Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
683/11.6GCSTS.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: NETO DE MOURA
Descritores: PROVA POR PRESUNÇÃO
Nº do Documento: RP20140910683/11.6GCSTS.P2
Data do Acordão: 09/10/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Divergência entre depoimentos não são contradições.
II - Na prova por presunção parte-se de um facto conhecido (o facto base ou facto indiciante) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permitem chegar sem necessidade de uma averiguação casuística a um resultado verdadeiro.
III - Para a prova dos factos em processo penal é perfeitamente legitimo o recurso à prova indirecta, pois são admissíveis toda as provas não proibidas por lei.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 683/11.6 GCSTS.P2
Recurso penal
Relator: Neto de Moura

Acordam, em conferência, na 1.ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

No âmbito do processo comum que, sob o n.º 683/11.6 GCSTS, corre termos pelo 1.º Juízo de Competência Criminal da Comarca de Santo Tirso, B…, melhor identificado nos autos, foi submetido a julgamento, por tribunal singular, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punível pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
C… deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido.
Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, foi proferida sentença, datada de 11.03.2013 (fls. 216 e segs.), com o seguinte dispositivo.
“Pelo exposto, julgo procedente a acusação pública e, em consequência:
a) Condeno o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de € 5, o que perfaz um total de € 250;

b) Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido e, em consequência, condeno o arguido no pagamento do montante de € 350, acrescido de juros à taxa legal a contar da sua notificação deste pedido cível, absolvendo-o quanto ao demais peticionado”.

Dessa sentença interpôs o arguido recurso para esta Relação que, por acórdão de 30.10.2013 (fls. 283 e segs.) julgou-o procedente, anulando a decisão condenatória e determinando a elaboração de nova sentença sem o vício que se lhe apontava (insuficiência de fundamentação, por falta de exame crítico da prova).
Em cumprimento do ordenado, foi proferida nova sentença, datada de 27.01.2014 e depositada em 30.01.2014, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julgo procedente a acusação pública e, em consequência:
a) Condeno o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do Cód. Penal, na pena de 45 dias de multa à taxa diária de € 5, o que perfaz um total de € 225;

b) Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido e, em consequência, condeno o arguido no pagamento do montante de € 300, acrescido de juros à taxa legal a contar da sua notificação deste pedido cível, absolvendo-o quanto ao demais peticionado”.

Ainda inconformado, veio o arguido interpor, de novo, recurso da sentença condenatória para este Tribunal da Relação, com os fundamentos explanados na respectiva motivação, que condensou nas seguintes “conclusões” (em transcrição integral):
I- “O recorrente foi condenado pela prática de um crime de ofensas à integridade física simples pelo artigo 143.º, n.º1 do Código Penal, na pena de multa de 45 dias à razão diária de € 5,00, bem como, ao pagamento de € 300,00 ao demandante a título de danos não patrimoniais e respetivos juros à taxa legal a contar da sua notificação do pedido civil;
II- Da sentença de que se recorre não consegue, o Recorrente, depreender o raciocínio que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência em detrimento de outros, por não se encontrar devidamente fundamentada, violando o disposto no n.º2 do artigo 374.º do C.P.P estando consequentemente ferida de nulidade, nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do C.P.P.
III- Atentas as discrepâncias evidenciadas nas declarações da assistente e da única testemunha que alega ter presenciado a suposta agressão, impunha-se que o tribunal recorrido tivesse justificado como apesar de tais discrepâncias deu como provados os factos constantes da acusação;
IV- Essa falta de concretização dos elementos que o tribunal valorou, não permite ao recorrente impugnar sequer devidamente a decisão.
V- A sentença comporta três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, de forma a que fique salvaguardo o disposto no art.° 32°, n° 1, da Constituição;
VI- Da leitura da sentença recorrida não se pode chegar a outra a conclusão que não o facto de estarmos perante uma sentença insuficientemente fundamentada à luz das regras da experiência e da lógica, fundamentação tão deficiente que impede o recorrente de poder compreender a razão por que está a ser condenado, os elementos que o tribunal se baseou para tal facto.
VII- Acresce que, o Tribunal “a quo” valorou erradamente a prova produzida, acabando por violar o princípio do in dúbio pro reo.
VIII- O recorrido foi condenado única e exclusivamente com base nas declarações prestadas pela assistente e da testemunha D… que diz ter presenciado a agressão;
IX- No entanto, tais depoimentos são contraditórios entre si, a assistente diz (minutos 3.19 do seu depoimento gravado) que as agressões aconteceram no interior da viatura automóvel, tendo o arguido entrada para o efeito dentro da mesma pelo lado do pendura;
X- A testemunha D… (minutos 1.30 do seu depoimento gravado) diz que as agressões passaram no exterior da viatura atendendo a que o arguido terá metido a cabeça dentro do carro através da janela do lado do condutor tentado tirar as chaves da ignição e depois abriu a porta e puxou a assistente para fora da mesma tendo-a empurrado e agredido;
XI- Acresce que, refere a assistente que a discussão termina com o arguido a desistir e, a testemunha D… (minutos 02.36) refere que a mesma termina com a chegada de duas supostas funcionarias de uma escola que existia ao pé do local onde decorrera a suposta agressão;
XII- São versões claramente opostas e contraditórias, pelo que, ditam as regras da experiência que perante depoimentos tão divergentes no que respeita aos facto e modo como ocorreu a suposta agressão o depoimento da mencionada testemunha deveria ter sido desconsiderado ou, quanto muito valorado com as reservas que se impunham.
XIII- Assim, tendo em conta a forma como foi valorada a prova dando credibilidade absoluta a uma testemunha que claramente apresenta uma versão diversa da assistente não deveria o tribunal ter dado como provados os factos constantes da acusação, pelo que, ao faze-lo incorreu num clamoroso desvio de raciocínio na apreciação das provas e bem assim da formulação de juízos ilógicos, arbitrários, os quais afrontam de forma manifesta as regras da experiência comum, padece dos vícios referidos no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal.
XIV- Sendo certo que, em face das duas tão opostos posições entre assistente e a testemunha, única testemunha ouvida que disse ter presenciado os acontecimentos teria sempre que conduzir a uma dúvida razoável face às regras da experiência, pelo que, por não poder resultar uma certeza inabalável teria que ter o tribunal julgado favoravelmente ao arguido tal facto ao abrigo do princípio da presunção de inocência e in dúbio pró reo.
XV- O principio «in dúbio pró reo» “pretende garantir a não aplicação de qualquer pena sem prova suficiente dos elementos do facto típico e ilícito que a suporta, assim como do dolo ou da negligência do seu autor” – Cristina Líbano Monteiro “Perigosidade de ininputaveis e «in dúbio pró reo»”, Universidade de Coimbra, Coimbra Editora, 1997, p.11.
XVI- Constituindo uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, deveria, por ter sido criada no espírito do julgador essa certeza, decorrente das próprias expressões que utilizou na parca fundamentação da sentença (“parecem mais sensíveis” e “soou”), o meritíssimo juiz a quo no caso dos autos aplicar tal principio e como tal ter absolvido o recorrente.
