Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
217/15.3IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VÍTOR MORGADO
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
AUTORIDADE TRIBUTÁRIA
PERDA DE VANTAGENS
Nº do Documento: RP20171026217/15.3IDPRT.P1
Data do Acordão: 10/26/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 52/2017, FLS.96-104)
Área Temática: .
Sumário: Tenha ou não deduzido pedido civil, tenha ou não a Autoridade Tributária entendido que dispõe de meios suficientes para a cobrança coerciva do imposto devido, há lugar, nos termos do artº 111º CP, num crime de burla tributária, ao decretamento de perda de vantagens obtidas com a prática do crime.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso nº 217/15.3IDPRT.P1

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto:
I- RELATÓRIO
Acusados e pronunciados pela coautoria de um crime de burla tributária, previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do RGIT e 26º do Código Penal, vieram os arguidos B…, Lda, com o NIPC ………, C…, marmorista, nascido a ../01/1973, D…, contabilista, nascida a ../12/1975, e E…, contabilista, nascido a 12/03/1945, a ser julgados em 1ª instância, sendo aí proferida sentença em que se decidiu:
«a) Condenar o arguido C… pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
b) Condenar a arguida D… pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias e, por força do disposto no artigo 6º, nº1, alínea a) do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
c) Condenar o arguido E… pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias e, por força do disposto no artigo 6º, nº1, alínea a) do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
d) De acordo com o preceituado no artigo 50º, nºs 1 e 5 do Código Penal, suspendo a execução das penas de prisão aplicadas a todos os arguidos. pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
e) Condenar a sociedade arguida "B…, Lda", pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87º, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias e, por força do disposto no artigo 7º, do mesmo diploma legal, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias, à taxa diária de €6,00 (seis) euros, perfazendo o montante global de €1.680,00 (mil seiscentos e oitenta) euros.
f) Julgar improcedente o pedido de declaração [1] a favor do Estado do valor de €18.428,93, efetuado pelo Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 111º do Código Penal. (…)»
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Discordando da parte absolutória da sentença – ou seja, da corporizada na alínea f) que antecede – o Ministério Público interpôs o presente recurso, cuja fundamentação sintetizou nas seguintes conclusões:
«- A perda da vantagem patrimonial deverá ser sempre declarada pois ela é uma consequência prática do crime. É exclusivamente determinada por necessidades de prevenção do perigo da prática de novos crimes e imposta pelo ius puniendi do Estado.
- A declaração de perda é medida sancionatória que pretende mostrar ao infrator que o crime não compensa, obrigando assim o Estado a repor a situação do arguido no “status” em que o mesmo estaria caso não tivesse praticado o facto ilícito. Tal medida nada tem a ver com o direito da vítima a ser ressarcida! A declaração da perda da vantagem tem, ao invés, direta relação com a prática do facto ilícito típico!
- Questão diferente é aquela que se prende, “a posteriori”, com a efetivação do ressarcimento do ofendido/lesado. Caso se declare perdida a vantagem do crime e paralelamente tenha havido vítima prejudicada pela prática do mesmo, a declaração de tal perda não terá eficácia prática porquanto aquilo que vier a ser declarado perdido a favor do Estado reverterá para a vítima do crime através do pedido de indemnização reclamado por esta.
Ou seja, o direito da vítima ficará sempre salvaguardado através do produto da declaração de perda. O arguido nunca pagará duas vezes.
- O Ministério Público deverá sempre requerer a declaração de perda pois tal pedido impõe-se como medida sancionatória de per si independentemente da eventual dedução de qualquer pedido de indemnização. É no interesse de toda a comunidade que o arguido seja colocado, sempre, na situação que teria, caso não tivesse praticado o facto ilícito típico. São interesses de prevenção geral que estão em causa, ou seja, é o interesse público que o impõe.
- “O legislador português, ao invés do sistema tradicional alemão… optou por um sistema misto…. A obrigação de confisco é geral, sobrepondo-se à vontade egoísta de qualquer indivíduo, mas salvaguarda, igualmente, os seus direitos, nomeadamente através da adjudicação dos bens declarados perdidos ou do produto da sua venda às vítimas.”
- O artigo 111º nº 2 do Código Penal não exclui qualquer situação, designadamente quando a vítima disponha de meios para recuperar aquilo de que ficou desapossada ilegitimamente. Se a lei não exclui, porque o fez a Mmª Juiz “a quo”?
- Se o Estado pode ressarcir a vítima através dos instrumentos e dos produtos que apreendeu ao arguido (artigo 130º nº 2 do Código Penal), por maioria de razão também o pode ressarcir através da vantagem do crime.
- Por último, a declaração de perda das vantagens do crime nunca prejudica o direito indemnizatório da Autoridade Tributária nem obriga o arguido a pagar duas vezes, porquanto a perda das vantagens do crime salvaguarda sempre o direito indemnizatório do ofendido ou do lesado e bem assim porque o fim último de tal instituto é colocar o arguido no status “ex ante” da prática do crime, isto é, retirando-lhe todo o seu património ilícito e não, obviamente, reduzir o seu património lícito!»
