Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15467/15.4T9PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMÉLIA CATARINO
Descritores: ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
INTERVENÇÃO CIRÚRGICA
VIOLAÇÃO DE LEGIS ARTIS
ERRO MÉDICO
CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA POR NEGLIGÊNCIA
NEGLIGÊNCIA INCONSCIENTE
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
Nº do Documento: RP2022070615467/15.4T9PRT.P1
Data do Acordão: 07/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 1. ª SECÇÃO (CRIMINAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Existe erro notório na apreciação da prova quando a senhora juiz a quo, ao julgar a prova por si exibida, comete um erro evidente, acessível ao observador comum e que consta da própria decisão.
II - Se consta da matéria provada que a intervenção cirúrgica consistia na exérese do lipoma na região lombar direita e também que da intervenção cirúrgica efectuada resultou para a ofendida no membro inferior direito, uma cicatriz com 3,5cm, linear, localizada no quadrante supero medial da região nadegueira direita, é evidente, segundo o ponto de vista do homem de formação média, que para realizar esta cirurgia, era necessário fazer uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito, pelo que ao dar como não provado que os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia, a decisão recorrida contraria a lógica mais elementar e as regras da experiência comum as especificas.
III – Tal conduta configura a prática de crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148º, nº 1, do Código Penal, na modalidade de negligência inconsciente grosseira, porquanto os arguidos, na concreta observação e marcação do local a intervir, sem recurso à palpação, tendo extraído da nádega, tecido que configura lipodistrofia, e não tendo extraído o lipoma, doloroso e visível à palpação e que incomodava a assistente, procederam em contrário às legis artis, aos conhecimentos da medicina, não tendo actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, sendo que podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o solicitado e constante dos elementos clínicos de que dispunham, no momento da cirurgia, ou podiam vir a obter, se tivessem procedido de forma diligente, pelo que, praticaram, no desempenho das suas funções profissionais, negligentemente, o procedimento cirúrgico em causa, violando especiais deveres de cuidado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 15467/15.4T9PRT.P1.

Relatora: Amélia Catarino

SUMÁRIO
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Acordam, em conferência, na 1ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. RELATÓRIO
No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 15467/15.4T9PRT.P1., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto, juiz 3, foi proferida sentença, com data de 27.10.2021, depositada na mesma data, que julgou a acusação improcedente e, em consequência, decidiu:
1) Absolver o arguido AA da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, de que vinha acusado;
2) Absolver a arguida BB da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, de que vinha acusada;
3) Absolver a arguida CC da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, de que vinha acusada;
4) Custas a cargo da assistente, com taxa de justiça que se fixa em 4UC, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia;
5) Julga-se ainda o pedido de indemnização civil formulado por DD totalmente improcedente, por não provado e, consequentemente, decide-se absolver os arguidos/demandados AA, BB e CC do pedido de indemnização civil formulado pela demandante;

Inconformado o Ministério Público veio interpor recurso, pugnando pelo seu provimento com os fundamentos que constam da motivação e formulando as seguintes conclusões, que se transcrevem:
“1. O recurso é interposto da sentença que absolveu os arguidos AA, BB e CC, da prática de um crime de crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punido pelo art.º 148º, nº 1, do Código Penal (C.P.), de que vinham os mesmos acusados.
2. A sentença recorrida viola o disposto no art. 148º, nº 1 do C.P. e o disposto no art. 127º C.P.P., que consagra o princípio da livre apreciação da prova;
3. Estão incorrectamente julgados os seguintes factos não provados:
C) Sucede que porque os arguidos estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de, depois de ter entrado na sala para realização da cirurgia, a ofendida ter indicado o local a intervencionar e que se situava na zona lombar direita;
D) Por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma;
E) Acontece que os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida;
F) Os arguidos ao realizarem o procedimento cirúrgico descrito, não actuaram com a diligência e o cuidado devidos e exigíveis a uma equipa médica e a que estavam obrigados e de que eram capazes, acautelando-se de que não procediam à incisão e remoção de material adiposo em outro local que não o cirúrgico, antes actuaram sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração imprudente, sem prestar atenção às concretas condições em que desenvolviam o acto cirúrgico em questão, pois podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico;
G) Ao actuarem da forma descrita, os arguidos não observaram a atenção e o cuidado que o exercício da medicina requer, cuidado e atenção que lhes era exigível e de que eram capazes;
H) O arguido AA, na qualidade de especialista em cirurgia geral e orientador de formação das duas arguidas, não cumpriu o dever de orientação da actuação destas, por forma a cumprirem as regras de cuidado que são impostas aquando da realização de procedimentos cirúrgicos, para evitar a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico, confiando levianamente que tal não iria acontecer;
I) Os arguidos agiram de forma leviana e imprudente, tendo previsto como possível que em resultado da inobservância, na íntegra, do procedimento de marcação do local cirúrgico, poderiam realizar o procedimento cirúrgico em local diferente do local cirúrgico, como fizeram, lesando a ofendida no seu corpo, mas levianamente confiaram que tal não viria a acontecer;
J) Os arguidos sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei;
K) Da referida intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado;
L) O lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo;
M) A ofendida sofre de dores permanentes fruto da intervenção clinica;
4. Na verdade, os mesmos estão incorrectamente julgados porquanto em audiência de julgamento foi provado, sem qualquer margem para dúvida o inverso.
5. Com efeito, correlacionando toda a prova produzida em julgamento, e tendo como parâmetro as regras da experiência e os critérios de normalidade, afigura-se que a absolvição dos arguidos se fundou num erro de julgamento.
6. Na realidade, não é normal e crível que, durante meses (antes e depois da cirurgia), a inúmeras pessoas, a assistente tenha andado a apontar, com os dedos, o local do lipoma, como estando situado ao fundo das costas, e no momento da cirurgia, tenha apontado para outro local, sendo certo que a própria assistente até desconhecia a existência de outro lipoma, designadamente na zona da nádega.
7. Com efeito, o que faz sentido, face às regras da experiência e à normalidade das coisas, é que no momento da operação a assistente, mais uma vez, tenha indicado local de onde queria que lhe tirassem o lipoma que lhe provocava dor à palpação e que se situava no fundo das costas. A que propósito é que a assistente iria indicar a zona da nádega quando nem sequer sabia que ali tivesse qualquer lipoma e aí não sentia qualquer dor/incómodo??
8. Na verdade, o que é normal é que a assistente, como tantas e tantas vezes fez, tivesse indicado o lipoma que lhe causava dor e que à palpação era facilmente percebido. Por isso, se os arguidos tivessem feito a palpação no sítio assinalado pela assistente, isto é, ao fundo das costas à direita, facilmente teriam percebido onde o mesmo se situava. Aliás, foi isso mesmo que fizeram todos os outros médicos que consultaram a assistente (o Dr. EE, a Dr. FF, os médicos/técnicos que fizeram à assistente pelo menos 3 ecografias e Drª GG, perita médica do IML). E foi também isso que fizeram as testemunhas HH, II e JJ.
9. Por isso, atendendo ao exposto é credível o declarado pela assistente quando diz que, no bloco operatório, ninguém palpou o sítio por aquela indicado como sendo o local do lipoma a extrair. E, como não palparam o lipoma não o sentiram e não perceberam o local exacto do lipoma.
10. Acresce ainda dizer que, sabendo os arguidos (como médicos que são) que um doente pode ter no seu corpo vários lipomas (como eles mesmo admitiram), deveriam ter redobrado os cuidados (confirmando as declarações da assistente com os registos clínicos, designadamente com os registos do Dr. EE e Drª FF e as ecografias realizadas pela assistente) para perceber qual o lipoma a extrair, o que, mais uma vez, não fizeram.
11. Em consequência desta errada actuação dos arguidos derivou para a assistente uma cicatriz desnecessária e dolorosa e subsistiu o lipoma que aquela tanto queria que lhe fosse retirado.
12. Tendo como relevante as declarações da assistente DD, gravadas na sessão de 13.05.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 02:20 a 12:00; 13:00 a 16:00 e 19:00 a 21:00, o depoimento da Perita Médica, Drª GG, gravado na sessão de 13.05.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 01:40 a 03:50; 01:30, o depoimento da testemunha Dr. EE, gravado na sessão de julgamento de 09.06.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 01:50 a 10:00; 10:00 a 14:30; 16:30 a 17:40; 24:00 a 27:00 e 29:00 a 31:00, o depoimento da testemunha II, gravado na sessão de 09.06.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 03:00 a 05:00; 08:00 a 09:00, o depoimento da testemunha HH, gravado na sessão de 09.06.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 05:10 a 10:00; 17:50 a 18:23, o depoimento da testemunha JJ, gravado na sessão de 09.06.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 02:20 a 05:30; 07:00 a 07:24, o depoimento da testemunha, Drª FF, gravado na sessão de 01.07.2021, com referência aos trechos que correspondem aos minutos 02:50 a 03:20; 07:50; 30:00; 35:00 a 36:00, o exame pericial de fls. 134 a 136 e 161 a 165, a prova documental de fls. 10 (foto da região nadegueira), documento de fls. de fls. 8-9 e 12-13 e 126 (ecografias de partes moles), documento constante de fls. 35, 37 e 38, isto é o registo das consultas que a assistente teve no Centro de Saúde de ... com o Dr. EE, doc. De 64 de 67 fls. 41 (a consulta prévia da Drª FF) e as regras de experiência comum, impunha-se que da matéria de factos constassem como provados os seguintes factos:
- Sucede que porque os arguidos estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de, depois de ter entrado na sala para realização da cirurgia, a ofendida ter indicado o local a intervencionar e que se situava na zona lombar direita;
- Por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma;
- Acontece que os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida;
- Os arguidos ao realizarem o procedimento cirúrgico descrito, não actuaram com a diligência e o cuidado devidos e exigíveis a uma equipa médica e a que estavam obrigados e de que eram capazes, acautelando-se de que não procediam à incisão e remoção de material adiposo em outro local que não o cirúrgico, antes actuaram sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração imprudente, sem prestar atenção às concretas condições em que desenvolviam o acto cirúrgico em questão, pois podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico;
- Ao actuarem da forma descrita, os arguidos não observaram a atenção e o cuidado que o exercício da medicina requer, cuidado e atenção que lhes era exigível e de que eram capazes;
- O arguido AA, na qualidade de especialista em cirurgia geral e orientador de formação das duas arguidas, não cumpriu o dever de orientação da actuação destas, por forma a cumprirem as regras de cuidado que são impostas aquando da realização de procedimentos cirúrgicos, para evitar a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico, confiando levianamente que tal não iria acontecer;
- Os arguidos agiram de forma leviana e imprudente, tendo previsto como possível que em resultado da inobservância, na íntegra, do procedimento de marcação do local cirúrgico, poderiam realizar o procedimento cirúrgico em local diferente do local cirúrgico, como fizeram, lesando a ofendida no seu corpo, mas levianamente confiaram que tal não viria a acontecer;
- Os arguidos sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei;
- Da referida intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado;
- O lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo;
- A ofendida sofre de dores permanentes fruto da intervenção clinica.
13. Os arguidos deveriam, assim, ter sido condenados pelo crime de que foram acusados, pelo que, não o tendo sido, foi violado o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do Código de Processo Penal e o normativo do artº 148º, nº. 1 do Código Penal.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença recorrida, nos termos que vêm alegados, assim fazendo V.Ex.as, Senhores Juízes Desembargadores a costumada JUSTIÇA.”

Admitido o recurso, a arguida BB, veio responder alegando a manifesta e absoluta falta de fundamento do recurso, por cuja improcedência pugna.

Nesta Relação, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso manifestando inteira adesão à argumentação da resposta do Ministério Público no tribunal recorrido.
No âmbito do artigo 417º, nº2, do CPP, nada veio a ser requerido.

Realizado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.

II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar (Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, nomeadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do CPP.

In casu, o recurso, delimitado pelas conclusões da respetiva motivação, tem por objecto:
- Erro de julgamento da matéria de facto constante das alíneas C), D), E), F), G), H), I), J), K), L), M), dos factos não provados, os quais deviam ter sido dados como provados e os arguidos condenados, pelo que, não o tendo sido, foi violado o princípio da livre apreciação da prova previsto no artº 127º do Código de Processo Penal e o normativo do artº 148º, nº. 1 do Código Penal.

