anel em ouro branco com brilhantes € 3.000,00
40. 1 anel em ouro branco com brilhantes negros € 3.000,00
41. 1 anel em ouro amarelo e branco com brilhante quadrado € 2.500,00
42. 1 solitários maiores € 12.000,00
43. 1 par de pérolas aplicadas em ouro amarelo € 850,00
44. 1 par de brincos em pérolas cinza com brilhante € 2.000,00
45. 1 par de brincos, marca Tous, com pérolas e 3 brilhantes cada € 1.229,00
46. 1 par de argolas castanhas em brilhantes castanhos € 1.800,00
47. 1 par de argolas em brilhantes negros € 900,00
48. 1 par de argolas em outro branco € 600,00
49. 1 par de brincos H. Stern em forma de estrela com brilhantes € 950,00
50. 1 par de brincos antigos com pulseira igual € 1.350,00
51. 1 par de brincos em navetes, igual à aliança € 720,00
52. 1 aliança em brilhantes / navetes igual pulseira e brincos € 11.000,00
53. 1 aliança com 20 brilhantes € 12.000,00
54. 1 anel de ouro branco com brilhante rectangular € 1.600,00
55. 1 anel em ouro branco com brilhante redondo € 1.500,00
56. 1 anel em ouro branco com pedra grande preto ónix com brilhantes € 2.500,00
57. 1 anel em brilhantes castanhos € 2.000,00
58. 1 anel ouro branco marca Bulgari € 980,00
59. 1 aliança Patek Philipe, igual a relógio € 5.350,00
60. 1 anel em ouro amarelo com 3 brilhantes € 700,00
61. 4 colares H. Stern com fechos em estrela com brilhantes, igual a brincos € 2.400,00
62. 1 colar cinza em ouro branco com frente em brilhantes € 2.000,00
63. 1 colar em ouro amarelo, branco e rosa € 1.850,00
64. 1 colar em ouro branco Bulgari, igual a anel € 2.150,00
65. 1 colar Chopard com 5 brilhantes € 4.590,00
66. 1 colar com 1 pérola cinza, igual a brincos € 450,00
67. 1 colar em ouro branco com um brilhante € 3.000,00
68. 1 abelha em ouro branco com brilhantes € 600,00
69. 1 abelha em ouro branco com brilhantes negros € 600,00
70. 1 barra de ouro 18 kilates 1 kg € 18.000,00
71. 1 monograma em brilhantes letra J € 700,00
72. 1 monograma em brilhantes letra P € 700,00
73. 1 pulseira larga em ouro branco c/ 264 brilhantes com 35,52 kilates + 1 brilhante c/2,40 kilates gravada com monograma (O.M.F.) € 60.000,00
74. 1 pulseira Riviera com brilhantes negros € 3.100,00
75. 1 pulseira de ouro amarelo larga € 1.800,00
76. 1 pulseira em brilhantes/navetes, igual a aliança € 17.000,00
77. 1 pulseira em ónix € 600,00
78. 1 pulseira em ouro branco com letras em ouro branco € 750,00
79. 1 pulseira em pele com brilhantes € 1.000,00
80. Conjunto de 2 bonecas orientais em prata e marfim € 15.000,00
81. Conjunto de bailarinas em prata € 1.500,00
82. Conjunto de abóboras em prata € 5.000,00
83. Faqueiro em Prata € 6.000,00
84. Serviço de chá em prata € 4.300,00
85. Taça em prata € 1.640,00
86. 2 Jarras em prata c/ aplicação em pedras semi-preciosas € 16.000,00
87. 1 Casaco Vison comprido € 12.000,00
88. 1 Casaco Vison curto € 7.000,00;
g) Para reparação de danos na residência na sequência do descrito em d) e e), concretamente reparação da caixa-forte, reparação do sistema de alarme, substituição de cortinas levadas, e reparação da porta da cozinha, D... e E... despenderam quantia superior a €2.500,00;
h) A central de alarme existente na morada de D... e E..., sita na Rua ..., ., ..., Trofa, que controlava todo o sistema de alarme do edifício e logradouro, encontrava-se ligada à central de operações da ré “G... “ através de linha telefónica e ainda sistema GSM, sem fios, e realizava automaticamente um teste à ligação todos os dias;
i) Em ordem a monitorizar o alarme, quando ocorriam disparos, e em ordem a diferenciar disparos de alarme respeitantes a intrusões reais na casa de disparos meramente acidentais, os operadores, actuando por conta da ré “G...“, tinham por procedimento desarmar remotamente o sistema de alarme e voltar a armá-lo;
j) Em 24 de Dezembro de 2009, pelas 5 horas e 38 minutos, o operador de alarme, actuando por conta da ré “G...“, desarmou remotamente o sistema de alarme da morada em causa, mas não o voltou a rearmar, pelo que à altura dos factos descritos em d) e e) o sistema de alarme estava desactivado e não detectou qualquer intrusão;
k) Em 22 de Dezembro de 2009, D..., E..., o filho destes e AD..., aludido em b), ausentaram-se para o Brasil em gozo de férias por 12 dias, não deixaram ninguém a guardar a sua habitação, não informaram da sua ausência prolongada o padeiro, que continuou a deixar-lhes o pão ao portão da casa, e não informaram a “G...“ dessa sua ausência;
l) Em Setembro de 2009, foram introduzidas alterações no sistema de alarme da morada em questão, com substituição da central, por entidade diversa da “G... ou F...“, na sequência do qual a central de operações da “G...“ deixou de ser automaticamente informada do estado de armado ou desarmado do sistema de alarme, por acção dos seus operadores ou de pessoa que para tanto accionasse a central existente na residência;
m) A AE..., S.A., fez emitir o documento junto por B... em 10/03/2014 (fls. 491e ss.), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que numerou como apólice n.º 32/......, pelo qual declarou nomeadamente assumir o risco por danos causados a uma habitação sita na Rua ..., n.º ., Trofa por furto ou roubo, até ao montante máximo de € 766.869,45 em respeito a sinistros indicados nas condições gerais, mediante o pagamento pela autora de uma contraprestação anual convencionada, no período anual desde 9/12/2009 e anos seguintes;