Terminou o Ministério Público o seu recurso pedindo a alteração da decisão recorrida no ponto tido como mal julgado.
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A este recurso apenas a arguida B…., respondeu, condensando do seguinte modo as suas contra-alegações:
«A) O arguido C… foi condenado pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87°, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
B) A arguida D… foi condenada pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87°, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, e, por força do disposto no artigo 6°, nº l, alínea a) do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
C) O arguido E… foi condenado pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87°, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, e, por força do disposto no artigo 6°, n.º l, alínea a) do mesmo diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão.
D) De acordo com o preceituado no artigo 50°, nºs 1 e 5 do Código Penal, suspender a execução das penas de prisão aplicadas a todos os arguidos, pelo período de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses.
E) A sociedade arguida foi condenada "B…, Lda" pela prática de um crime de burla tributária previsto e punido pelo artigo 87°, nºs 1 e 2 do Regime Geral das Infrações Tributárias, e, por força do disposto no artigo 7°, do mesmo diploma legal, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias, à taxa diária de €6,00 (seis) euros, perfazendo o montante global de €1.680,00 (mil seiscentos e oitenta) euros.
F) Foi julgado improcedente o pedido de declaração a favor do Estado do valor de €18.428,93, efetuado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 111° do Código Penal.
G) Conclui-se que não deve haver lugar ao pedido de declaração a favor do estado, uma vez que, no caso concreto não há desinteresse por parte da Autoridade Tributária e Aduaneira na reparação do seu direito, antes uma opção quanto à melhor forma de o obter, e por outro lado, a Autoridade Tributária e Aduaneira comunicou ao Ministério Público que não pretendia deduzir pedido de indemnização civil, por considerar suficientes os meios legais previstos para a execução fiscal da vantagem, neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2016, proc. 905/15.4IDPRT.P1.
H) Pelo exposto, deve a douta sentença proferida pela Mmª Juiz do Tribunal a quo manter-se na íntegra.»
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Já nesta instância de recurso, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto elaborou douto e copiosamente fundamentado parecer, em que sustenta brilhantemente o provimento do recurso.
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Cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar [2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso.
A única questão a decidir é a de saber se a perda de vantagens deve ser decretada, mesmo que a Fazenda Pública tenha possibilidades de recuperar os montantes perdidos no âmbito da jurisdição fiscal.
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Apesar de não ser posta em causa a matéria de facto fixada na sentença recorrida, vê-se interesse em reproduzi-la, para aferição e contextualização da questão de direito a resolver.
Factos provados (transcrição):
«Instruída e discutida a causa resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade "B…, Lda., encontra-se coletada para o exercício de "fabricação de artigos em mármore e de rochas similares" tem o número de identificação fiscal ………, o CAE ….. - R3, da área de serviço de Finanças de …, tendo exercido a sua atividade na Travessa … nº …, …, ….
2. A sociedade aludida em a) iniciou a sua atividade em 1 de outubro de 1997 e encontrou-se enquadrada, em sede de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral, tendo sido declarada insolvente por sentença proferida no dia 03-11-2015.
3. O arguido C…, desde o dia do início da atividade até o seu encerramento, exerceu a gerência de facto da sociedade B…, Lda, nomeadamente contratando e despedindo trabalhadores, assinando documentos, cheques, contactando com fornecedores e clientes, remetendo os documentos à contabilidade, efetuando os pagamentos ao fisco, segurança social e demais démarches necessárias à gestão diária de tal sociedade.
4. O arguido E… é contabilista certificado, inscrito na Ordem dos Contabilistas Certificados e exerceu a função de contabilista da sociedade B…, Lda, desde o seu início de atividade em 1997.
5. A arguida D… é contabilista certificada, inscrita na Ordem dos Contabilistas Certificados e exerceu, conjuntamente com o seu pai, o arguido E…, a função de contabilista da sociedade B…, Lda, a partir do ano de 2012.
6. A sociedade B…, Lda declarou, na declaração periódica de IVA, que remeteu à Autoridade Tributária em 13-11-2013 e relativa ao terceiro trimestre de 2013, um montante de IVA a regularizar a favor do sujeito passivo no montante de 97.470,72€.
7. A declaração aludida em 6) foi preenchida pela arguida D…, a qual no item 20 apôs o seu número de identificação fiscal, assumindo que "a presente declaração corresponde à verdade e não omite qualquer informação pedida'.
8. O montante de IVA declarado na declaração periódica 2013/09T como sendo a regularizar a favor do sujeito passivo, diz respeito a parte de um crédito que a sociedade B…, Lda tem em relação à sociedade F…, Lda.
9. Tal crédito foi reconhecido por G…, enquanto administrador de insolvência da sociedade F…, Lda, pelo montante de 124.755,64€ correspondente a 120.811,84€ de capital e 3.943,80€ de juros, no processo de insolvência desta.