II.1. A decisão recorrida
Importa apreciar tais questões tendo presente o teor da decisão recorrida e os factos que dela constam, e que se transcreve:
“Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados, com interesse para a decisão a proferir, os seguintes factos:
1. O arguido AA é médico e exerce funções como médico cirurgião da especialidade de cirurgia geral, no CICA - Centro Integrado de Cirurgia de Ambulatório do Centro Hospitalar do ...., sito nesta cidade;
2. À data dos factos, o arguido era o orientador de formação e responsável pelo estágio profissional das arguidas BB e CC;
3. A arguida BB é médica, à data interna de formação específica de cirurgia vascular;
4. No âmbito da sua formação, à data dos factos, a arguida efectuava procedimentos cirúrgicos, sempre sob a supervisão do médico da especialidade respectiva;
5. A arguida CC é médica e, desde 1 de Maio de 2015, foi interna de dermatologia;
6. Desde Setembro de 2014, que a DD apresentava uma tumefacção na zona lombar direita, com cerca de 1cm de maior diâmetro, dolorosa à palpação e não aderente aos planos profundos;
7. No dia 21 de Novembro de 2014, o médico EE do Centro de Saúde ... - Extensão USF..., dirigiu um pedido ao Cento Hospitalar do ... - Hospital ..., para observação da ofendida, pela especialidade de cirurgia geral, para excisão do lipoma - tumefacção na zona lombar direita com cerca de 1cm de maior diâmetro, dolorosa à palpação, não aderente aos planos profundos;
8. No mesmo dia, o pedido foi encaminhado para triagem tendo sido posteriormente, reencaminhado para a Unidade de Cirurgia Geral de Ambulatório, sub-especialidade de Cirurgia de Ambulatório e especialidade de Cirurgia Geral – Cirurgia de Ambulatório;
9. No dia 25 de Novembro de 2014, o pedido foi encaminhado para a médica FF para marcação de consulta, que foi realizada no dia 17 de Abril de 2015, pelas 10h;
10. No dia 17 de Abril de 2015, a médica FF observou a ofendida na consulta externa de cirurgia ambulatório no Centro Integrado de Cirurgia de Ambulatório - CH... e, de acordo com a informação clínica enviada pelo Dr. EE, onde constava ainda informação de ecografia: “tumefacção na região lombar direita que evidenciou lobulação de gordura mais proeminente 14x6mm”, confirmou a presença de lipoma na região lombar direita;
11. Na sequência dessa consulta, a ofendida foi encaminhada para cirurgia, a realizar-se no dia 20 de Maio de 2015, de exérese do lipoma na região lombar direita, sob anestesia local e, com vista à realização desse procedimento para excisão do lipoma, assinou o consentimento livre e esclarecido para actos médicos;
12. A cirurgia foi realizada em ambulatório, no dia 20 de Maio de 2015, no Centro Hospitalar ..., EPE, sito no Largo..., no ...;
13. A intervenção cirúrgica consistia na exérese do lipoma na região lombar direita tal como previamente identificado;
14. Na cirurgia, participaram as arguidas BB e CC e o arguido AA, este como especialista em cirurgia geral e orientador de formação das duas arguidas;
15. Aos médicos que executam o procedimento cirúrgico e aos que ajudam na sua realização cabe a identificação, marcação e validação do local cirúrgico, mediante a consulta do processo clínico do doente, exames, demais elementos documentais e quando possível com a colaboração do doente ou dos seus representantes;
16. Todos os casos que envolvam lateralidade, múltiplas estruturas ou diversos níveis, obrigam sempre à marcação do local cirúrgico, que tem que ser efectuada sempre antes do procedimento cirúrgico;
17. A marcação deve ser efectuada no local de incisão ou adjacente a ele, de forma inequívoca, com marcador dérmico permanente, não tóxico, resistente à preparação antisséptica da pele e o sinal de marcação deve ficar visível, mesmo depois da preparação do local cirúrgico e da colocação dos campos cirúrgicos;
18. A última verificação da marcação do local cirúrgico é efectuada pelo médico executor do procedimento, em colaboração estreita com os enfermeiros e médicos presentes na sala de operações, no momento da verificação dos critérios de segurança cirúrgica;
19. Naquele dia 20 de Maio de 2015, depois de entrar na sala onde se iria realizar o procedimento cirúrgico, porque lhe foi pedido, a ofendida indicou o local onde se situava o lipoma a extrair;
20. Mercê da intervenção cirúrgica descrita resultou para a ofendida no membro inferior direito, uma cicatriz com 3,5cm, linear, com vestígios de pontos de sutura, nacarada de direcção horizontal, localizada no quadrante supero medial da região nadegueira direita, que lhe causou dor e sofrimento;
21. Os arguidos não têm antecedentes criminais;
22. O arguido AA, de 57 anos, é licenciado em Medicina, desde 1993, pelo I... - Instituto de Ciências .... Em 2002 obteve o grau de Especialista em Cirurgia Geral. Exerce funções, como médico daquela especialidade, encontrando-se, desde 2008, afecto ao C... - Centro Integrado de Cirurgia de Ambulatório do Centro Hospitalar Universitário .... No âmbito das funções que exerce, é orientador de formação e responsável pelo estágio profissional de médicos internos que passam por aquele centro. Presta ainda serviços médico-cirúrgicos no T... Saúde Gaia. Descreve a sua actividade profissional como gratificante, considerando-se privilegiado por gostar do que faz. Natural do ..., onde foi criado num contexto familiar caracterizado como estruturado, com uma dinâmica harmoniosa, AA constituiu agregado familiar próprio há 27 anos, tendo contraído matrimónio e fixado residência em ..., Vila Nova de Gaia, na actual morada. AA vive com a mulher, KK, de 55 anos, economista, desempregada/doméstica, e com os 3 descendentes do casal: dois filhos, de 20 e 19 anos, ambos estudantes do ensino superior, e uma filha, de 15 anos, aluna do 10º ano de escolaridade, elementos com os quais estabelece um relacionamento caracterizado como afectuoso e coeso. O arguido reside na Alameda ..., ..., ... Vila Nova de Gaia, correspondente a uma moradia própria, de construção antiga, de tipologia 3, inserida em meio residencial suburbano da orla marítima, não associado a fenómenos de exclusão social. Naquele meio comunitário o arguido apresenta uma inserção social referenciada como ajustada, marcada por relações de cordialidade com os elementos da vizinhança. O quotidiano do arguido é preenchido sobretudo com a sua actividade profissional e com a vida familiar/doméstica. O cônjuge dedica-se sobretudo à gestão doméstica e ao apoio familiar, designadamente ao processo educativo dos filhos, prestando ainda suporte aos pais/sogros do arguido, residentes no ..., que apresentam problemas de saúde associados à idade avançada. Nos tempos livres o arguido dedica-se à música, tocando vários instrumentos de corda. Participa nas actividades da Associação dos Antigos Orfeonistas da Universidade ..., do qual faz parte, tal como o cônjuge. A situação económica do agregado familiar do arguido é caracterizada como estável e capaz de proporcionar aos seus elementos um estilo de vida confortável, estando assente no seu vencimento, de cerca de €2400, valor ao qual acresce a remuneração auferida pela prestação de serviços médico-cirúrgicos realizados no T... Saúde Gaia, que varia entre os €1000 e os €1500. O arguido destaca como principais encargos fixos os que provêm das propinas dos estabelecimentos de ensino superior frequentados pelos filhos, que totalizam cerca de €400, e do fornecimento de serviços domésticos básicos;
23. O processo desenvolvimental de BB decorreu no seio da família de origem, composta pelos progenitores e irmã mais velha, residente na Guarda. O processo educativo da arguida decorreu sem registos de disrupção, tendo concluído o 12º ano de escolaridade, sem retenções, e ingressado na licenciatura em Medicina, na Universidade ..., que concluiu nos 6 anos previstos do curso. Terminada a licenciatura integrou a especialização em Angiologia e Cirurgia Vascular, com duração de 6 anos, encontrando-se em fase de conclusão da mesma. À data dos factos pelos quais vem acusada, BB encontrava-se no primeiro ano de formação da especialidade médica, a decorrer no Hospital ..., no ..., no âmbito da qual efetuava então estágio na área de Cirurgia Geral. Neste período a arguida residia sozinha em apartamento arrendado na cidade ..., subsistindo dos rendimentos do seu trabalho. Presentemente, BB encontra-se a trabalhar como médica interna no Hospital ..., tendo finalizado a sua especialização em Angiologia e Cirurgia Vascular. A arguida reside em apartamento arrendado, tipologia 1, com condições de habitabilidade, localizado em zona residencial com baixa incidência de problemáticas sociais e/ou criminais. BB subsiste dos rendimentos do seu trabalho, na ordem dos 1790 euros líquidos, apresenta como principais despesas fixas mensais os encargos com a renda da habitação, 450 euros, fornecimento de eletricidade, gás e agua, cerca de 50 euros, serviços de internet e comunicações, cerca de 40 euros, telecomunicações, 11 euros, e alimentação, avaliando a sua situação económica como equilibrada. A arguida ocupa o seu quotidiano com a atividade profissional, referindo que nos tempos livres aprecia ler, fazer desporto e conviver com família e amigos. É descrita pelas fontes contatadas como uma pessoa investida profissionalmente, responsável e humilde, beneficiando de uma imagem positiva nos diferentes contextos em que integra;
24. CC é a única descendente dos progenitores e cresceu numa estrutura familiar normativa e socialmente ajustada. O pai, técnico de vendas e a mãe operária, ambos no setor têxtil, garantiram à descendente a resposta às suas necessidades materiais de forma contida, mas sem especiais constrangimentos económicos. Integra atualmente o agregado de origem, residente em habitação própria, situada em freguesia periférica do concelho .... Vivem em casa própria, sendo reportada uma dinâmica familiar gratificante e solidária entre os seus elementos. Efetuou um percurso escolar/académico caracterizado por elevado investimento pessoal, ingressando no curso de medicina na Universidade .... Na data a que se reportam os factos, a arguida tinha iniciado o internato de especialidade – dermatovenereologia (a 01-05-2015), no Centro Hospitalar ..., Hospital .... Em outubro de 2020 realizou exame final de especialidade e, desde então, encontra-se a trabalhar no mesmo hospital, como médica especialista de dermatovenereologia, com contrato de trabalho a termo resolutivo, auferindo um vencimento base no valor de 1943,19€. Refere a expectativa de continuidade do exercício de funções na mesma unidade de saúde hospitalar. Socialmente CC apresenta uma inserção ajustada, mantendo convívios sociais com elementos do seu meio familiar alargado (primos), académico e profissional. São referidos sentimentos de pertença e vínculos solidários também a este nível.
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Factos não provados:
Com relevância para a justa decisão da causa não se provou:
A) Nessa cirurgia, a arguida BB actuou como cirurgiã principal e o arguido AA, como cirurgião;
B) Porque os arguidos tiveram dificuldade na marcação do lipoma a extrair, foi-lhe pedido que se levantasse da marquesa e indicasse novamente o local, o que a ofendida fez, levantando-se e indicando na zona lombar direita o local onde se situava o lipoma a extrair e, de seguida, deitou-se novamente na marquesa, em decúbito ventral;
C) Sucede que porque os arguidos estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de, depois de ter entrado na sala para realização da cirurgia, a ofendida ter indicado o local a intervencionar e que se situava na zona lombar direita;
D) Por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma;
E) Acontece que os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida;
F) Os arguidos ao realizarem o procedimento cirúrgico descrito, não actuaram com a diligência e o cuidado devidos e exigíveis a uma equipa médica e a que estavam obrigados e de que eram capazes, acautelando-se de que não procediam à incisão e remoção de material adiposo em outro local que não o cirúrgico, antes actuaram sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração imprudente, sem prestar atenção às concretas condições em que desenvolviam o acto cirúrgico em questão, pois podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico;
G) Ao actuarem da forma descrita, os arguidos não observaram a atenção e o cuidado que o exercício da medicina requer, cuidado e atenção que lhes era exigível e de que eram capazes;
H) O arguido AA, na qualidade de especialista em cirurgia geral e orientador de formação das duas arguidas, não cumpriu o dever de orientação da actuação destas, por forma a cumprirem as regras de cuidado que são impostas aquando da realização de procedimentos cirúrgicos, para evitar a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico, confiando levianamente que tal não iria acontecer;
I) Os arguidos agiram de forma leviana e imprudente, tendo previsto como possível que em resultado da inobservância, na íntegra, do procedimento de marcação do local cirúrgico, poderiam realizar o procedimento cirúrgico em local diferente do local cirúrgico, como fizeram, lesando a ofendida no seu corpo, mas levianamente confiaram que tal não viria a acontecer;
J) Os arguidos sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei;
K) Da referida intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado;
L) O lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo;
M) A ofendida sofre de dores permanentes fruto da intervenção clinica;
N) Foi necessário no decurso da cirurgia a aplicação de nova ou reforço da já aplicada, anestesia;
O) Bem como a equipa médica ter recorrido a afastadores, situação que não estava prevista inicialmente, sendo estes buscados de “urgência” pois não estavam previstos;
P) No dia seguinte ao da intervenção no telefonema feito à demandante pelo C.I.C.A. e no qual desde logo lhe disseram que iria sentir fortes dores nos dias seguintes pois da intervenção efectuada resultaram hematomas para a ofendida, pois a intervenção havia sido “muito exploratória”.
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Convicção
Importa, ab initio, salientar que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, conforme decorre do disposto no art.º 127.º, do Código de Processo Penal.
Tal consagração legal não significa que o julgador possa proceder arbitrária e caprichosamente à avaliação da prova, ou que a lei lhe ofereça a faculdade de julgar como lhe aprouver, sem provas ou mesmo contra as provas produzidas, antes pelo contrário, este princípio significa que o tribunal deve julgar segundo a consciência que formou e, essa convicção é formada, não em obediência a regras preestabelecidas, a quadros, critérios ou ditames impostos por lei, mas sim através da influência que as provas produzidas exerceram no espírito do julgador, após as ter apreciado e avaliado, segundo critérios de valoração racional e lógica, e com apelo à sua experiência, sendo que, neste particular aspecto, não pode deixar de dar-se a devida relevância à percepção directa que a imediação e a oralidade conferem ao julgador.
A apreciação da prova processa-se, assim, segundo as regras da experiência e a livre convicção, a significar que a prova deve ser analisada através da formulação de juízos assentes no bom senso e experiência de vida, temperados pela capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação adquiridos na experiência quotidiana do julgar, procurando-se reconstituir o facto histórico, usando a razão como instrumento.
Neste conspecto, importa, desde logo, sublinhar que, no vertente caso, foi carreada para os autos prova documental, mas também testemunhal, assumindo ainda relevância a prova pericial cuja realização foi ordenada e cujo resultado, no decurso da audiência de julgamento, foi devidamente analisado e sujeito a contraditório.
De notar que a prova pericial, nos termos do disposto no art.º 151.º, do Código de Processo Penal, deve necessariamente ter lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos, o que significa que a perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.
Ora, a propósito da prova pericial, o legislador previu precisamente um desvio ao princípio da livre apreciação da prova, tal como previsto pelo citado art.º 127.º, do Código de Processo Penal. -1 Vide, a este propósito, a título exemplificativo, o Acórdão da Relação do Porto de 27 de Janeiro de 2010, disponível em www.dgsi.pt.
Com efeito, o art.º 163.º do Código de Processo Penal estatui que “1 – O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 – Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.
Apesar de se tratar de um desvio ao citado art.º 127.º, o certo é que é o próprio art.º 163.º que prevê expressamente a possibilidade do tribunal não acatar o juízo técnico-científico, desde que, para o efeito, assente a sua convicção numa base factual diversa daquela em que se baseou o perito, ou caso tenha renovado a perícia [ordenando uma segunda perícia] por outro perito, esta discorde do juízo pericial anterior, podendo, então, aí o julgador arredar a conclusão inscrita nesse primeiro parecer técnico precisamente com fundamento noutra crítica material da mesma natureza.
Destarte, o que o tribunal não pode fazer é contrariar o juízo pericial na base duma argumentação puramente técnico e/ou jurídica, isto porque, como refere GERMANO MARQUES DA SILVA, In Curso de Processo Penal, Volume II, Editorial Verbo, 1999, páginas 178 e 179, só na base de argumentos da mesma natureza, ou seja, só na base doutros argumentos periciais pode o tribunal divergir do juízo técnico/pericial, sem prejuízo, como vimos, de o fazer por ter apurado factos diversos daqueles em que se fundamentou o juízo pericial formulado e que impliquem uma conclusão técnico-científica diferente.
Em todo o caso, sempre que dele divergir, o julgador deve fundamentar esse afastamento, exigindo-se um acrescido dever de fundamentação. 3 Também neste sentido, entre outros, vide o Acórdão da Relação do Porto de 09 de Setembro de 2009, relator Desembargador ANTÓNIO GAMA, in www.dgsi.pt.
Não é, porém, que se deva considerar que o juízo técnico, científico ou artístico tem um valor probatório pleno, ou presuntivamente pleno, ligado a uma presunção natural, que pode ceder perante contraprova - 4 In LEAL HENRIQUES/SIMAS SANTOS, Código de Processo Penal Anotado, 1996, Volume I, página 642, mas antes e, tão-só, que a valoração diversa dos argumentos invocados pelos peritos e que são fundamento do juízo pericial é bastante para que o relatório pericial não se imponha ao julgador. 5 In GERMANO MARQUES DA SILVA, ob. cit., páginas 153 e 154.
Assim sendo, o perito é um auxiliar do julgador, formulando um parecer sobre o valor ou significado dos meios de prova que examinou, não o podendo substituir na apreciação da prova, intervindo na prova real, que não julga. 6 In MAIA GONÇALVES, Jornadas de Direito Processual Penal, página 208.
Transpondo estas considerações para a análise da matéria probatória-factual carreada no âmbito dos presentes autos, é forçoso, então, concluir que, para além da apreciação da prova pericial, impõe-se forçosamente o rigoroso exame crítico das demais provas reunidas pela acusação, pela assistente e pela defesa dos arguidos, que, obviamente, foram devidamente subordinadas ao princípio do contraditório. 7 Como se conclui no Acórdão da Relação de Coimbra de 05 de Julho de 2006, disponível em www.dgsi.pt.
Posto isto, vejamos, então, os meios de prova a que se recorreu para formar a convicção do tribunal nos moldes acima traduzidos no elenco dos factos provados e não provados, sublinhando, primeiramente, que atenta a complexidade do caso e a natureza específica da matéria factual aqui em causa, o método seguido pelo tribunal foi precisamente atender a todo o processo clínico respeitante à intervenção cirúrgica a que foi submetida a assistente no CICA (Centro Integrado de Cirurgia de Ambulatório) em conjugação com os elementos do Centro de Saúde-Extensão USF ... onde era acompanhada, cuja cópia se encontra junta aos autos (designadamente o resumo de alta de fls. 48; ecografias de partes moles de fls. 8-9 e fls. 12-13; relatório médico da Unidade Cirurgia Geral de Ambulatório de fls. 15; registo de consultas no Centro de Saúde ... - Extensão USF... de 09-10-2014 de fls. 35, de 21-11-2014 de fls. 37 e de 27-05-2015 de fls. 38; resultados do meios complementares de diagnóstico de fls. 36; declaração médica de fls. 40 referente a consulta externa de Cirurgia Ambulatório no CICA ocorrida a 17-04-2015 e cujo diário da consulta da Dra. FF consta de fls. 41 e 172; consentimento livre e esclarecido para actos médicos de fls. 42; convocatória de fls. 43; relatório P1 datado de 21-11-2014 de fls. 44-45; relato cirúrgico da Cirurgia de ambulatório referente à intervenção a 20-05-2015 junto a fls. 46; registo de telefonema do dia seguinte ocorrido a 21-05-2015 de fls. 47; histologia da peça enviada para Anatomia Patológica de fls. 49; relatório médico do Serviço de Cirurgia de Ambulatório do Centro Hospitalar ... de fls. 72; exame ecografia de partes moles de 29-12-2017 de fls. 126, relatório de perícia de avaliação de dano corporal de fls. 134-136 e 161-164; procedimento geral transversal ao CH... de fls. 147-151; diagnóstico de enfermagem datado de 20-05-2015 de fls. 178 e o relato de cirurgia segura – cópia da cheklist – Cirurgia Segura do CH... de fls. 403-404), conjugando-o devidamente com as declarações dos arguidos que, em sede de julgamento, optaram por prestar esclarecimentos sobre os actos que adoptaram na intervenção cirúrgica da paciente em referência e com o próprio teor da prova testemunhal e ainda com o conteúdo da perícia médica-legal efectuada pela Delegação do Norte do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, I.P. junta aos autos e devidamente explicada pela sua subscritora em sede de audiência de julgamento.
A par destes elementos, foi desde logo valorada a versão dos arguidos, que optaram por prestar declarações (tendo-o feito separadamente, nos termos do disposto no art.º 343.º, n.º 4, do Código de Processo Penal), sendo de salientar que todos eles o fizeram de forma espontânea, calma, pormenorizada, colaborante (sem evitarem responder a quaisquer perguntas ou esclarecimentos que lhes foram sendo sucessivamente solicitados, quer pelo tribunal, quer pelo Ministério Público, assistente e defesa, e, sobretudo, convincente, tendo em conta as razões que apresentaram e que se mostraram conformes com os registos clínicos, de enfermagem e histológicos acima referidos, nos moldes que infra veremos mais minuciosamente.
Assim, e de forma sucinta, o arguido AA começou por explicar que é medico cirurgião e exerce funções no CICA desde 2008, sendo que em média realiza cerca de 10 idênticas cirurgias por semana, pelo que não tem presente todos os pormenores que envolveram a intervenção cirúrgica ora em causa.
Mencionou que o CICA é um centro que tem por objecto dar formação a internos de formação específica, que estão a representar uma especialidade cirúrgica, que pode ser cirurgia geral, vascular ou outra, sendo que as cirurgias são também muitas vezes realizadas na presença de alunos do curso de medicina.
O procedimento em causa é feito com recurso a uma anestesia local, em que se baseiam sobretudo naquilo que diz o doente e no registo que lhe é enviado pelo médico cirurgião que o assistiu em primeira consulta. O doente entra na sala, estando consciente e colaborante, é lhe perguntado pelo nome e demais elementos de identificação, adoptando a equipa o chamado “procedimento de cirurgia segura”, no fundo um sistema de segurança que obedece a uma série de requisitos ou cheklist, em tudo semelhante aos procedimentos adoptados na aviação antes de um avião descolar. Referiu que sobretudo nestas particulares cirurgias em que está a ser ministrada formação é imperativo que tudo decorra com a observância rígida de todos os necessários princípios, concretamente procedem à identificação do doente, questionam o objectivo pretendido pelo doente com a intervenção, pedem várias vezes para que a pessoa identifique a lesão, a qual é também alvo de observação, são registadas várias outras informações tal como as pessoas que estão na sala, a identificação da lesão, etc. Se não se suscitarem quaisquer dúvidas mediante aquilo que o paciente refere em consonância com o registo clinico prévio enviado pelo cirurgião, e habitualmente na presença de todos os médicos e enfermeiro, é-lhe marcada a lesão com um marcador dérmico. O doente é inquirido várias vezes sobre o local exacto da lesão. É prática habitual antes de proceder à marcação observar-se o paciente em pé, e depois na posição deitada e se necessário for voltar a levantar o paciente para confirmar o local preciso da marcação da lesão.
Depois de determinado o local dá-se início à cirurgia, que decorre com observância do protoloco habitual que costumam executar, o que sucedeu no caso concreto em apreciação, tendo sido retirada a lesão com cerca de 3cm que foi enviada e que faz parte do registo do médico que viu a paciente em consulta, com indicação inequívoca da doente. Essa lesão foi enviada para o exame patológico que confirmou a presença de um lipoma com 3cm.
Está descrito no relato cirúrgico que quem executou a cirurgia foi a Dra. BB sob a sua supervisão, sendo o próprio que chefiava a equipa de cirurgia na data dos factos. O papel da Dra. CC reconduz-se a observar os protocolos e ajudar na execução da cirurgia, sendo que na cirurgia seguinte provavelmente os papéis das formandas inverter-se-iam. Referiu que normalmente quem marca o paciente é o médico que realiza a cirurgia, mas neste caso concreto não está em condições de garantir quem foi o autor da marcação, atendendo ao lapso temporal decorrido e ao elevado número de cirurgias entretanto efectuadas.
Clarificou que a zona do corpo onde foi feita a incisão se trata de uma área de difícil interpretação, porque a anatomia cirúrgica não pode ser “vista a esquadro” daí que a doente tivesse sido observada em pé, deitada, voltou a colocar-se em pé, justamente porque houve necessidade de marcar com precisão a região a intervencionar. Esta é considerada uma região de transição, logo basta a doente estar deitada para poder alterar o local que anteriormente indicou em posição de pé ou vice-versa. Trata-se de uma zona de difícil definição, concretamente de determinar com absoluta precisão a região lombar ou a região sagrada, podendo dizer-se que é uma zona de transição lombo sagrada.
Reforça que a cirurgia foi executada correctamente, porquanto tinham indicação de extração de uma lesão com 3 cm, pediram a colaboração da doente que apontou de forma inequívoca para o local onde se encontrava a lesão, que foi identificada pela equipa médica e corresponde ao local onde foi feita a marcação e onde posteriormente foi feita a incisão.
Assegura que houve total cuidado no local da marcação, com o apoio da doente e corresponde à lesão que lhes foi enviada com indicação para extração, o que foi feito, tendo a amostra sido enviada para a anatomia patológica e que foi confirmado tratar-se de um lipoma com 3cm.
Não concebe a possibilidade de poder ter havido “distração” porque não é sequer crível que três cirurgiões estivessem todos distraídos em simultâneo. Sublinhou que o conceito de cirurgia de ambulatório implica um internamento minimamente invasivo que permite a possibilidade de o doente poder deslocar-se para o seu domicílio algumas horas após a cirurgia, do qual o serviço de ambulatório do Hospital ... é pioneiro e reconhecido mundialmente, sendo provavelmente em Portugal o melhor centro de referência nacional, o único que tem um serviço próprio, com instalações próprias e acessos definidos, regidos por critérios de excelência na formação e no cumprimento rigoroso dos protocolos, granjeando a atribuição de reconhecido mérito internacional.
Salientou que no momento da cirurgia os médicos cirurgiões só tiveram acesso ao registo clinico que refere “pequeno lipoma lombar com 3 cm”(não diz se é esquerdo se é direito, superior ou inferior), valorizando sobretudo a indicação da lesão que é feita pelo próprio paciente. Referiu que o material extraído durante a intervenção cirúrgica foi enviado para estudo histológico, tendo revelado tratar-se de um lipoma ou mais concretamente uma lipodistrofia o que é o mesmo, uma vez que consubstancia uma alteração do tecido adiposo. Isto porque o lipoma é definido como sendo uma lesão distrófica do tecido adiposo.
Reforçou que na altura da intervenção cirúrgica o único elemento de que dispunham era o registo enviado pelo médico cirurgião que vê o doente em primeira consulta (no caso a Dra. FF) e depois o envia para a cirurgia e que consta de fls. 41 dos autos (com o qual foi confrontado em audiência de julgamento).
Também confrontado com as fotos de fls. 10 e 11 e com o exacto local da incisão efectuada no corpo da assistente refere que a mesma se situa na região lombo sagrada, sendo uma zona de transição onde começa o músculo do glúteo e terminam os músculos lombares.
Sublinhou que no momento e local da cirurgia a equipa médica não dispõe de acesso a qualquer outro elemento se não o registo clinico que o cirurgião previamente envia, pois à data dos acontecimentos (diferentemente do que sucede actualmente já que agora é possível consultar informaticamente os registos efectuados pelo médico de família no seu diário, apesar de continuar a não ser possível verificar a informação relativa aos exames complementares realizados) não tinham acesso informático ao restante processo clinico.
Concluiu assim haver total correspondência entre aquilo que foi indicado para cirurgia (pequeno lipoma na região lombar com cerca de 3cm), a lesão que foi extraída de acordo com a indicação presencial feita pela própria paciente e enviado para estudo histológico resulta a confirmação de que se trata de um lipoma com 3 cm.
Acrescentou que na área lombar e abdominal é frequente haver múltiplas lesões, pois nesses locais a gordura acumula-se.
Referiu não ter indicação de que tenha havido qualquer intercorrência durante a cirurgia em questão, caso contrário ficaria obrigatoriamente consignado por escrito no relato cirúrgico.
Sustentou também que não faz qualquer sentido que a paciente tivesse indicado um local e o cirurgião, na presença de mais três outras pessoas, tivesse marcado um outro diferente e ninguém tivesse dado conta.
A arguida BB esclareceu que à data dos factos já tinha completado o curso de medicina e era interna de cirurgia vascular, tendo iniciado o estágio de cirurgia geral, estando no ambulatório há menos de 2 meses. Tratava-se de uma fase inicial, sobretudo de observação, quer em consulta quer no bloco operatório ou reuniões de serviço, com um papel pouco activo.
Disse recordar-se vagamente da situação dos autos, não tendo existido nada de marcante que a destacasse de outras intervenções cirúrgicas efectuadas, nem existiu qualquer intercorrência ou complicação no decurso da cirurgia caso em que ficaria obrigatoriamente descrito no relato operatório.
No caso a equipa cirúrgica era composta pelos 3 arguidos e um(a) enfermeiro(a).
Explicou os procedimentos adoptados em pequenas cirurgias com anestesia local, como a dos presentes autos, relatando em traços gerais que o doente chegava e viam o registo prévio da consulta pois o paciente já tinha sido observado numa consulta prévia de cirurgia de ambulatório por um cirurgião e era este que propunha o doente para cirurgia, pediam sempre ao paciente que indicasse qual era a lesão a retirar, conferindo se era consonante com o registo da cirurgia, faziam a marcação da lesão e depois davam início à intervenção.
Esclareceu que em todas as cirurgias sem excepção adoptam um procedimento de segurança consistente numa cheklist em que previamente à intervenção são conferidos todos os passos. Relatou que neste tipo de lesão que não é visível a olho nu (como um sinal por exemplo) é sempre o cirurgião sénior que procede à marcação e que no caso era o arguido. Disse que as arguidas até poderiam ter procedido à palpação da paciente, mas a marcação era sempre da competência do cirurgião sénior.
Explicou que apesar de nos registos aparecer como cirurgiã principal tal circunstância pode não corresponder à realidade, porque quem faz o registo do cirurgião principal e ajudante no início do procedimento é a enfermeira e muitas vezes os intervenientes não vão conferir se essas informações correspondem ao sucedido, até porque o número de cirurgias em que intervinha nessa qualidade na cirurgia geral para efeitos de avaliação de estágio era indiferente. Consultou os registos e verificou que nessa tarde foi indicada como cirurgiã principal em todas os procedimentos, o que é altamente improvável, admitindo que a enfermeira tivesse procedido a todos os registos de forma igual seguindo o primeiro. No caso dos autos, sendo um lipoma, que é um tecido mais profundo, pensa que a cirurgia terá sido realizada pelo arguido, enquanto cirurgião principal, e não pela própria.
Indicou que a única informação clinica que dispunham no momento da cirurgia é o registo informático que contém a consulta prévia pré-operatória feita por um médico cirurgião (e que consta do documento de fls. 41) e verificavam então se a informação clinica do registo da consulta era consonante com as queixas apresentadas pela paciente. Disse que no caso concreto a consulta prévia foi efectuada pela Dra. FF, sendo que a arguida também esteve presente como observadora nessa referida consulta, não tendo então consultado qualquer documentação ou elemento clinico ou feito o exame físico à paciente.
Não se recorda da marcação no caso em concreto, podendo apenas afirmar que pedem aos doentes para se colocarem de pé e deitados sobretudo quando não são lesões visíveis a olho nu, exactamente para perceber qual é a melhor forma de marcar.
Confrontada com as fotografias de fls. 10 e 11 afirmou que a cicatriz aí evidenciada está localizada numa área de transição da região lombar para a zona do glúteo.
Concluiu que a intervenção cirúrgica em apreço foi feita de acordo com o registo da consulta externa e com a indicação prévia cirurgia, de acordo com as indicações da paciente, tendo sido observados todos os procedimentos de segurança.
A arguida CC começou por esclarecer que à data dos factos tinha completado o curso de medicina e iniciado o internato de dermatologia, estando a fazer o estágio na valência de cirurgia desde o dia 1 de maio de 2015. Descreveu como sendo uma fase inicial, sobretudo de observação e de assistência a actos médicos, sem qualquer intervenção de relevo.