n) Em cumprimento do descrito supra e para compensar os danos sofridos pela perda dos objectos descritos na alínea f) sob os números 1. a 13., 24. a 28., 36. a 40., 43., 45. a 51., 54., 55., 58., 60., 61., 63., 66., 68., 69., 71., 72., 75., e 77. a 88., e para reparação dos danos descritos em g), limitados contratualmente em €2.500,00, a autora pagou a D... e E... € 193.304,55 em 26 de Maio de 2010;
o) A autora incorporou por fusão AE..., S.A.;
p) A ré C... – Companhia de Seguros, S.A. fez emitir o documento n.º 2 junto com a sua contestação nos presentes autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que numerou como apólice n.º .............., pelo qual declarou nomeadamente assumir a responsabilidade civil de F..., S.A., derivada da sua actividade de segurança privada, nomeadamente de vigilância de bens móveis e imóveis, até ao montante máximo de €1.000.000,00, com sujeição a uma franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, em respeito aos sinistros indicados nas condições gerais e especiais, mediante o pagamento pela autora de uma contraprestação anual convencionada, no período anual desde 20/11/2004 e anos seguintes, reportando-se às condições especiais e gerais juntas por cópia com a contestação da ré “G...“ como documento n.º 1, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido;
q) A autora fez remeter em 28 de Setembro de 2011 à ré C..., que o recebeu, o escrito junto por cópia como documento n.º 5 com a petição inicial, do qual consta: “ Reportamo-nos ao sinistro ocorrido em 30 de Dezembro de 2009, na Rua ..., n.º ., ....-... Trofa (…) Face ao exposto, vimos, neste momento, reiterar que nos informem da V/ posição relativa ao reembolso à B... – Companhia de Seguros, S.A., no mencionado valor de € 193.304,55”.
*
V. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA:
V.I. Do recurso interposto pela Ré “C...“:
Fixado o quadro factual a atender para efeitos de subsunção jurídica, cumpre, nesta sede, reapreciar juridicamente a decisão proferida em 1ª instância e se, neste outro âmbito, lhe são assacáveis os erros que lhe dirige a ré.
As partes não esgrimem a este nível a questão da qualificação do contrato, o qual, foi – e bem – subsumido à figura do contrato de prestação de serviços.
Com efeito, segundo o preceituado o art. 1154º do Código Civil (adiante designado por CC), o contrato de prestação de serviços é «aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição
Em suma, como salienta em termos pacíficos a doutrina, o contrato de prestação de serviços é um contrato que visa realização de um vasto conjunto de serviços ou de resultados, distinguindo-se, porém, do contrato de trabalho por o objecto do contrato de prestação de serviços se reconduzir ao resultado do trabalho intelectual ou manual, levado a cabo de forma independente e sem subordinação jurídica perante a contraparte, ao passo que no contrato de trabalho o objecto do contrato é a própria activividade manual ou intelectual do trabalhador, subordinado, por isso, à direcção ou autoridade da contraparte, e integrado, enquanto factor de produção, na respectiva organização empresarial ou industrial. [11]
No caso dos autos, é manifesto que, de facto, o contrato que foi celebrado entre D... e “F... “ (posteriormente “G...”), se reconduz àquele tipo de negócio, pois que esta última se obrigou perante aquele, mediante uma determinada contrapartida pecuniária, a manter permanentemente ligado à sua Central privativa de alarmes o dispositivo de alarme instalado, por seu turno, na moradia sita na Rua ..., n.º ., ..., Trofa, e, em caso de alarme/intrusão detectada (o que supõe, necessariamente, a respectiva vigilância e controle à distância do alarme e dos sinais emitidos pelo alarme instalado na moradia e comunicados à Central por si operada), avisar telefonicamente o cliente ou as outras pessoas indicadas pelo mesmo, tendo em vista, naturalmente, em função do resultado que, segundo é corrente e normal que seja almejado pelo credor de tal serviço, impedir ou, no mínimo, dificultar a consumação não detectada de qualquer invasão não autorizada da moradia conectada, seja, na perspectiva de salvaguarda da segurança individual dos residentes ou, ainda, da integralidade dos eventuais bens ali existentes. Vide clausula 1., n.ºs 1 e 2 do contrato denominado de «prestação de serviços de vigilância electrónica» outorgado entre “F...“ e D..., este último como cliente e beneficiário do serviço, constante de fls. 113 destes autos e referenciado sob a) da sentença.
Ora, definida assim, em função do programa contratual e do subjacente interesse do credor, a prestação a cargo do devedor, isto é, em termos do interesse do credor da prestação e a que o devedor deve pontual satisfação (cfr. arts. 406º, n.º 1 e 762º, n.ºs 1 e 2 do CC), não se vislumbram, como já sentenciado em 1ª instância, quaisquer dúvidas fundadas quanto à afirmação pelo incumprimento do contrato por parte da prestadora dos serviços de vigilância e segurada da ora ré “C...“.