10. Nas declarações periódicas entregues pela sociedade B…, respetivamente relativas a 2011/03T (primeiro trimestre de 2011) e 2012/09T (terceiro trimestre de 2012), a sociedade já havia efetuado duas regularizações a seu favor, uma no montante de 12.588,01€ e outra de 15.188,01€ por conta do IVA relativo ao montante do crédito não cobrado de 120.811,84€ à sociedade F…, Lda.
11. Os arguidos C…, por si e na qualidade de gerente da sociedade B…, Lda, E… e D… sabiam que já tinham inserido nas declarações periódicas de IVA de 2011/03T e 2012/09T o montante global de IV A relativo ao crédito não cobrado à sociedade F…, Lda.
12. No entanto o arguido C… por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, decidiu incluir a globalidade do crédito não cobrado à sociedade F…, Lda, na declaração periódica de IVA, como montante a regularizar a favor da sociedade.
13. Para tanto, alguém que se identificou como G… através de contacto telefónico estabelecido pelo arguido C… e arrogando-se conhecedor de legislação atual sobre o assunto, afirmou ao arguido E… a possibilidade legal de colocar o montante global do crédito incobrável da F…, Lda., na regularização do IVA, o que este, juntamente com a sua filha, fez.
14. Desta feita, a sociedade arguida apurou um crédito de imposto a recuperar, no montante de 94.785,51€, o qual originou nos subsequentes períodos de IVA, os seguintes créditos fiscais a seu favor:
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15. Assim, com base nesta declaração, e em virtude da existência do indevido crédito a seu favor, deixou a sociedade arguida de pagar o imposto de IVA nas declarações e montantes a seguir discriminados:

- no período de tributação 2013/09T- 2.183,32€
- no período de tributação 2013/12T- 8.198, 11€
- no período de tributação 2014/03T- 5.127,30€
- no período de tributação 2014/09T- 1.937,36€
- no período de tributação 2014/12T- 982,84€, conforme tabela infra:
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RE16. Todos os arguidos sabiam como funcionam as regularizações em sede de IVA, nomeadamente o constante do artigo 78.º nº 7 do CIVA, maxime que o montante de imposto respeitante a créditos incobráveis em processo de insolvência podem ser deduzidos quando esta for declarada e não assim o montante do crédito.
17. Os arguidos D… e E… sabiam que o seu contrato de prestação de serviços com a sociedade B…, Lda., não podia afetar a sua isenção nem a sua independência técnica perante a sociedade B…, Lda., e bem assim que eram responsáveis por todos os atos que pratiquem no exercício das suas funções.
18. Mais sabiam que estavam a incumprir deveres para com a Autoridade Tributária ao preencherem e assinarem declarações fiscais ilegais e ao absterem-se de praticar atos que falsificam a declaração fiscal.
19. Os arguidos C…, E… e D… sabiam que ao mandar colocar e colocar tal montante no item correspondente a regularizações, iriam gerar um crédito de imposto indevido, obtendo, desta feita, a sociedade arguida o ressarcimento da dívida incobrável à custa do correspondente prejuízo do erário público.
20. Agindo dessa forma, os arguidos C…, E… e D… quiseram determinar a administração tributária a efetuar atribuições patrimoniais ilegítimas a favor da sociedade arguida o que lograram no montante de 18.428,93 euros.
21. Agiram os arguidos C…, E… e D… deliberada livre e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
22. O arguido C… aufere o salário mínimo nacional, sendo a sua esposa professora, encontrando-se, atualmente desempregada, realizando, todavia AEC'S com as quais aufere em média, €300,00 mensais. O casal tem dois filhos de 7 e 17 anos de idade a cargo, vive em casa própria, liquidando de empréstimo à habitação prestação que ascende a cerca de €300,00 mensais. O arguido e respetivo agregado familiar vive ainda das ajudas financeiras dos pais e sogro daquele. Possui o 8º ano de escolaridade.
23. A arguida D… aufere a quantia de €600,00 mensais, sendo o seu marido estofador e, auferindo o salário mínimo nacional. Tem um filho de 13 anos a cargo, vivendo em casa própria liquidando de empréstimo à habitação prestação que ascende a cerca de €230,00/250,00 mensais. Possui a licenciatura em contabilidade.
24. O arguido E… encontra-se atualmente reformado, auferindo uma pensão de €380,00, sendo a sua esposa também reformada e, auferindo uma pensão de cerca de €320,00 mensais. Vive em casa pertença de uma filha e, possui o bacharelato em contabilidade.
25. Do certificado do registo criminal dos arguidos e da sociedade arguida nada consta
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A perda de vantagens do crime
O Ministério Público veio requerer, na acusação (articulando, para tal, os necessários factos) a perda da vantagem patrimonial decorrente do crime, nos termos do artigo 111º, nºs 2 e 4, do Código Penal, no valor de €18.428,93, quantia esta que de que o Estado foi despojado, em virtude do crime de burla tributária cometido pelos arguidos.
Tal pretensão veio a ser rejeitada pelo Tribunal recorrido, que, para tanto, argumentou basicamente que “(…) não foi deduzido pelo Ministério Público pedido de indemnização civil, pois que é entendimento da Autoridade Tributária serem suficientes os meios legalmente previstos no artigo 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT) para cobrança coerciva do imposto em causa, como vem salientado a fls. 235 dos autos.
