Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
4859/17.4T8OAZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RUI ATAÍDE DE ARAÚJO
Descritores: CONTRA-ORDENAÇÃO
PRINCIPIO NE BIS IN IDEM
CEDÊNCIA DE TRABALHADOR
Nº do Documento: RP201811154859/17.4T8OAZ.P1
Data do Acordão: 11/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONTRA-ORDENAÇÃO
Decisão: NÃO PROVIDO
Indicações Eventuais: 4ªSECÇÃO (SOCIAL), (LIVRO DE REGISTOS N.º285, FLS.162-170)
Área Temática: .
Sumário: I - Não há nulidade por violação do princípio “ne bis in idem” numa decisão que sanciona a arguida pela violação da obrigação de informar o trabalhador sobre os riscos profissionais e as medidas de prevenção e proteção, quando a mesma já foi sancionada noutro processo pela violação de prever os riscos inerentes ao posto de trabalho.
II - A cedência do trabalhador a terceiros não exonera o empregador de averiguar as condições concretas em que aquele vai exercer funções para prever os riscos envolvidos e o informar das medidas de prevenção e proteção adequadas, sob pena de incorrer na contra-ordenação prevista e punida no art. artigo 19.º, n.º 1, 2 e 7 da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 4859/17.4Y8OAZ.P1
Origem: Tribunal da Comarca de Aveiro – Juízo do Trabalho de Oliveira de Azeméis
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
1 – Relatório
Por decisão de 14-3-2018, o Tribunal “a quo” julgou improcedente o recurso de impugnação judicial apresentado pela arguida B…, Lda., e manteve a decisão administrativa que a condenava no pagamento da coima de €9.384,00 (92 UC), pela prática de uma contraordenação muito grave, prevista e punida pelo artº 19º nos 2 al. e) e 7 da Lei nº 102/2009, de 10 de Setembro.
Inconformada, veio a arguida interpor recurso,
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O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu, pugnando pela improcedência do recurso,
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O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.
Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, apresentados que foram ao Exmo. Procurador-Geral Adjunto, foi exarado o parecer que antecede e que aqui se dá por reproduzido, no sentido de o recurso não merecer provimento.
Foi cumprido o disposto no art. 418º do CPP, remetendo-se o processo aos vistos e o projecto de acórdão por via electrónica.
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3 – Objeto do recurso
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face às conclusões do recurso em causa, são as seguintes as questões a resolver:
- nulidade da decisão recorrida por violação do princípio do “ne bis in idem” consagrado no artº 29º nº 5 da CRP e do disposto no artº 615º nº 1 al. d) do CPC;
- inexistência (ou não) da contra-ordenação imputada à arguida em virtude de a trabalhadora sinistrada exercer funções, mediante cedência temporária, num autocarro de uma terceira entidade.

3.1 – Da nulidade por violação do princípio do “ne bis in idem” consagrado no artº 29º nº 5 da CRP e do disposto no artº 615º nº 1 al. d) do CPC.