Na verdade, como se refere na sentença recorrida, citando a lição de Antunes Varela [12], à luz dos ditames da boa-fé na realização da prestação, o devedor não pode quedar-se por uma observância literal ou formal do clausulado, se a obrigação tiver – como é o caso -natureza contratual; Mais do que o respeito farisaico da fórmula na qual a obrigação ficou definida, interessa a «satisfação da necessidade [do credor] a que a obrigação se encontra adstrita. Por isso ele [o devedor] se deve ater, não só à letra, mas principalmente ao espírito da relação obrigacional.» [sublinhados nossos]
Em idêntico sentido, no tocante ao princípio da boa-fé no cumprimento da prestação, refere A. Menezes Cordeiro [13] que «é à luz da boa-fé que o comportamento devido deve ser delimitado; nessa base, (…) o cumprimento compreende não só a própria actividade retratada na prestação, mas ainda todos os comportamentos acessórios necessários à efectiva prossecução dos interesses do credor (…).
Com efeito, como salienta este último Professor, «quando se acorde um certo dever de prestar, o sistema exige que (sendo a obrigação séria, válida e eficaz) o respectivo efeito seja, efectivamente, procurado e alcançado pelos envolvidos. O Direito não se compadece com meras execuções formais ou com “cumprimentos” feitos em termos de inutilidade para o credor.» [sublinhado nosso] [14]
Como assim, à luz da boa-fé e do interesse do credor, cliente dos serviços contratados, não é possível, com o devido respeito, sustentar-se, como ora invoca a ré, que a sua estrita obrigação era manter a ligação entre as centrais de alarme e contactar ou avisar telefonicamente as pessoas designadas no contrato de qualquer anomalia monitorizada na sua central na sequência de um sinal de alarme/intrusão recebido do alarme da habitação, o que lhe não foi possível de cumprir por deficiências de comunicação entre ambos os sistemas, sendo certo, por um lado, que a manutenção e assistência da central de alarme da moradia foi atribuída a terceira entidade, a empresa “K...“, e, por outro, que os próprios assaltantes, ao danificarem ou destruírem o sistema de alarme existente na moradia e ao cortarem a linha telefónica, inviabilizaram o estabelecimento de tais comunicações entre as centrais de alarme e a detecção da intrusão.
Na verdade, esta tese sustentada pela ré não só não colhe na factualidade provada qualquer apoio, pois que desta não se evidencia a existência de qualquer falha ao nível da comunicação entre as centrais, nomeadamente por falha ou vício ao nível do serviço de manutenção e/ou assistência da central de alarme existente na moradia e realizado pela “K...”, até à consumação do assalto à moradia, como, ainda, a mesma escamoteia em absoluto que a destruição da central de alarme existente na moradia (situada no seu interior, seja no hall de entrada, seja na cave) teve lugar apenas depois dos assaltantes invadirem, por meio de escalamento, o espaço exterior à moradia, abrangido pelo raio de acção do alarme, sem que este último tivesse disparado (e, portanto, fosse detectada a intrusão), sendo certo, ainda, que o corte da linha telefónica levado a cabo pelos assaltantes por si só não bastaria para interromper as comunicações entre as centrais, uma vez que, como resulta da factualidade provada, o sistema de alarme da moradia encontrava-se ligado à central de operações da ré “G...“ não apenas por meio de linha telefónica como, ainda, por sistema GSM, sem fios – vide facto provado sob alínea h).
Por conseguinte, em termos de causalidade (adequada), a origem da não detecção da intrusão perpetrada pelos assaltantes na moradia em causa por parte da ré na sua central de alarme detecção que, de forma indubitável, face ao contratado e ao interesse do credor em dissuadir qualquer invasão não autorizada da sua residência, lhe incumbia cumprir -, resulta de na data do assalto, a 29.12. (e desde 24.12.), por negligência do respectivo operador (e funcionário da segurada da ora ré) o alarme não se encontrar «armado» ou em estado activo – vide alínea j dos factos provados -, sendo que, como bem se refere na sentença recorrida, por um lado, essa desactivação removeu a protecção que o contrato de vigilância (remota) visava garantir ao cliente/lesado e, por outro, que essa desactivação do alarme é, em si mesma, geral ou abstractamente apta, em face das regras da experiência comum e do curso normal das coisas, a consentir ou permitir a realização e consumação de um furto, por falha de detecção dos seus autores/assaltantes.
Com efeito, a propósito da aplicação do princípio da causalidade adequada no âmbito da responsabilidade contratual, refere o Prof. A. Varela que «desde que o devedor ou lesante praticou um facto ilícito e este actuou como condição de certo dano (…) justifica [-se] que o prejuízo recaia, em princípio, não sobre o titular do interesse atingido, mas sobre quem, agindo ilicitamente, criou a condição do dano.
Essa inversão só deixa de ser razoável a partir do momento em que o facto ilícito se pode considerar de todo em todo indiferente, na ordem natural das coisas, para a produção do dano registado.» [sublinhado nosso]
E acrescenta o mesmo Ilustre Professor: «só quando para a verificação do prejuízo tenham concorrido decisivamente circunstâncias extraordinárias, fortuitas ou excepcionais (que tanto poderiam sobrevir ao facto ilícito com a um outro facto lícito) repugnará considerar o facto (ilícito) imputável ao devedor ou agente como causa adequada do dano.» [15]
E não colhe, a nosso ver, para afastar o afirmado nexo de causalidade adequada entre a desactivação do alarme, por intervenção no sistema de funcionário e operador da segurada da ora ré, e a intrusão e assalto subsequente não detectado na central de alarme da mesma segurada (e prestadora do serviço de vigilância), o facto de, a partir de Setembro de 2009, por alterações introduzidas na central de alarme da moradia, a central de operações da “G...“ ter deixado de ser informada automaticamente do estado de armado [ligado] ou desarmado [desligado] do sistema de alarme, por acção dos seus operadores ou de pessoa que para tanto accionasse a central existente na residência – vide facto provado sob a alínea l) da sentença e não impugnado.