Disse que os três arguidos compunham a equipa cirúrgica que executou o procedimento em análise, sendo que o arguido interveio como cirurgião especialista, dado que as intervenções que implicavam remoção de lesões não visíveis a olho nu, por norma, não eram executadas por quem estava no início da formação.
No decurso da cirurgia em causa cabia-lhe estar a assistir ou a realizar alguma tarefa mais simples que lhe quisessem atribuir, como cortar o fio ou manter o campo cirúrgico limpo.
No que respeita ao procedimento em análise referiu que se tratava de uma cirurgia com anestesia local, sendo que a equipa cirúrgica contou com a colaboração da paciente, que estava consciente e vigil no que respeita à indicação do local da lesão, o que fez de forma inequívoca, tendo ainda sido conjugada a informação clinica constante do registo do médico cirurgião que fez a primeira consulta. Nessa sequência procederam à marcação do local a intervencionar e à remoção da respectiva lesão, que foi enviada para a análise na anatomia patológica, a qual, por seu turno, revelou a remoção de um lipoma de 3 cm. Explicitou que a marcação do local da lesão foi feita pelo arguido sob indicação da doente, e que previamente foi aquela sujeita a palpação pela equipa cirúrgica.
Confrontada com as fotos de fls. 10 e 11 e com a cicatriz nas mesmas exibidas descreveu a localização daquela como pertencendo à zona de transição da região lombo sagrada.
Salientou que o único elemento clinico de que a equipa cirúrgica dispunha no momento da cirurgia foi o registo da consulta de fls. 41.
Esclareceu que quem faz o relato cirúrgico é o cirurgião principal que executou o procedimento e preenche a parte relativa ao acto cirúrgico propriamente dito, sendo que as restantes menções, referentes à indicação dos intervenientes, códigos etc. normalmente é preenchida pela equipa de enfermagem, podendo existir lapso quanto à identificação da pessoa do cirurgião principal.
A assistente DD mencionou que no ano de 2014 sentia uma dor no fundo das costas e por isso dirigiu-se ao Centro de Saúde ... tendo sido observada pelo médico de família Dr. EE que mandou fazer uma ecografia às partes moles, o que fez. Na posse dos exames regressou à consulta do médico de saúde familiar onde lhe foi diagnosticado a existência de um lipoma e recomendada cirurgia, tendo sido encaminhada para o CICA. Aqui foi vista pela Dra. FF, que a observou e analisou os exames efectuados, tendo indicação para cirurgia, que foi marcada para o mês seguinte. Esclareceu que o lipoma em causa estava localizado na zona lombar do lado direito.
Disse que quando entrou no bloco operatório estavam presentes 2 médicas, ora arguidas, e uma enfermeira, tendo-lhe sido solicitado que assinalasse o local da lesão, o que fez levando a mão ao sítio, estando na posição de pé. Depois foi solicitado que se deitasse e como as médicas estavam com dificuldade em localizar a lesão, indicou novamente o local da mesma. O lipoma era perceptível ao toque, mas referiu que nenhum dos médicos procedeu à palpação durante todo o tempo que lá esteve. Afirmou que indicou o local da lesão como sendo “ao fundo das costas” do lado direito. Mencionou que foi uma das médicas que efectuou a marcação do local da intervenção, não sabendo qual ao certo devido à posição em que se encontrava e que não permitia campo de visão. Disse que, entretanto, chegou o médico cirurgião e perguntou se estava tudo em ordem, ao que uma das médicas respondeu que tiveram um pouco de dificuldade em proceder à marcação, tendo o cirurgião respondido que ia permanecer no local para o que fosse preciso. Deu-se início à cirurgia, não sabendo quem a executou, mas pressupõe que tenha sido o arguido porque a determinada altura ouviu-o dizer que não conseguia fechar porque as mãos estavam com gordura e que não havia lipoma nenhum, que tinha sido mal diagnosticado, perguntando-lhe quem tinha dado a indicação para cirurgia. Pelas conversas que foi ouvindo durante a cirurgia percebeu que algo não estava a correr bem, tanto que foi necessário um reforço da anestesia e o uso de afastadores. No dia seguinte sentiu muitas dores e mencionou tal circunstância por ocasião do telefonema do dia seguinte que lhe foi feito pelo CICA, tendo a enfermeira dito que era normal porque a cirurgia tinha sido “um bocadinho exploratória”. Foi fazer posteriormente os curativos ao Centro de Saúde e retirar os pontos. Uns dias depois quando se sentia mais confiante tocou no local e percebeu que mantinha a mesma protuberância, que o lipoma não tinha sido removido e que continuava a ser percetível à palpação. Foi novamente ao Centro de Saúde para ser observada e fez nova ecografia às partes moles, onde se concluiu que permanecia o lipoma inicial. Relatou que em função do sucedido sentiu muitas dores, principalmente se estiver sentada muitas horas na mesma posição, ficou com uma cicatriz desnecessária, que a desfeia e sem o problema de saúde resolvido, o que tudo a afectou psicologicamente.
GG, perita médica subscritora dos exames de fls. 134-136 e fls. 161-164, explicou as conclusões a que chegou por análise da documentação clinica, elementos imagiológicos prévios, contemporâneos e posteriores à cirurgia realizada e o exame objectivo realizado à assistente, confirmando o teor dos relatórios da perícia médico-legal efectuada.
Indicou em termos anatómicos a zona onde, em seu entender, se localiza a cicatriz que resultou da cirurgia em causa, referindo que a nómica anatómica pode variar consoante as escolas, ressalvando também que não é especialista na área da anatomia.
Confirmou que à data do relatório final a assistente era portadora “na topografia da tumefação palpável indicada pela paciente, nos planos da região lombar, em topografia para mediana direita esboça-se uma formação nodular com 13x8x13mm, de contornos irregulares, com ecogenicidade semelhante à restante gordura subcutânea, podendo traduzir lipoma ou, menos provavelmente, lobulação de gordura”.
Explicou também a distinção entre lipoma e lipodistrofia, muito embora salientasse que se trata de uma nomenclatura histológica (estudo das células) ou de anatomia macroscópica, sendo certo que sua especialidade é a da medicina legal, sendo que quanto à resposta da questão específica que diz respeito à observação de tecidos do corpo humano é competente a área da anatomia patológica.
Afirmou que a indicação precisa da lesão pode variar consoante o paciente se encontre em posição de pé ou deitado, daí que seja fundamental complementar a avaliação com a palpação anatómica.
A testemunha EE, à data dos factos era médico interno da especialidade em Medicina Geral e Familiar no Centro de Saúde ....
Disse inicialmente não se recordar da situação em concreto, pois observou inúmeros pacientes ao longo dos anos, mas confrontado com a documentação clinica de fls. 35, 36 e 37, explicou que observou a assistente em consulta em 09-10-2014 e que esta se queixava de uma pequena tumefação na zona lombar direita com cerca de 1,5 cm de diâmetro, doloroso a palpação, não aderente aos planos profundos, pelo que pediu uma ecografia de partes moles, que efectuou a 03-11-2014 (fls. 36) e evidenciou uma tumefação na região lombar direita com lobulação de gordura mais proeminente com 14x6mm. Passados uns dias em 21-11-2014 voltou a observar a assistente já com a exibição do resultado da aludida ecografia, tendo-a então referenciado para cirurgia geral. Diz não se recordar se naquela altura enviava o pedido através do sistema P1 acompanhado dos exames complementares de diagnóstico.
Confirma que viu a assistente uma última vez em consulta no dia 27-05-2014 de acordo com o registo clinico de fls. 38 e que a mesma se queixava de não ter sido intervencionada cirurgicamente no sítio certo, queixando-se ainda de manter tumefação na zona lombar direita. Não fez a palpação à paciente, pedindo logo uma nova ecografia para confirmação da existência de lipoma. A ecografia de 03-11-2014 junta a fls. 8 confirma uma lobulação de gordura mais proeminente com 14x6mm.
A ecografia das partes moles pós cirúrgica, datada de 06-06-2015, constante de fls. 12 aparentemente evidencia um lipoma na região paravertebral direita com 14x5mm.
Confrontado com a circunstância de ter dado indicação para cirurgia com vista a remover um lipoma de 14x6mm e de ter sido posteriormente enviada para cirurgia para remover um lipoma de 3cm (30mm) não soube explicar esta discrepância, referindo poder tratar-se de um local diferente ou admitindo até poder tratar-se de uma lesão diferente, tanto mais que grande parte dos doentes tem até vários lipomas, aconselhando em regra a não extrair, a menos que seja doloroso.
Sustentou não deter os conhecimentos técnico-científicos necessários para afirmar se lipoma é o mesmo que lipodistrofia.
Considera que o local onde está situada a cicatriz retratada a fls. 10 se trata da zona nadegueira, próxima da região de transição com a zona lombar, estando contudo um médico cirurgião mais apto a delimitar tais zonas.
A testemunha II, amiga da assistente, referiu que contactou com a mesma pouco depois da cirurgia, queixando-se de dores e desconforto no local da intervenção cirúrgica, e que passado um tempo concluiu que tinha sido operada no local errado, porque deveria ter sido intervencionada ao fundo das costas quando afinal foi na zona da nádega. Mencionou que ainda hoje a assistente mantém uma protuberância na zona lombar, o que constatou por palpação, não sabendo afirmar se se trata do lipoma existente antes da cirurgia uma vez que não o viu nessa altura. Descreveu os incómodos, abalo emocional e complexos estéticos que a assistente sentiu por força da intervenção cirúrgica a que foi submetida e da cicatriz da mesma resultante.
A testemunha HH, pai da assistente, referiu que viu a filha bastante abalada depois da intervenção cirúrgica a que foi submetida, queixando-se que surgiram complicações durante a operação, e que passados uns dias a filha notou que sentia incómodo na zona onde tinha o lipoma que esteve na origem da intervenção e que este se mantinha no local, sendo que a cicatriz estava a vários centímetros de distância desse ponto. Descreveu os incómodos, abalo emocional e complexos estéticos que a assistente sentiu por força da intervenção cirúrgica a que foi submetida e da cicatriz da mesma resultante.
A testemunha JJ, amiga da assistente, afirmou que a acompanhou à cirurgia, embora não tivesse presente na intervenção, tendo privado com aquela antes e após a operação, e quando a assistente chegou vinha muito transtornada, a chorar e a queixar-se que a operação tinha corrido muito mal, que a anestesia tinha falhado, ficando com a sensação que a intervenção não tinha sido feita no local correcto.
Disse que antes da cirurgia verificou a existência de uma “bolinha” de gordura no lado direito ao fundo das costas da assistente, o que não era visível a olho nu, mas apenas por apalpação, afirmando que depois da cirurgia a lesão continuava no mesmo sítio.
Descreveu os incómodos, abalo emocional e complexos estéticos que a assistente sentiu por força da intervenção cirúrgica a que foi submetida e da cicatriz da mesma resultante.
A testemunha FF, médica no CICA-Centro Hospitalar Universitário..., começou por referir que já não se lembrava da situação especificamente, considerando o lapso de tempo já decorrido, mas por apelo aos registos do processo clinico da assistente recordou tê-la observado em consulta, tratando-se de uma jovem sem antecedentes patológicos de relevo, que tinha um lipoma para fazer uma excisão cirúrgica com anestesia local. Confrontada com o registo clinico de fls. 41 e com a declaração médica de fls. 40, confirmou ter sido a única consulta em que observou a assistente, afirmando que procedeu à palpação da mesma tal como faz relativamente a todos os pacientes. Explicou que primeiro questiona o doente sobre a lesão que o está a incomodar, faz a respectiva observação e palpação. Esclareceu que indicou um lipoma na região lombar com cerca de 3 cm, e que o cálculo da dimensão da lesão foi obtido por apalpação superficial na pele. Descreveu o lipoma em termos correntes como sendo uma bola ou massa de gordura amarela, no fundo uma estrutura constituída apenas por gordura, por isso a consistência é elástica e mole.
É também médica especialista em cirurgia geral, estando habituada a executar este género de procedimentos, adiantando que muitas vezes o primeiro contacto que o cirurgião tem com o doente é no momento da cirurgia, operando sem antes o ter observado em consulta prévia, e que nesses casos é consultado sempre o registo prévio, e quando o paciente entra no bloco operatório é questionado sobre qual a área afectada, pedindo para que indique a lesão. Nessa sequência palpam a área indicada para ver se detectam a lesão e se corresponde à indicação feita pelo paciente. Esclareceu que o primeiro passo na prática da cirurgia segura, num doente acordado e colaborante sob anestesia local, consiste justamente em fazer marcação do local cirúrgico.
Afirmou que é muito comum haver lipomatose múltipla, ou seja, a concentração de vários lipomas numa pessoa só.
Confirmou o teor da declaração por si subscrita constante de fls. 40. Adiantou que no pedido de consulta feito pelo médico de família Dr. EE (P1) trazia o relatório da ecografia, onde se mencionava a existência de um lipoma na região lombar direita com 14mm. Explicou a diferença da medição no tamanho do lipoma, dizendo que a ecografia só mede o lipoma propriamente dito, enquanto que a palpação mede a pele mais o lipoma, por isso neste último caso é necessariamente maior.
Admitiu poder ser considerada uma indicação vaga para a cirurgia “pequeno lipoma na região lombar com cerca de 3cm”.
Mencionou que foi durante muito tempo professora da disciplina de anatomia, com doutoramento especificamente na área da anatomia do sacro e que a cicatriz visível na foto de fls. 10 na sua perspectiva está um pouco abaixo daquilo que consideraria a região lombar. Explicou, no entanto, que a região lombar é muito extensa e vai desde o bordo inferior da 12ª costela até à crista ilíaca (osso da bacia) e acompanha as 5 vertebras lombares, daí que não seja correcta a afirmação feita pela perita médica de que a cicatriz se localiza a 11 cm da região lombar. A parte lombar termina em L5 e articula com o sacro. A crista ilíaca, que acaba por incluir parte da região nadegueira superior, está sensivelmente ao nível da L4.
Disse que na sua prática clinica, não raras vezes os pacientes nos casos de lesões benignas com anestesia local fazem uma indicação de remoção em consulta prévia que é diferente da indicação feita à posteriori no bloco operatório, sendo que o cirurgião atende sobretudo à indicação que é feita pelo doente no momento da cirurgia, habitualmente registando essa divergência por escrito no processo clinico. Reforçou que a indicação da lesão feita pelo próprio paciente tem uma importância fundamental na respectiva marcação do local. Refere não ser crível e altamente improvável que algum cirurgião fosse retirar algo que a doente não apontasse antes, o que muitas vezes sucede é que o próprio paciente aponta vagamente para uma localização, por exemplo ao utilizar vários dedos para o efeito. Mencionou também que a especifica localização da lesão pode variar consoante a posição (em pé ou deitado) do paciente.
Assegurou que o resultado da anatomia patológica (de fls. 49) é compatível com a indicação prévia que a própria deu para cirurgia, uma vez que a biopsia revela um tecido adiposo capsulado com 7g e 3 cm de maio eixo, ao corte, de tecidos amarelos compactos com septos fibrosos, ou seja, é uma bola de gordura de 3cm, não tendo dúvidas em afirmar que o que foi removido se trata de um lipoma e vai também de encontro à indicação que deu para cirurgia.
A testemunha LL, médica de especialidade de cirurgia geral, em exercício de funções no Centro Hospitalar ... desde 2006, foi interna do arguido em 2007 e conheceu as arguidas em contexto de internato no seu serviço.
Começou por esclarecer os procedimentos a observar no caso das cirurgias de anestesia local, relatando que muitas vezes operam os pacientes que só conhecem no momento da cirurgia e que observam invariavelmente o protocolo de cirurgia segura que exige a observância de um conjunto de procedimentos prévios. Tais procedimentos passam por colocar ao paciente vários tipos de questões, tal como alergias medicamentosas, sobre qual o motivo da intervenção, onde se situa o local cirúrgico, entre outras, observam o paciente e fazem o exame físico, consultam a documentação clinica e exames auxiliares e complementares de diagnóstico (caso existam) e fazem a marcação no local apontado pelo doente através da utilização de um marcador dérmico.
Afirmou que os internos são tutelados pelo cirurgião sénior, sendo que quanto mais novos aqueles são menor é sua responsabilidade, e que sensivelmente durante o primeiro mês da formação os médicos internos limitam-se a observar, pelo que as arguidas à data dos factos não teriam autonomia por si só para fazer marcações e excisões.
Não teve dúvidas em afirmar que o resultado da anatomia patológica constante de fls. 49 corresponde a um lipoma.
A testemunha MM, enfermeira no CICA desde 2009, disse ter estado presente na cirurgia em apreço, descrevendo os procedimentos habituais e parâmetros observados na cirurgia segura. Explicou que aquando da chegada do doente, este é recepcionado pelo assistente operacional e encaminhado para o vestiário, e de seguida são-lhe colocadas uma série de questões desde logo relacionadas com a identificação da pessoa, o local onde vai remover a lesão para a escolha do vestuário, a existência de próteses e adereços, qual a medicação que toma, se tem algum tipo de alergia etc. Posteriormente dirigem-se à sala de intervenção cirúrgica e aguardam que os cirurgiões cheguem para nova confirmação. Apesar de não se recordar da situação em concreto, referiu que preencheu e assinou a segurança cirúrgica- checklist (junta a fls. 403), que consiste num sistema de segurança que a Organização Mundial de Saúde implementou por forma a garantir a verificação de todos os parâmetros de segurança antes, durante e após a cirurgia com vista a evitar quaisquer erros. Assegurou que no caso a doente apontou expressamente o local da cirurgia conforme por si assinalado através de aposição de um sinal visto no documento de segurança cirúrgica e que a marcação foi feita com um marcador dermográfico em que se assinala e circunda o local a operar, o que é feito de acordo com a indicação dada pela própria paciente, que simultaneamente presta o consentimento à intervenção naquele local e para aquele especifico acto cirúrgico. Afirmou que a intervenção cirúrgica decorreu com normalidade e sem ocorrência de qualquer incidente, caso em que teriam obrigatoriamente de registar por escrito, o que não sucedeu.
Relatou que no dia seguinte contactam telefonicamente o paciente no sentido de apurar do seu estado de saúde, colocando-lhe uma série de questões, nomeadamente se passou bem a noite, se teve de recorrer a algum serviço de urgência, tal como o SASU (Serviço de Atendimento de Situações Urgentes) ou o serviço de urgência num hospital central, se sentiu algum tipo de dor, se teve temperatura, se teve cefaleia, se o penso está repassado, se tem alguma dúvida, entre outras.
A testemunha NN, médico especialista de cirurgia geral em exercício de funções no Centro Hospitalar ... – trabalha no serviço de cirurgia de ambulatório desde 2004 e é Director do Serviço desde 2017.
Não teve intervenção directa no caso em apreço, tomando contacto posterior com a situação tendo sido o próprio a responder a todos os pedidos de informação e documentação solicitados nestes autos.
Descreveu os procedimentos habituais de boas práticas a adoptar pela equipa cirúrgica médica e de enfermagem em casos semelhantes de pequena cirurgia com anestesia local, obrigações acrescidas no caso do CICA já que se trata de um hospital universitário com especial enfoque no ensino e na aprendizagem de médicos internos.
Afirmou que um dos pressupostos do ambulatório em Portugal é justamente a segurança e que adoptaram um sistema idêntico ao da aviação chamado de checklist, através do qual colocam sucessivas questões ao paciente, nomeadamente sobre as queixas que apresenta, o que vai fazer, o local a intervencionar, entre outros.
Na qualidade de docente da disciplina de Anatomia no I... (Instituto de Ciências ...) explicou em termos anatómicos que a zona lombar é uma região ampla, que está situada abaixo do limite inferior das costelas até às cristas ilíacas e até à região sagrada. Diz que é aceitável em termos anatómicos considerar a região da nádega ainda como fazendo parte da zona lombar. Os limites e áreas anatómicas nem sempre correspondem às áreas cirúrgicas, sendo que há descrições diferentes quando se fala da anatomia descritiva pura e da anatomia cirúrgica, por isso há tratados diferentes. Não significa que a anatomia seja diferente, mas a forma como é organizada é distinta.
Confrontado com a foto constante de fls. 10 referiu que a região sacro ilíaca situa-se no limite da cueca, podendo considerar-se uma zona de transição da região lombar para a região nadegueira direita.
Confrontado com a ecografia das partes moles junta a fls. 8 esclareceu que o lipoma é sempre um diagnóstico histológico, uma suspeita clinica que carece de ser confirmada em definitivo pela histologia. No que concerne ao resultado da anatomia patológica de fls. 49 afirma que corresponde à descrição feita no relato cirúrgico, à lesão que foi extraída e à peça que foi enviada para exame anatomopatológico e concomitantemente corresponde à indicação prévia para cirurgia feita pela Dra. FF, já que se trata da remoção de uma lesão compatível com um lipoma (que neste caso foi chamado de lipodistrofia) com 7g e 3 cm. Na sua perspetiva e de acordo com os elementos clínicos disponíveis não detectou qualquer falha nas boas práticas médicas ou inobservância de procedimentos por parte do clinico que executou a intervenção cirúrgica em causa.
Acrescentou que fundamental é também a circunstância do paciente estar acordado e identificar exactamente o local da lesão, sendo que no caso não há registo que a paciente ou o médico tenha tido dúvidas na marcação do local cirúrgico, nem conhecimento de que a paciente se tenha queixado na altura de estar a ser intervencionada no local errado.
Afirmou que à data de 2015, diferentemente do que sucede actualmente, não era possível no bloco operatório aceder por via informática ao processo clinico global do paciente (com as informações do centro de saúde ou de outros hospitais), ou seja, o cirurgião só dispunha do pedido de consulta feito pelo Médico Assistente (de família) e o diário da consulta da Dra. FF conforme informação que prestou nos autos a fls. 402 verso.
A testemunha OO, médico dermatologista, afirmou que observou a assistente em consulta já após a intervenção cirúrgica, e que esta se queixou de ter sido operada no local errado, mantendo a lesão inicial. Nessa sequência fez a palpação à paciente, verificando que a mesma tinha uma pequena lesão, mas aquela não manifestou vontade de fazer qualquer tratamento ou ser submetida a qualquer tipo de intervenção cirúrgica.
A testemunha PP, médico especialista de cirurgia vascular no CH... e orientador de formação da arguida BB, no essencial, deu excelentes referências naquilo que dela conhece profissionalmente.
A testemunha QQ, enfermeira no CICA, confirmou que efectuou o telefonema do dia seguinte à cirurgia à assistente, colocando-lhe várias perguntas que constam de um formulário próprio e consignando por escrito as respectivas respostas no documento de fls. 47, cujo teor confirmou em audiência de julgamento.
De referir que tais depoimentos mereceram inteira credibilidade pela forma espontânea, objectiva e coerente como foram prestados, sendo certo que nada de perturbador ou nenhuma contradição de monta se encontra neles capaz de afectar a sua sinceridade.
Em função do descrito, filtrando os pontos em comum e sobre os quais não existiu dissenso, suportado pela prova documental e pericial acima elencada, o Tribunal considerou provada a matéria descrita em 1 a 20 supra.
Inversamente, apesar de o tribunal ficar convicto que a assistente não faltou deliberadamente à verdade, o certo é que o seu relato nem sempre se afigurou objectivo e congruente possivelmente devido à forma emotiva como percepciona os acontecimentos e ao lapso de tempo entretanto decorrido desde a data da cirurgia, volvidos que são mais de 6 anos sobre essa data. Concretamente na parte em que afirma que nenhum dos médicos cirurgiões presentes procedeu, em altura alguma, à palpação anatómica do local onde se situaria a lesão, designadamente depois de as médicas internas que procederam à marcação dérmica terem transmitido ao cirurgião sénior que sentiram dificuldades na marcação do local cirúrgico, o que se mostra pouco credível nas descritas circunstâncias do caso concreto, para mais tratando-se de um centro hospitalar de formação e incompatível com as mais básicas regras da experiência comum, tanto mais que ao que tudo indica a lesão de que se queixava a assistente não era visível “a olho nu” e ademais foi totalmente infirmado pelos arguidos que garantiram, de forma consistente e entre si unânime, que naquela ocasião fizeram a palpação à doente.
Por outro lado, a assistente referiu a existência de várias complicações que surgiram durante a execução da intervenção cirúrgica, quando os registos clínicos não evidenciam essa realidade já que no respectivo relato cirúrgico foi consignado “procedimento sem intercorrências”, sendo certo que os arguidos também não corroboram essa versão, tal como a enfermeira presente MM que atestou que a intervenção cirúrgica decorreu com normalidade e sem registo de qualquer incidente.
Da mesma forma pareceu-nos que a assistente, ainda que não intencionalmente, empolou os acontecimentos, ao referir ter sentido muitas dores no pós-operatório e também nesta parte não encontra respaldo na documentação clinica, na medida em que o acompanhamento subsequente e registado a fls. 47 (telefonema dia seguinte) refere designadamente que “a viagem de regresso a casa decorreu sem problemas” que “passou bem a noite” “que a medicação foi suficiente” e no que concerne a presença de co-morbilidade no momento do telefonema a assistente respondeu a tudo negativamente, com excepção de “dor ligeira” no local da cirurgia, tal como confirmado em audiência de julgamento pela enfermeira QQ.
Não duvidamos que a assistente à data de hoje possa manter um lipoma que a incomoda na zona lombar direita e que tal circunstância é fonte de angústia e sofrimento.
Todavia, não resultou da prova produzida em audiência de julgamento que a ofendida previamente à intervenção cirúrgica indicou na zona lombar direita o local onde se situava o lipoma a extrair e porque os arguidos estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de a ofendida ter indicado o local a intervencionar que se situava na zona lombar direita, fazendo uma incisão na área da nádega direita da ofendida.
Senão vejamos.
Tanto os médicos cirurgiões como a enfermeira que compunha a equipa cirúrgica, referiram que questionaram por diversas vezes a assistente quanto ao local onde a lesão se situava. Travava-se de uma pequena cirurgia com anestesia local. A assistente estava acordada, vigil e colaborante, todos foram concordantes neste ponto (até mesmo a assistente). A marcação dérmica terá sido feita no local da lesão a intervencionar sob indicação da própria assistente, conforme referido pelos arguidos e enfermeira presentes no bloco operatório, tendo sido posteriormente administrada a anestesia nessa área, sendo certo que a assistente estava alerta e consciente (por conseguinte, teve necessariamente de sentir a marcação da caneta na pele e a anestesia no local em referência) e a tal não se opôs, tendo consentido na realização desse acto nesse local.
Ficou também demonstrado que os arguidos nunca antes tinham observado, por si, em consulta a assistente e no momento da cirurgia os únicos elementos clínicos de que dispunham resumia-se ao registo clinico de fls. 41, do qual resulta a indicação de “pequeno lipoma na região lombar com cerca de 3cm”, com plano para “exérece cirúrgica sob AL”.
Ora, os registos clínicos existentes apontam para a extracção de uma lesão na zona lombar, conforme decorre do relato cirúrgico de fls. 46 em conjugação com o relatório de anatomia patológica de fls. 49. A própria indicação para cirurgia vertida no documento de fls. 41 é vaga na medida em que refere singelamente “pequeno lipoma na região lombar com cerca de 3cm”, sem precisar se é no lado direito ou esquerdo, inferior ou superior, sendo que em audiência de julgamento foi amplamente referido que a região lombar é uma zona extensa, de difícil definição, podendo mesmo a localização da cicatriz resultante da intervenção cirúrgica efectuada considerar-se uma zona de transição lombo sagrada.
Por outro lado, o resultado da anatomia patológica (de fls. 49) é compatível com a indicação prévia que a Dra. FF deu para cirurgia, uma vez que a biopsia revela um tecido adiposo capsulado com 7g e 3 cm de maio eixo, ao corte, de tecidos amarelos compactos com septos fibrosos, ou seja, é uma bola de gordura de 3cm, tratando-se de um lipoma, tal como atestado pelos médicos cirurgiões FF, LL e NN.
Acresce que, conforme foi avançado em audiência de julgamento, é também configurável a hipótese de lipomatose múltipla, ou seja, uma condição que provoca a acumulação de vários nódulos de gordura pelo corpo ou, por outras palavras, a concentração de vários lipomas numa só pessoa, sendo possível que a assistente no momento da intervenção cirúrgica tivesse vários lipomas e apontado para um em detrimento do outro também existente, ainda que não se tivesse apercebido de tal circunstância.
É que também foi referido em audiência de julgamento que na prática clinica e não raras vezes os pacientes nos casos de lesões benignas com anestesia local fazem uma indicação de remoção em consulta prévia que é diferente da indicação feita à posteriori no bloco operatório, sendo que o cirurgião atende sobretudo à indicação que é feita pelo doente no momento da cirurgia. Por vezes também sucede que o próprio paciente aponta vagamente para uma localização, por exemplo ao utilizar vários dedos para o efeito.
E importa também não esquecer que a especifica localização da lesão pode ainda variar consoante a posição em que se encontre o paciente (em pé ou deitado).
Perante esta multiplicidade de hipóteses não foi possível ao Tribunal concluir que os arguidos estavam desatentos, que não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e que não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcando convenientemente o local cirúrgico, daí que se considerasse como não provada a matéria ínsita nas al. A) a P) supra.
Com efeito, das declarações prestadas pelos arguidos, no seu conjunto, atendendo à forma como os mesmos voluntária e espontaneamente responderam a todas as perguntas que lhe foram sendo efectuadas, quer pelo tribunal, quer pelo Ministério Público, assistente e pela defesa, nunca se escusando a elucidar acerca dos procedimentos observados antes, durante e após a intervenção cirúrgica a que foi sujeita a assistente, bem como aos registos clínicos e resultado do exame histológico acima indicado, ancorados no depoimento das testemunhas de defesa (com especial enfoque nas enfermeiras MM e QQ) nos moldes acima descritos, ficou o tribunal plenamente convencido de que os arguidos falaram de forma credível e verdadeira e não com a intenção de omitir (em benefício da respectiva defesa) qualquer procedimento que adoptaram e que não deveriam ter adoptado ou não adoptaram e deveriam ter adoptado por forma a evitar o resultado final.
E foi precisamente com base neste juízo que recaiu sobre o teor das declarações dos arguidos e da postura destes ao longo de toda a audiência de julgamento, manifestamente colaborante com vista à descoberta da verdade material e ao esclarecimento da matéria por vezes complexa do ponto de vista técnico-científico (sendo que, note-se, estas declarações foram devidamente concatenadas com os elementos documentais acima descritos que compõem o processo clinico, designadamente com os registos clínicos, de enfermagem e exame anatomopatológico).
Da prova dessa factualidade resultou, em contrapartida (e por se encontrar em contradição com a mesma) a não demonstração dos factos descritos nas alíneas A) a P) supra dos factos não provados.
E a tal não obstou as conclusões a que chegou a Sra. Perita e exaradas no relatório pericial junto aos autos (cfr. fls. 161-164) pois o que aí se refere é que a assistente naquela data (25-05-2018) era portadora de “na topografia da tumefacção palpável indicada pela paciente, nos planos da região lombar, em topografia para mediana direita, esboça-se uma formação nodular com 13x8x13mm, de contornos irregulares, com ecogenicidade semelhante à restante gordura subcutânea, podendo traduzir lipoma”, ou seja, mantém um lipoma na região lombar direita e a cicatriz resultante da intervenção cirúrgica em apreço está localizada 11 cm para baixo da área onde se identifica a tumefacção atrás descrita, o que nada esclarece quanto à concreta indicação da lesão feita pela assistente no momento da intervenção cirúrgica. No mais, é a própria Sra. Perita que acaba por admitir em audiência de julgamento que não é especialista nem em anatomia, nem na área de histologia, sendo mais aptos a discorrer sobre tais matérias e detendo os necessários conhecimentos técnicos-científicos os respectivos especialistas.
Por tudo o exposto, e ante o teor das declarações prestadas pelos arguidos, que mereceu apoio das testemunhas de defesa, da prova documental, bem como dos próprios esclarecimentos prestados pela Sr.ª Perita e, em última instância, pelo próprio princípio da presunção de inocência (cfr. artigo 32.º, da Constituição da República Portuguesa), o tribunal deu como não provados os factos descritos nas alíneas A) a P) conforme referido.
Quanto às condições pessoais e socio-económicas foram consideradas as declarações dos arguidos que, também nesta parte, prestaram os esclarecimentos necessários, não se descortinando motivos para, também neste ponto, não fazer fé nas respectivas declarações, que foram complementadas com os relatórios sociais juntos aos autos – cfr. fls. 393-394, fls. 372-373 e fls. 390-391.
Finalmente, no que tange à demonstração da inexistência de antecedentes criminais o tribunal estribou a sua convicção tão só no teor dos certificados do registo criminal dos arguidos, juntos aos autos, designadamente a fls. 388, fls. 387 e fls. 389.”

