Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3393/13.6TBSTS-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
ALEGAÇÕES DE RECURSO
DOCUMENTOS
Nº do Documento: RP201409183393/13.6TBSTS-A.P1
Data do Acordão: 09/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO.
Decisão: ALTERADA.
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO.
Área Temática: .
Sumário: I- Não é admissível a junção com as alegações de recurso de documentos destinados a suprir a insuficiência que o tribunal recorrido atribuiu aos meios de prova produzidos para demonstração de um facto que as partes sabiam já que teria de ser decidido pelo tribunal com base nos meios de prova disponíveis e seria relevante para a decisão.
II- A insolvência deve ser decretada desde que o credor demonstre a verificação de algum dos factos-índices da insolvência previstos no artigo 20.º do CIRE e o devedor não tenha demonstrado que, apesar delas, não se encontra de facto numa situação de insolvência.
III- Nessa circunstância, não obsta à declaração de insolvência o facto de o credor não ter previamente instaurado qualquer acção executiva para cobrança do seu crédito ou não ter aceite a proposta do devedor para fixar um plano extrajudicial de pagamento da dívida.
IV- Para estar insolvente não é necessário que o devedor esteja impossibilitado de cumprir a totalidade das suas obrigações vencidas, basta que essa impossibilidade abranja a generalidade das obrigações, podendo tratar-se de uma única dívida quando esta pela sua natureza, montante e data do início do incumprimento for suficiente para demonstrar a total desproporção entre os meios do devedor e os que ele necessitaria para cumprir normalmente as suas obrigações.
Reclamações:
Decisão Texto Integral:
Recurso de Apelação
Processo n.º 3393/13.6TBSTS-A.P1 [Tribunal Judicial da Comarca de Santo Tirso]


Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:


I.
O BANCO B….., S.A., Sociedade Aberta, com sede na …., no Porto, com o número único de matrícula e de identificação fiscal 501525882, requereu a declaração judicial de insolvência de C….., solteira, residente em …., Apartado …, Santo Tirso, portadora do número de identificação fiscal 10330…. .
Para o efeito, alegou que é credor da requerida pela quantia global de €278.874,60 e que a requerida, por falta de meios próprios, de crédito e de património bastantes, não cumpre, nem tem possibilidades de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas, encontrando-se em situação de insolvência, tendo, aliás, suspendido de forma generalizada o pagamento das suas obrigações.
A requerida ofereceu contestação, mas após julgamento foi proferida sentença declarando a sua insolvência.
Do assim decidido, a requerida interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
I-[…]. II-[…]. III- […]. IV- […]. V – A recorrente efetivamente assume que estava em incumprimento com o B…., e ao ter conhecimento do incumprimento com este credor tudo fez para tentar retomar os pagamentos.
VI – Mas incompreensivelmente a aqui credora nunca aceitou qualquer tipo de proposta.
VII – E inexplicavelmente, sem lançar mão de qualquer outro meio processual indicado para este efeito, e quando ainda decorriam as negociações, partiu para o incompreensível pedido de insolvência.
VIII – Ora, a recorrente até esta data cumpre com todas as suas obrigações, nomeadamente água, luz, condomínio, imposto municipal sobre imóveis, entre outros.
IX – Não consta como executada em qualquer processo de natureza executiva.
X – O único bem de que é titular e que foi dado como garantia à credora é um apartamento no centro da cidade de Santo Tirso, numa zona conhecida pelo elevado custo dos seus imóveis, sendo a fração aqui um causa um T3+1 situado num condomínio de luxo.
XI – Mas pese tudo o aduzido, e toda a prova produzida, entendeu o Tribunal “a quo” que resultaram como provados factos que não correspondem à verdade, assim como andou mal na valoração desses mesmos factos.
XII – Sucede, antes de mais, que foi dado como provado em 12º da douta sentença que o valor tributável atribuído à fração propriedade da requerente é de €48.095,29, o que é falso e não corresponde à verdade.
XIII – Sendo um facto essencial para o caso em apreço, nomeadamente para a apreciação da solvência da recorrente.
XIV – Ora, conforme resulta das certidões da matriz predial urbana que aqui se juntam, o valor global tributável é de €162.593,36 (cento e sessenta e dois mil quinhentos e noventa e três euros e trinta e seis cêntimos), e nunca os €48.095,29 dados como assentes em 12º;
XV – Pelo que andou mal o Tribunal “a quo” ao dar como provado um facto que não corresponde à verdade e é essencial para a justa apreciação da solvência da recorrente.
XVI – Devendo deste modo o ponto 12º da matéria de facto provada ser corrigido em conformidade.
XVII – Posto isto, sucede ainda que além dos factos dados como provados, resultou de forma evidente das declarações prestadas por todas as testemunhas ouvidas, que a recorrente sempre diligenciou por entrar em acordo e pagar um elevado montante ao banco, mas este sempre recusou.
XVIII – Tendo aliás a recorrente, aquando da apresentação da contestação ao pedido de insolvência, apresentado subsidiariamente um plano de pagamento que pressupunha a entrega imediata de € 30.000.00 e o remanescente seria pago em prestações mensais e sucessivas de €800,00.
XIX – Ora, salvo melhor opinião, os montantes propostos para pagamento imediato apresentados pela recorrente, e a não aceitação dos mesmos pela credora requerente, tornam, como já atrás se mencionou, o caso em apreço “sui generis”.
XX – Pois ainda que por mera hipótese de raciocínio, posteriormente a recorrente voltasse a incumprir, poderiam voltar a lançar mão dos meios próprios com vista a serem ressarcidos do seu crédito, e sempre garantiriam de imediato um pagamento de um montante substancial dessa divida.
XXI – Por conseguinte, no caso sub judice, pesem não existir mais credores ou acordos de pagamento, a recorrente pretendeu liquidar montantes consideráveis.
XXII – E logrou demonstrar não ter mais qualquer credor, assim como o pagamento pontual de todas as suas obrigações.
XXIII – Não existindo assim impossibilidade de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, nem se mostrando preenchido o previsto na alínea b) do art. 20º do CIRE, pois contrariamente, impõe-se concluir que a requerida demonstrou capacidade de cumprir a obrigação com o credor requerente ao apresentar uma proposta de elevado montante, embora não a totalidade, mas este não aceitou qualquer tipo de negociação.
XXIV – O que, além do mais, não só é indicador que não há uma suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, pois não existem outras obrigações vencidas, e a que existe poderia estar a ser cumprida, o que afasta os factos-índice previstos nas alíneas a) e b) do referido artigo 20º do CIRE.
XXV – Como aliás vem sendo a posição colhida pela jurisprudência, e aqui é demonstrado.
XXVI – A sentença ora recorrida, ao declarar a recorrente insolvente, violou de forma grosseira os artigos nº 3 e nº 20º do CIRE.
XXVII – Assim como dá por assentes factos contrários à verdade, e resultam dos documentos ora juntos.
XXVIII – Resultando de toda a prova documental e testemunhal existente nos autos que a recorrente não está insolvente, pois nada resultou que fosse bastante para provar que existe qualquer tipo de suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas, ou que o incumprimento de uma ou mais obrigações que pelo seu montante ou pelas circunstancias do incumprimento, revele a impossibilidade da recorrente satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
XXIX – Assim, perante a insuficiência de elementos claros, objetivos e não contraditórios, o Tribunal a quo ao declarar a recorrente C….. insolvente, violou, por erro de interpretação e aplicação, e valoração de factos erradamente dados como provados, além do mais o disposto no artº. 20º do CIRE, devendo por isso a douta sentença ser revogada, tendo em conta as conclusões anteriores.
Com as suas alegações, a recorrente juntou três documentos compostos por cadernetas prediais.
O recorrido respondeu a estas alegações, defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II.
As conclusões das alegações de recurso colocam este Tribunal perante o dever de resolver as seguintes questões:
i) Se com as suas alegações a recorrente pode juntar os documentos que apresentou.
ii) Se a matéria de facto deve ser alterada.
iii) Se foi demonstrado algum dos factos-índices da insolvência.
iv) Se a requerida demonstrou que se encontra em condições de poder satisfazer as suas obrigações.