De facto, como se julga evidente, uma tal comunicação automática instalada até Setembro de 2009 na central de alarme existente na moradia tinha por fito corrigir o (involuntário) desligamento do alarme por parte dos utilizadores/habitantes da residência – originando procedimentos de rearme/activação do alarme por parte do funcionário da operadora na central -, mas já não tinha por fito corrigir um desligamento negligente ou imprevidente do próprio funcionário da operadora, que intervindo sob o sistema procedesse, a partir da central geral de alarmes à desactivação do alarme na moradia, como sucedeu no caso, sem cuidar de verificar e confirmar imediatamente ou logo após a intervenção no sistema, como se lhe impunha, que o alarme estava efectivamente activo, sendo certo, ademais, que o alarme se manteve desligado entre os dias 24. e o dia 29.12. (6 dias), o que evidencia e inculca, com o devido respeito, uma falha particularmente grave e reiterada ao nível do controle e supervisão do sistema de vigilância remota, o que, naturalmente, é apenas de imputar à segurada da ré, enquanto prestadora do serviço; Aliás, neste conspecto, é de referir, ainda, que, não só o contrato celebrado entre a prestadora de serviços de vigilância e o lesado não prevê ou consagra a existência de tal sistema automático de comunicação, como, ainda, logicamente, a impor-se a sua existência esse encargo sempre incumbiria à própria prestadora de serviços, enquanto forma de a mesma obviar a qualquer falha de cuidado ou de diligência dos seus funcionários encarregues de intervir no sistema de alarme e que podem, como bem ilustra o caso dos autos, por imperícia, por distracção, menor atenção (devido a excesso momentâneo de vários disparos em clientes distintos, originando uma dispersão da concentração, como foi aventado como justificação para o sucedido, pelo funcionário AF... que se encontrava na central de alarme no dia 24.12 e procedeu a tal desligamento), provocar a desactivação do alarme, sem cuidarem sequer, como podiam e deviam, a posteriori, de verificar ou confirmar do estado activo do alarme.
Como assim, à luz do exposto, improcedem as razões ou fundamentos invocados pela ré quanto ao afastamento do nexo causal entre o desligamento do alarme perpetrado pelo seu funcionário e a intrusão e assalto não detectados na moradia em causa, assim, como, logicamente, a questão do alegado cumprimento do contrato de prestação de serviços por parte da segurada da ré, o qual, pelo contrário, se tem, como já sentenciado, por manifestamente incumprido, incumprimento que é considerar como culposo, por não demonstração pela ré de factos susceptíveis de lograr o afastamento da presunção legal de culpa que prevalece no âmbito da responsabilidade contratual por força do preceituado no art. 799º, n.º 1 do CC.
Não obstante, suscita, ainda, a ré a questão da violação pelos lesados de deveres acessórios de conduta de informação e/ou cuidado/protecção, os quais, a seu ver, poderiam ter concorrido para evitar ou diminuir o risco da ocorrência do furto em apreço, como seja não terem os mesmos informado da sua ausência prolongada da habitação (para que esta dobrasse a atenção a quaisquer sinais suspeitos), não terem deixado alguém encarregue de vigiar a habitação (com tal valioso recheio) e ainda não terem obviado à percepção por terceiros da sua ausência da casa, como sucedeu com o padeiro que, por falta de aviso, continuou a deixar-lhes o pão à entrada ou porta.
Vejamos.
Como refere Manuel Carneiro da Frada [16], a relação contratual não é constituída apenas por aquilo em que as partes, no exercício da sua autonomia negocial, se comprometeram, incluindo, ainda, níveis não negociais: «tem uma dimensão quase-negocial ou, mais amplamente, de ato juridicamente relevante», plano no qual se situam os deveres acessórios. O inadimplemento de tais deveres é susceptível de gerar um incumprimento contratual, dando lugar à respectiva resolução por inexigibilidade da perduração da relação, para além do que se prevê nos artºs. 801.º e 802.º do CC.
Os deveres laterais referidos são normalmente denominados pela doutrina e pela jurisprudência como «deveres acessórios de conduta». [17]
Em idêntico sentido ensina Menezes Cordeiro [18] que a boa-fé, na medida em que implica a efectiva prossecução do fim da obrigação (da sua integral realização), complementa as formulações, por vezes lacónicas, dos vínculos creditícios, porque na formação do contrato nem tudo é previsível quanto ao seu desenvolvimento, daí decorrendo, da parte do devedor ou do credor, a assunção de deveres laterais, conexionados com o dever principal.
Almeida Costa [19] sistematiza, de forma exemplificativa, os referidos deveres laterais: deveres de cuidado, previdência e segurança; deveres de aviso e de informação; deveres de notificação; deveres de cooperação; deveres de proteção e cuidado relativamente à pessoa e ao património da contraparte.
A jurisprudência e a doutrina consideram, em termos pacíficos, que os deveres acessórios de conduta radicam no nosso ordenamento na existência de um dever geral de boa-fé, imperativamente enunciado no n.º 2 do artigo 762.º do CC «entendido o conceito no sentido de que os sujeitos contratuais, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício dos direitos correspondentes, devem agir com honestidade, e consideração pelos interesses da outra parte – princípio da concretização.» [20]
Em suma, ultrapassando a orientação clássica, de que a obrigação se esgota no dever de prestar, a doutrina e a jurisprudência perfilham uma compreensão global da situação jurídica creditícia, entendida como relação obrigacional complexa, que passa a envolver, paralelamente aos deveres principais ou primários (com base nos quais se define o tipo de contrato), os deveres acessórios de conduta ou laterais.