XVII- Face à prova produzida, existe, no mínimo, uma dúvida mais do que razoável, resultante no facto de saber se a ofendida se feriu em virtude de o arguido lhe ter querido intencionalmente magoar, ou se tais ferimentos resultaram de ambos terem tentado mutuamente ficar com as chaves do carro propriedade de ambos e que em virtude de a ofendida ter abandonado o lar dois dias antes pretendia ficar com o carro;
XVIII- A convicção da Mª. Juiz “a quo” para considerar que o arguido representou como possível estar a agredir a assistente, tendo-a agarrando-a e empurrado, apertando-lhe os braços e os pulsos formou-se em simples presunções, de estarmos diante de um homem e de uma mulher, ignorando todo o quadro fatual associado ao divorcio;
XIX- Acresce que relativamente ao elemento subjetivo o mesmo também não se encontra preenchido, desde logo, por falta de prova, pese embora seja um crime doloso e que admite qualquer tipo de dolo tal não significa que prescinda do elemento emocional do dolo.
XX- Assim, da prova produzida em sede de audiência de julgamento, no entender, do recorrente nenhuma prova foi feita ou foi sequer dito que o arguido ao supostamente ter apertado os pulsos da ofendida, fê-lo consciente de que estava molestar o seu corpo ou sequer representou tal possibilidade, nem ficou provado que tal lesão foi causa única e exclusiva dos danos que alega padecer.
XXI- Assim, não se encontrando preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de ofensas à integridade física não poderia o recorrente ser condenado pelo crime de que vinha acusado;
XXII- No que respeita aos factos provados de que a ofendida “sofreu, em consequência da agressão supra descrita, dores e sentiu-se acabrunhada, humilhada, angustiada, deprimida e com medo de sair à Rua”, tal matéria deveria ter sido dada como não provada por não ter sido efetuada prova a tal respeito.
XXIII- As testemunhas limitaram-se a dizer que “devia ter sofrido” e que já eram anteriores à agressão.
XXIV- Pelo que, não é possível efetuar-se o nexo causal entre a agressão e as supostas dores, humilhação, depressão.
XXV- Perante a inexistência do nexo causal não existe qualquer responsabilidade ou obrigação do arguido de proceder ao pagamento de qualquer indemnização referente a danos não patrimoniais, devendo o demandado ser absolvido do pedido de indemnização civil em que foi condenado.
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Admitido o recurso e notificados os sujeitos processuais por ele afectados, apenas o Ministério Público na 1.ª instância apresentou resposta à respectiva motivação, rematada com o seguinte quadro conclusivo:
“I - A prova produzida em audiência de discussão e julgamento é suficientemente elucidativa da prática dos factos pelos quais o arguido vinha acusado e evidenciou o seu cometimento.
II - Com efeito, essa prova, produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo tribunal segundo os cânones legais - cfr. artigo 127º do Código de Processo Penal - suporta objectivamente os factos dados como assentes na sentença recorrida e empresta a todo o processo decisório de formação da convicção da M. Juíza, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente atendíveis.
III - Alicerçou a Mmª. Juiz a quo a sua decisão no depoimento da assistente e da testemunha D… que apresentaram depoimentos isentos e sinceros, corroborados pelos exames médicos que se encontram junto aos autos.
IV - A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vicio que inquine a sua validade substancial ou formal, devendo ser mantida nos seus precisos termos, julgando-se assim o recurso improcedente”.
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Já nesta instância, na intervenção a que alude o art.º 416.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer em que, após aturada análise da prova produzida, concluiu pela improcedência do recurso.
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Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art.º 417.º do Cód. Proc. Penal, mas não houve resposta do recorrente.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos, vieram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

II – Fundamentação
É geralmente aceite que são as conclusões pelo recorrente extraídas da motivação do recurso que, sintetizando as razões do pedido, recortam o thema decidendum (cfr. artigos 412.º, n.º 1, e 417.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, e acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj) e, portanto, delimitam o objecto do recurso, assim se fixando os limites do horizonte cognitivo do tribunal de recurso, naturalmente sem prejuízo da apreciação de questões que são de conhecimento oficioso.
O recorrente alega que na nova sentença persiste o vício da falta/insuficiência da fundamentação, “nos termos do disposto no artigo 374, n.º2 do C.P.P.”, que a tornaria nula.
Além disso, volta a impugnar a decisão sobre matéria de facto. Mas agora, não apenas mediante a invocação do erro de julgamento, com violação do in dubio pro reo, mas também pela via da alegação de que a sentença padece de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação e de erro notório na apreciação da prova, ou seja, de todos os vícios contemplados no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do Código de Processo Penal (conclusão XIII).
No entanto, é patente que aquela conclusão (sobre a verificação dos vícios decisórios) não se contém nos limites dos fundamentos do recurso invocados.
Com efeito, o recorrente invoca a existência dos vícios, mas não concretiza, não aponta, baseando-se no texto da decisão recorrida, em que é que se manifestam as invocadas insuficiência, contradição insanável e notoriamente errada apreciação da prova.
Os vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP são de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei, ou, como é afirmação recorrente, são “anomalias decisórias” ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto, apreensíveis pela simples leitura do respectivo texto, sem recurso a quaisquer elementos externos a ela, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito.
Tais vícios (ou, como também são designados, erros-vícios) não se confundem com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências.
Frequentemente, o que o recorrente pretende é contrapor a convicção que ele próprio alcançou sobre os factos (que é irrelevante) à convicção que o tribunal de 1.ª instância teve sobre os mesmos factos, livremente apreciada segundo as regras da experiência, e invoca os vícios do n.º 2 do art. 410.º do Cód. Proc. Penal, sobretudo o erro notório na apreciação da prova, mas está a confundir os vícios decisórios (que, repisa-se, são, essencialmente, vícios de raciocínio na apreciação das provas, que a simples leitura do texto da decisão evidencia) com o erro de julgamento, logicamente anterior.
O modo de valoração das provas, e o juízo resultante dessa mesma valoração, efectuado pelo ”tribunal a quo”, ao não coincidir com a perspectiva do recorrente nos termos em que este as analisa, e consequências que daí derivam, não traduz qualquer vício da decisão.
Na grande maioria dos casos, aquilo que é invocado como erro notório na apreciação da prova, ou não passa, afinal, dessa divergência ou discordância em relação à análise e valoração das provas efectuada pelo tribunal, ou, pura e simplesmente, nada se diz em concretização do alegado vício.
É exactamente isso que aqui se verifica.
Em síntese, pode dizer-se que o “erro notório na apreciação da prova” é uma deficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação do homem médio.
O que o recorrente alega é que o tribunal “incorreu num clamoroso desvio de raciocínio na apreciação das provas e bem assim da formulação de juízos ilógicos, arbitrários, os quais afrontam de forma manifesta as regras da experiência comum” porque na valoração da prova deu “credibilidade absoluta a uma testemunha que claramente apresenta uma versão diversa da assistente” (conclusão XIII).