Pelo exposto e, porque partilhamos do entendimento da Autoridade Tributária, dispondo esta de meios legais para ser ressarcida das quantias que lhe são devidas, a perda de vantagem patrimonial requerida pelo Ministério Público terá que improceder.”
É contra este entendimento que o Ministério Público se manifesta no presente recurso, pugnando pela aplicação do disposto nos nºs 2 e 4 do artigo 111º do Código Penal, como veremos, com boas e bem fundamentadas razões.
De resto, se bem observarmos a realidade judiciária dos últimos 21 anos (isto é, desde a introdução, pelo Decreto-Lei 48/95, de 15/3, do artigo 111º com a redação e sob a epígrafe de “Perda de vantagens”) [3], mas sobretudo a dos últimos 7 anos [4] verificamos que muito raramente o Ministério Público explorou as faculdades proporcionadas por este dispositivo legal, só recentemente tendo vindo a mostrar-se alertado para a adequação e mesmo para a necessidade de promover um verdadeiro aproveitamento das potencialidades deste instituto, ativando-o a partir da acusação, nela articulando os factos necessários [5].
Não é, assim, de estranhar que, quando se trata de indicar alternativas para combater o fenómeno do enriquecimento ilícito ou injustificado – e face ao insucesso da tentativa de tipificação de um crime autónomo de enriquecimento ilícito que ultrapasse os problemas de inconstitucionalidade – se faça cada vez mais apelo, de jure condito, à necessidade de “incentivar e dinamizar, na prática diária dos tribunais, a utilização dos mecanismos existentes relativos à perda de bens a favor do Estado (v.g. o confisco das vantagens do crime, tendo em atenção o disposto no artigo 111º do CP…)” [6] [7].
Nos presentes autos, o Ministério Público não se esqueceu de fazer uso de tais “mecanismos”, não obstante a administração fiscal o ter previamente informado de que não pretendia deduzir pedido cível.
Ainda assim, ao contrário do que se decidiu na sentença recorrida, concordamos com H… e I… [8], quando sustentam que “as finalidades preventivas que por esta via se alcançam, em conjugação com o quadro normativo vigente, impõem que se conclua de forma inequívoca que inexiste qualquer limite ao confisco motivado pela mera possibilidade de ser deduzido um pedido de indemnização civil”.
No douto parecer emitido nos presentes autos, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, além do mais, transcreveu um outro parecer, emitido em 18/01/2017 [9], no âmbito do recurso nº 84/15.7T9FLG.P1, que, sendo elaborado pelo já citado Doutor H…, “com a
autoridade que lhe é reconhecida como estudioso desta matéria, numa situação com contornos absolutamente similares”, contém, a nosso ver, a doutrina correta.
Trata-se de um aprofundado e criterioso parecer, que nós, apesar de não termos obtido a respetiva permissão, aqui ousamos transcrever, ainda que em segunda citação, na parte relevante:
« (...)
A questão que se coloca é, portanto, a de saber se a declaração de perda das vantagens do crime se deve restringir aos casos em que o ofendido não dispõe de outro meio legal para exercer os seus direitos.
Nos termos do artigo 111º, nº 2, do Código Penal “são também perdidos a favor do Estado, sem prejuízo dos direitos do ofendido ou de terceiro de boa fé, as coisas, direitos ou vantagens que, através do facto ilícito típico, tiverem sido adquiridos, para si ou para outrem, pelos agentes e representem uma vantagem patrimonial de qualquer espécie”. Por isso mesmo, num processo penal orientando pelo princípio da legalidade (artigo 2º) o Ministério Público deve promover e o juiz (reunidos os respetivos pressupostos legais, é claro) deve declarar perdidas a favor do Estado as vantagens decorrentes da prática do crime. O confisco ainda faz parte do multiversum que constitui o exercício do ius puniendi estadual, não havendo aqui nenhum poder de oportunidade (ou discricionariedade) na sua declaração. Tal como quem «quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão» (artigo 131º do Código Penal) «são também perdidos a favor do Estado ... as coisas, direitos ou vantagens” (artigo 111°, nº 2, do Código Penal). Em ambos os casos, o legislador utiliza uma formulação imperativa, que, reunidos os demais pressupostos legais, deve desencadear a respetiva consequência legal.
E não se diga, como parece decorrer do pensamento do senhor juiz recorrido que, dispondo a Autoridade Tributária dos meios legais para ser ressarcida, não se impõe a perda das vantagens (cfr. fls. 348 da sentença).
