Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1447/11.2TBPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO DISPONÍVEL
AJUDAS DE CUSTO
Nº do Documento: RP201805301447/11.2TBPNF.P1
Data do Acordão: 05/30/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 675, FLS 555-560)
Área Temática: .
Sumário: I - A natureza remuneratória ou compensatória de certa prestação não se pode firmar apenas no nome que a entidade pagadora lhe dá, antes deve resultar de uma qualificação atribuída a certa realidade de facto.
II - Só se pode concluir que certa importância tem a natureza de ajudas de custo desde que se comprove que se destinou a reembolsar o trabalhador de despesas concretas que suportou por causa ou por força do exercício da sua atividade profissional.
III - A circunstância de valores denominados de ajudas de custo terem sido pagos ao longo dos doze meses do ano de 2016, com referência a todos os dias de trabalho de cada um desses meses, com um valor uniforme, aponta, com segurança, no sentido de não terem essa natureza compensatória.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Sumário do acórdão proferido no processo nº 1447/11.2TBPNF.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 29 de junho de 2011, no processo especial de insolvência então pendente no 2º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Penafiel, foi declarada a insolvência de B....
Em 30 de novembro de 2011, além do mais[1], foi proferido despacho inicial favorável ao insolvente no incidente de exoneração do passivo restante, fixando-se o rendimento indisponível no montante um salário mínimo nacional, com as atualizações a que aquele seja sujeito.
Em 01 de setembro de 2014, por efeito da reorganização da divisão judiciária, os autos foram remetidos à Secção de Comércio, J1, Instância Central de Amarante, Comarca do Porto Este.
Em 10 de fevereiro de 2017, a Sra. Fiduciária apresentou relatório com o seguinte teor:
No ano de 2016, o insolvente auferiu o montante líquido de € 13.610,40, conforme recibos de vencimento que se anexam, pelo que terá de ceder à Massa Insolvente o montante de € 7.250,40.
Na presente data, o insolvente foi notificado dos valores em dívida.
Em 20 de fevereiro de 2017, foi proferido o seguinte despacho:
Tomei conhecimento dos Relatórios que antecedem.
Notifique a Sr.ª Fiduciária para vir informar se o Insolvente já lhe entregou a quantia em falta e apurado por referência ao rendimento disponível que lhe foi fixado. Devendo inda apresentar o seu Relatório Final quanto ao período de cessão.
Prazo: 30 dias.
Em 26 de fevereiro de 2017, B... requereu o seguinte:
1.
O mandatário do Insolvente por consulta dos autos via citius constatou que a Fiduciária juntou aos autos o relatório do ano de 2016, tendo referido que o Insolvente auferiu a quantia líquida de 13.610,40 €, conforme recibos que juntou, entendendo aquela que o Insolvente tem de ceder à massa o montante de 7.250,40 €.
2.
Ora, esta afirmação não é verdadeira, se não vejamos:
3.
No ano de 2016 o Insolvente auferiu 12 salários no valor de 530 € cada um, num total de 6.360 euros.
4.
Também resulta dos 12 recibos de vencimento que o Insolvente recebeu a quantia de 7.950 euros a título de ajudas de custo.
5.
Esclarece o insolvente que durante o ano inteiro de 2016 teve de se deslocar da sua habitação para as mais diversas localidades de Portugal a fim de executar diversas que foram adjudicadas à sua entidade patronal.
6.
Por tal facto, teve de adiantar dinheiros no interesse e por conta da sua entidade patronal e posteriormente foi ressarcido por aquela,
7.
Por via disso é que mensalmente recebeu ajudas de custo, as quais foram variáveis, referentes às despesas que realizou para se deslocar para os diversos locais de trabalho.
8.
As ajudas de custas visam compensá-lo pelas despesas com deslocações, alimentação, alojamento, etc., por motivos de trabalho, as quais variam todos os meses consoante as deslocações que o Insolvente efetua e despesas que realiza.
9.