Ainda nesta matéria refere o Professor Mota Pinto que os deveres acessórios não tendem a realizar a prestação principal, mas a tutelar outros interesses da contraparte, coenvolvidos na prossecução do interesse que constitui o fim do programa contratual, sendo aplicáveis ao devedor ou ao credor e têm por referência ou matriz a cláusula geral da boa-fé, ou seja, a regra de valoração da conduta das partes contratantes como uma conduta honesta, correcta e leal. [21]
Ora, à luz de tais ensinamentos e subsumindo-os ao caso dos autos, não se nos apresenta exigível a qualquer cidadão que paute a sua conduta pela honestidade ou lealdade que comunique à empresa, a quem incumbe, a título principal, manter operacional o sistema de alarme e de vigilância da habitação, precisamente para acautelar os riscos de intrusão na
ausência dos residentes na moradia, essa ausência e o período de duração da mesma ou, ainda, que, em complemento ou acréscimo dessa protecção conferida pelo sistema de alarme, que é suposto ser integral e cabalmente proporcionada pelo cumprimento do contrato pelo prestador de serviços, providencie pela vigilância física e de proximidade, por outrem, do mesmo prédio ou sequer que tenha que avisar outrem da sua saída e ausência da habitação.
Ao invés, segundo cremos, por razões de segurança, o normal e exigível ao cidadão medianamente diligente e cuidadoso é que essa sua ausência não seja dada a conhecer a terceiros, uma vez que a partilha de tal informação pode gerar o seu aproveitamento indevido e um acrescido risco de assalto em tal período.
Por outro lado, resultando da factualidade provada que a causa da não detecção da intrusão na moradia e subsequente assalto foi a negligente desactivação do alarme por parte do funcionário da “G...“ encarregue do controle do sistema na central de alarmes da operadora, logo se nos evidencia que, ainda que tivesse o lesado cumprido os citados deveres de informação e colaboração, esse cumprimento, perante a causa da inoperacionalidade do alarme, não seria apto em termos gerais e abstractos a evitar a realização (não detectada) do assalto, atenta a comprovada não existência da protecção conferida pelo alarme, por acto imputável à empresa a quem incumbia zelar pela manutenção dessa protecção e inerente supervisão remota da moradia.
Dito de outra forma, e como se mostra já salientado na sentença recorrida, em tal circunstancialismo, falece a prova de que o cumprimento de tais deveres acessórios (a afirmarem-se) pelo lesado seria idóneo ou apto, segundo as regras da experiência e do curso normal das coisas, para evitar a não detecção do assalto e, portanto, para a sua consumação.
Improcede, pois, também esta questão suscitada pela ré e recorrente e, logicamente, a questão de uma eventual redução equitativa da indemnização (art. 494º do CC) ou, ainda, da redução da indemnização por via da alegada (mas não provada) concorrência de culpa dos próprios lesados (art. 570º do CC) na produção do evento danoso, a qual, ao invés, a nosso ver, é de atribuir, em exclusivo, à empresa prestadora de serviços por desactivação do alarme e consequente incumprimento dos deveres de detecção do assalto ali perpetrado e acionamento dos procedimentos de segurança exigíveis, sendo nesse conspecto, com o devido respeito, perfeitamente irrelevante que a empresa de segurança desconheça o valor dos bens do credor do serviço de vigilância/segurança ou que o seu valor exceda em significativa medida o valor da contraprestação pela prestação a seu cargo [pois não é suposto ou exigível existir nexo de correspectividade entre o custo do serviço e os prejuízos decorrentes do seu incumprimento, cujo ressarcimento incumbe ao devedor inadimplente], sendo certo que não se vislumbra qualquer fundamento contratual, mesmo ao nível dos deveres acessórios emergentes do princípio da boa-fé, para a partilha de tal informação com a empresa encarregue da vigilância remota da moradia em causa e onde os bens se encontravam à data da realização do assalto não detectado.
Por último, ainda, no que tange ao recurso interposto pela ré, sustenta a recorrente que, para efeitos do contrato de seguro multi-riscos habitação celebrado entre autora e o lesado – e ao abrigo do qual a autora/seguradora pagou, a título indemnizatório, a quantia que ora reclama a título de sub-rogação – não é de considerar como «recheio geral de uma habitação» um património composto por ouro, jóias e relógios, em particular de tão elevado valor.
Como assim, a seu ver, não se encontrando, segundo advoga, a autora obrigada a indemnizar o furto de tais bens, falece o fundamento para o pagamento que fez, pelo que não se pode afirmar que a mesma se encontra sub-rogada nos direitos do seu segurado.
A questão coloca-se, pois, ao nível das condições legais para o exercício da acção sub-rogatória prevista no actual art. 136º, n.º 1 da LCS, aprovada pelo DL n.º 72/2008 e aplicável ao contrato de seguro em causa, em conformidade com o disposto nos arts. 2º, n.º 1 e 7º do aludido diploma legal. [22]
Preceitua o citado art. 136º, n.º 1 da LCS que «o segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro.»
A acção sub-rogatória, no âmbito dos contratos de seguro, e em particular dos seguros de coisas, está associada ao denominado princípio do indemnizatório e analisa-se em duas vertentes essenciais, que caracterizam e definem o seu regime jurídico: - evitar que o segurado beneficie com uma perda, obtendo uma dupla indemnização (da seguradora e do terceiro responsável); - garantir à seguradora o direito a ocupar o lugar do segurado e de, em seu nome, desencadear as acções necessárias ao reembolso do que tenha pago ao seu segurado. [23]
O exercício da sub-rogação pela seguradora depende, assim, da verificação de dois requisitos gerais: (i) que ao segurado assista o direito de acção contra o lesante, isto é que haja responsabilidade de terceiro pelos danos causados ao segurado; (ii) que a seguradora haja indemnizado o seu segurado.