Ora, está bem de ver que a invocada divergência (entre esses depoimentos) que, na perspectiva do recorrente, inquinaria o raciocínio na apreciação das provas efectuado pelo tribunal, não resulta do texto da decisão recorrida. Só recorrendo a um elemento exterior ao texto da sentença (os depoimentos gravados) é possível extrair uma conclusão sobre a verificação, ou não, dessa divergência. Se assim for, poderemos estar perante uma incorrecta apreciação e valoração da prova, ou seja, um erro de julgamento em matéria de facto. Coisa muito diferente do erro notório na apreciação da prova, portanto.
Aliás, a invocação do vício previsto na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º, evidencia uma outra confusão dos recorrentes, também frequente: a confusão[1] entre insuficiência ou falta de provas para se poder dar como provados os factos que suportam uma condenação e insuficiência da matéria de facto para essa mesma condenação.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada verifica-se quando faltem factos que autorizem a ilação jurídica tirada, que permitam suportar uma decisão dentro do quadro das soluções de direito plausíveis.
Como se refere no acórdão do STJ de 19.03.2009 (Cons. Souto de Moura), disponível em www.dgsi.pt/jstj, “é uma lacuna de factos, que se revela internamente, só a expensas da própria sentença, sempre no cotejo com a decisão, e não se confunde, evidentemente, com a eventual falta de provas para que se pudessem dar por provados os factos que se consideraram provados”.
Mais incisivamente, diz-se no acórdão do STJ de 27.05.2010 (Cons. Raul Borges):
“O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, verifica-se quando a matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada, porque o tribunal não esgotou os seus poderes de indagação em matéria de facto; ocorre quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. A insuficiência prevista na alínea a) determina a formação incorrecta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas. A matéria de facto é insuficiente para fundamentar a solução de direito correcta, legal e justa”.
Também este vício decisório tem de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, mas nada disso é evidenciado pelo recorrente. Quando este afirma que “tendo em conta a forma como foi valorada a prova dando credibilidade absoluta a uma testemunha que claramente apresenta uma versão diversa da assistente não deveria o tribunal ter dado como provados os factos constantes da acusação”, é ainda a elementos exteriores à sentença que recorre.
Por isso, porque se limita a invocar os vícios decisórios, sem os concretizar, a impugnação da decisão em matéria de facto assenta na alegação de que o tribunal a quo errou na apreciação e valoração que fez da prova produzida.
Identificamos, assim, como questões a decidir as seguintes:
● se a sentença ora recorrida é (tal como a anterior) nula por falta (ou insuficiência) de fundamentação;
● se o tribunal errou na apreciação e valoração que fez da prova produzida, com violação do in dubio pro reo;
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Identificadas as questões a apreciar e decidir e assim delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade em que assenta a condenação proferida:
Factos provados
“No dia 15.09.2011, pelas 12H00, na Rua …, em …, na Trofa, o arguido tentou apoderar-se à força da chave do veículo de marca “Ford”, modelo “…”, que se encontrava na posse da C….
Para o efeito, apertou com força os braços e as mãos da C… e desferiu-lhe vários empurrões.
Com esta conduta, o arguido causou à C… várias escoriações nos membros superiores (cfr. fls. 117 e relatório médico-legal de fls. 41 a 43).
Tais lesões determinaram para a sua cura um período de doença de 3 dias, sem afectação para o trabalho geral e profissional.
O arguido agiu de forma livre, representando como possível que o resultado da sua actuação molestasse o corpo e a saúde da C… e lhe produzisse as lesões verificadas, resultado com que se conformou.
Sabia o arguido que a sua conduta era proibida e criminalmente punível.
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O arguido não tem antecedentes criminais.
O arguido trabalha como operário industrial e aufere € 500 mensais; vive com uma companheira há cerca de seis meses a qual trabalha (auxiliar de educação) e aufere € 600 mensais; vivem em casa própria e pagam € 340 mensais de prestação ao banco pelo empréstimo contraído para adquirir habitação; tem dois filhos fruto do seu casamento com a ofendida – de seis e catorze anos de idade –, paga € 100 mensais de prestação de alimentos aos filhos e divide as despesas médicas e escolares com a mãe).
O arguido é visto como boa pessoa, calmo e trabalhador, no meio onde se insere.
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A ofendida sofreu, em consequência da agressão supra descrita, dores, e sentiu-se acabrunhada, humilhada, angustiada, deprimida e com medo de sair à rua”.
Factos não provados
O tribunal considerou não provado que:
a) O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar o corpo e a saúde da C… e de lhe produzir as lesões verificadas.
b) O arguido, com a sua conduta, ofendeu a honra, dignidade, consideração social e respeito devidos à ofendida;
c) A ofendida sofreu imensas e intensas dores físicas; um profundo abatimento físico, emocional, moral e de vergonha que se reflectiu no ambiente familiar e no contacto com as pessoas amigas;
d) A ofendida é pessoa educada, responsável, considerada e respeitada no meio social em que está inserida.
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O recorrente reproduz, no essencial, a argumentação já antes expendida, considerando que o tribunal a quo voltou a não cumprir a exigência legal de fundamentação porque “não (se) consegue depreender o raciocínio que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência em detrimento de outros” (conclusão II), ressaltando da sentença as “discrepâncias evidenciadas nas declarações da assistente e da única testemunha que alega ter presenciado a suposta agressão sem que se justifique como, não obstante, se deu como provados os factos da acusação” (conclusão III), pelo que “da leitura da sentença recorrida não se pode chegar a outra a conclusão que não o facto de estarmos perante uma sentença insuficientemente fundamentada à luz das regras da experiência e da lógica, fundamentação tão deficiente que impede o recorrente de poder compreender a razão por que está a ser condenado, os elementos que o tribunal se baseou para tal facto” (conclusão VI).
Escusado é repetir aqui as considerações gerais feitas no acórdão anterior sobre a exigência legal de fundamentação das decisões judiciais e, em particular, das sentenças.
No entanto, cabe aqui recordar que no acórdão de 30.10.2013, foram destacados dois pontos que faziam com que a fundamentação da sentença condenatória se revelasse, claramente, insuficiente: o completo esquecimento a que foram votadas as declarações do arguido e a falta de qualquer explicação para se ter dado como provado que aquele quis molestar fisicamente a ofendida C….
Concretizando, sobre o primeiro ponto, foram expendidas as seguintes considerações:
“Outro aspecto que ressalta da fundamentação da sentença recorrida é o completo desprezo a que o tribunal votou as declarações do arguido e nem sequer referiu que ele prestou declarações sobre os factos.
Ora, as declarações dos arguidos são um importante meio de prova, sobretudo um importante meio de defesa. Essa é, certamente, uma das razões por que a lei processual lhes atribui o direito de prestar declarações sobre o objecto do processo em qualquer momento da audiência.
Temos, repetidamente, afirmado que a circunstância de os arguidos não prestarem juramento e, portanto, não estarem obrigados a dizer a verdade não deve ser um factor de grande relevo quando o tribunal pondera sobre a credibilidade das suas declarações.
Se um arguido é coerente, se apresenta uma versão lógica e consistente dos factos, mesmo que contrária à da acusação, enfim, se faz afirmações verosímeis e corroboráveis por outros meios de prova, então o tribunal tem de valorar devidamente essas declarações, que não poderão deixar de ter um peso significativo na formação da convicção do julgador.