Desde logo porque a lei não distingue: o artigo 111º do Código Penal, que acabamos de citar, é muito claro, não excecionando nenhuma situação, nomeadamente aqueles casos em que a vítima (seja ela o Estado ou um particular) já dispõe de formas legais para recuperar os ativos de que foi privada. Por isso mesmo, uma vez que a lei não distingue, também nós não podemos distinguir: «Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus». O julgador não pode sobrepor a sua interpretação à letra da própria lei, subvertendo o seu espírito e a sua ratio. Ao contrário de outros sistemas, que consagraram a preferência do pedido de indemnização civil ou de outras formas de ressarcimento sobre o confisco (de tal forma que havendo essa possibilidade abstrata não deverá haver declaração de perda), o legislador português, como resulta claramente do artigo 130º do Código Penal, deu preferência ao confisco enquanto manifestação do ius imperium estadual. Essas formas de reparação devem sujeitar-se ao confisco e não o contrário, devendo a articulação ser feita a posteriori.
Depois porque tendo o confisco uma finalidade preventiva a omissão da sua declaração (a sua execução posterior já será outra coisa) frusta este propósito político-criminal e emite um sinal errado para a comunidade. É imprescindível que a sentença torne claro que o «crime não compensa». Se não for assim, se condenar o arguido, mas permitir que ele mantenha incólumes as vantagens decorrentes da prática do crime, estará a transmitir a comunidade um sinal contraditório e incompreensível. O veredictum tem este valor declarativo insofismável, fazendo ver a toda a comunidade quais as consequências da prática de crimes. O mero valor pedagógico da decisão não é despiciendo, não podendo ser esquecido.
A questão da execução posterior dessa decisão é coisa muito diferente. Nada estando apreendido, o senhor juiz parece confundir o mero valor declarativo da sua decisão (demonstrativo, como referimos de que o crime não compensa) com a possibilidade ou não da sua execução futura. Como é evidente, esta decisão só poderá ser executada se, entretanto, os meios normais tiverem falhado. Só nesse caso, em conjugação com a Autoridade Tributária, poderá o Ministério Público promover a sua execução. Não pode haver execução dupla do mesmo pedido, mas nada obsta à existência de vários títulos executivos relativos à mesma matéria. Nada impede que quem já dispõe de um título executivo intente uma ação declarativa para obter outro [artigo 535°, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil]. Aliás, do pensamento do próprio senhor juiz recorrido parece decorrer que se o Ministério Público tivesse formulado um pedido de indemnização civil o mesmo seria procedente, apesar de já existir um título executivo e de poder haver diligências em curso (realizadas pelo fisco) no sentido do pagamento das quantias em dívida (cfr. fls. 348).
Acresce que a possibilidade abstrata da instauração de uma execução fiscal ou mesmo de dedução do pedido de indemnização civil não constituem sempre formas suficientes para assegurar as finalidades subjacentes ao confisco. Desde logo, na medida em que a efetivação da responsabilidade tributária depende não só do cumprimento da ortodoxia formal prevista pelo legislador tributário para a enunciação da exigibilidade do tributo devido, como do respeito pelo cumprimento de diversos prazos, nomeadamente de caducidade (v.g. 45.º da Lei Geral Tributária). Estas exigências, sendo adequadas a garantir a efetividade da cobrança do tributo na generalidade dos casos, não se compadecem com as exigências que se verificam na deteção dos esquemas de evasão fiscal mais complexos, designadamente aqueles concretizados mediante a interposição de entidades não residentes em território nacional ou comunitário. Nas situações em que a Administração Fiscal não pode cobrar o imposto porque este deixou de ser exigível no âmbito da responsabilidade tributária, não é sequer pacífico que possa obter tais montantes mediante recurso à dedução do respetivo pedido de indemnização civil.
Nestes casos, restará, pois, ao Estado (enquanto legítimo destinatário dos montantes) recorrer ao mecanismo ablativo do confisco das vantagens, previsto no artigo 111°, nºs 2 e 4, do Código Penal, para, deste modo, demonstrando que o crime não compensa, assegurar o restabelecimento da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito.
Acresce ainda que a responsabilidade tributária e a respetiva cobrança dos impostos é norteada por uma lógica de responsabilização principal do sujeito passivo (nos termos do artigo 18°, nº 3, da LGT), sendo a responsabilização de outros sujeitos, nomeadamente dos administradores e gestores, ainda que apenas de facto, subsidiária (artigo 24º da LGT). Neste contexto legal, na esmagadora maioria das hipóteses, não estando as vantagens diretas ou o seu sucedâneo na esfera patrimonial do agente do crime (ou do sujeito passivo), os procedimentos de execução fiscal (e mesmo o pedido de indemnização civil) serão manifestamente inaptos para assegurar as finalidades almejadas com o confisco das vantagens. Isto porque o procedimento de execução fiscal apenas poderá ser instaurado contra o sujeito passivo, ou contra o responsável subsidiário mediante procedimento de reversão, (nos termos dos artigos 9º e 153º do CPPT). Sucede, porém, que o procedimento de reversão só poderá ser acionado em caso de insuficiência de bens do devedor principal (artigo 23°, nº 2, da LGT), a que acresce que não existe possibilidade de reversão contra terceiros adquirentes de bens, independentemente de estes estarem de boa ou má-fé, salvo no caso, de verificação quase inexistente, de dívida com direito de sequela sobre bens que tenham sido transmitidos pelo sujeito passivo (artigo 157º do CPPT).