Ao fundado exercício da acção sub-rogatória exige-se, por isso, a afirmação da responsabilidade civil (contratual ou extracontratual) do terceiro - ou da sua seguradora, como é o caso da ora ré e demandada – e o pagamento efectuado pela demandante/seguradora, pagamento que define a medida e a extensão do direito do sub-rogado (cfr. art. 593º, n.º 1 do CC).
Neste sentido, refere José Vasques, citando o Professor Vaz Serra [24], «O segurador não quer obrigar-se a pagar o montante do seguro de maneira a suportar sempre o encargo definitivo do prejuízo, mas só a oferecer ao segurado uma garantia contra os danos que eventualmente lhe sejam causados. Nestas condições a obrigação do segurador não vai além do que este fim justifica e, consequentemente, se houver um terceiro responsável, sub-roga-se o segurador no direito do segurado contra esse terceiro
No caso dos autos, quanto à verificação dos aludidos pressupostos da sub-rogação, os mesmos mostram-se, a nosso ver, claramente verificados, como, aliás, já se salientou na sentença recorrida.
Com efeito, não só resulta indiscutida, a nosso ver, pelo que já antes se expôs, a responsabilidade civil contratual de “G...”“/”F...“ perante o lesado pelos danos ocasionados pela realização do furto não detectado na moradia em apreço, seja ao nível do valor dos bens furtados, como ainda dos custos com a reparação dos danos ocasionados no próprio edifício, no cofre esventrado e no sistema de alarme - vide alíneas f e g dos factos provados-, como, ainda, se mostra demonstrado que a autora, ao abrigo do contrato de seguro multi-riscos habitação outorgado com o mesmo lesado, enquanto tomador em tal seguro, lhe pagou, por conta do ressarcimento parcial de tais danos (cobertos pelo dito seguro multi-riscos), a quantia de € 193. 304, 55 – vide alínea n) dos factos provados.
Não obstante, certo é que sustenta agora a ré que tal pagamento não seria, a final, devido por aquela, pois que os bens em apreço [ou seja os bens cujo valor foi pago ao segurado pela seguradora/demandante e referidos sob a alínea n)] não devem ser, para efeitos do seguro multi-riscos habitação e aferição do respectivo âmbito de cobertura, considerados ou tidos como parte integrante do «recheio da habitação».
Sucede que a questão assim arguida é, manifestamente, uma questão nova, no sentido de que não foi antes suscitada ou colocada na sede própria, qual seja a fase declarativa em 1ª instância, em especial na peça de oposição/contestação da ré, e ali tema de conhecimento e pronúncia na sentença final.
Com efeito, compulsada a contestação da ré oferecida nos presentes autos, em nenhum artigo de tal peça processual a ré/recorrente suscitou a exclusão do âmbito de cobertura do seguro multi-riscos habitação celebrado entre a seguradora/autora e o lesado D... nos termos em que ora invoca, isto é por os bens furtados não deverem ser tidos como parte integrante do recheio da casa/habitação, o que fez apenas e só nesta instância recursiva; Nesse conspecto, a ilustração do que se acaba de referir é que a própria sentença [relativamente à qual não foi suscitada, naturalmente, qualquer omissão de pronúncia] não aborda ou aprecia sequer tal matéria ou temática, precisamente porque, não sendo ela de conhecimento oficioso, a mesma não foi em nenhum momento invocada, a título de excepção, i.é, como facto extintivo do direito da autora, pela ré e ora recorrente na 1ª instância.
Ora, neste contexto, como vem sendo sucessivamente reiterado pela doutrina e pela jurisprudência, o sistema português, em matéria de recursos, segue o modelo do recurso de revisão ou reponderação e não da revisão da instância.
«Daí o tribunal ad quem produzir um novo julgamento sobre o já decidido pelo tribunal a quo, baseado nos factos alegados e nas provas produzidas perante este. Os juízes da 2ª instância, ao proferirem a sua decisão estão numa situação idêntica à do juiz de 1ª instância no momento de editar a sua sentença, valendo também para a 2ª instância as preclusões ocorridas na 1ª.»
Neste preciso sentido refere F. Amâncio Ferreira que «…os recursos são os meios para obter o reexame de questões já submetidas à apreciação dos tribunais inferiores, e não para criar decisões sobre matéria nova, não submetida ao exame do tribunal de que se recorre.» [25]
Por conseguinte, o conhecimento desta nova questão suscitada pela ré apresenta-se-nos como prejudicado nesta instância recursiva, o que terá de conduzir à sua inevitável improcedência.
De todo o modo sempre se dirá que o conceito de «recheio de habitação», segundo o que seria a interpretação e integração do mesmo por um declaratário normal ou medianamente diligente e sagaz, no contexto de um seguro multi-riscos de habitação de certa fracção ou edificação para fins habitacionais (art. 236º, n.º 1 do CC), sempre teria de abranger as partes integrantes de tal fracção/edifício, a título de bens móveis adquiridos ou ofertados aos ali residentes para satisfação das suas necessidades, incluindo imateriais, para seu conforto, comodidade, recreio ou simples lazer e pelos mesmos ali mantidos ou guardados, nomeadamente, como ora sucede, relógios, jóias ou outros objectos mais ou menos valiosos, como seja, ainda, mobiliário, peças de decoração, objectos de arte ou de colecção, computadores, televisores ou outros aparelhos do mesmo género, etc., etc., que é usual ali existirem e serem guardados, não obstante o pudessem ser em qualquer outro lugar, designadamente num cofre de banco.
O que tudo significa, pois, e em conclusão, que improcedem as questões suscitadas pela ré/recorrente “C...“ e a censura que a mesma dirige à sentença recorrida, a qual, sem prejuízo da pontual alteração da factualidade provada, nos termos acima expostos, é de manter, o que se julga.