Tais ajudas de custo, não são consideradas rendimentos de trabalho dependente, uma vez que são totalmente despendidas nas despesas do alojamento, alimentação, deslocação, etc., do Insolvente efetuadas ao serviço e em favor da entidade patronal.
10.
Ou seja, as ajudas de custas não proporcionam ao Insolvente um acréscimo patrimonial, tendo apenas natureza compensatória.
11.
Por último, importa referir que nenhum dos 4 relatórios juntos foram dados a conhecer pela Fiduciária ao Insolvente nem ao seu mandatário.
Termos em que, Requer que a Fiduciária seja notificada para, no prazo de 10 dias, reformular o relatório referente ao ano de 2016, procedendo à eliminação da quantia recebida pelo Insolvente referente a ajudas de custo, por as mesmas não representarem um rendimento, mas sim uma compensação igual ao valor das despesas realizadas em cada período mensal.
Em 03 de março de 2017, B... requereu o seguinte:
Vem requerer a junção de declaração emitida pelo TOC[2] da entidade patronal do Requerente de onde resulta que as ajudas de custo pagas e constantes dos recibos de vencimento do Requerente têm caracter meramente compensatório e não representam qualquer acréscimo patrimonial daquele.
As ajudas de custo destinam-se a compensar o trabalhador pelas despesas suportadas por força do serviço prestado em benefício da entidade patronal.
Termos em que,
Reitera o pedido de notificação da Fiduciária para, no prazo de 10 dias, reformular o relatório referente ao ano de 2016, procedendo à eliminação da quantia recebida pelo Insolvente referente a ajudas de custo, por as mesmas não representarem um rendimento, mas sim uma compensação igual ao valor das despesas realizadas em cada período mensal.
Em 20 de março de 2017, a Sra. Fiduciária juntou aos autos o seguinte relatório:
No exercício das suas funções cabe à Fiduciária elaborar relatório relativo aos rendimentos do insolvente e afectar os rendimentos entregues à massa insolvente de acordo com o disposto no nº 1 do Art.º 240º do CIRE.
Solicitados ao insolvente os documentos comprovativos dos valores auferidos no ano de 2016, foram entregues cópias dos recibos de vencimento, nos quais constam para além do vencimento mensal equivalente a um salário mínimo nacional, uma quantia fixa mensal de montante superior a € 600,00 a título de ajudas de custo, bem como a categoria profissional de sócio gerente.
A Fiduciária elaborou relatório com base na totalidade das quantias auferidas pelo insolvente porque, apesar de aquele montante estar referenciado sob a rubrica “ajudas de custo”, assume carácter fixo visto que é pago em todos os dias de trabalho do insolvente perdendo assim o carácter compensatório e assumindo carácter remuneratório (docs. 1 a 12 que se juntam[3]).
Para além disso, pelo facto de o insolvente ser o gerente de uma sociedade de que foi sócio até ao ano da insolvência e de que o seu filho é agora sócio maioritário, suscita algumas dúvidas que nem a declaração do TOC da sociedade C..., Lda. dissipou (docs. 13[4], 14[5] e 15[6]).
Entende a AJ que tais circunstâncias poderão configurar uma verdadeira fuga à entrega de rendimento à massa insolvente durante o período de cessão.
Contudo, caberá a V. Exa. sobre que valores deverão ser calculados os rendimentos a ceder à massa insolvente, ficando a Fiduciária a aguardar tal resposta para rectificar o seu relatório, caso V. Exa. assim o entenda.
Em 28 de março de 2017, foi proferido o seguinte despacho[7]:
Como a Sr.ª Administradora Fiduciária bem sabe e o Insolvente também sabe, ou devia saber, todo e qualquer rendimento auferido, tenha ele o nome que tiver, que esteja acima do rendimento indisponível fixado, deve ser entregue à Sr.ª Administradora Fiduciária.
Notifique, sendo também a Sr.ª Administradora Fiduciária para informar se todos os rendimentos lhe foram entregues, nos termos a que legalmente está obrigado o Insolvente.
Prazo: 20 dias.