II.2 Do recurso
Resulta das motivações e conclusões do recurso que o recorrente impugna o julgamento da matéria de facto tendente a demonstrar eventuais erros de julgamento e tendo por objectivo a modificação da matéria de facto assente, nos termos do artigo 431º, b), do CPP.
Concretamente, pretende a correcção dos factos não provados constantes dos pontos C), D), E), F), G), H), I), J), K), L), M), por em audiência de julgamento ter sido provado, sem qualquer margem para dúvida o inverso.
Refere que, correlacionada toda a prova produzida em julgamento, e tendo como parâmetro as regras da experiência e os critérios de normalidade, a absolvição dos arguidos fundou-se num erro de julgamento. E que, atendendo à prova pericial, documental e testemunhal, conjugada com as normas de experiência comum, deveria ter sido provado o contrário, isto é, que os arguidos procederam à remoção de um lipoma existente no corpo da assistente, mas que não era aquele que estava indicado para ser removido.
Vejamos.
A impugnação da matéria de facto em sede de recurso para o Tribunal da Relação, pode ser feita por invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, sindicando, dessa forma, as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo, na sua adopção, a observância das formalidades previstas no artigo 412º, nº3 e nº 4, do CPP (erro de julgamento em matéria de facto).
Os vícios decisórios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP, são de conhecimento oficioso, e traduzem defeitos estruturais da decisão e não do julgamento e por isso, a sua evidenciação, só pode resultar do texto da decisão, por si só, ou conjugado com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo, visto tratar-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna, e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida.
Vejamos cada um deles, de per si.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, vicio previsto no artº 410º, nº 2, a), do CPP, é um vício da própria sentença e verifica-se quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito.
Trata-se de um vício que consiste em ser insuficiente a matéria de facto para a decisão de direito, ou seja, é necessário que se verifique uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, por faltarem na decisão elementos que permitam alcançar aquela conclusão condenatória, ou absolutória.
Como vem referido no Ac. do TRC de 30.03.2011, proc. nº 10/10.OPECTB.C1, www.dgsi.pt, este é um vício que se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para fundamentar a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão esta que é do âmbito do principio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
No caso em apreço não se verifica tal vício, porquanto da análise do teor da decisão verificamos que dela constam todos os elementos de facto e de direito que permitem alcançar aquela decisão que se mostra devidamente fundamentada.
A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. O que ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.
O erro notório da apreciação da prova, vicio de conhecimento oficioso e constante do artº 410º nº2 al) c) do CPP, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
Ou seja, este vício verifica-se ou ocorre quando de um facto provado se tira um facto logicamente inaceitável, ou quando se dá como provado algo que é ou está errado, ou ainda quando usando um processo racional e lógico se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).
Logo o erro notório na apreciação da prova é o “que se verifica quando da leitura, por qualquer pessoa medianamente instruída, do texto da decisão recorrida ainda que em conjugação com as regras da experiência comum, for detectável qualquer situação contrária à lógica ou regras da experiência da vida” – Ac. STJ 2/2/2011 (rel. Cons. Pires da Graça), www.dgsi.pt.
De forma particularmente clara exarou o STJ, no seu Ac. de 14/04/93, rel: Ferreira Vidigal, www.dgsi.pt, que: “para poder falar-se em erro notório na apreciação da prova refere-se que o colectivo, ao julgar a prova por si exibida, haja cometido um erro evidente, acessível ao observador comum e que o mesmo conste da própria decisão - e não já da motivação desta - por si só ou de acordo com as regras da experiência, não sendo admissível o recurso a elementos estranhos, ainda que constantes do próprio processo”.
Note-se que estamos no domínio do erro-vício que não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
O erro-vicio examina-se, indaga-se, através da análise do texto, enquanto a errada apreciação e valoração das provas se reconduz ao erro de julgamento da matéria de facto, e verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício não se estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.
Portanto, sempre que do texto da decisão recorrida resulta, com evidência, um engano que não passe despercebido ao comum dos leitores e que se traduza numa conclusão contrária àquela que os factos relevantes impõem, estaremos em presença de erro notório na apreciação da prova.
Neste mesmo sentido, escreve-se no sumário de acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, “O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum”. – Relator Conselheiro Simas Santos.
Tendo em conta todos estes ensinamentos e lendo a douta decisão recorrida entendemos que esta é ilógica e até atentatória das regras da experiência comum.
Senão vejamos.
Ficou provado que “13. A intervenção cirúrgica consistia na exérese do lipoma na região lombar direita tal como previamente identificado;” e também que “20. Mercê da intervenção cirúrgica descrita resultou para a ofendida no membro inferior direito, uma cicatriz com 3,5cm, linear, com vestígios de pontos de sutura, nacarada de direcção horizontal, localizada no quadrante supero medial da região nadegueira direita, que lhe causou dor e sofrimento;” (sublinhado nosso)
Porém, ilogicamente, e contra as regras de senso comum, deram-se como não provado os factos que constam das alíneas D) e E) dos factos não provados. Ou seja, dos factos assentes sob os pontos 13 e 20 verificamos, sem qualquer dúvida, que a cirurgia efectuada não foi a “exérese do lipoma na região lombar direita”, mas sim uma cirurgia no membro inferior direito. É o que resulta da leitura dos dois factos assentes.
De acordo com as regras de experiência comum, para realizar esta cirurgia que ficou provada no ponto 20, é necessário fazer uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito (facto não provado sob a alínea D).
Da leitura deste factos provados e não provados, não pode haver duvidas de que “os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise” – Aliena D) - e, também não há duvida de que o material extraído não correspondia ao lipoma referido no facto provado sob o ponto 13, porquanto este lipoma seria a extrair da região lombar e o material retirado foi da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito.
É inegável que a região lombar não é o glúteo superior direito, e que o que foi extraído não correspondia ao que havia sido pedido, sendo também indubitável que “os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia”, conforme se deixou assente no ponto 13 dos factos assentes.
Forçoso é, pois, concluir que estamos perante erro notório na apreciação da prova porquanto a senhora juiz a quo, ao julgar a prova por si exibida, cometeu um erro evidente, acessível ao observador comum e que consta da própria decisão.
Na verdade, ao dar como não provados, na decisão recorrida, os factos que constam das alíneas D) e E), face ao que deu como provado nos pontos 13 e 20, a senhora juiz contraria com toda a evidencia, segundo o ponto de vista do homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
Se a “13. A intervenção cirúrgica consistia na exérese do lipoma na região lombar direita tal como previamente identificado;” e se “20. Mercê da intervenção cirúrgica descrita resultou para a ofendida no membro inferior direito, uma cicatriz com 3,5cm, linear, com vestígios de pontos de sutura, nacarada de direcção horizontal, localizada no quadrante supero medial da região nadegueira direita, que lhe causou dor e sofrimento;” é evidente que “D) Por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma; e que “E) (…) não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida, factos estes que deviam ter sido dados como provados.
Ao julgar a prova desta forma, a senhora juiz cometeu um erro evidente, acessível ao observador comum e que consta da própria decisão.
Não há a mínima dúvida de que não foi extraído o lipoma na região lombar direita da assistente. Para qualquer individuo de formação média a região lombar é a parte mais baixa da coluna e fica perto da bacia. E o material extraído foi da região da nádega direita da ofendida.
Assim, a decisão recorrida ao dar como provados os factos dos pontos 13 e 20, e como não provados, os factos das alíneas D) e E), contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, verificando-se o vício de erro notório de apreciação de prova do artigo 410º nº 2,c), do CPP, e que devem ser dados como provados os factos que constam das alíneas D) e E) dos factos não provados.
Vejamos agora se se verifica o erro de julgamento que o recorrente invoca.
O erro de julgamento é uma impugnação mais ampla e abrangente da matéria de facto – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, e que permite um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impõe, na sua adopção, a observância das formalidades previstas no artigo 412º, nº3 e nº 4, do CPP (erro de julgamento em matéria de facto).
Ou seja, nos termos do artigo 412º, nº3, do CPP “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
E, de acordo com o nº 4 da mesma norma, “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior, fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
E ocorrendo impugnação da matéria de facto, com observância das regras acabadas de mencionar, o Tribunal, conforme dispõe o n.º 6 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, “procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta de verdade e a boa decisão da causa.”
Encontramo-nos no domínio dos vícios do julgamento, no chamado erro na “aquisição” da prova, que ocorre quando o Julgador percepciona mal a prova – porque o conteúdo dos depoimentos não corresponde ao que, efetivamente, foi dito por quem os prestou.
Trata-se de erro do Julgador, no momento em que toma contacto com a prova, e não no momento em que a avalia, mas que pode viciar a avaliação da prova, porém, antecede-a, e dela se distingue.
O erro de julgamento em matéria de facto, no caso em apreço e invocado pelo recorrente, respeita a situação em que o tribunal deu como não provados certos factos relativamente aos quais, no entender da recorrente, foi feita prova bastante, e que, por isso, deviam ter sido considerados provados. É erro que respeita à apreciação da prova produzida em audiência, em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º do CPP.
O Acórdão do TRL de 04.02.2016, prolatado por Antero Luís, diz-nos que “I. O erro de julgamento capaz de conduzir à modificação da matéria de facto pelo Tribunal de recurso, nos termos dos artigos 412º, nº 3 e 431º, alínea b), ambos do Código de Processo Penal, reporta-se, normalmente, às seguintes situações:
- o Tribunal a quo dar como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha e a mesma nada declarou sobre o facto;
- ausência de qualquer prova sobre o facto dado por provado;
- prova de um facto com base em depoimento de testemunha sem razão de ciência da mesma que permita a prova do mesmo;
- prova de um facto com base em provas insuficientes ou não bastantes para prova desse mesmo facto, nomeadamente com violação das regras de prova;
- e todas as demais situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso e resulta da audição do registo áudio, se permite concluir, fora do contexto da livre convicção, que o tribunal errou, de forma flagrante, no julgamento da matéria de facto em função das provas produzidas.”
Quando o recorrente impugna a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos do artigo 412º, nº 3, a), do CPP, recai sobre si um especial dever de especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, porquanto são estes que, de acordo com o que supra se expôs, irão delimitar o objecto do recurso. Não basta dizer que o tribunal apreciou erradamente a prova, é preciso que o recorrente identifique devidamente o ponto de facto que foi dado como não provado, se é o caso, e devia tê-lo sido, na sua perspectiva, e qual a razão porque entende que assim deva ser.
Ainda de acordo com a mesma norma, o recorrente tem de especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, e sendo caso disso, as provas que devem ser renovadas – alíneas b) e c).
Sérgio Poças, Revista Julgar nº 10, pag. 32, refere que “O recorrente, tratando-se de prova testemunhal (…) deve identificar as testemunhas cujos depoimentos, no seu entendimento, e relativamente ao concreto ponto de facto em questão, impõem decisão diversa (…) Mas não basta identificar as testemunhas; o recorrente deve ainda indicar concretamente as passagens dos depoimentos dessas testemunhas em que se funda a impugnação — artigo 412.º, n.º 4.”
Ou, no caso de não existirem outras provas que imponham decisão diversa tem de argumentar e demonstrar que, com base nas provas produzidas, o tribunal devia, com toda a certeza, ter concluído o contrário, nomeadamente com violação das regras de prova.
O Acórdão do STJ de 12-06-2008, Proc. nº 07P4375 (in www.dgsi.pt), sublinha que, a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que se debruçando sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
1- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
2- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações;
3- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, restrita à indagação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo á sua correcção se for caso disso;
4- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b), do nº 3, do citado artº 412º).
E, Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.”
E, “As provas que impõem decisão diversa são as provas relevantes e decisivas que não foram analisadas e apreciadas, ou, as que, tendo-o sido, ponham em causa ou contradigam o entendimento plasmado na decisão recorrida”(sublinhado nosso), este é o entendimento que vem defendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 1.04.2008, www.dgsi.pt, e que sufragamos.
Assim, e com as limitações que decorrem da falta de mediação e da impugnação parcelar dos factos, o Tribunal de recurso somente poderá alterar a decisão de facto quando se “imponha”, no dizer da lei, e com os contornos acima referidos, decisão diversa.
O recorrente nas motivações de recurso indica os concretos pontos de facto que entende incorrectamente julgados, fazendo referencia expressa às concretas razões de discordância, e especifica as provas que impõem decisão diversa da recorrida, a saber: as declarações da assistente DD; as declarações da Perita Médica, Drª GG; as declarações do Dr. EE; as declarações da Drª FF; as declarações de II (amiga da assistente); as declarações de JJ (amiga da assistente); as declarações de HH (pai da assistente); a prova pericial de fls. 134-136 e 161-165; a prova documental de fls. 10 (foto da região nadegueira), documento de fls. de fls. 8-9 e 12-13 e 126 (ecografias de partes moles), documento constante de fls. 35, 37 e 38, isto é o registo das consultas que a assistente teve no Centro de Saúde de ... com o Dr. EE, doc. De fls. 41 (a consulta prévia da Drª FF); as regras de experiência comum e os critérios de normalidade.
Mostra-se, pois, cumprido o ónus de especificação previsto no artigo 412º, nº 3, do CPP.
Volvendo ao caso em apreço, analisemos se os depoimentos e meios de prova pericial e documental, que o recorrente indica são, por si só, suficientes para alterar a factualidade não provada constante dos pontos C) a M), e que resultou da globalidade da prova produzida incluindo as declarações do arguido, e que formaram a convicção do tribunal a quo.
O recorrente entende que tal factualidade deve ser considerada provada, com fundamento nos depoimentos da assistente, da perita médica do Instituto de Medicina Legal, do médico do Centro de Saúde que viu a assistente três vezes, da médica de anatomia do CICA que fez a consulta prévia à assistente, do pai da assistente e das amigas da assistente, conjugado com a prova documental, a prova pericial e as regras de experiência comum.
Recordemos a factualidade não provada, na qual mantemos, por uma questão de melhor percepção, a constante das alíneas D) e E), apesar de termos concluído que tais factos devem ser consideradas como provados:
C) Sucede que porque os arguidos estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de, depois de ter entrado na sala para realização da cirurgia, a ofendida ter indicado o local a intervencionar e que se situava na zona lombar direita;
D) Por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma;
E) Acontece que os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida;
F) Os arguidos ao realizarem o procedimento cirúrgico descrito, não actuaram com a diligência e o cuidado devidos e exigíveis a uma equipa médica e a que estavam obrigados e de que eram capazes, acautelando-se de que não procediam à incisão e remoção de material adiposo em outro local que não o cirúrgico, antes actuaram sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração imprudente, sem prestar atenção às concretas condições em que desenvolviam o acto cirúrgico em questão, pois podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico;
G) Ao actuarem da forma descrita, os arguidos não observaram a atenção e o cuidado que o exercício da medicina requer, cuidado e atenção que lhes era exigível e de que eram capazes;
H) O arguido AA, na qualidade de especialista em cirurgia geral e orientador de formação das duas arguidas, não cumpriu o dever de orientação da actuação destas, por forma a cumprirem as regras de cuidado que são impostas aquando da realização de procedimentos cirúrgicos, para evitar a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico, confiando levianamente que tal não iria acontecer;
I) Os arguidos agiram de forma leviana e imprudente, tendo previsto como possível que em resultado da inobservância, na íntegra, do procedimento de marcação do local cirúrgico, poderiam realizar o procedimento cirúrgico em local diferente do local cirúrgico, como fizeram, lesando a ofendida no seu corpo, mas levianamente confiaram que tal não viria a acontecer;
J) Os arguidos sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei;
K) Da referida intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado;
L) O lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo;
M) A ofendida sofre de dores permanentes fruto da intervenção clinica;
Realçamos que traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do contido na decisão recorrida.
Assim, os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se corroboram e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.
Assim, ponderada a motivação/argumentação da decisão recorrida e a fundamentação/argumentação do recorrente e recorrido sobre a prova dos concretos pontos de facto em questão, este tribunal da Relação ouviu a gravação das provas indicadas pelo recorrente, e outras que teve como necessárias para conhecimento da concreta matéria impugnada, analisou os documentos apontados pelo recorrente, e o relatório do exame pericial, tendo apreciado devidamente aquelas provas de acordo com as regras da experiência, pelo que de seguida passaremos a explicar o juízo por nós efectuado, e que adiantamos, permite concluir pelo erro de julgamento no que diz respeito àqueles concretos pontos de facto apontados pelo recorrente.
Antes da cirurgia
Comecemos por analisar o processo clinico referente á intervenção cirúrgica e ao qual o tribunal recorreu para formar a sua convicção. Resulta da análise do processo clinico, a fls. 35, 37 e 38, contendo o registo das consultas que a assistente teve no Centro de Saúde de ..., realizadas pelo Dr. EE e das quais se conclui que antes da intervenção cirúrgica, a assistente evidenciava tumefação na região lombar direita com cerca de 1,5 cm. O resultado da ecografia às partes moles de 03.11.2014, realizado antes da cirurgia, a fls. 8 e 9, refere que o “estudo da tumefação na região lombar direita evidenciou lobulação de gordura mais proeminente com 14x6mm”
A Dr. FF realizou a consulta prévia à cirurgia, em 17.04.2015, no Centro Hospitalar ..., e atestou que a doente tinha um pequeno lipoma na região lombar direita e determinou que a doente fosse intervencionada a fim de retirar tal lipoma (doc. de fls. 41).
Após a cirurgia, diz o Dr. EE, no doc. de fls. 38, que a doente mantém tumefação no mesmo local (zona lombar direita). Por seu turno, o relatório da ecografia de 06.06.2015, a fls. 12 e 13, realizado depois da cirurgia refere “(…) observa-se no tecido celular e em localização paravertebral direita a presença de uma lobulação adiposa com 14x5mm (…)” E, o resultado da ecografia às partes moles realizada em 29.12.2017, refere que “Na topografia da tumefacção palpável indicada pela paciente, nos planos da região lombar, em topografia paramediana direita, esboça-se uma formação nodular com 13x3x13mm, de contornos regulares (…) podendo traduzir lipoma (…)”.
Por seu turno o relatório da anatomia patológica de fls. 49, referente à análise do tecido que foi extraído na cirurgia revela que “os aspectos histológicos são compatíveis com o diagnóstico de lipodistrofia”.
Conforme tivemos oportunidade de referir supra não pode haver duvidas de que “os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise” – Aliena D). e, também não há duvida de que o material extraído não correspondia ao lipoma referido no facto provado sob o ponto 13, porquanto este lipoma seria a extrair da região lombar e o material retirado foi extraído da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito.
É inegável que a região lombar não é o glúteo superior direito (região nadegueira), e que o que foi extraído não correspondia ao que havia sido pedido, sendo também indubitável que “os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia”, conforme se deixou assente no ponto 13 dos factos assentes.
Isto mesmo é atestado no exame pericial de fls. 134 a 137, no qual foi determinada a realização de ecografia de partes moles à região lombar á direita e à cicatriz da região nadegueira direita, realizada a ecografia foi concluído o exame pericial a 161-164, cujo relatório consta a fls. 163-164, e que se transcreve:
“5. No exame objectivo realizado à doente em 02.05.2018, observa-se:
- Ráquis: área dismórfica com limites regulares, móvel não aderente, com cerca de 1,5 cm por 1 cm, de área superficial, com referência a dor à palpação, em área localizada na região para vertebral lombar à direita, junto á transição lombo sagrada.
- Membro inferior direito: cicatriz linear com tonalidade rosada com 3,5 cm de comprimento, disposta horizontalmente no quadrante supero medial da região nadegueira direita; esta cicatriz está localizada 11 cm (onze cm) para baixo da área onde se identifica a tumefação palpável na região atrás descrita.”
Ou seja, a cicatriz da cirurgia efectuada encontra-se no membro inferior direito (região nadegueria direita) e não na região lombar, o que permite concluir, conforme se expôs, que o tecido retirado não corresponde ao lipoma da região lombar, doloroso à palpação, e que determinou a cirurgia.
Nesse exame pericial, cujo resultado não foi posto em causa e nem foi solicitada segunda perícia consta, em conclusão, a fls. 164 verso, que “Tendo em conta (…)a totalidade dos exames clínicos e imagiológicos prévios, contemporâneos e posteriores à cirurgia realizada – permitem identificar que a examinada é ainda nesta data portadora de “Na topografia da tumefacção palpável indicada pela paciente, nos planos da região lombar, em topografia paramediana direita, esboça-se uma formação nodular com 13x3x13mm, de contornos regulares (…) podendo traduzir lipoma (…)”.
Da discussão e conclusões daquele relatório, nos pontos 2 e 3 diz-se que “2. Lipodistrofia corresponde a uma distribuição anormal de gordura corporal está usualmente associada a patologia sistémica. A histologia de área de lipodistrofia é diferente da histologia de um lipoma.(sublinhados nossos)
“3. Lipoma é um tipo de caroço que surge na pele e que é composto por células de gordura tendo usualmente uma forma arredondada e que pode surgir em qualquer local do corpo. O Lipoma é composto assim de células adiposas. O lipoma apresenta capsula fibrosa. O tratamento é usualmente cirúrgico e consiste na extracção da cápsula fibrosa. A histologia do lipoma é diferente da distologia da área de lipodistrofia.”
Relembramos que o relatório da anatomia patológica de fls. 49, referente à análise do tecido que foi extraído na cirurgia revela que “os aspectos histológicos são compatíveis com o diagnóstico de lipodistrofia”.
Mais uma vez se frisa que nenhum dos referidos relatórios foi posto em causa e nem solicitada a realização de segunda perícia (artigo 158º, do CPP).
Sabido que a prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (artigo 151º, do CPP), e é o relatório, mencionado no art. 157º do C.P.P., que constitui a prova vinculada, subtraída à livre apreciação do julgador, conforme diz o art. 163º, nº 1, do C.P.P.
Representando a prova pericial, em processo penal, um desvio ao princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP), dispõe o art. 163.º do CPP, expressamente, que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial se presume subtraído à livre apreciação do julgador, o qual deve fundamentar a sua divergência sempre que a sua convicção divergir do juízo contido no parecer dos peritos. Porém, tal fundamentação terá sempre de ser efectuada por recurso a outro juízo pericial, e não por recurso á credibilidade dos depoimentos de testemunhas, que a senhora juiz recorrida utilizou para fundamentar tal discordância. Repare-se que o faz por apelo aos depoimentos das testemunhas de defesa indicadas pelos arguidos e também apelando às próprias declarações dos arguidos (cujo interesse é manifesto).
Não podemos olvidar que a prova pericial é uma das provas de apreciação vinculada que «tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos» - art. 151º do C.P.P. Assim, as testemunhas que foram ouvidas sobre estes factos, e com base nas quais foi afastado o relatório pericial são médicos, sendo indiscutível que possuem conhecimentos científicos e técnicos.
Porém, foram ouvidos na qualidade de testemunhas, e não de peritos, sendo a prova testemunhal apreciada segundo a livre convicção do julgador, e que neste caso se usou para afastar o juízo técnico da prova pericial.
Ora, não tendo o julgador conhecimentos técnicos iguais aos dos peritos, não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia (artigo 163º, do CPP), com base em prova testemunhal e declarações de arguidos, ainda que com conhecimentos científicos. Isto é, tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise das testemunhas, ou pelas declarações dos arguidos, o que aparenta ter sucedido no caso vertente, mas ainda assim, de forma errada.
Veja-se que consta da decisão recorrida que da prova da factualidade constante dos pontos 1 a 20 “resultou, em contrapartida (e por se encontrar em contradição com a mesma) a não demonstração dos factos descritos nas alíneas A) a P) supra dos factos não provados.” Não vislumbramos qualquer contradição entre uns factos e outros, mas sim, e apenas, factos que integram a prática do crime imputado aos arguidos e que constam da acusação.
Continua a decisão recorrida agora interpretando as conclusões da senhora perita exaradas no relatório pericial junto aos autos (cfr. fls. 161-164), dizendo “pois o que aí se refere é que a assistente naquela data (25-05-2018) era portadora de “na topografia da tumefacção palpável indicada pela paciente, nos planos da região lombar, em topografia para mediana direita, esboça-se uma formação nodular com 13x8x13mm, de contornos irregulares, com ecogenicidade semelhante à restante gordura subcutânea, podendo traduzir lipoma”, ou seja, mantém um lipoma na região lombar direita e a cicatriz resultante da intervenção cirúrgica em apreço está localizada 11 cm para baixo da área onde se identifica a tumefacção atrás descrita, o que nada esclarece quanto à concreta indicação da lesão feita pela assistente no momento da intervenção cirúrgica. Repare-se que para afastar a conclusão do relatório o tribunal recorrido diz, sem qualquer apoio que “No mais, é a própria Sra. Perita que acaba por admitir em audiência de julgamento que não é especialista nem em anatomia, nem na área de histologia, sendo mais aptos a discorrer sobre tais matérias e detendo os necessários conhecimentos técnicos-científicos os respectivos especialistas.” Ora, como é possível tal conclusão a Perita Médica, Drª GG, é perita do INML CF, foi quem redigiu o relatório, e que, logo no início do seu depoimento, confirmou o seu teor. O que significa “no mais”? E quem são esses especialistas? Os arguidos? Não pode ser com base nas declarações prestadas pelos arguidos, que mereceram apoio das testemunhas de defesa, que se afasta o relatório pericial, e muito menos por apelo ao princípio do in dúbio pro reu.
Diremos mais, fazendo apelo a este mesmo depoimento, não há quaisquer dúvidas que o que foi retirado na cirurgia não é o que foi pedido.
Por seu turno, diz a Perita Médica, Drª GG, na sessão de julgamento de 13.05.2021, entre as 01:40m e as 03:50: Fiz a perícia que consta dos autos em Maio de 2018. Confirmo todas as conclusões que constam da perícia.
Lipoma e Lipodistrofia são gorduras muito diferentes. Lipoma é uma gordura encaroçada (um caroço), lipodistrofia é uma gordura espalhada.
A doente tinha um lipoma na região lombar direita, ao fundo das costas à direita.
Olhando para a foto de fls. 10 dos autos, na página 6 do meu relatório referi que a cicatriz (que se vê na foto) está localizada 11 cm para baixo da área onde se identifica o lipoma. A cicatriz está 11 cm abaixo da tumefacção, 11 cm abaixo do local do lipoma, que, à palpação, identifico como sendo aquele lipoma.
MP: A Drª diz no seu relatório pericial que a tumefacção (lipoma) é móvel. Isso significa que poderá mover-se 11 cm para baixo?
Perita Médica: Não, não. A mobilidade é à palpação, mas é uma mobilidade de milímetros, nunca de centímetros. (sublinhado nosso)
Esta tumefacção não estava na região da nádega nas ecografias que vi.
MP: No ponto 7 das suas … também diz que, em 25 de maio de 2018, a doente ainda era portadora da mesma tumefacção.
Perita Médica: Sim, passados 3 anos da intervenção cirúrgica a doente continua com o tal lipoma.
(…)
E, ao minuto 01:30, continua a referir a Perita Médica que: Em termos anatómicos distingue-se a zona lombar da zona da nádega. A região lombar é a região lombar e a nádega é a nádega.
Aquela cicatriz está na área anatomicamente como sendo nádega.
Quando digo que a cicatriz se situa na nádega é o que resulta do que eu observei na doente.
Ou seja, não há dúvidas, e por isso, contrariamente ao que vem dito na decisão recorrida, não pode fazer-se apelo ao principio do in dúbio pro reo. A assistente, mantém o lipoma na região lombar direita e a cicatriz resultante da intervenção cirúrgica em apreço está localizada 11 cm para baixo da área onde se identifica a tumefacção descrita nos diversos documentos e que seria para extrair, e referida por todas as testemunhas que foram ouvidas.
Importa concluir que o Tribunal não só interpretou erradamente o resultado do exame pericial, como não o valorou em conformidade com o disposto na norma aplicável do artigo 163º, no seu nº. 2, do C.P.P., violando assim o princípio da prova vinculada.
Neste caso, a ausência da imediação e da oralidade nesta Relação não são factores relevantes, porquanto se trata de prova pericial, cujo documento se mostrar junto aos autos, e do qual constam elementos seguros de uma clara e objectivada errada convicção sobre os factos provados, prova essa que foi afastada, em ofensa ao artigo 163º, do CPP, por recurso a prova testemunhal sujeita ao principio da livre convicção do julgador, quando tal lhe era vedado.
É evidente que a assistente, mantém o lipoma na região lombar direita, esta mesma evidência é referida na decisão recorrida para concluir que tal “nada esclarece quanto à concreta indicação da lesão feita pela assistente no momento da intervenção cirúrgica.”, e com tal declaração afasta, mal a nosso ver, a responsabilidade dos médicos arguidos.
Efectivamente, como se diz na decisão recorrida, a evidencia de que a assistente mantém o lipoma na região lombar direita nada esclarece quanto à concreta indicação da lesão feita pela assistente no momento da intervenção.
Contudo, ao afastar a responsabilidade dos médicos por, alegadamente, não se ter apurado a concreta indicação da lesão no momento da intervenção, viola o princípio da livre apreciação da prova. Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”. A livre convicção não pode confundir-se com a íntima convicção do julgador, impondo-lhe a lei que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência. – Ac do TRC, de 01.102008, relator Simões Raposo, in www.dgsi.pt
Ora, in casu, por apelo às regras de experiencia comum e às regras específicas deste tipo de cirurgia, procedimentos comuns confirmados por todos os médicos que foram ouvidos, e em especial pela Dra. FF, que também é cirurgiã de ambulatório, e que fez a consulta prévia de cirurgia da assistente, retiramos várias conclusões.
Nomeadamente, é aos médicos que incumbe a marcação de acordo com o solicitado, podendo recorrer à indicação do doente, mas se esta indicação for diferente da que consta no pedido deve constar do diário clinico que a marcação foi efectuada em local diferente daquele que era pedido, o que não aconteceu.
Também, por apelo às mesmas regras, conjugadas com os depoimentos das testemunhas da assistente, suas amigas, e do seu pai, que embora não possuindo conhecimento científico conheciam a situação e sabiam que o caroço era perceptível à palpação, e se para pessoas sem conhecimento específico, a palpação permitia perceber onde estava o caroço, é crível, lógico e seguro, e faz parte do senso comum, que qualquer médico se tivesse efetuado a palpação se teria apercebido do caroço (lipoma).
Concluindo, os arguidos não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de, depois de ter entrado na sala para realização da cirurgia, a ofendida ter indicado o local a intervencionar e que se situava na zona lombar direita, impondo-se concluir que estavam desatentos –alínea C) dos factos não provados que, por erro de julgamento, deve ser considerada provada.
É, pois, manifesto que os arguidos não agiram com o cuidado que a situação exigia. É manifesto que não procederam á palpação. Se o tivessem feito teriam encontrado o caroço de forma arredondada que era suposto extrair.
Resta concluir que existe erro de julgamento quanto aos factos não provados constantes da alineas C) a M), os quais devem ser considerados como provados.
A acrescer, e em reforço do que ficou dito, se os registos clínicos existentes apontam para a extracção de uma lesão na zona lombar, conforme decorre do relato cirúrgico de fls. 46 em conjugação com o relatório de anatomia patológica de fls. 49 e se, como refere a decisão recorrida , “A própria indicação para cirurgia vertida no documento de fls. 41 é vaga na medida em que refere singelamente “pequeno lipoma na região lombar com cerca de 3cm”, sem precisar se é no lado direito ou esquerdo, inferior ou superior (…)”, deviam ter sido redobrados os cuidados dos médicos a quem é exigível esse cuidado redobrado, atentos os seus conhecimentos específicos.
A testemunha FF no seu depoimento esclarece “A indicação que dei para a cirurgia (pequeno lipoma na região lombar com cerca de 3 cm). não é uma indicação vaga porque, no bloco, o doente volta a indicar o sítio e o cirurgião deve fazer a palpação e ver os registos (ecografias) para confirmá-lo. Portanto, o meu registo não é vago porque teria de ser conjugado com as declarações da doente e com a palpação no acto da operação. Por isso, a minha indicação não é vaga, é precisa.”
Daqui, pudemos concluir, com base nas regras especificas e na experiencia comum e especifica, que a indicação da área a intervencionar terá de ser sempre marcada conjugando as declarações da doente, com a palpação no acto da operação.
Continua a decisão recorrida referindo que “o resultado da anatomia patológica (de fls. 49) é compatível com a indicação prévia que a Dra. FF deu para cirurgia, uma vez que a biopsia revela um tecido adiposo capsulado com 7g e 3 cm de maio eixo, ao corte, de tecidos amarelos compactos com septos fibrosos, e conclui contrariando todas as regras, a dizer “ou seja, é uma bola de gordura de 3cm, tratando-se de um lipoma”, retirando conclusões que não constam dos relatórios periciais, indo contra o que consta do relatório da biopsia de fls. 49, onde se refere claramente que os aspectos histológicos são compatíveis com o diagnostico clinico de lipodistrofia, e também contrariando o relatório do INMLCF a fls. 163, onde vem dito queA histologia do lipoma é diferente da histologia da área de lipodistrofia.
Diz a decisão recorrida que “o resultado da anatomia patológica (de fls. 49) é compatível com a indicação prévia que a Dra. FF deu para cirurgia.” “Ser compatível” não permite concluir que se trate da mesma lesão, como não é.
O que nos permitimos concluir é que foi efectuado procedimento diverso daquele que foi pedido, e que era necessário, e foi efectuada uma cirurgia à assistente que não era necessária – alíneas I) e K) dos factos não provados, sobre os quais existiu erro de julgamento devendo ser considerados provados, porquanto a prova indicada pelo recorrente impõe decisão diversa. Também resultou do depoimento das testemunhas médicos que “a responsabilidade é sempre da pessoa mais velha que está na sala de operações. O cirurgião especialista tem que estar presente para supervisionar tudo (desde a palpação, à marcação, ao corte, etc.), embora quem faça a cirurgia possam ter sido as médicas internas. A responsabilidade é nossa, dos mais velhos, os internos estão tutelados por nós.”, donde se impõe decisão diversa sobre o facto não provado constante da alínea H), o qual tem de ser dado como provado.
Na verdade, a lei impõe ao julgador que extraia das provas um convencimento lógico e motivado, avaliadas as provas com sentido da responsabilidade e bom senso, e valoradas segundo parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência, o que não foi feito. A assistente nunca se havia queixado de qualquer outro lipoma, que nem sabia se tinha ou não, sempre indicou correctamente a lesão que a incomodava a qual era dolorosa e perceptível á palpação, não sendo crível que, no dia da cirurgia destinada a remover algo que a incomodava tenha indicado outra zona do seu corpo e, em concreto a nádega.
Do que fica exposto e, em resultado da análise conjugada da prova documental, pericial e testemunhal, com as regras as regras de experiência comum, e os critérios de normalidade, impunha-se que à assistente tivesse sido retirado um lipoma situado no fundo das costas e não na nádega, como sucedeu.
Na verdade, seria expectável que depois de as médicas internas que procederam à marcação dérmica terem transmitido ao cirurgião sénior que sentiram dificuldades na marcação do local cirúrgico era-lhes exigido que encetassem todas as diligências para se assegurar que a marcação havia sido feita correctamente, o que não fizeram.
Adiantamos que, o que vem dito na decisão recorrida, de que “Ficou também demonstrado que os arguidos nunca antes tinham observado, por si, em consulta a assistente (…)”, não será inteiramente correcto, porquanto a arguida BB disse, nas suas declarações, que esteve presente na consulta prévia á cirurgia com a Dra. FF, donde seria expectável que soubesse o local concreto a intervir.
Assim, é por demais evidente que os arguidos não marcaram convenientemente o local cirúrgico e que essa marcação errada não pode ser imputada à assistente. Os médicos são os arguidos… Se não fizeram a marcação de forma conveniente, a única conclusão que se pode tirar é a de que não estavam atentos, podendo e devendo fazê-lo, e não terem agido com o cuidado e cautelas necessárias que a situação exigia, podendo e devendo fazê-lo.
O refugio na falta de elementos no bloco não pode implicar para nenhum doente a realização de cirurgia em local diverso daquele que era o pretendido… a quem pode ser imputada tal falta? À assistente seguramente que não. Se não tinham elementos suficientes tinham mais uma ponderosa razão para agirem com todas as cautelas e que confirmassem com os registos clínicos, designadamente com os registos do Dr. EE e Drª FF e as ecografias realizadas pela assistente, qual o local exacto da lesão. E, se não tivessem à sua disposição todos os elementos necessários para confirmar a indicação da assistente, em último caso, deveriam ter adiado a intervenção até que aqueles lhes fossem facultados, evitando a situação.
Diremos mais, a desatenção dos arguidos era tal que sabendo que o lipoma é “um tipo de caroço que surge na pele e que é composto por células de gordura tendo usualmente uma forma arredondada” e que é visível à palpação, conforme foi referido por todas as testemunhas médicos, que observaram a assistente antes da cirurgia, bastava ter procedido à palpação.
Resta concluir pelo erro de julgamento quanto aos factos não provados constantes da alíneas C) a M), os quais devem ser considerados como provados, com base nos elementos de prova apontados pelo recorrente e que impõem decisão diversa, e que em consequência da actuação dos arguidos derivou para a assistente uma cicatriz desnecessária e dolorosa e subsistiu o lipoma que aquela pretendida fosse extraído.
Concluindo pelo erro de julgamento quanto aos factos das alíneas C) a M), impõe-se dá-los como provados, e com base na prova agora fixada, e que é suficiente para decidir da causa, passando a proferir decisão.
Factos provados, para além dos que constam supra de 1 a 24, são os seguintes:
25 - Sucede que porque os arguidos estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local cirúrgico apesar de, depois de ter entrado na sala para realização da cirurgia, a ofendida ter indicado o local a intervencionar e que se situava na zona lombar direita; C)
26 - Por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, os arguidos fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma; D)
27 - Acontece que os arguidos não removeram o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida; E)
28 - Os arguidos ao realizarem o procedimento cirúrgico descrito, não actuaram com a diligência e o cuidado devidos e exigíveis a uma equipa médica e a que estavam obrigados e de que eram capazes, acautelando-se de que não procediam à incisão e remoção de material adiposo em outro local que não o cirúrgico, antes actuaram sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração imprudente, sem prestar atenção às concretas condições em que desenvolviam o acto cirúrgico em questão, pois podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico; F)
29 - Ao actuarem da forma descrita, os arguidos não observaram a atenção e o cuidado que o exercício da medicina requer, cuidado e atenção que lhes era exigível e de que eram capazes; G)
30 - O arguido AA, na qualidade de especialista em cirurgia geral e orientador de formação das duas arguidas, não cumpriu o dever de orientação da actuação destas, por forma a cumprirem as regras de cuidado que são impostas aquando da realização de procedimentos cirúrgicos, para evitar a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico, confiando levianamente que tal não iria acontecer; H)
31 - Os arguidos agiram de forma leviana e imprudente, tendo previsto como possível que em resultado da inobservância, na íntegra, do procedimento de marcação do local cirúrgico, poderiam realizar o procedimento cirúrgico em local diferente do local cirúrgico, como fizeram, lesando a ofendida no seu corpo, mas levianamente confiaram que tal não viria a acontecer; I)
32 - Os arguidos sabiam que as suas condutas são proibidas e punidas por lei; J)
33 - Da referida intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado; K)
34 - O lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo; L)
35 - A ofendida sofre de dores permanentes fruto da intervenção clinica; M)