Sustenta a arguida, aqui recorrente, que já teria sido sancionada pela infracção imputada e condenada nestes autos num outro processo que correu termos no mesmo Tribunal do Trabalho sob o nº 1736/17.2T8OAZ, pelo que estaria a ser alvo de uma dupla condenação, em violação do principio constitucional supra referido e, simultaneamente, teria o Tribunal conhecido, neste processo, de infracção de que já não podia conhecer de novo, incorrendo esta nova decisão na nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC (que se verifica quando o juiz “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Ora, é certo que o aludido principio, ainda que relativo aos crimes como tal tipificados, não deixa de se aplicar às infracções de tipo contra-ordenacional – cfr. o art. 32º do RGCOC.
Por outro lado, é de aceitar como razoável a interpretação de que, como refere a recorrente, à expressão “mesmo crime” constante do identificado preceito legal da Constituição, não deve ser dada “ uma leitura restritiva susceptível de esvaziar a noção abrangente implícita no mencionado normativo”. Nesse sentido vai efectivamente o STJ em acórdão como o proferido no Proc. n.º 4403/05 - 3.ª Secção, in www.dgsi.pt.: “…A expressão julgado mais do que uma vez não pode ser entendida no seu estrito sentido técnico-jurídico, tendo antes de ser interpretada num sentido mais amplo, de forma a abranger, não só a fase do julgamento, mas também outras situações análogas ou de valor equivalente, designadamente aquelas em que num processo é proferida decisão final, sem que, todavia, tenha havido lugar àquele conhecido ritualismo. (…) VI - De igual modo, o inciso mesmo crime não deve nem pode ser interpretado no seu estrito sentido técnico-jurídico. Crime significa, aqui, um comportamento de um agente espáciotemporalmente delimitado e que foi objecto de uma decisão judicial, melhor, de uma, sentença
ou de decisão que se lhe equipare. VII - O termo crime não deve ser tomado ao pé-da-letra, mas antes entendido como uma certa conduta ou comportamento, melhor, como um dado de facto ou um acontecimento histórico que, porque subsumível em determinados pressupostos de que depende a aplicação da lei penal, constitui crime. É a dupla apreciação jurídico-penal de um determinado facto já julgado – e não tanto de um crime - que se quer evitar.VIII - Entender o termo crime, empregue no n.º 5 do art. 29.º da CRP, como referência a um determinado tipo legal, a uma certa e determinada descrição típica normativa de natureza jurídico-criminal, seria esvaziar totalmente o conteúdo do preceito, desvirtuando completamente a sua ratio e em frontal violação com os próprios fundamentos do caso julgado. IX - O que referido preceito da CRP proíbe é, no fundo, que um mesmo e concreto objecto do processo possa fundar um segundo processo penal.”.
De notar é ainda que é efectivamente o próprio Tribunal a quo quem assume que estava pendente junto dele o processo com nº 1736/17.2T8OAZ, já com decisão, ainda que (então) não transitada em julgado. E usa para a fundamentação da decisão ora em crise considerações já usadas para a da decisão daquele outro processo.
Contudo, como bem nota o Ministério Público e resulta dos autos em apreço, o que sucede é, tão só, que a decisão proferida no processo nº 1736/16.2T8OAZ e a decisão “sub iudice” versam sobre infrações apuradas na sequência da mesma participação à ACT de acidente ocorrido no dia 5-4-2016, pelas 9:00 horas, num autocarro de transporte escolar da empresa C…, S.A. e de que foi vítima a trabalhadora D…. Para além dessa conexão, não há outra ou outras relevantes que levem a concluir-se estarmos perante a mesma infracção.
A infração tratada no processo nº 1736/17.2T8OAZ reporta-se a uma violação do disposto no artº 15º nº 2 al. c) da Lei nº 102/2009 (Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho), por a aqui R. “não ter procedido à identificação dos riscos previsíveis em todas as atividades da empresa, com vista à eliminação ou, quando tal seja inviável, à redução dos seus efeitos”. Já a infração destes autos está prevista no artº 19º nº 2 al. e) do mesmo diploma legal e consistiu no facto de “nem o empregador nem a empresa em cujas instalações (autocarro) é prestado um serviço por trabalhadores de ambas as empresas, terem disponibilizado a esses trabalhadores informação atualizada sobre os riscos para a segurança e a saúde, bem como as medidas de proteção e prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida, quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço, ou outras relevantes para a segurança e saúde dos trabalhadores.
Uma coisa é não ter previsto (de modo a prevenir) os riscos da actividade, outra é não ter informado os trabalhadores (no caso uma trabalhadora) dos riscos previstos (ou previsíveis) e ter-lhe fornecido medidas de prevenção e proteção adequadas a evitá-los. Naturalmente que em ambos os casos está em causa a proteção da segurança e saúde dos trabalhadores - em transposição, aliás, da Diretiva nº 89/391/CEE do Conselho, de 12/06, alterada pela Diretiva nº 2007/30/CE do Conselho, de 20/06 - mas com actividade diferentes. Ora, a omissão de e outra das actividades levou a uma e outra das punições, em conformidade aliás com a diferente tipificação por parte do legislador.
Não vemos assim que se possa concluir que o Mmo Juiz “ a quo” condenou duas vezes a arguida pela prática da mesma contra-ordenação ou, enfim, dos mesmos factos, violado o “ princípio do “ ne bis in idem” e incorrendo na nulidade ora arguida.