Em 15 de abril de 2017, inconformado com a decisão que antes se transcreveu, B... interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
A) Em 28/03/2017 o tribunal recorrido proferiu despacho no qual decidiu “… que todo e qualquer rendimento auferido acima do rendimento disponível fixado, deve ser entregue à Srª. Administradora Fiduciária…”, contudo este despacho está ferido de nulidade e de errada interpretação da lei vigente no nosso ordenamento jurídico, designadamente as normas contabilísticas;
B) A Fiduciária no dia 10/02/2017 pelas 17:40:05GMT sob a referência 24870007, juntou aos autos o relatório referente ao ano de 2016, tendo referido que o Insolvente auferiu a quantia líquida de 13.610,40 €, conforme recibos que juntou, entendendo aquela que o Recorrente tinha de ceder à massa o montante de 7.250,40 €, contudo não lhe assiste razão, se não vejamos:
C) No ano de 2016 o Recorrente auferiu e recebeu 12 salários no valor de 530 € cada um, num total de 6.360 euros e recebeu a quantia de 7.950 euros a título de ajudas de custo, tal como flui dos 12 recibos de vencimentos juntos aos autos;
D) Durante o ano de 2016, o Recorrente para prestar o seu trabalho em benefício da sua entidade patronal teve de se deslocar da habitação onde reside para as mais diversas localidades de Portugal a fim de executar diversas obras que foram adjudicadas à sua entidade patronal;
E) Nessas deslocações teve de adiantar dinheiros no interesse e por conta da sua entidade patronal e posteriormente foi ressarcido por aquela de tais importâncias, as quais variaram de mês para mês e consoante a localização das obras a executar;
F) As ajudas de custas pagas ao Recorrente visaram compensá-lo pelas despesas realizadas por aquele nas deslocações, alimentação, alojamento, etc., e não representa, qualquer rendimento proveniente do trabalho;
G) Tais ajudas de custo, não são consideradas rendimentos de trabalho dependente, uma vez que foram totalmente despendidas em despesas de alojamento, de alimentação, de deslocação, etc., que o Recorrente deve de suportar para prestar o seu trabalho, no interesse e por conta da sua entidade patronal e que no final de cada mês recebeu daquela, ou seja, as ajudas de custas não proporcionaram ao Insolvente um acréscimo patrimonial, tendo apenas natureza compensatória, tal como foi atestado pelo TOC da entidade patronal do Recorrente;
H) O despacho recorrido teve um entendimento diferente, o que não se concebe, isto porque o Recorrente para trabalhar e auferir um rendimento mensal teve necessidade de adiantar determinadas quantias pela sua entidade patronal, quantias essas que recebeu no final de cada mês, não cruzou os braços, foi em busca de trabalho, tentou produzir, tentou angariar fundos para sobreviver e ajudar no sustento das suas filhas menores, gémeas, com 12 anos de idade, D... e E..., para as quais contribui com uma quantia mensal de 230 € para ambas as filhas;
I) É incompreensível que tendo o Recorrente suportado a quantia de 7.950 euros ao longo do ano de 2006 em despesas de alojamento, de alimentação, de deslocação, etc., no interesse e por conta da sua entidade patronal, e que esta depois de conferir tais despesas as tenha pago ao Recorrente, que seja obrigado agora a devolver tais quantias à Senhora Fiduciária, quando na verdade tal quantia não representa qualquer rendimento antes sim despesa;
J) Ora esta obrigação imposta pelo despacho recorrido é no mínimo surreal, irrealista, injusta e até violadora dos mais elementares princípios da justiça, da igualdade, da dignidade da pessoa humana, pois mais valia ao recorrente estar parado sem nada fazer, valendo-se o ócio durante os 5 anos do período de exoneração;
K) O Recorrente tem responsabilidades mensais para pagar, designadamente as pensões de alimentos das duas filhas, tem de se alimentar, tem de se calçar, tem de se vestir, etc., e o trabalho nunca lhe fez mal, mesmo que para tal tenha de adiantar dinheiros pela sua entidade patronal, pois sabe que no final de cada mês recebe daquela todas as quantias que adiantou durante o mês no interesse e por conta da sua entidade patronal;
L) O despacho recorrido violou o princípio da igualdade dos cidadãos, violou os mais elementares princípios da justiça, da igualdade, da dignidade da pessoa humana, bem como violou as mais elementares regras contabilísticas que preceituam que as ajudas de custo não têm caracter remuneratório, antes sim compensatório, destinando-se a compensar o trabalhador pelas despesas por si suportadas mensalmente por força do serviço prestado no interesse e por conta da sua entidade patronal;
M) O despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine que as ajudas de custos vertidas nos 12 recibos de vencimento do Recorrente referentes ao ano de 2016, no valor global de 7.950 euros, processadas a título de ajudas de custo, não configuram rendimento auferido pelo Recorrente, antes sim a devolução das despesas que aquele adiantou (mensalmente), no interesse e por conta da sua entidade patronal e como tal não devem ser entregues pelo Recorrente à Fiduciária.