III – O Direito
Aos arguidos vem imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, nos termos do qual “1 – Quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Trata-se de crime, como o tipo indica, de ofensa corporal negligente, aferindo-se a ofensa à integridade física, nos termos do artigo 143º, do CP, e a negligência por referência ao artigo 15º, do CP.
Citando o Ac. TRP de 30-04-2014, in www.dgsi.pt, com o qual concordamos, diremos que “V. O crime de ofensa á integridade física por negligência, p. e p. pelo n.º 1 do art.º 148º do C. Penal, é um crime de resultado, que abrange não só a ação adequa­da a produzi-lo, mas também a omissão de ação adequada a evitá-lo, só sendo esta punível quando sobre o omitente recaia o dever jurídico de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e para a saúde deste, em virtude do estatuído no art.º 10º do Código Penal.
VI. No caso de atuação médica, esse dever existe, inevitavelmente, pois a aceitação de um doente cria para o médico o dever jurídico, próprio do garante, de evitar a verificação de um evento danoso para a vida e a saúde do doente.
VII. Para que se consume o crime é necessária: a) A violação de um dever objetivo de cuidado que pode ter origem legal autónoma, se derivar de certas normas que visem prevenir perigos ou tão-somente derivar de certos usos e costumes ou da experiência comum. b) A produção de um resultado típico. c) A imputação objetiva do resultado á ação: a violação do dever de cuidado tem que ser causa adequada do resultado, sendo-o quando, de acordo com um juízo de prognose póstuma, segundo a experiência normal, for idóneo a produzir aquele resultado que é uma consequência normal e típica daquela ação. d) A imputação subjetiva ou previsibilidade e evitabilidade do resultado. Para o Homem médio colocado naquelas circunstâncias e segundo a experiência normal, há-de ser previsível que da violação do dever objetivo de cuidado resulte a produção do resultado típico que seria evitável através do cumprimento do dever objetivo de cui­dado.
VII. O médico será responsável pela prática desse crime se, através de uma ação ou omissão, motivada por uma falta de cuidado a que estava obrigado no exercício da sua função de médico, provocar um resultado que era objetivamente previsível e passível de ser evitado.”
Também no acórdão do TRE de 10-12-2013, se refere que “I. O tipo objectivo negligente, nos crimes materiais ou de resultado, inclui a violação de dever objectivo de cuidado, a produção de um resultado típico e a imputação objectiva desse mesmo resultado típico.
II. A imputação objectiva do resultado implica causalidade conforme ás leis científico-naturais, previsibilidade objectiva, de acordo com um critério de «causalidade adequada» (art. 10º do Código Penal) e concretização do risco proibido criado, potenciado ou não diminuído no resultado.”
Assim, de acordo com o artigo 15.º do CP, “Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
A jurisprudência unânime, constante do acórdão do TRC de 17-09-2014, in www.dgsi.pt, que se cita a titulo de exemplo, no sentido de que:
“I. A negligência é um tipo especial de punibilidade que oferece uma estrutura própria quer ao nível do ilícito quer ao nível da culpa.
II. O tipo objetivo de ilícito dos crimes materiais negligentes é constituído por três elementos: a violação de um dever objetivo de cuidado; a possibilidade objetiva de prever o preenchimento do tipo; e a produção do resultado típico quando este surja como consequência da criação ou potenciação pelo agente, de um risco proibido de ocorrência do resultado.
III. A violação pelo agente do cuidado objetivamente devido é concretizada com apelo ás capacidades da sua observância pelo «homem médio».
IV. A não observância do cuidado objetivamente devido não torna perfeito, por si própria, o tipo de ilícito negligente, antes importa que ela conduza a uma representação imperfeita ou a uma não representação da realização do tipo.
V. Para que exista culpa negligente, com preenchimento do tipo-de-culpa, necessário é ainda que o agente possa, de acordo com as suas capacidades pessoais, cumprir o dever de cuidado a que se encontra obrigado.
VI. Enquanto na negligência consciente o agente representou como possível o resultado ocorrido, mas confiou, não devendo confiar, que ele não se verificaria, na negligência inconsciente o agente infringe o dever de cuidado imposto pelas circunstâncias, não pensando sequer na possibilidade do preenchimento do tipo pela sua conduta.”
Havendo ainda que distinguir a negligência simples da negligencia grosseira.
Assim, e seguindo de perto a posição de FIGUEIREDO DIAS17, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2004, página 668, §19, diremos, transcrevendo a decisão recorrida “na negligência grosseira há uma especial intensificação da negligência não só ao nível da culpa, mas também do ilícito. Ao nível da ilicitude, pressupondo um comportamento particularmente perigoso e um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada. E, ao nível da culpa, revelando uma atitude particularmente censurável de leviandade ou de descuido perante o comando jurídico-penal, evidenciando no facto qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.
Esta dupla relevância, ao nível da ilicitude e da culpa, permite que possa falar-se em negligência grosseira mesmo ao nível da negligência inconsciente, quando (apesar da negligência inconsciente) se assiste a uma conduta particularmente censurável ao nível da ilicitude, envolvendo uma conduta especialmente perigosa, tomando-se como ponto de referência a precaução ou a previsão do cidadão normal (homem médio) suposto pela ordem jurídica.”
Assim, e volvendo ao caso em apreço, e tendo como ponto de partida o pressuposto de que todo o facto punível parte de um comportamento voluntário socialmente relevante, e que, de acordo com o artigo 15º, do CP, se exige a violação de um dever de cuidado, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização (negligencia consciente); ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto (negligência inconsciente).
Para saber se determinada conduta é violadora de um concreto dever objectivo de cuidado deve ter-se por referência o conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo, do modo e do lugar, não esquecendo as particulares qualidades do agente, designadamente tendo em conta os seus conhecimentos técnico-científicos e aptidão intelectual, como é o caso dos médicos, sendo certo que, na maior parte dos casos, terá que se atender ainda ao conteúdo das normas que visam limitar ou diminuir os riscos próprios dessa actividade.
E, nesses casos, é essencial que se aprecie, em concreto, qual o grau de cuidado exigível aos destinatários dessas normas/comandos jurídicos direccionados a determinados sectores de actividade, sendo que, quando uma concreta conduta se enquadrar nesse sector, violando os comandos que ao mesmo se destinam, então, em princípio, deverá a respectiva conduta ser qualificada como negligente.
No caso sub judice, atendendo às especiais qualificações profissionais dos aqui arguidos, o dever objectivo de cuidado cuja violação lhes é imputada deverá ser concretizado e apreciado à luz do que é expectável e exigível, tendo em conta os usos e normas que regem a actividade médica.
Estipula o artigo 150.º, n.º 1 do Código Penal que, “1 - As intervenções e os tratamentos que, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina, se mostrarem indicados e forem levados a cabo, de acordo com as leges artis, por um médico ou por outra pessoa legalmente autorizada, com intenção de prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal, ou perturbação mental, não se consideram ofensa à integridade física.
2 - As pessoas indicadas no número anterior que, em vista das finalidades nele apontadas, realizarem intervenções ou tratamentos violando as leges artis e criarem, desse modo, um perigo para a vida ou perigo de grave ofensa para o corpo ou para a saúde são punidas com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhes não couber por força de outra disposição legal.”
Exige-se ao médico, enquanto cidadão especialmente qualificado para lidar com os mais elevados bens da humanidade – a saúde e a própria vida –, no exercício das suas funções profissionais, especial atenção, especial respeito e esforço contínuo em prol desses bens.
E para que a sua conduta seja punida exige-se a verificação de um nexo causal entre a ofensa corporal e a violação do dever objectivo de cuidado.
Para apurar da existência desse nexo causal deve ser determinado, ab initio, qual o âmbito de protecção da norma de cuidado violada, ou seja, qual o interesse tutelado e o acontecimento que se visa evitar, só se podendo concluir que da conduta violadora do dever objectivo de cuidado resultou a produção do resultado desvalioso, no caso deste coincidir com o que se pretendia evitar com a norma de cuidado violada. Porém, o nexo de imputação objectiva não deve acontecer se e quando for certo que o resultado adveniente da actividade imponderada se verificaria mesmo adoptando o agente um comportamento lícito. Ou seja, é necessário que o facto ilícito possa ser imputado objectiva e subjectivamente ao agente, para fundamentar a responsabilidade deste.
Assim, uma acção será adequada a produzir um resultado quando uma pessoa normal, colocada na mesma situação do agente, tivesse podido prever, em circunstâncias correntes, que tal resultado se produziria inevitavelmente (raciocínio de prognose póstuma).
No caso particular da ofensa corporal negligente, é necessário que a concreta violação do direito à integridade física, enquanto desvalor do resultado, seja objectivamente imputável à conduta violadora do cuidado devido, e a produção do resultado tem de ser previsível e que só o facto de se ter omitido aquele dever tenha impedido a sua previsão ou a sua justa previsão.
Tendo presentes estes considerandos e as normas jurídicas aplicadas, e os factos assentes dos quais resulta que os arguidos, porque estavam desatentos, não observaram as regras estipuladas para a identificação do local a operar e não se certificaram do local exacto onde se encontrava o lipoma a extrair, não marcaram convenientemente o local, e por não terem actuado com a cautela e o cuidado de que deviam, eram capazes e estavam obrigados, fizeram uma incisão na área da nádega direita da ofendida, no grande glúteo superior direito e daí extraíram material que remeteram para análise, mas que não correspondia ao referido lipoma, não tendo removido o lipoma na região lombar direita que tinha determinado a realização da cirurgia e que causa dor à ofendida. Ficou ainda demonstrado que ao realizarem o procedimento cirúrgico descrito, não actuaram com a diligência e o cuidado devidos e exigíveis a uma equipa médica e a que estavam obrigados e de que eram capazes, acautelando-se de que não procediam à incisão e remoção de material adiposo em outro local que não o cirúrgico, antes actuaram sem observar as regras de cuidado que lhe eram impostas e que o dever geral de prudência aconselha, adoptando um estado de concentração imprudente, sem prestar atenção às concretas condições em que desenvolviam o acto cirúrgico em questão, pois podiam e deviam ter previsto e evitado a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico; e que ao actuarem da forma descrita, os arguidos não observaram a atenção e o cuidado que o exercício da medicina requer, cuidado e atenção que lhes era exigível e de que eram capazes. Da referida intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado, sendo que o lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo.
Do que fica exposto podemos concluir que se mostram verificados os factos constitutivos da conduta típica ilícita imputada aos arguidos na acusação, quer objectiva, quer subjectivamente. Assim, tendo por referência o conceito social sobre as condições de razoabilidade em que o agente procedeu, consideradas as circunstâncias da pessoa, do tempo, do modo e do lugar, não esquecendo as particulares qualidades do agente, designadamente tendo em conta que são médicos e dotados de conhecimentos técnico-científicos e aptidão intelectual, e atendendo ao conteúdo das normas que visam limitar ou diminuir os riscos próprios dessa actividade, é manifesto que a conduta dos arguidos é violadora de um concreto dever objectivo de cuidado, ou seja de não ofender a integridade física dos pacientes, em concreto da assistente.
Na verdade, a conduta dos arguidos, na concreta observação e marcação do local a intervir, sem recurso à palpação, e a intervenção cirúrgica que fizeram à assistente, em local diverso do que era solicitado, ou seja na nádega, da qual extraíram tecido que configura lipodistrofia, não tendo extraído o lipoma, doloroso e visível à palpação e que incomodava a assistente, procederam em contrário às legis artis, aos conhecimentos da medicina que os arguidos apresentavam e aos elementos clínicos que dispunham, no momento da cirurgia, ou podiam vir a obter, se tivessem procedido de forma diligente, pelo que é indubitável que os mesmos, praticaram, no desempenho das suas funções profissionais, negligentemente, o procedimento cirúrgico em causa, violando especiais deveres de cuidado, cometendo o crime que lhes era imputado.