Note-se que não queremos com isto dizer que, neste caso, o tribunal devia ter dado crédito ao arguido, que devia acreditar na sua versão dos factos.
O juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração.
No entanto, sempre se impõe que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Tendo o arguido prestado declarações, se o tribunal considerou que não foram relevantes para a formação da sua convicção, devia tê-lo dito expressamente e justificado a sua opção”.
Sobre o segundo ponto, discorreu-se assim:
“O episódio que esteve na origem deste processo releva de um conflito entre duas pessoas que eram, então, marido e mulher e é bem sabido (assim no-lo diz a experiência) que os cônjuges desavindos, frequentemente, recorrem à queixa-crime para obter uma posição vantajosa no processo de separação/divórcio.
Ao que parece, neste caso, disputavam a posse de um bem comum: o veículo automóvel da marca “Ford”, modelo “…”.
Essa era uma razão acrescida para que o tribunal fosse especialmente cuidadoso na fundamentação da sua decisão.
O tribunal acolheu a versão da queixosa C… e, aparentemente, esta é corroborada pelas evidências médicas e pelo depoimento da testemunha D….
No entanto, como assinala o recorrente, são notórias as discrepâncias entre as declarações da queixosa e o depoimento daquela testemunha. O tribunal não lhes atribuiu importância, mas essas divergências não se resumem a aspectos secundários e de pormenor.
As próprias declarações da queixosa suscitam algumas interrogações, sobretudo se tivermos em conta o conteúdo do auto de notícia do Apenso A, em que o agente da PSP presente no posto policial do Hospital … (Serviços de Urgência) relata que a C… lhe transmitiu que o marido a agrediu com “empurrões e apertos”, após a ter perseguido na via pública.
Quanto às declarações prestadas em audiência, arguido e queixosa coincidem na afirmação de que, no interior daquela viatura automóvel, houve uma disputa entre eles pela posse da chave da viatura.
Ora, na sentença não se explica como é que o tribunal se convenceu que, nessa disputa, o arguido agiu com dolo em relação às lesões que a queixosa apresentava quando foi examinada, ou seja, em que é que se sustenta a sua convicção de que o arguido representou esse resultado e quis molestar fisicamente a C…”.
Vejamos se e como se desenvencilhou o tribunal da tarefa de expurgar da sentença o vício que afectava a sua validade, reproduzindo aqui (na íntegra) a fundamentação probatória da nova sentença e assinalando a negrito as alterações nela introduzidas:
Da prova produzida – declarações da ofendida e arguido – resulta que os factos em questão decorreram em virtude de desentendimento entre ambos, ex-cônjuges - sobre os bens do casal.
O arguido negou a prática dos factos, referindo que apenas puxou pela chave do carro.
Contudo, o tribunal não acreditou nesta versão, tendo em conta as regras da experiência de vida e a apreciação crítica do conjunto da prova produzida, designadamente, o depoimento da ofendida C…, que, no geral, se afigurou sincero, a qual descreveu a agressão perpetrada pelo arguido (em síntese, empurrando, arranhando-a) e suas consequências, corroboradas com o teor do relatório médico-legal de fls. 41-43 e do relatório de episódio de urgência de fls. 117 (dos quais resulta que a ofendida sofreu lesões decorrentes do episódio em causa), e o depoimento que se afigurou sincero e isento de D…, o qual depôs, em súmula, sobre o modo como o arguido agrediu a ofendida e as consequências dessa agressão (em síntese, que o arguido “arrastou” a ofendida para fora do carro).
Assim, o tribunal concluiu que, face à discussão em causa, o arguido usou da força física com o intuito de ficar com as chaves em causa, representando como possível (face à sua superioridade física) que a ofendida, com a sua conduta, ficasse magoada, com o que se conformou.
Teve ainda em consideração os depoimentos das testemunhas E… e F…, os quais depuseram sobre o modo como a ofendida se sentiu em consequência deste episódio.
Relativamente à ausência de antecedentes criminais do arguido o tribunal teve em conta o teor do CRC actualizado constante dos autos a fls. 186.
Por fim, teve ainda em consideração os depoimentos sinceros e isentos de G… e H…, os quais depuseram a favor do arguido.
A testemunha I…, filho do arguido, recusou-se a prestar declarações.
O tribunal não deu como provados os factos descritos nas alíneas a) a c) por não ter sido realizada prova suficiente da realidade invocada (nomeadamente sobre a intensidade das dores, tendo em consideração as mazelas físicas em causa e sobre o profundo abatimento físico, emocional, moral e de vergonha que se reflectiu no ambiente familiar e no contacto com as pessoas amigas), sendo ainda que a testemunha J… referiu que sabia da situação da ofendida por intermédio de terceiras pessoas mas que tal não influenciou o trabalho daquela.
Por fim, quanto aos factos descritos na al. d) não foi produzida qualquer prova”.
A análise crítica (das provas) é o momento crucial do processo probatório, já que, da amálgama das provas produzidas, o tribunal tem de “separar o trigo do joio”, seleccionar as informações válidas e rejeitar as outras, de acordo com os critérios da experiência comum, mas também à luz dos conhecimentos científicos e técnicos postos à sua disposição.
Esse exame corresponde, no fundo, à indicação dos motivos que levaram a que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão e, portanto, deve permitir alcançar que a opção tomada não é fruto do arbítrio do julgador, de uma sua qualquer tendenciosa inclinação, mas sim de um processo sério assente em razões lógicas e nas regras da experiência.
Pela passagem transcrita podemos verificar que, embora muito pouco, a nova sentença acrescentou alguma coisa à fundamentação probatória e está, minimamente, justificado por que se acolheu a versão da assistente em detrimento da versão do arguido e percebe-se (e aceita-se) a argumentação probatória relativamente à decisão sobre os factos subjectivos (é neste ponto que se verifica a principal alteração).
Por isso, não cremos que possa reconhecer-se razão ao recorrente quando alega que a fundamentação não permite compreender a razão da sua condenação por falta de concretização dos elementos valorados pelo tribunal e impugnar devidamente a decisão.
Compreende-se o inconformismo do recorrente, atenta a parcimónia do tribunal na explicitação das razões da sua convicção, mas afigura-se-nos que a fundamentação explanada satisfaz, minimamente, a exigência legal e garante o controlo crítico da lógica da decisão, permitindo, por um lado, aos sujeitos processuais, o recurso da mesma decisão com conhecimento da situação e ao tribunal de recurso aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam, ou não, o raciocínio e a avaliação da 1.ª instância sobre o material probatório que teve à sua disposição e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
Improcede, pois, a arguição de nulidade da sentença.

O erro de julgamento em matéria de facto – violação do in dubio pro reo?