Em 08 de junho de 2017, a Sra. Fiduciária contra-alegou, oferecendo as seguintes conclusões:
A. Não enferma de qualquer vício ou nulidade o despacho recorrido, nem faz qualquer errada interpretação das normas contabilísticas.
B. O Recorrente alega que apenas aufere um salário equivalente ao salário mínimo nacional, sendo sobre tal valor que devem ser efectuados os cálculos dos valores a ceder à massa Recorrente e não sobre o total do rendimento, visto que o Recorrente recebe ainda mensalmente quantia superior a € 600,00 sob a rubrica “Ajudas de custo”
C. Na base da decisão do Meritíssimo Juiz a quo estarão os documentos juntos pelo Recorrente e o requerimento apresentado pela Fiduciária, datado de 10 de Fevereiro p.p.º e no qual esta se pronuncia pela entrega à massa Recorrente da quantia de € 7.250,40, no ano de 2016.
D. Face aos recibos de vencimento entregues pelo Recorrente, a Fiduciária constatou que todos os meses o Recorrente recebe uma quantia fixa a título de vencimento e uma outra, também fixa e superior ao vencimento, a título de “ajudas de custo”.
E. Na verdade, aquele montante que está referenciado no recibo de vencimento sob a rubrica “ajudas de custo”, assume carácter fixo visto que é pago todos os dias de trabalho do Recorrente perdendo assim o carácter compensatório, contrariamente ao que o Recorrente pretende fazer crer, e assumindo carácter remuneratório.
F. A declaração emitida pelo Contabilista Certificado da sociedade C..., Lda. onde afirma que as ajudas de custo pagas têm carácter compensatório, não se mostrou suficiente para afastar o entendimento da Fiduciária, até porque nunca foram entregues à Fiduciária ou aos autos quaisquer comprovativos de tais despesas.
G. Sendo o Recorrente o gerente de uma sociedade de que foi sócio até ao ano da insolvência e de que o seu filho é agora sócio maioritário contraria as afirmações do Recorrente de que “…não cruzou os braços, foi em busca de trabalho…”
H. Afigura-se que o Recorrente não foi à procura de trabalho, apenas prosseguiu a sua actividade e pensou ter encontrado uma forma de não ceder rendimentos à massa insolvente ao obter rendimento sob a denominação de “Ajudas de custo”.
I. Sendo tais ajudas de custo pagas todos os dias de trabalho e por igual trata-se notoriamente de um valor fixo com carácter remuneratório e se, como alega o Recorrente, se tratasse de uma compensação pelas despesas suportadas em benefício da entidade patronal, as mesmas deviam ser pagas “à fatura”, sendo naturalmente valores variáveis e não seriam pagas por todos os dias de trabalho porque tal implicaria que o Recorrente estivesse deslocado permanentemente.
J. Não se entende como é possível ao Recorrente adiantar dinheiro pela entidade patronal quando depois de pagar alimentos à filhas menores no valor de e 230,00, apenas sobram cerca de € 300,00 para fazer face a todas as suas despesas e ainda adiantar dinheiro à entidade patronal.