IV- Da escolha da pena e da medida da pena
O crime imputado aos arguidos é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (artigo 148º, nº1, do CP).
Da referida norma resulta que este crime prevê a aplicação, em alternativa, de uma pena de prisão ou de multa.
Assim, importa atender ao disposto no art.70.º do Código Penal que estatui como critério de orientação geral para a escolha da pena, que “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
E de acordo com o artigo 40.º, n.º 1 do Código Penal, as finalidades da punição reportam-se à proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade, sendo o fim último das penas a proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais, o que implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, servindo primordialmente para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal (prevenção geral positiva ou de integração). Prosseguindo finalidades de prevenção geral positiva ou de integração, a pena é concebida “como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, do ordenamento jurídico-penal”. Por sua vez, assegurando finalidades de prevenção especial positiva ou de socialização a pena visa, “com respeito pelo modo de ser do delinquente, pelas suas concepções sobre a vida e sobre o mundo, pela sua posição própria face aos juízos de valor do ordenamento jurídico, criar as condições necessárias para que ele possa, no futuro, continuar a viver a sua vida sem cometer crimes”. (Cfr.DIAS, Jorge de Figueiredo, “Direito Penal Português - Parte Geral I – Questões Fundamentais. A Doutrina Geral do Crime”, Coimbra Editora, 2011, (2.ª reimpressão), págs. 51 e 55).
Assim sendo, a opção pela pena alternativa à pena de prisão terá que ser feita sempre e apenas nos casos em que através dela se possam realizar as finalidades da punição.
A reintegração do agente na sociedade está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.
No caso em apreço, entendemos ser de optar pela pena de multa, a qual, considerando que os arguidos são médicos, e o contexto da sua actuação em ambiente de trabalho, o crime praticado, bem como a ausência de antecedentes criminais dos arguidos realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por outro lado, para efeitos de determinação da medida concreta da pena a aplicar deve, impreterivelmente, o Julgador recorrer aos critérios legalmente definidos nos artigos 70º a 74º do Código Penal.
Nesta matéria refere o artigo 71º, nº 1 do citado diploma legal que: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, enumerando-se no nº 2 do mesmo preceito algumas das circunstâncias exemplificativas que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Os parâmetros fundamentais para o Julgador aferir da pena concreta a aplicar um arguido, são por um lado a culpa do mesmo (porquanto esta “não constitui apenas o pressuposto-fundamento da validade da pena, mas afirma-se também como limite máximo desta”) e, por outro as necessidades/exigências de prevenção geral e especial.
A aferição da medida da culpa dos arguidos implica a ponderação da censura dos factos cometidos, o desvalor da sua atitude, a qual por vezes resulta do quadro de ilicitude cometida e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo agora ser apreciada em concreto.
Culpa essa que é mais acentuada quanto ao arguido AA, face à sua qualidade de especialista em cirurgia geral e orientador de formação e responsável pelo estágio profissional das arguidas BB e CC, e que não cumpriu o dever de orientação da actuação destas, por forma a cumprirem as regras de cuidado que são impostas aquando da realização de procedimentos cirúrgicos, para evitar a realização da cirurgia em local que não o cirúrgico, confiando levianamente que tal não iria acontecer.
Por seu turno a arguida BB era, à data, interna de formação específica de cirurgia vascular, e realizou o procedimento cirúrgico embora sob a supervisão do médico da especialidade respectiva, o primeiro arguido, a qual procedeu à errada marcação do local da cirurgia, sem efectuar palpação e com manifesta dificuldade não tendo solicitado, como devia a intervenção do supervisor.
Por seu turno, a arguida CC apenas assistiu à cirurgia não tendo nela tido qualquer participação directa. Apenas assistiu ao procedimento, e por isso com uma culpa mais mitigada.
Assim, considerando a mediana ilicitude dos factos, traduzida na intensidade e forma com que o bem jurídico protegido pela incriminação foi violado, nomeadamente tendo em conta o tipo de actos praticados, cirurgia em local diverso do que se pretendida, sem ter alcançado o fim que se pretendia, e que determinou uma cicatriz na zona nadegueira, em local visível, e desnecessária.
Considerando que, no que toca às consequências estas se apresentam de alguma gravidade nomeadamente, no que se refere ao facto de ter sido realizada cirurgia em local diverso do que se pretendida, sem ter alcançado o fim que se pretendia, e que determinou uma cicatriz na zona nadegueira, em local visível, e desnecessária, mantendo-se o lipoma da região lombar doloroso e que incomodava a assistente. Também a conduta dos arguidos que para além de não assumirem a responsabilidade pela sua conduta, tentaram imputar à assistente a errada marcação do local a intervir, e procuraram fazer crer ao tribunal que foi retirado o lipoma previsto e na região indicada pela assistente,
As dores por esta sofridas na sequência desta cirurgia desnecessária e as dores que mantém por não ter sido retirado o lipoma que a incomodava.
Considerando o contexto de fragilidade da assistente em que os factos ocorreram; Considerando que os arguidos agiram com negligência, ainda que inconsciente mas grosseira; Considerando o intenso juízo de censura dirigido aos arguidos médicos; Considerando a ausência de antecedentes criminais; Considerando ainda que os factos foram praticados em contexto hospital, e no exercício das profissões dos arguidos que são médicos, e que estes se encontram inseridos sócio-economicamente, exercendo uma profissão com remuneração acima da média. Em concreto, o arguido AA tem uma situação familiar e económica estável e capaz de proporcionar aos seus elementos um estilo de vida confortável, estando assente no seu vencimento, de cerca de €2400, valor ao qual acresce a remuneração auferida pela prestação de serviços médico-cirúrgicos realizados no T... Saúde Gaia, que varia entre os €1000 e os €1500, tendo apenas como principais encargos fixos os que provêm das propinas dos estabelecimentos de ensino superior frequentados pelos filhos, que totalizam cerca de €400, e do fornecimento de serviços domésticos básicos.
A arguida BB reside em apartamento arrendado, tipologia 1, subsiste dos rendimentos do seu trabalho, na ordem dos 1790 euros líquidos, apresenta como principais despesas fixas mensais os encargos com a renda da habitação, 450 euros, fornecimento de eletricidade, gás e agua, cerca de 50 euros, serviços de internet e comunicações, cerca de 40 euros, telecomunicações, 11 euros, e alimentação, tendo uma situação económica equilibrada.
A arguida CC vive com os pais, em casa própria, sendo reportada uma dinâmica familiar gratificante e solidária entre os seus elementos, sendo que à data a que se reportam os factos, tinha iniciado o internato de especialidade – dermatovenereologia (a 01-05-2015), no Centro Hospitalar ..., Hospital .... Em outubro de 2020 realizou exame final de especialidade e, desde então, encontra-se a trabalhar no mesmo hospital, como médica especialista de dermatovenereologia, com contrato de trabalho a termo resolutivo, auferindo um vencimento base no valor de 1943,19€.
Face ao exposto e considerando a situação económica dos arguidos, entendemos ajustado, adequado e proporcional, aplicar ao arguido AA uma pena de multa que se fixa em 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €12,50 (doze euros e cinquenta cêntimos), no valor total de €1.375,00 (mil trezentos e setenta e cinco euros).
À arguida BB uma pena de multa que se fixa em 100 (cento) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), no valor total de €1.000,00 (mil euros).
À arguida CC uma pena de multa que se fixa em 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), no valor total de €600,00 (seiscentos euros).