Nesta sede, os recorrentes começam por imputar ao tribunal recorrido a violação do in dubio pro reo, porquanto “em face das duas tão opostos posições entre assistente e a testemunha, única testemunha ouvida que disse ter presenciado os acontecimentos teria sempre que conduzir a uma dúvida razoável face às regras da experiência, pelo que, por não poder resultar uma certeza inabalável teria que ter o tribunal julgado favoravelmente ao arguido tal facto ao abrigo do princípio da presunção de inocência e in dúbio pró reo(conclusão XIV), reafirmando depois que “face à prova produzida, existe, no mínimo, uma dúvida mais do que razoável, resultante no facto de saber se a ofendida se feriu em virtude de o arguido lhe ter querido intencionalmente magoar, ou se tais ferimentos resultaram de ambos terem tentado mutuamente ficar com as chaves do carro propriedade de ambos”.
Sendo este um dos fundamentos de impugnação da decisão sobre matéria de facto mais frequentemente invocados, as mais das vezes a sua invocação revela uma deficiente compreensão da sua natureza e do seu significado, justificando-se, pois, umas breves considerações iniciais.
Entre o princípio da livre apreciação da prova e o princípio basilar da presunção de inocência, de que o “in dubio pro reo” é uma das suas várias dimensões, existe uma estreita conexão.
O princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só)[2], a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova[3][4].
Como bem faz notar Cristina Líbano Monteiro (“Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1997, pág. 53), o princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, encontra no “in dubio pro reo” o seu limite normativo e “livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca de razoabilidade ou da racionalidade objectiva”[5].
O “in dubio pro reo” é uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos[6], ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdade[7].
Assim, um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa (e, portanto, para a determinação da pena).
O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. Tem de ser uma dúvida razoável, que impeça a convicção do tribunal.
Não é razoável, porque meramente subjectiva, a dúvida que brota como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório.
O terceiro ponto que se nos afigura curial aqui pôr em relevo é o seguinte: não se trata aqui de “dúvidas” que o recorrente entende que o tribunal devia ter tido, pois o “in dubio” não se aplica quando o tribunal não tem dúvidas. Ou seja, o princípio “in dúbio pro reo” não serve para controlar as dúvidas do recorrente sobre a matéria de facto, mas antes o procedimento do tribunal quando teve dúvidas sobre a matéria de facto.
Inexistindo dúvida razoável na formulação do juízo factual que conduziu à decisão condenatória, e não tendo esse juízo factual por fundamento uma inversão do ónus da prova[8] (inversão constitucionalmente proibida por força da presunção de inocência), antes resultando do exame e discussão livre das provas produzidas e examinadas em audiência, como impõe o artigo 355.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, subordinadas ao princípio do contraditório (art.º 32.º, n.º 1, da Constituição da República), fica afastado o princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência (acórdão do STJ de 27.05.2010, www.dgsi.pt/jstj).
Por último, tal como acontece com os vícios da sentença a que alude o n.º 2 do art.º 410.º do Cód. Proc. Penal, a eventual violação do princípio em causa deve resultar, claramente, do texto da decisão recorrida, ou seja, quando se puder constatar que o tribunal decidiu contra o arguido apesar de tal decisão não ter suporte probatório bastante, o que há-de decorrer, inequivocamente, da motivação da convicção do tribunal explanada naquele texto[9].
Ora, da leitura da fundamentação da sentença ressalta que o tribunal não teve dúvidas quanto à decisão sobre a matéria de facto e, portanto, não pode dizer-se que, na dúvida, decidiu contra reum.
Se, no termo do processo probatório, ao juiz se apresentam várias possibilidades sobre a conformação factual, sem poder fixar-se apenas numa delas, encontra-se ainda na incerteza, impondo-se-lhe então que decida “pro reo”.
Se do texto da decisão resultar que, nessa incerteza, perante uma dúvida séria e insanável, o tribunal se decidiu pela hipótese acusatória, então sim, terá violado a referida regra probatória.
Não é isso que resulta da sentença recorrida. Bem pelo contrário, foi sólida a convicção do tribunal, não o assaltou a dúvida quanto aos factos considerados provados, pelo que não pode falar-se em violação do “in dubio pro reo”.
Mas, embora acuse o tribunal de violar essa regra, bem vistas as coisas, ao afirmar que a contradição que, na sua perspectiva, se evidencia entre as declarações da assistente e o depoimento da única testemunha que presenciou os factos “teria sempre que conduzir a uma dúvida razoável face às regras da experiência, pelo que, por não poder resultar uma certeza inabalável teria que ter o tribunal julgado favoravelmente ao arguido”, o que o recorrente imputa ao juiz não é a violação dessa regra probatória, mas um erro de julgamento em matéria de facto, remetendo-nos para o processo de formação da convicção e para o erro na apreciação e valoração da prova.
O que pode, então, discutir-se em sede recursiva é se há algo a censurar no processo lógico e racional que subjaz à formação dessa convicção (“um procedimento cognoscitivo complexo que se desenvolve segundo directivas jurídicas e racionais e acaba num juízo racionalmente justificado”, nas palavras de Michele Taruffo, “La Prueba de los Hechos”, Ed. Trotta, Madrid, 2005, 69) e se pode considerar-se suficiente a fundamentação, ou se o tribunal errou na apreciação e valoração da prova produzida na audiência e se o resultado do processo probatório devia ser, pelo menos, uma dúvida insanável. Ou, como se refere no acórdão do STJ, de 14.03.2007, disponível em www.dgsi.pt (Cons. Santos Cabral), pode-se analisar um depoimento, um esclarecimento de um perito, as declarações de um arguido ou de um ofendido e outros meios de prova e, a partir daí, controlar o raciocínio indutivo efectuado, pois já não é essencial a imediação e do que se trata é de “uma questão de verosimilhança ou plausibilidade das conclusões contidas na sentença”.
*
Já concluímos que tribunal a quo motivou, ainda que parcimoniosamente, a sua decisão.
Ora, perante uma sentença fundamentada, para que possa (deva) ser revogada ou alterada, não basta apontar o error in judicando, “impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou o conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, à luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão” (acórdão da Relação de Coimbra, de 30.03.2010, disponível em www.dgsi.pt/jtrc).
Importa sublinhar que não basta que as provas, simplesmente, permitam ou até sugiram conclusão diversa; exige-se que imponham decisão diversa daquela que o tribunal proferiu.
Quanto se invoca o erro de julgamento em matéria de facto, os n.0s 3 e 4 do artigo 412.º do Cód. Proc. Penal estabelecem directrizes muito precisas e exigentes para o recorrente.
Assim, se o recorrente pretende impugnar a decisão sobre matéria de facto com fundamento em erro de julgamento, tem de especificar (cfr. n.º 3 do citado art.º 412.º):
● os concretos pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados pelo tribunal recorrido (obrigação que “só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida”[10]);
● as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida (ónus que só fica satisfeito “com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida”[11]).
Além disso, o recorrente tem de expor a(s) razão(ões) por que, na sua perspectiva, essas provas impõem decisão diversa da recorrida, constituindo essa explicitação, nas palavras de Paulo Pinto de Albuquerque (Loc. Cit.), “o cerne do dever de especificação”, com o que se visa impor-lhe “que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado”.
É com base na citada norma que se tem defendido, sem discrepâncias, que o recurso em matéria de facto não implica uma reapreciação, pelo tribunal de recurso, da globalidade dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida.