Improcede, assim, a apelação interposta pela ré.
*
V.II. Do recurso interposto pela autora “B....“:
Resulta do antes exposto que é de manter a sentença recorrida na parte em que ali se condenou a ré e recorrente no pagamento da quantia de € 193. 304, 55, a título de sub-rogação da autora na posição do lesado D..., a quem a mesma adiantou o aludido montante a título de parcial indemnização pelos danos sofridos no assalto de que versam os presentes autos.
Coloca-se, pois, a questão dos juros de mora sobre o aludido montante, divergindo a autora do sentenciado na parte em que tais juros se mostram determinados apenas a partir da prolação da sentença, pois que, em seu entender, os mesmos deveriam ter sido determinados a partir da citação para a acção – cfr. conclusões III, IV e X da apelação interposta pela autora.
Resulta da sentença que ali se considerou, por aplicação do preceituado no art. 805º, n.º 3 do CC, que a obrigação peticionada pela autora seria ilíquida.
A obrigação considera-se ilíquida quando tem por objecto uma prestação cujo quantitativo não está ainda determinado ou fixado. [26]
Porém, a mera contestação ou impugnação do crédito que, à luz do pedido formulado pelo autor (credor) no processo se mostre certo e determinado, não converte o crédito em indeterminado e, portanto, ilíquido; O crédito, em tal circunstancialismo, ainda que não venha a ser reconhecido, total ou parcialmente, pelo tribunal que dele seja chamado a conhecer, não deixa de ser «ab initio» um crédito determinado e, logicamente, líquido, nomeadamente para efeitos do início de mora do devedor.
De outro modo, como certeiramente afirma a autora nas suas alegações, a mera oposição do devedor perante um pedido certo e determinado formulado pelo credor nos autos obstaria ao vencimento dos juros de mora, em contrário do interesse do credor e dos princípios que, em protecção do seu interesse, emergem do preceituado nos arts. 804º, n.º 1, n.º 1 e 805º, n.º 1 do CC.
Com efeito, como resulta dos citados incisos, não só a simples mora, enquanto atraso no cumprimento da obrigação, ainda possível, imputável ao devedor, o sujeita à obrigação de reparar os prejuízos causados ao credor, como, ainda, essa mora, nas obrigações puras (não sujeitas a prazo certo para o cumprimento), decorre da interpelação judicial ou extrajudicial para cumprir, isto é da comunicação pelo credor do seu propósito ou vontade de receber a prestação em falta.
A citação operada em juízo tem, precisamente, esse significado, qual seja o de o autor (credor) exigir, reclamar do réu (devedor) o pagamento da quantia peticionada, visando obter em momento oportuno do órgão judicial a correspondente condenação do réu em tal pagamento não realizado voluntariamente. [27]
Certamente que o devedor pode, na sequência de tal interpelação judicial, como normalmente sucede, esgrimir o crédito que contra si se mostra afirmado e reclamado, nomeadamente a sua existência e a sua validade, como, ainda, pode o Tribunal, a final, vir a não reconhecer, total ou parcialmente, o crédito, com a consequente absolvição total ou parcial do pedido formulado; De todo o modo, após a citação e da consequente interpelação para cumprir, o risco e os custos/prejuízos para o credor pela mora no pagamento – quanto ao quantitativo que a final vier o tribunal a ter como reconhecido – correrão por conta do devedor e em benefício do credor, em conformidade com as regras substantivas antes expostas.
No caso presente os juros moratórios são, portanto, devidos a partir da citação, por ser essa a data da interpelação, apesar de, como é próprio do processo judicial, apenas a final, na sentença, o crédito (inicialmente líquido) vir a ser reconhecido, total ou parcialmente, consoante o caso concreto. [28]
Com efeito, no caso dos autos, a apelante autora fundou a sua pretensão numa obrigação certa e determinada, logo líquida, e concluiu, logicamente, a sua petição com o pedido (líquido) de pagamento da quantia de € 193.304,55, ou seja com indicação expressa do montante da prestação devida.
Como assim, não se tratando, manifestamente, de uma obrigação sujeita a prazo certo para o seu cumprimento, com a citação o credor interpelou a devedora/ré para cumprir e, a partir dessa data, esta última constituiu-se em mora e por isso, assiste à autora o direito à reparação dos danos sofridos com a simples mora, danos estes que, em conformidade com o disposto no art. 806º, n.º 1 do CC, o legislador faz equivaler aos juros legais, à taxa sucessivamente em vigor, e que hoje se cifra em 4%.
E assim sendo, sem outras considerações, deverá proceder na íntegra a apelação interposta pela autora, o que ora se julga.
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VI. DECISÃO:
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto em julgar:
a)- improcedente a apelação interposta pela ré “C..., Companhia de Seguros”;
b)- procedente a apelação interposta pela autora, confirmando a sentença recorrida, salvo quanto aos juros de mora que deverão ser contabilizados desde a citação (24.01.2012), à taxa legal, sucessivamente aplicável, e até integral e efectivo pagamento.
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Custas, em ambos os recursos, por “C..., SA “, pois que ficou vencida em ambos – art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
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Porto, 27.11.2017
Jorge Seabra
Fátima Andrade
Oliveira Abreu
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[1] Vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos No Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 2ª edição, 2014, pág. 134.
[2] Vide, neste sentido, A. ABRANTES GERALDES, op. cit., pág. 132.
[3] J. ALBERTO dos REIS, “Código de Processo Civil Anotado”, IV volume, Coimbra Editora, 1987, pág. 357-358.
[4] J. ALBERTO dos REIS, op. cit., pág. 360.