V- Do pedido de indemnização cível
A assistente, veio, com fundamentos nos factos que constam da acusação, deduzir pedido de indemnização civil contra os arguidos, peticionando o pagamento da quantia de €25.000,00 a título de danos morais e patrimoniais, acrescida de juros de mora, a partir da notificação dos arguidos até efectivo e integral pagamento, o que fez ao abrigo do disposto nos artigos 71.º e seguintes, do CPP, nos termos do qual e, em conformidade com o princípio da adesão, o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime deve ser deduzido no âmbito do processo penal em que se aprecia a responsabilidade criminal emergente da infracção cometida (cfr. ainda artigos 483.º, do Código Civil e 129.º, do Código Penal).
Assim, tendo ocorrido uma ofensa ilícita, a lei admite que possa, além das providências adequadas à situação, haver lugar à responsabilidade civil caso se verifiquem os pressupostos da responsabilidade por factos ilícitos, designadamente a culpa e a existência de um dano (art. 70º, nº 2, em ligação com o art. 483º do C.Civil).
Assim, dispõe o artigo 483º, nº 1, do C.Civil, que "aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem... fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos decorrentes da violação". Acrescentando o nº 2 que "só existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos especificados na lei".
Por seu turno, estabelece o art. 484º do mesmo diploma que "quem afirmar ou difundir um facto capaz de prejudicar o crédito ou o bom nome de qualquer pessoa, singular ou colectiva, responde pelos danos causados".
Não há dúvida de que os factos apurados assumem subjectivamente carácter ilícito, e violam os direitos da assistente a quem a conduta ilícita dos arguidos, determinou para esta uma intervenção médica, inútil e despropositada, em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado e da qual resultaram dores que ainda hoje subsistem, sofrimento absolutamente desnecessário e injustificado.
Por outro lado, o lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica em causa, mantém-se e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se submeterá para extracção do mesmo, sendo que a ofendida sofre de dores permanentes fruto da intervenção clinica.
Estabelece, neste domínio, o art. 496º, nº 1 do C.Civil, que "na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.” Acrescentando o nº 3 que "o montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art. 494º". Sendo que este art. 494º manda atender, na fixação da indemnização, ao grau de culpa do agente, à situação económica deste e do lesado e às demais circunstâncias do caso que o justifiquem.
Assim, o montante da reparação há-de ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida.
No caso sub judice interessa ponderar que se realizou uma cirurgia no corpo da assistente que não era necessária e em local do corpo da queixosa que não correspondia (nem corresponde) ao da situação do lipoma diagnosticado e da qual resultaram dores que ainda hoje subsistem, o que lhe causou e causa sofrimento.
Importando ainda ponderar que o lipoma a extrair, razão primeira da intervenção cirúrgica se mantém e necessitará de futura nova intervenção a que necessariamente a demandante se terá de submeter para extracção do mesmo.
Importa, pois, fixar o montante da indemnização, nos termos do artigo 496º, nº4, do CC, com recurso à equidade, o que não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim, um critério para a correcção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.
Assim, ponderados os danos sofridos pela demandante e as consequências dos mesmos, e bem assim as condições patrimoniais dos demandados, e a gravidade dos factos, tudo sopesando e valorando com o equilíbrio e ponderação que se exige, entendemos como justa, criteriosa e adequada às circunstâncias do caso a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), fixada como indemnização para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela assistente.

III. DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a 1ª secção criminal, em conceder provimento ao recurso, procedendo à alteração da matéria de facto constantes das alíneas C) a M) dos factos não provados, a qual passará a integrar os factos provados, e em consequência decide-se:
a) Revogar a decisão recorrida;
b) Condenar o arguido AA pela prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de em 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €12,50 (doze euros e cinquenta cêntimos), no valor total de €1.375,00 (mil trezentos e setenta e cinco euros).
c) Condenar a arguida BB da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), no valor total de €1.000,00 (mil euros).
d) Condenar a arguida CC da prática do crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punido pelo artigo 148.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), no valor total de €600,00 (seiscentos euros).
e) Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil formulado por DD, e, consequentemente, decide-se condenar os arguidos/demandados AA, BB e CC a pagar à ofendida/demandante a quantia de €15.000,00 (quinze mil euros), fixada como indemnização para compensar os danos não patrimoniais sofridos pela assistente, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data da prolação deste acórdão, e até efectivo e integral pagamento.
f) Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo na parte crime, fixando-se em 4 UC´s a taxa de justiça individualmente devida – artigo 513º, e 514º, do CXPP, e artigo 8º do RCP e tabela III anexa a este diploma legal.
g) Condenar os demandados cíveis no pagamento das custas do processo na parte cível – artigo 523º, do CP e 527º, do CPC.
h) Determinar, após trânsito e baixa à primeira instância, a remessa de boletim à Divisão de Identificação Criminal da DSICCOC.

Sem tributação no âmbito do recurso.

Porto, 06 de julho de 2022
Amélia Catarino
Maria Joana Grácio
Francisco Marcolino
(Elaborado e revisto pela relatora - artigo 94º, n.º 2, do CPP)