Duplo grau de jurisdição em matéria de facto não significa direito a novo (a segundo) julgamento no tribunal de recurso.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para tanto, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre este ponto, cfr. os Acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, disponíveis em www.dgsi.pt).
O recorrente não cumpriu esses ónus de especificação, pois não indica os concretos pontos de facto que considera terem sido erradamente julgados pelo tribunal nem as provas que, na sua perspectiva, impõem decisão diversa da recorrida.
A impugnação da decisão de facto assenta no que o recorrente considera ser uma contradição ou versões opostas dos factos protagonizadas pela assistente e pela testemunha D….
No acórdão anterior afirmámos que havia notórias discrepâncias entre esses dois depoimentos e, uma vez que foi neles que o tribunal se baseou para formar a sua convicção, entendeu-se que se impunha que o tribunal fundamentasse devidamente o seu juízo probatório.
Mas divergências entre depoimentos não são contradições e, como é afirmação corrente, a função do julgador não é encontrar “o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, nem, tão pouco, ele tem de aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe antes a missão de dilucidar, em cada um deles, o que merece crédito” (cfr. entre outros, o acórdão desta Relação, de 15.10.2003; Des. Fernando Monterroso).
A considerar-se que, no caso, houve duas versões antagónicas dos acontecimentos, elas foram, de um lado, a do arguido - que negou os factos que lhe são imputados e atribuiu à queixosa a responsabilidade pela situação que protagonizaram – e, do outro, a da assistente C…, que, peremptoriamente, os confirmou.
Quando assim acontece, também é corrente a afirmação de que, havendo duas versões contraditórias entre si sobre o(s) mesmo(s) facto(s), é inevitável ou imperioso concluir por um non liquet e, consequentemente, por força do in dubio pro reo, pela absolvição do arguido.
Porém, não é - nem tem que ser - necessariamente assim: na maioria dos casos em que há duas versões antagónicas o resultado do processo probatório não é uma dúvida insuperável que imponha a absolvição do arguido. O que se impõe é que o tribunal explicite e motive (com especial cuidado) a convicção formada[12] para que não possa ser acusado de apreciação arbitrária e subjectiva da prova.
Aliás, em bom rigor, mesmo as versões do arguido e da assistente não são inteiramente opostas entre si, pois coincidem num ponto importante: no interior da viatura automóvel “Ford …”, bem comum do (ex)casal, houve uma disputa (física) entre eles pela posse da respectiva chave de ignição.
O pomo da discórdia era, pois, o veículo automóvel que cada um se achava no direito de utilizar em detrimento do outro e as versões de cada um deles sobre o que aconteceu pelas 12H:00 do dia 15.09.2011, em …, Trofa, contradizem-se no seguinte ponto: enquanto o arguido declarou que era ele quem detinha a viatura e já tinha posto o respectivo motor a trabalhar quando surgiu a assistente C…, entrando no carro e tentando tirar-lhe a chave, esta afirma precisamente o contrário, ou seja, que era ela quem estava sentada no lugar do condutor (estando os dois filhos, também, no interior da viatura) quando surgiu o arguido que tentou “arrancar-lhe” a chave que estava na ignição e foi nessa tentativa que começou a agredi-la, esgadanhando-a e empurrando-a.
Determinar qual destas versões corresponde ao que, realmente, ocorreu é fundamental, porquanto, se da prova produzida resultar que foi a assistente quem se dirigiu ao arguido para lhe tirar a chave da viatura e da disputa que se seguiu saiu ferida, só tem de se queixar de si só própria: terá sido ela quem provocou a situação e, portanto, sibi imputet. Se aconteceu, precisamente, o contrário, isto é, se a versão da assistente é que corresponde à verdade, então a conduta do arguido é penalmente relevante. A situação não passa de uma bagatela, mas tem relevo penal.
Como é bem sabido, o nosso ordenamento jurídico acolhe o princípio da livre apreciação da prova, que pretende exprimir a ideia de que não existe prova tarifada (portanto, não há regras de valoração probatória que vinculem o julgador, como acontecia no sistema da prova legal), pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com a livre convicção do julgador (também designada por íntima convicção, quando encarada numa perspectiva subjectivista).
Por isso que o juiz é livre de relevar, ou não, elementos de prova que sejam submetidos à sua apreciação e valoração: pode dar crédito às declarações do arguido ou do ofendido/lesado em detrimento dos depoimentos (mesmo que em sentido contrário) de uma ou várias testemunhas; pode mesmo absolver um arguido que confessa, integralmente, os factos que consubstanciam o crime de que é acusado (v.g. por suspeitar da veracidade ou do carácter livre da confissão); pode desvalorizar os depoimentos de várias testemunhas e considerar decisivo na formação da sua convicção o depoimento de uma só[14]; não está obrigado a aceitar ou a rejeitar, acriticamente e em bloco, as declarações do arguido, do assistente ou do demandante civil ou os depoimentos de testemunhas, podendo respigar desses meios de prova aquilo que lhe pareça credível.
O que sempre se impõe é que explique e fundamente a sua decisão, pois só assim é possível saber se fez a apreciação da prova segundo as regras do entendimento correcto e normal, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
Mas a liberdade[15] do convencimento que conforma o modelo da livre apreciação não significa ausência de obstáculos ou limites na amplitude da actividade de investigação e valoração do juiz, que não é inteiramente livre de valorar, adquirir, admitir e escolher a prova.
Foi a percepção dos desvirtuamentos sofridos pelo princípio da livre apreciação da prova que levou a uma refundamentação do critério para evitar o subjectivismo (que acaba por ser a máscara do arbítrio).
A liberdade conferida ao julgador na apreciação da prova não visa criar um poder arbitrário e incontrolável nem a valoração da prova é uma operação emocional ou intuitiva[16].
Como salienta o Professor G. Marques da Silva (“Curso de Processo Penal”, II, Verbo, 5.ª edição revista e actualizada, 185), do que se trada é de uma “liberdade para a objectividade” (não a objectividade científica, sistemático-conceitual e abstracto-generalizante, mas antes uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção[17]), o que é dizer que, “por um lado, que a exigência de objectividade é ela própria um princípio de direito, ainda no domínio da convicção probatória, e implica, por outro lado, que essa convicção só será válida se for fundamentada, já que de outro modo não poderá ser objectiva”.
A convicção do julgador é sempre e necessariamente uma convicção pessoal, mas também “uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impor-se aos outros” (J. Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 203).
Um enunciado fáctico não pode ser considerado verdadeiro porque o julgador está “intimamente convencido” da sua correspondência à realidade, nem porque não tem dúvidas razoáveis de que as coisas se passaram da forma descrita na hipótese acusatória.
Tal como uma qualquer teoria científica não é aceite pela comunidade científica (e pela comunidade em geral) por o investigador estar intimamente convencido da sua correcção, ou por estar certo de que ela explica um determinado fenómeno correctamente, mas sim porque pode ser corroborada por determinadas provas e nada aponta no sentido de que é uma falácia, assim também o julgador não pode quedar-se pela convicção meramente subjectiva, tem de expor as razões susceptíveis de convencer que o enunciado fáctico corresponde à realidade, ou a partir de que momento é que as dúvidas que persistem não têm relevância.