A inexistência de pedido de indemnização civil é, pois, irrelevante. Neste caso, uma vez que o lesado é o Estado, o Ministério Público tanto podia optar por um ou por outro (sendo que no caso do confisco, ao contrário do pedido de indemnização civil, não estão incluídos os juros) obtendo em ambas as situações um mero título executivo, com inequívoco e imprescindível valor declarativo, mas que depois não pode usar, enquanto estiverem pendentes os mecanismos de cobrança já desencadeados pelo fisco. Assim, o que o Ministério Público não podia neste caso fazer (sob pena de litispendência) era deduzir simultaneamente a sua pretensão confiscatória e um pedido de indemnização civil. Como se refere no Acórdão desta Relação de 14 de setembro de 2016 (processo 459/15.1GAPRD.P1, relatado por Jorge Langweg) «não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil por parte do lesado, há lugar à condenação do autor do furto a pagar ao Estado, por ter sido requerido, o valor correspondente à madeira furtada, da qual o arguido se apropriou ilegitimamente». Neste contexto, ao contrário do referido pelo senhor juiz recorrido, só a omissão desse pedido de indemnização civil legitima a conduta do Ministério Público. Uma vez que ele não foi deduzido, nos termos da referida jurisprudência há lugar à condenação do arguido no perdimento das vantagens da prática do crime e tal como nada obstaria à condenação nesse pedido, também nada obsta à condenação na perda daqueles valores.
É certo que durante décadas, apesar do ambicioso e pioneiro programa político criminal consagrado no artigo 111º do Código Penal, o Ministério Público não foi eficaz nesta matéria, consignando as vantagens da prática do crime na acusação e promovendo depois a sua perda. No entanto, décadas de inércia ainda não são suficientes para revogar uma lei. À medida que a importância da questão patrimonial vai crescendo no plano internacional será, pois, de esperar a alteração progressiva da praxis nacional (alertando, justamente para a necessidade da alteração desta prática, cfr. Maria do Carmo Silva Dias, Enriquecimento ilícito/injustificado, Revista Julgar [2016], 28, p. 312, nota 67). No início (como agora acontece) esta prática poderá parecer bizarra ou estranha, a prazo, contudo, à medida que os operadores judiciários interiorizarem os mecanismos da recuperação de ativos, converter-se-á numa dimensão imprescindível da sentença penal. O crime não pode compensar e a sentença é o momento simbólico e ideal para o declarar.
E não se diga que, em abstrato, o Ministério Público «apenas deverá acionar o mecanismo da perda das vantagens adquiridas pelo agente através do facto ilícito típico que correspondam à prestação da obrigação de indemnização civil pela prática daquele facto quando o ofendido (o titular do interesse penalmente tutelado) se desinteresse pela mesma» (ac. do Tribunal da Relação do Porto de 23/11/2016, proferido no processo nº 905/15.4IDPRT.P1, objeto de comentário crítico de H…/I…, em curso de publicação, que aqui seguimos de perto).
Desde logo porque, como já referimos, a lei não distingue: o artigo 111º do Código Penal é muito claro, não excecionando nenhuma situação, designadamente aqueles casos em que a vítima já dispõe de formas legais para recuperar os ativos de que foi privada (o que a lei diz é que não podem ser prejudicados os seus direitos). Depois, porque quando formula a sua pretensão confiscatória, o Ministério Público não sabe como é que o ofendido se vai comportar. Fazer depender essa aspiração da prévia comprovação do desinteresse do lesado será, pois, na esmagadora generalidade dos casos, condenar o confisco ao fracasso: O Ministério Público não tem uma bola de cristal, não se pode imiscuir na autonomia individual e esta é por natureza volátil, podendo sofrer alterações com o passar do tempo. Para não prejudicar inalienáveis direitos de defesa (v.g. o contraditório) e a própria estrutura acusatória do processo penal, a pretensão confiscatória estadual terá que ser acionada antes, no momento em que, sem saber como se vai comportar a vítima, deduz acusação. Esperar pela manifestação processual do desinteresse do ofendido será tarde demais. Quando deduz acusação o Ministério Público deve, sob pena de contradição, tratar a questão penal e a questão patrimonial. Ambas são essenciais ao completo exercício da ação penal.
Da mesma forma também não se pode dizer, como faz o supra referido acórdão, que «as vantagens apropriadas em espécie ou substituídas pelo pagamento ao Estado do respetivo valor no âmbito de artigo 111º do Código Penal não são suscetíveis de atribuição ao lesado».
É verdade, que o artigo 130°, nº 2, do Código Penal, não refere, hoje, expressis verbis, o artigo 111° do mesmo diploma legal, remetendo apenas para os artigos 109° e 110°. No entanto, não podemos retirar desta omissão a impossibilidade liminar de adjudicar ao lesado os bens declarados perdidos ou o produto da sua venda. Com efeito, é a própria norma que refere que pode ser entregue ao lesado o preço (isto é, a recompensa) ou o valor correspondente a vantagens provenientes do crime, indicando, claramente, que também elas estão incluídas. Se apenas estivessem em causa os instrumenta e producta sceleris (artigos 109° e 110º do Código Penal), o legislador ter-se-ia bastado com a primeira parte da norma, sem necessidade de acrescentar, expressamente, que também lhe pode ser entregue «o preço ou o valor correspondente a vantagens provenientes do crime, pagos ao Estado» (obviamente nos termos do artigo 111º do Código Penal).