K. Como é também estranho que o Recorrente não receba subsídio de férias nem de Natal, sendo que tal só acontecerá para, mais uma vez, nada entregar à massa insolvente.
L. É a Fiduciária de parecer que se deverá manter o despacho recorrido.
M. Carecem assim de absoluta falta de fundamento os argumentos suscitados pelo Recorrente.
O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Em 12 de julho de 2017, com dispensa de vistos, foi proferido acórdão que julgou improcedente o recurso de apelação.
Em 31 de julho de 2017, inconformado com tal decisão, B... veio, além do mais, arguir diversas nulidades do acórdão e a falta de notificação das contra-alegações, interpondo também simultaneamente recurso de revista que não foi admitido.
Em 13 de novembro de 2017, foi deferida a nulidade processual arguida pelo recorrente, anulando-se o acórdão proferido em 12 de julho de 2017 e ordenando-se a notificação da Sra. Fiduciária para em cinco dias proceder e comprovar a efetivação da notificação das suas contra-alegações.
Após comprovação da notificação das contra-alegações, B... suscitou a falta de constituição de mandatário por parte da Sra. Fiduciária, pugnando pela liminar rejeição das contra-alegações, com tal fundamento e, à cautela, afirmou, discorreu sobre o conteúdo das contra-alegações.
Em 17 de janeiro de 2018, a Sra. Fiduciária foi notificada para, querendo, em dez dias, constituir mandatário e ratificar o processado, vindo a mesma juntar aos autos procuração forense por si outorgada e declarando ratificar o processado.
Após contraditório do recorrente, a Sra. Advogada constituída pela Sra. Fiduciária veio declarar que aceitava o mandato que lhe foi conferido nestes autos e declarou ratificar o processado.
Em 11 de abril de 2018, proferiu-se despacho a julgar ratificar o processado e declararam-se não escritos os segmentos do requerimento do recorrente de 04 de dezembro de 2017, na parte em que se pronunciou para além da arguição da falta de patrocínio judiciário por parte da recorrida.
Com o acordo dos restantes membros do coletivo, atenta a natureza estritamente jurídica das questões decidendas e a sua simplicidade, decidiu-se dispensar os vistos, cumprindo de imediato apreciar e decidir, reiterando-se quanto consta já do acórdão proferido em 12 de julho de 2017, com ínfimas variações.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
A única questão a decidir é a de saber se os valores identificados como “ajudas de custo” nos recibos de vencimento de janeiro a dezembro de 2016 devem ou não ser considerados rendimento e integrar o rendimento disponível a entregar à Sra. Fiduciária.
3. Fundamentos de facto
Os fundamentos de facto pertinentes e necessários ao conhecimento do objeto do recurso constam do relatório desta decisão e resultam dos próprios autos, nesta parte, com força probatória plena.
4. Fundamentos de direito
Os valores identificados como “ajudas de custo” nos recibos de vencimento de janeiro a dezembro de 2016 devem ou não ser considerados rendimento e integrar o rendimento disponível a entregar à Sra. Fiduciária?
O recorrente pugna pela revogação do despacho sob censura e pela exclusão do rendimento disponível do valor de € 7.950,00 que lhe foi pago pela sociedade “C..., Lda.”, em doze meses do ano de 2016, a título de ajudas de custo.
Para fundamentar a sua pretensão alega, em síntese, que o valor que lhe foi pago a título de ajudas de custo visou compensá-lo das despesas que foi suportando ao longo de cada mês, com deslocações, alojamento e alimentação, não tendo assim natureza remuneratória, mas tão-só compensatória.
Cumpre apreciar e decidir.
Comecemos por um breve enquadramento normativo da questão.
Nos termos do disposto no nº 1, do artigo 258º do Código do Trabalho, considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho, compreendendo a retribuição base e outras prestações regulares e periódicas feitas, direta ou indiretamente, em dinheiro ou em espécie (nº 2, do artigo 258º do Código do Trabalho), presumindo-se constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador (nº 3, do artigo 258º do Código do Trabalho).