Por isso insistimos neste ponto: é absolutamente fundamental que o juiz explique e fundamente a sua decisão e deve preocupar-se em ser claro, racional e objectivo na motivação da sua decisão (e não escudar-se em meras impressões ou conjecturas de difícil ou impossível objectivação), de modo que se perceba o raciocínio seguido e este possa ser objecto de controlo.
Um dos critérios de fiscalização ou verificação dos meios de prova tem a ver com as características da declaração ou atendibilidade intrínseca, em que a sindicância se exerce sobre o conteúdo narrado, procurando aferir-se da sua credibilidade.
Factores como a espontaneidade e tempestividade da declaração, a sua constância e coerência interna, a sua completude e verosimilhança decorrente da ausência de contraste com outros elementos probatórios constituirão importantes elementos de avaliação da credibilidade dessa declaração.
O tribunal expressou um juízo negativo sobre a credibilidade das declarações que o arguido prestou na audiência, justificando-o:
- com as regras da experiência de vida e
- com a apreciação crítica “do conjunto da prova produzida”, designadamente o depoimento da assistente que descreveu a agressão e suas consequências (corroboradas pelo relatório da perícia médico-legal e pelo relatório do episódio de urgência do Hospital …), bem como o depoimento (sincero e isento) de D….
Não concretizou que “regras de experiência de vida” foram consideradas na formulação desse juízo.
O que podemos afirmar é que, estando os filhos do dissolvido casal dentro da viatura (facto que cremos ser pacífico) e tendo eles ficado a viver com a mãe quando os pais se separaram, é lógico inferir que se deslocaram para …, onde os factos ocorreram, com a progenitora e no disputado veículo automóvel “Ford …”, por ela conduzido.
Por isso, a lógica e a razão levam-nos a concluir que a narrativa da assistente é bem mais verosímil do que a do arguido, ou seja, era a C… quem estava na posse do veículo automóvel e o arguido, querendo desapossá-la dele, dirigiu-se-lhe e tentou tirar-lhe a chave da ignição, assim despoletando a tal disputa física.
Compreende-se e aceita-se, então, que o tribunal a quo tenha desvalorizado as declarações do arguido.
Em determinados tipos de crimes, as evidências médicas e as conclusões das perícias, designadamente das perícias médico-legais, têm uma importância crescente, designadamente pela segurança que proporciona a prova científica e pericial.
Quando a vítima de um crime de ofensa à integridade física faz um relato verosímil da agressão e existem lesões compatíveis medicamente comprovadas (seja através da ficha clínica do hospital, seja através de exame ou perícia médico-legal), quase sempre isso é suficiente para se adquirir a certeza bastante de que a agressão ocorreu.
Neste caso, as evidências médicas corroboram as declarações da assistente, mas não são incompatíveis com a versão do arguido, pelo que não pode reconhecer-se-lhes o peso que, normalmente, têm na formação da convicção do tribunal nos crimes de ofensas à integridade física.
Quando se aprecia a prova testemunhal e se pondera sobre o peso que pode ter na formação da convicção do julgador o depoimento de uma testemunha, é importante e necessário conhecer com precisão a posição dessa testemunha e as suas relações de interesse, de amizade ou de parentesco com os sujeitos processuais para descobrir qual é a possível vantagem que procura obter com um depoimento mentiroso.
Se pode dizer-se que uma testemunha narra a verdade quando não tem interesse em mentir, então a testemunha D… foi verdadeira porque não tinha qualquer interesse em faltar à verdade.
Com efeito, não tinha qualquer relação nem sequer conhecia, quer o arguido, quer a assistente. Aliás, o arguido/recorrente nem questiona a idoneidade desta testemunha e o que faz é tentar tirar partido das discrepâncias entre o seu depoimento e as declarações da assistente. No entanto, essas divergências são compreensíveis se tivermos em conta que, como assinala o Ex.mo PGA no seu parecer, a testemunha não terá presenciado o início da contenda. Por outro lado, o que nos revelam as regras da experiência é que, numa situação destas, o arguido não iria desistir, à primeira tentativa, do seu propósito de desapossar a assistente da viatura em disputa. Daí que se mostre perfeitamente verosímil que, estando ele já fora da viatura, junto da porta do condutor, tenha tentado, novamente, tirar a chave da ignição e que a assistente se tenha oposto e que, nessa nova investida, o arguido tenha puxado a assistente para fora do veículo. Foi isso que a testemunha presenciou e não se descortina contradição em relação ao que foi narrado pela assistente.
Para o recorrente, “nenhuma prova foi feita ou foi sequer dito que o arguido ao supostamente ter apertado os pulsos da ofendida, fê-lo consciente de que estava molestar o seu corpo ou sequer representou tal possibilidade” (conclusão XX), pelo que não estaria verificado o elemento subjectivo do tipo legal de ofensas à integridade física.
Prova directa, seguramente, não há e muito dificilmente se obteria tal prova. Só com uma confissão do arguido.
Mas nem só quando o arguido faz uma confissão integral e sem reservas dos factos ou quando ocorrem situações de flagrante delito ou em que há testemunhas presenciais ou outras fontes de prova directa pode haver condenações.
São muito variadas e frequentes as situações em que não há prova directa e se apenas esta servisse para a condenação, estar-se-ia a abrir caminho à criação de amplos espaços de impunidade.
Por isso que a chamada prova indirecta tem um papel fundamental e já ninguém lhe nega virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência.
Uma vez que em processo penal são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (artigo 125.º do Código de Processo Penal), delas (das provas admissíveis) não pode ser excluída a prova por presunções (prevista, como noção geral, no artigo 349.º do Código Civil, mas prestável e válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal) em que se parte de um facto conhecido (o facto base[18] ou facto indiciante, que funciona como indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum) recorrendo a um juízo de normalidade[19] (de probabilidade) alicerçado em regras da experiência comum que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro.
Com efeito, está consolidado o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indirecta[20], também chamada prova indiciária, por presunções ou circunstancial.
Neste âmbito, importam as presunções simples, naturais ou hominis, simples meios de convicção, que se encontram na base de qualquer juízo probatório. São meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, que cedem por simples contraprova, ou seja, prova que origine a dúvida sobre a sua exactidão no caso concreto.
O sistema probatório alicerça-se em grande parte neste tipo de raciocínio (indutivo) e, para certos factos, como sejam os relativos aos elementos subjectivos do tipo (doloso ou negligente), não havendo confissão, a sua comprovação não poderá fazer-se senão por meio de prova indirecta[21].
Ora, tendo o arguido/recorrente decidido desapossar a assistente da chave da viatura, contava, certamente, que ela se opusesse ao seu intento e que daí resultasse uma disputa física.
Estando assente que o arguido, para alcançar o seu objectivo, apertou, com força, os membros superiores da assistente (e, sendo tempo de verão, é provável que ela não estivesse a usar qualquer peça de vestuário que lhe cobrisse os braços), é lógico e legítimo inferir que o recorrente, pelo menos, representou a possibilidade de causar lesões físicas à C… e conformou-se com essa eventualidade.