O elemento histórico confirma esta tese decorrente da mera análise gramatical. Na versão original do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei nº 400/82, de 23 de setembro, o artigo 129º (atual artigo 130º) remetia para os artigos 107º a 110º, incluindo expressamente os instrumentos, os produtos, as recompensas e as vantagens da prática do crime. Com a reforma do Código Penal, operada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de março, o legislador reformulou essa remissão (agora só se refere aos artigos 109º e 110º), mas manteve o corpo do artigo, continuando, como já referimos, a falar expressamente das recompensas («preço») e das vantagens pagas ou transferidas para o Estado por efeitos da perda. A vontade do legislador, embora porventura mal expressa, nunca foi excluir esta possibilidade, porque, se assim fosse, teria que a eliminar em ambos os casos (na referência expressa e na remissão para a norma legal).
Esta solução decorre, ainda, do elemento teleológico. Se o Estado pode utilizar os instrumentos e produtos que tenha confiscado para compensar o lesado, porque é que não há de fazer o mesmo com as vantagens? A compreensão unitária da natureza jurídica da perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens da prática do crime, preconizada por Jorge de Figueiredo Dias (Direito Penal Português As consequências jurídicas do crime, Lisboa, Aequitas/Editorial Notícias (1993), p. 628 e 638.) e subjacente àquela reforma aponta nesse mesmo sentido. Não há nenhuma razão lógica, teórica ou prática para separar as duas situações. Pelo contrário, a configuração da perda das vantagens como um mecanismo de restituição do arguido ao status patrimonial anterior à prática do crime e o seu montante, em regra, muito superior aos meros instrumentos e produtos, aconselha o mesmo tratamento legal. O legislador terá prescindido da remissão por entender que ela não era necessária. A referência à perda de bens do próprio (artigo 109º) ou de terceiro (artigo 110º) seria suficiente.
Para além de ser dogmaticamente insustentável, a impossibilidade de compensar as vítimas com as recompensas/vantagens confiscadas seria processualmente incongruente. Se no mesmo caso coexistirem instrumentos, produtos, recompensas e vantagens (como acontece frequentemente), os primeiros podem ser confiscados em benefício das vítimas e os segundos não, gerando uma situação processual de difícil gestão. A mesma questão é tratada de forma diversa, sendo essa solução dualista incompreensível para a comunidade. Num caso a perda prevalece sobre o pedido de indemnização civil; no outro, em tudo igual, não, levando à restituição das vantagens apreendidas nos termos do artigo 178°, nº 1, do Código de Processo Penal, em qualquer possibilidade de as afetar ao pagamento da indemnização civil arbitrada.
Acresce que (ainda que tal não decorresse da mera letra, da história e do espírito da lei) nada impediria o juiz de atribuir tais montantes ao lesado. O artigo 130°, nº 2, do Código Penal regula as relações entre o Estado e o ofendido não tendo qualquer caráter sancionatório, pelo que não está sujeito ao espartilho do princípio da legalidade (artigo 29º da CRP e artigo 1º do Código Penal). Nada proibirá, aqui, o juiz de preencher a alegada lacuna (que, afinal, como vimos não existe) entregando aqueles bens ou o seu valor ao lesado. A proibição da analogia penal (artigo 1º, nº 3, do Código Penal) não abrange estas situações, que devem receber o mesmo tratamento dos instrumentos e produtos do crime. A haver uma lacuna legal ela deve ser preenchida nos termos gerais, mediante a aplicação do regime previsto para aqueles.
Justificar a rejeição da perda com a necessidade de evitar a proliferação de títulos executivos [artigo 535º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Civil] subverte a política criminal definida pelo legislador, esquece as singularidades destes títulos e que esse problema é resolvido a montante, em sede de execução. O exequente não pode cobrar duas vezes a mesma quantia e, se o tentar fazer, deverá ser processualmente responsabilizado e o seu pedido indeferido. Na fórmula de Alberto dos Reis: «a eficácia do título executivo significa apenas isto ... pelo facto de ser portador legítimo do título o credor tem o direito de pôr em movimento a sanção executiva, isto é, de promover os atos necessários para que a execução atinja o seu fim. Mas a eficácia é meramente processual e não pode prevalecer sobre a eficácia substancial da relação jurídica subjacente, de sorte que se o executado demonstrar, no processo de oposição, que o direito de crédito, cuja existência o título faz supor, não existe na realidade, a eficácia do direito cai, é submergida e vencida pela supremacia da relação jurídica substancial» (Processo de execução, Coimbra, Coimbra Editora (1985), I, p. 119/20).