De acordo com o disposto na alínea a), do nº 1, do artigo 260º, do Código do Trabalho, não se consideram retribuição, as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte, abonos de instalação e outras equivalentes, devidas ao trabalhador por deslocações, novas instalações ou despesas feitas em serviço do empregador, salvo quando, sendo tais deslocações ou despesas frequentes, essas importâncias, na parte que exceda os respetivos montantes normais, tenham sido previstas no contrato ou se devam considerar pelos usos como elemento integrante da retribuição do trabalhador.
Em sede tributária, as ajudas de custo e as importâncias auferidas pela utilização de automóvel próprio em serviço da entidade patronal, na parte em que excedam os limites legais, são consideradas rendimentos para efeitos de incidência de IRS (artigo 2º, nº 3, alínea d), do Código do IRS.
Finalmente, em sede de contribuições para a Segurança Social, integram a base contributiva, entre outras, as importâncias recebidas a título de ajudas de custo, abonos de viagem, despesas de transporte e outras equivalentes (artigo 46º, nº 2, alínea p), do Código Contributivo).
Em termos jurisprudenciais, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 15 de dezembro de 2016, proferido no processo nº 1270/11.1TBFAF.G1, acessível na base de dados da DGSI[8], pronunciou-se sobre esta problemática da inclusão ou não das ajudas de custo no rendimento disponível.
No caso dos autos, discute-se, desde logo, se as importâncias discriminadas nos recibos de vencimento do ano de 2016 do ora recorrente e qualificadas como “ajudas de custo”, têm ou não essa natureza.
Além da qualificação dessas prestações nos recibos de vencimento e da declaração do TOC da entidade pagadora, nada mais temos que nos permita comprovar realmente a natureza compensatória de tais verbas e nem o recorrente se dispôs a oferecer prova documental comprovativa dos alegados gastos ao longo dos doze meses do ano de 2016.
Ora, como é bom de ver, a natureza remuneratória ou compensatória de certa prestação não se pode firmar apenas no nome que a entidade pagadora lhe dá, antes deve resultar de uma qualificação atribuída a certa realidade de facto. Dito de outro modo: só se pode concluir que certa importância tem a natureza de ajudas de custo desde que se comprove que se destinou a reembolsar o trabalhador de despesas concretas que suportou por causa ou por força do exercício da sua atividade profissional.
A circunstância de valores denominados ajudas de custo terem sido pagos ao longo dos doze meses do ano de 2016, com referência a todos os dias de trabalho de cada um desses meses, com um valor uniforme, apontam no sentido de não terem essa natureza compensatória.
De facto, não é crível que ao longo de todos os meses, o recorrente tenha sempre o mesmo dispêndio em cada um dos dias de trabalho, causando também estranheza que a parte do vencimento relativa às denominadas ajudas de custo exceda sempre o valor da retribuição mensal.
Se acaso nos ficássemos pela “qualificação” constante dos recibos do vencimento ou pela declaração do TOC da entidade pagadora, estava encontrada a forma de expeditamente driblar as regras para a determinação do rendimento disponível do beneficiário da exoneração do passivo restante.
Na verdade, se acaso esses valores correspondem a despesas efetivamente realizadas, onde estão os comprovativos das mesmas?
Não serão certamente as declarações de um TOC avençado que comprovarão essas despesas, como pretendeu provar o recorrente.
Por outro lado, como é que o recorrente, com as restrições financeiras a que se acha sujeito e decorrentes da sua declaração de insolvência, tem possibilidades económicas para adiantar despesas de montante tão elevado, sempre de valor superior ao vencimento que aufere?
Finalmente, é intrigante que o recorrente nada receba a título de subsídio de férias ou de Natal e que não goze qualquer tempo de férias, nem seja remunerado em conformidade pela prestação de trabalho sem o descanso a que legalmente tem direito.