3.2 – Da inexistência (ou não) da contra-ordenação imputada à arguida em virtude de a trabalhadora sinistrada exercer funções, mediante cedência temporária, num autocarro de uma terceira entidade

Está agora em causa saber se a contra-ordenação em apreço não se pode dar por verificada ou, pelo menos, como imputável à arguida, quando o local em que o trabalhador presta funções não é do empregador, antes e como sucedia no caso de um terceiro.
Entende a recorrente, neste sentido, que, estando a trabalhadora cedida a um Município seu cliente e sendo as suas funções exercidas num autocarro de uma terceira entidade (a C…) e, estava impossibilitada de proceder à avaliação de riscos da actividade.
Contudo, não só o que está em causa nestes autos não é propriamente a previsão dos riscos – ainda que esta seja um pressuposto lógico – antes a informação à trabalhadora e disponibilização de meios de prevenção e proteção, como de qualquer modo mesmo a dita previsão (prévia à informação) não é de considerar como sendo uma impossibilidade no caso concreto.
O que do enquadramento legal da questão resulta é que, nos termos do artigo 19.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro:
«1 - O trabalhador, assim como os seus representantes para a segurança e para a saúde na empresa, estabelecimento ou serviço, deve dispor de informação atualizada sobre:
a) As matérias referidas na alínea j) do n.º 1 do artigo anterior;
b) As medidas e as instruções a adotar em caso de perigo grave e iminente;
c) As medidas de emergência e primeiros socorros, de evacuação de trabalhadores e de combate a incêndios, bem como os trabalhadores ou serviços encarregues de as pôr em prática.
2 - Sem prejuízo da formação adequada, a informação a que se refere o número anterior deve ser sempre disponibilizada ao trabalhador nos seguintes casos:
a) Admissão na empresa;
b) Mudança de posto de trabalho ou de funções;
c) Introdução de novos equipamentos de trabalho ou alteração dos existentes;
d) Adoção de uma nova tecnologia;
e) Atividades que envolvam trabalhadores de diversas empresas».
No n.º 1, alínea a), o que está em causa são «os riscos para a segurança e saúde, bem como as medidas de proteção e de prevenção e a forma como se aplicam, quer em relação à atividade desenvolvida quer em relação à empresa, estabelecimento ou serviço».
Sendo que a violação desta norma constitui uma contra-ordenação muito grave – n.º 7.
Deste enquadramento legal não resulta, desde logo, qualquer distinção ou restrição de empregadores, todos estando vinculados às obrigações de prevenção e informação, mesmo que se tratem de empresas de trabalho temporário ou outras que cedam trabalhadores a terceiros.
Por outro lado e na prática, não vislumbramos como é que, pelo facto de a trabalhadora não estar a trabalhar em instalações da própria empregadora, esta não poderia ter ido averiguar as condições e autocarro em que iria trabalhar, de modo a prevenir riscos e informar a sua trabalhadora de como os evitar.
Não só, como ponderou o Tribunal a quo, os agentes económicos atuam normalmente num ambiente de colaboração, como a possibilidade de averiguar as condições em que a sua trabalhadora iria trabalhar para terceiro seria um pressuposto contratual da aceitação da cedência, já que a empregadora sabia estar obrigada a zelar pela segurança e saúde daquela, sob pena aliás de se sujeitar a coimas como a(s) que lhe foi (oram) aplicada(s). Se não o fez, se aceitou a cedência sem qualquer averiguação previa, de modo a proceder à previsão e informação de riscos a que estava obrigada, a arguida só da sua conduta temerária ou pouco diligente se pode queixar!
Aliás, a arguida não alega em momento algum que lhe tenha sido colocado algum entrave à avaliação dos riscos ou à informação de medidas de proteção, seja por parte do seu cliente (Município), seja por parte da transportadora (C…), envolvidos na situação de cedência da trabalhadora em causa.
Em abono da verdade e de acordo com a factualidade apurada, a arguida limitou-se a constatar que a trabalhadora tinha formação profissional anterior e experiência na função, por desempenhá-la há alguns anos, admitindo por isso que teria a informação necessária. Mas, naturalmente, tal não é suficiente para cumprir a norma indicada que exige uma conduta ativa do empregador no sentido de, primeiro, identificar os riscos (atitude já sancionada no outro processo de que se deu nota supra) e, depois, informar expressamente o trabalhador desses riscos e das medidas concebidas e disponibilizadas pelo empregador para os prevenir.
Não está assim e salvo o devido respeito, demonstrada ou sequer indiciada qualquer impossibilidade ou mesmo dificuldade no seu cumprimento da(s) obrigação (ões) legais por cuja omissão a arguida foi condenada (constantes, no caso, do artigo 19.º, n.º 1 e n.º 2, da Lei n.º 102/2009, de 10 de Setembro). Com o que temos por verificado o tipo legal da contra-ordenação em apreço e não verificada qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude.
4 – Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela arguida/recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.

Após trânsito em julgado, comunique à ACT, com cópia do acórdão.

Porto, 15/11/2018
Rui Ataíde de Araújo
Domingos Morais