Por isso que, também, quanto a este ponto, não merece reparo a decisão recorrida.
Pode o recorrente discordar da apreciação efectuada e não surpreende que não o convençam as razões da convicção do tribunal, mas o que importa sublinhar é que o tribunal “a quo” elegeu como meio de prova credível, fundamental na formação da sua convicção, as declarações da ofendida C…, declarações que foram corroboradas por outros meios de prova, e nada há a censurar na opção efectuada, já que a fundamentação da sentença recorrida enuncia, de forma minimamente satisfatória, os elementos que constituem o núcleo essencial da sua imposição e aceitabilidade face aos seus destinatários directos (os sujeitos processuais) e perante a comunidade, permitindo alcançar que ela não é fruto do arbítrio do julgador, de uma sua qualquer tendenciosa inclinação, mas sim de um processo sério assente em juízos de racionalidade, de lógica e de experiência sobre o material probatório de que o tribunal pôde dispor, cumprindo, pois, a sua missão.
*
Não havendo fundamento para alterar a decisão em matéria de facto, também não há razão alguma para modificar o enquadramento jurídico-penal dos factos provados, que se mostra correctamente efectuado.
*
O recorrente contesta, ainda, a obrigação “de proceder ao pagamento de qualquer indemnização referente a danos não patrimoniais” e por isso pugna pela sua absolvição do pedido de indemnização civil (conclusão XXV).
Importa referir que o valor do pedido de indemnização formulado pela assistente é de € 1.000,00 e o arguido/demandado foi condenado a pagar a quantia de € 300,00.
Ora, em matéria de recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil, o artigo 400.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal estabelece regras idênticas ao do processo civil.
Assim, o recurso só é admissível se:
a) o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e
b) a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Tendo em consideração que a alçada do tribunal de comarca é de € 5 000,00 (artigo 24.º da LOTJ, na redacção do Dec. Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e 31.º da Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto), não se verifica, no caso, nenhum dos apontados requisitos.
Nesta parte, é inadmissível o recurso.

III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os juízes desta 1.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:
a) rejeitar, por legalmente inadmissível, o recurso interposto da sentença na parte relativa ao pedido de indemnização civil;
b) negar provimento ao recurso da sentença em matéria penal e confirmar, integralmente, a decisão recorrida.
O recorrente pagará taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC´s (artigos 513.º, n.º 1, e 514.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais).
(Processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas).

Porto, 10-09-2014
Neto de Moura
Maria Luísa Arantes
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[1] “Dificuldade de percepção em alguns interlocutores judiciários” sobre o alcance da expressão legal, assim se lhe refere o Sr. Conselheiro Pereira Madeira, comentário ao artigo 410.º in “Código de Processo Penal Comentado”, Almedina, 2014, pág. 1357
[2] Como assinala o Professor José de Faria Costa (Anotação ao acórdão do TC n.º 179/2012, publicada na Revista de Legislação e Jurisprudência n.º 3973, 249 e segs.), o conteúdo axiológico-normativo do princípio da presunção de inocência “não se exaure no âmbito estritamente processual”, tendo um tríplice sentido: “enquanto modo de tratamento a dispensar ao arguido no decurso do processo (medidas de coacção), enquanto enquadramento dos meios de prova (nemo tenetur se ipsum accusare) e, por fim, enquanto regra probatória (ligada à máxima in dubio pro reo)”.
[3] Nas palavras de Gomes Canotilho e Vital Moreira (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519), “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
[4] Sobre as repercussões extra-processuais do princípio, cfr. o estudo de José Souto de Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, Rev. do Ministério Público n.º 42, 31 e segs. [5] Assim, também, o acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt), onde se pode ler: “o princípio in dubio pro reo representa a outra face do princípio da livre apreciação da prova; configura um limite normativo a este princípio ante uma dúvida positiva e racional que impeça um juízo de certeza condenatória – o qual não exclui a possibilidade de as coisas se passarem num dado sentido, mas não afasta a consistente hipótese do contrário –, ou seja, se a prova é insuficiente ou contraditória vale o princípio in dubio pro reo.
[6] Importa, no entanto, aqui fazer notar que esta não é a única perspectiva do princípio e do seu âmbito de aplicação. Por exemplo, o entendimento do Professor Figueiredo Dias (“Direito Processual Penal”, vol. I, 217) é o de que o in dubio pro reo se assume como um princípio geral de processo penal, não circunscrito a matéria de facto, antes podendo a sua violação conformar também uma verdadeira questão de direito que cabe dentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. É esta, também, a posição defendida por Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, 2.ª edição actualizada, 1102) que considera não constituir o vício de erro notório na apreciação da prova a violação do princípio in dubio pro reo. Porém, o STJ tem rejeitado a possibilidade de invocar o princípio em sede de interpretação ou de subsunção legal dos factos.
Sendo entendido na perspectiva de que respeita a matéria de prova, a sua eventual violação será insindicável pelo STJ, a não ser que o vício decorra, de forma evidente, da decisão recorrida (nomeadamente da fundamentação da decisão de facto), caso em que, de acordo com a jurisprudência dominante, haverá erro notório na apreciação da prova.
[7] Mas, se não tem qualquer dever de dizer a verdade, ao contrário do que recorrentemente se propala, também não tem o direito de mentir. Se o arguido não quer contar (toda ou parte da) a verdade, deve remeter-se ao silêncio (assim, o acórdão do TC n.º 172/92, acessível em www.tribunalconstitucional.pt).
[8] Embora, em bom rigor, não se possa falar em ónus da prova em processo penal.
[9] Neste sentido, o acórdão do STJ de 29.05.2008 (Relator: Cons. Rodrigues da Costa), www.dgsi.pt/jstj .
[10] Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição actualizada, 1131.
[11] Idem
[12] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 15.10.2003 e do TRG, de 31.05.2004, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
[13] Uma das poucas excepções é a prova pericial.
[14] Como se fez notar no acórdão do STJ de 11.07.2007 (www.dgsi.pt/jstj), a prova produzida avalia-se pela sua qualidade, pelo seu peso na formação da convicção, e não pelo seu número.
[15] Nas palavras do Prof. Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, I vol, 199 e ss.), “uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada “verdade material”.
[16] A prova não pode nunca basear-se numa intuição da verdade de uma proposição.
[17] A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, Coimbra, 1968, pág.52
[18] Que pode ser um único, mas, desejavelmente, devem ser factos plurais e estar inter-relacionados, de modo a que se reforcem mutuamente.
[19] O juízo de inferência, que deve ser razoável e fundamentado.
[20] Cfr., entre muitos outros, os acórdãos do TRP, de 28.01.2009, do TRC, de 30.03.2010 e do STJ, de 11.07.2007 (todos disponíveis em www.dgsi.pt).
[21] Como ensinava o Professor Cavaleiro Ferreira (“Curso de Processo Penal”, II, 1981, p. 292) «existem elementos do crime que, no caso da falta de confissão, só são susceptíveis de prova indirecta como são todos os elementos de estrutura psicológica».