Assim, tudo sopesado, conclui-se que o valor recebido ao longo do ano de 2016 pelo recorrente e denominado de “ajudas de custo”, pela sua regularidade e uniformidade, visa apenas criar uma aparência de se tratar de uma verba com caráter compensatório, mas é na realidade uma efetiva retribuição e assim deve ser contabilizado, como foi pela Sra. Fiduciária, bem como na decisão recorrida, para efeitos de determinação do rendimento disponível a ceder à Sra. Fiduciária.
Esclareça-se ainda que se acaso o recorrente pensa que poderia estar inerte durante o período quinquenal da exoneração do passivo restante para poder beneficiar deste instituto (veja-se a parte final da conclusão J) das alegações de recurso), está muito enganado, pois a lei é muito clara no que a isso respeita, bastando para tanto atentar no que consta da alínea b), do nº 4, do artigo 239º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Deste modo, improcede o recurso de apelação interposto por B..., sendo as custas do mesmo da sua responsabilidade (artigo 527º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), mas sem prejuízo do benefício previsto no nº 1, do artigo 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar improcedente o recurso de apelação interposto por B... e, em consequência, em confirmar a decisão recorrida proferida em 28 de março de 2017.
Custas a cargo do recorrente, sendo aplicável a secção B, da tabela I, anexa ao Regulamento das Custas Processuais, à taxa de justiça do recurso, mas sem prejuízo do benefício previsto no nº 1, do artigo 248º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
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O presente acórdão compõe-se de doze páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 30 de maio de 2018
Carlos Gil
Carlos Querido
Correia Pinto
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[1] Na verdade, nessa mesma data, foi também proferido despacho a declarar encerrado o processo por insuficiência da massa insolvente para satisfação das custas do processo e das restantes dívidas da massa insolvente.
[2] A “Declaração”, datada de 02 de março de 2017, tem o seguinte teor: “F..., NIF: ........., Contabilista Certificado da empresa C..., Lda., com sede no ..., nº .., ....-... ..., Penafiel, NIF: ........., vem pela presente informar que as Ajudas de Custo mencionadas nos recibos de vencimento do Sr. B..., têm carácter meramente compensatório, pois destinam-se a compensar o trabalhador pelas despesas suportadas por força do serviço prestado em benefício da entidade patronal. As ajudas de Custo não têm, portanto, qualquer carácter remuneratório.
[3] Os documentos 1 a 12 são os seguintes: nº 1, recibo de vencimento relativo ao período de vinte dias compreendido entre 01 de janeiro de 2016 e 31 de janeiro de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte ajudas de custo no montante global de € 636,00, sendo o valor líquido a receber de € 1.107,70; nº 2, recibo de vencimento relativo ao período de vinte dias compreendido entre 01 de fevereiro de 2016 e 29 de fevereiro de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte ajudas de custo no montante global de € 636,00, sendo o valor líquido a receber de € 1.107,70; nº 3, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e dois dias compreendido entre 01 de março de 2016 e 31 de março de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e duas ajudas de custo no montante global de € 699,60, sendo o valor líquido a receber de € 1.171,30; nº 4, recibo de vencimento relativo ao período de vinte dias compreendido entre 01 de abril de 2016 e 31 de abril de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte ajudas de custo no montante global de € 636,00, sendo o valor líquido a receber de € 1.107,70; nº 5, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e um dias compreendido entre 01 de maio de 2016 e 31 de maio de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e uma ajudas de custo no montante global de € 667,80, sendo o valor líquido a receber de € 1.139,50; nº 6, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e um dias compreendido entre 01 de junho de 2016 e 30 de junho de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e uma ajudas de custo no montante global de € 667,80, sendo o valor líquido a receber de € 1.139,50; nº 7, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e um dias compreendido entre 01 de julho de 2016 e 31 de julho de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e uma ajudas de custo no montante global de € 667,80, sendo o valor líquido a receber de € 1.139,50; nº 8, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e dois dias compreendido entre 01 de agosto de 2016 e 31 de agosto de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e duas ajudas de custo no montante global de € 699,60, sendo o valor líquido a receber de € 1.171,30; nº 9, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e dois dias compreendido entre 01 de setembro de 2016 e 30 de setembro de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e duas ajudas de custo no montante global de € 699,60, sendo o valor líquido a receber de € 1.171,30; nº 10, recibo de vencimento relativo ao período de vinte dias compreendido entre 01 de outubro de 2016 e 31 de outubro de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte ajudas de custo no montante global de € 636,00, sendo o valor líquido a receber de € 1.107,70; nº 11, recibo de vencimento relativo ao período de vinte e um dias compreendido entre 01 de novembro de 2016 e 30 de novembro de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte e uma ajudas de custo no montante global de € 667,80, sendo o valor líquido a receber de € 1.139,50; nº 12, recibo de vencimento relativo ao período de vinte dias compreendido entre 01 de dezembro de 2016 e 31 de dezembro de 2016, de B..., com a categoria profissional de Sócio-Gerente, por conta de C..., Lda., com o vencimento mensal de € 530,00 e vinte ajudas de custo no montante global de € 636,00, sendo o valor líquido a receber de € 1.107,70.