[5] MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “Estudos Sobre o Novo Código de Processo Civil”, Lex, 1997, pág. 348.
[6] Vide, neste sentido, por todos, AC STJ de 19.10.2004, CJ STJ, ano XII, Tomo 3, pág. 72, AC STJ de 22.02.2011, CJ, ano XIX, Tomo 1, pág. 76 e AC STJ de 24.09.2013, relator AZEVEDO RAMOS, este último in www.dgsi.pt.
[7] Vide AC STJ de 3.11.2009, relator MOREIRA ALVES, também in www.dgsi.pt
[8] Vide, neste sentido, A. ANSELMO de CASTRO, “Direito Processual Civil Declaratório”, III volume, Coimbra, 1982, pág. 173 e J. LEBRE de FREITAS, “Introdução ao Processo Civil”, Coimbra Editora, 1ª edição, pág. 157.
[9] AC RP de 11.12.2014, relator JUDITE PIRES, antes citado.
[10] AC RP de 26.06.2014, Processo n.º 1040/12.2TBLSD-C.P1, relator ARISTIDES RODRIGUES de ALMEIDA, in www.dgsi.pt
[11] Vide sobre a matéria, distinguindo o contrato de prestação de serviços de outras figuras próximas, por todos, A. VARELA, P. LIMA, “Código Civil Anotado”, II volume, 3ª edição, pág. 702-703, P. ROMANO MARTINEZ, “Direito das Obrigações – Parte Especial - Contratos”, pág. 300-314 e L. MENEZES LEITÃO, “ Direito das Obrigações - Contratos em Especial ”, III volume, 5ª edição, pág. 427.
[12] A. VARELA, “Direito das Obrigações”, II volume, 4ª edição, pág. 12.
[13] A. MENEZES CORDEIRO, “ Tratado de Direito Civil - II – Direito das Obrigações”, Tomo IV, 2010, pág. 32; Sobre o interesse do credor como escopo e razão existencial da prestação vide, ainda, J. CALVÃO da SILVA, “Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória”, Separata do XXX volume do suplemento ao BFDC ”, 1987, pág. 61-62.
[14] A. MENEZES CORDEIRO, “ Tratado de Direito Civil - II – Direito das Obrigações ”, Tomo I, 2009, pág. 482.
[15] A. VARELA, “ Direito das Obrigações ”, I volume, 6ª edição, pág. 864; No mesmo sentido, vide, ainda, por todos, ALMEIDA COSTA, “ Direito das Obrigações ”, 11ª edição, Revista e Actualizada, pág. 763-764.
[16] MANUEL CARNEIRO da FRADA, “Os deveres (ditos) acessórios e o arrendamento”, ROA, ano 2013, n.º 1, pág. 267-290.
[17] Vide, por todos, A. VARELA, “ Direito das Obrigações ”, I volume, cit., pág. 124, L. MENEZES LEITÃO, “Direito das Obrigações”, I volume, 7ª edição, pág. 123-126, A. MENEZES CORDEIRO, “Tratado… II - Obrigações ”, Tomo I, cit., pág. 297-309 e 465-485; na jurisprudência, vide, por todos, AC RP de 25.11.2011, relator VIEIRA e CUNHA, AC RP de 14.03.2016, relator CARLOS QUERIDO ou, ainda, AC RP de 7.02.2017,relator CECÍLIA AGANTE, todos in www.dgsi.pt.
[18] A. MENEZES CORDEIRO, “Direito das Obrigações”, I volume, AAFDL, 1980, pág. 149.
[19] ALMEIDA COSTA, op. cit., pág. 77-78.
[20] AC STJ de 7.12.2010, Processo n.º 984/07.8TVLSB.P1.S1, relator SILVA SALAZAR, disponível também in www.dgsi.pt.
[21] C. MOTA PINTO, “Cessão da Posição Contratual ”, Almedina, 1982, pág. 341-344.
[22] Sobre a aplicação do novo regime aos contratos de seguro vigentes à data da sua entrada em vigor e ainda que celebrados em data anterior, vide, por todos, P. ROMANO MARTINEZ, “Lei do Contrato de Seguro Anotada”, Almedina, 2008, anotação ao artigo 2º, pág. 25-26.
[23] JOSÉ VASQUES, “Contrato de Seguro”, Coimbra Editora, 1999, pág. 152.
[24] JOSÉ VASQUES, op. cit., pág. 154; VAZ SERRA, “Sub-rogação do Segurador”, RLJ, ano 94º, págs. 227-228.
[25] Vide, neste sentido, FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, “Manual dos Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 147, A. ABRANTES GERALDES, “Recursos no Novo Código de processo Civil”, 2ª edição, pág. 92-93 (e jurisprudência citada) e, ainda, a título meramente exemplificativo, AC RL de 3.03.2011, relator HENRIQUE ANTUNES ou AC RC de 15.02.2011, relator A. BEÇA PEREIRA, ambos in www.dgsi.pt.
[26] Vide, neste sentido, por todos, MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “A Acção Executiva Singular”, Lex, 1998, pág. 107, J. LEBRE de FREITAS, “A Acção Executiva, À Luz do Código Revisto”, Coimbra Editora, 1997, pág. 71 e A. VARELA, “Das Obrigações em Geral”, II volume, cit., pág. 111.
[27] Vide, neste sentido, por todos, I. GALVÃO TELLES, “Direito das Obrigações”, Coimbra Editora, 6ª edição, pág. 243-244.
[28] Vide, neste sentido, por todos, AC RP de 26.01.2015, relator ANA PAULA AMORIM, AC RC de 26.02.2013, relator MARIA JOSÉ GUERRA, ou, ainda, AC RC de 23.10.2012, relator CATARINA GONÇALVES, todos in www.dgsi.pt.