É por isso mesmo, porque não pode ser executada duas vezes (sob pena de se modificar a natureza jurídica do confisco: em vez de colocar o arguido no status patrimonial anterior à prática do facto ilícito típico seria um mecanismo de redução do seu património lícito) que Jorge de Figueiredo Dias refere quer nesses casos, decretar o confisco poderá não ter utilidade. Da sua asserção não se pode, todavia, retirar que o confisco cessa quando existe um pedido de indemnização civil, mas apenas que «poucas serão as hipóteses em que a perda das vantagens poderá ser decretada utilmente» (Direito Penal Português…, p. 633). O que não significa, por exemplo, que não tenha já relevância (teórica) ou que não possa vir a ganhá-la no futuro (v.g. porque o título executivo já existente prescreveu entretanto).
E não se diga também quer em face da posição da Administração Fiscal, o Ministério Público deverá abster-se de formular um pedido de indemnização civil, mas também qualquer outra pretensão confiscatória estadual. Na verdade, por força do princípio da legalidade (artigo 219° da CRP) o Ministério Público deve promover e o juiz (reunidos os respetivos pressupostos legais, é claro) deve declarar perdidos a favor do Estado as vantagens decorrentes da prática do crime. O confisco ainda faz parte do multiversum que constitui o exercício do ius puniendi estadual, não havendo aqui nenhum poder de oportunidade (ou discricionariedade) na sua declaração. Ao contrário do pedido de indemnização civil, o Ministério Público não goza de qualquer discricionariedade na promoção da perda dos instrumentos, produtos, recompensas e vantagens decorrentes da prática do crime. A posição da autoridade tributária é irrelevante. O Ministério Público age por direito próprio, exercendo o ius puniendi estadual no interesse supra individual da comunidade e não em representação de qualquer vítima, cuja posição subjetiva não merece tutela processual. Se o objeto do processo for indisponível também o confisco será indisponível.
Em suma, concordando integralmente com o recurso interposto pelo Ministério Público, a decisão recorrida deverá ser parcialmente revogada e substituída por outra que condene os arguidos a pagar ao Estado o montante correspondente ao valor de que se apropriaram. no montante de €184.463,00[10] correspondente à vantagem obtida mediante a prática dos factos pelos quais foram condenados. (…)»
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Pelas razões acima enunciadas – pelas por nós diretamente aduzidas e mais ainda pelas por nós alargadamente citadas – entendemos que o recurso interposto pelo Ministério Público merece proceder.
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III - DECISÃO
Por tudo o exposto, acordam os Juízes desta 1ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e consequentemente, revogando parcialmente a sentença recorrida:
1)- declarar perdido a favor do Estado o valor de €18.428,93 (dezoito mil quatrocentos e vinte e oito euros e noventa e três cêntimos), nos termos do disposto no artigo 111º, nºs 2 e 4, do Código Penal, na redação ainda aplicável (a conferida pela Lei nº 32/2010, de 02/09).
2)- confirmar, em tudo o mais, a sentença recorrida.
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Sem custas.
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Porto, 26 de outubro de 2017
Vítor Morgado
Alexandra Pelayo
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[1] Cremos ser evidente que faltam as palavras intercalares “de perdimento de vantagens”.
[2] Tal decorre, desde logo, do disposto no nº 1do artigo 412º dos nºs 3 e 4 do artigo 417º. Ver também, nomeadamente, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, III, 3ª edição (2009), página 347 e jurisprudência uniforme do S.T.J. (por exemplo, os acórdãos. do S.T.J. de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, página 196, e de 4/3/1999, CJ/S.T.J., tomo I, página 239).
[3] Em que deixou de se limitar as vantagens perdíveis às diretamente adquiridas para os próprios agentes do crime, alargando-se essa possibilidade às diretamente adquiridas para outrem.
[4] Em que a Lei nº 32/2010, de 2/9, deu nova redação ao preceito, em que deixou de se exigir que as coisas, direitos ou vantagens tenham sido adquiridas diretamente, abrindo as portas à aquisição indireta.
[5] Como recomendado por H… e I…, em “Anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01/12/2014, proferido no processo 218/11.0GACBC.G1”, in Julgar online, abril de 2015.
[6] Neste sentido e nestes exatos termos, ver o estudo de Maria do Carmo Silva Dias, sobre “Enriquecimento ilícito/injustificado”, publicado na revista Julgar /editada pela ASJP, nº 28, mormente a página 312, 6º§ e nota 67.
[7] Refira-se que a recente alteração a esta parte do Código Penal introduzida pela Lei n.º 30/2017, de 30 de maio, não é aplicável nos presentes autos, pois o nº 1 do respetivo artigo 23º limita a respetiva aplicabilidade aos processos que se iniciem a partir da data de entrada em vigor. Neste diploma, onde se transpõe a Diretiva 2014/42/EU (como aliás preconizado, de jure condendo, no estudo de Maria do Carmo Silva Dias mencionado na nota anterior), reforça-se a perda alargada e preveem-se perdas de bens sem condenação penal e perda de bens de terceiros.
[8] Na “Anotação…” citada na nota 5.
[9] Ainda que não tenha tido a concordância do respetivo douto acórdão de 22/03/2017, desta Relação.
[10] No nosso caso, no montante de €18.428,93.