[4] Cópia do pacto social da sociedade “C..., Lda.”, datado de 02 de dezembro de 2008, com sede na Rua ..., ..., Penafiel, com o capital social de cinco mil euros dividido por duas quotas de igual valor, uma da titularidade de G..., residente na Rua ..., ..., Penafiel e a outra da titularidade de B....
[5] Publicação do Portal do Ministério da Justiça de ato societário, datada de 14 de fevereiro de 2011, referente à sociedade “C..., Lda.”, agora com sede no ..., n º .., ..., Penafiel, dando conta da alteração do artigo 4º do pacto social da sociedade, mediante a apresentação nº 159, de 11 de fevereiro de 2011, passando as quotas a ter a seguinte distribuição e valor: na titularidade de G... uma quota de € 250,00; na titularidade de H..., uma quota de € 2.250,00 e uma outra de € 250,00; na titularidade de I..., uma quota de € 2.250,00.
[6] Publicação do Portal do Ministério da Justiça de ato societário, datada de 14 de fevereiro de 2011, referente à sociedade “C..., Lda.”, agora com sede no ..., n º .., ..., Penafiel, dando conta da alteração dos artigos 2º, nº 1 e 4º do pacto social da sociedade, mediante a apresentação nº 46, de 01 de fevereiro de 2011, passando as quotas a ter a seguinte distribuição e valor: na titularidade de B... uma quota de € 250,00; na titularidade de G... uma quota de € 250,00; na titularidade de H..., uma quota de € 2.250,00; na titularidade de I..., uma quota de € 2.250,00.
[7] Notificado mediante expediente eletrónico elaborado em 29 de março de 2017.
[8] O sumário do acórdão, que retrata o que aí foi decidido, é do seguinte teor: “1 - Nos termos do art. 239º, nº3, do CIRE cumpre ao julgador, no seu prudente arbítrio, definir casuisticamente o rendimento do trabalho do insolvente excluído da cessão aos credores, o qual tem por limite mínimo aquele montante que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar. 2 - A retribuição integra todas as prestações que, em contrapartida da atividade laboral desenvolvida pelo trabalhador, o empregador está obrigado a satisfazer regular e periodicamente, dela se excluindo, nomeadamente, as importâncias recebidas pelo trabalhador e se destinam a compensar custos aleatórios, como sejam as ajudas de custo. 3 - No entanto, tais importâncias apenas devem ser excluídas da remuneração na medida em que efetivamente se destinem a ressarcir o trabalhador por gastos efetuados no exercício da atividade laboral. 4 – Assim, ao abrigo do preceituado no art. 239º, nº 3 – b)-iii) do CIRE, as quantias recebidas a título de ajudas de custo pelo Insolvente devem ser excluídas do rendimento a ceder ao fiduciário desde que se destinem efetivamente a compensá-lo por despesas efetuadas em benefício da sua entidade patronal, devendo essa verificação ser efetuada pelo fiduciário, mediante a apresentação dos respetivos comprovativos pelo Insolvente.