III.
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos:
1º- A requerida C…., portadora do Bilhete de Identidade n.º 2859468 e do Número de Identificação Fiscal 10330…., é solteira.
2º- Na data de 2 de Agosto de 2000, a sociedade “D…., S.A.”, incorporado por fusão no requerente, a requerida e E….. outorgaram a escritura pública denominada “Compra e Venda e Mútuo com Hipoteca”, com o teor de fls. 15 a 19, e o documento complementar com o teor de fls. 20 a 26, que se tem aqui por integralmente reproduzido.
3º- Na data de 6 de Julho de 2005, o requerente, a requerida e E….. outorgaram a escritura pública denominada “Mútuo com Hipoteca”, com o teor de fls. 28 a 31, e o documento complementar com o teor de fls. 32 a 37, que se tem aqui por integralmente reproduzido.
4º- Encontram-se constituídas a favor do requerente duas hipotecas sobre as fracções X, BC e DD do imóvel sito à freguesia e concelho de Santo Tirso, com a descrição 216, registadas a 10 de Julho de 2000 e 20 de Julho de 2005, para garantia do bom e pontual pagamento das quantias mutuadas e, bem assim, dos respectivos juros, acrescidos de uma sobretaxa de 4%, ao ano, em caso de mora, e despesas judiciais e extrajudiciais até aos montantes máximos de €138.247,62 e de €162.400,00.
5º- A requerida e E….. deixaram de pagar as prestações que se venceram a 5 de Março e 25 de Fevereiro de 2009 e as que se venceram subsequentemente.
6º- Em 18 de Dezembro de 2007, o requerente e a sociedade “F…. & Companhia, Lda.” (entretanto declarada insolvente no âmbito do processo n.º 5761/07.3TBSTS, do 4.º Juízo Cível desta Comarca) subscreveram o escrito denominado “Contrato de Reestruturação de dívida”, com o teor constante de fls. 44 a 47.
7º- A requerida subscreveu o escrito referido em 2) na qualidade de avalista.
8º- A requerida subscreveu a livrança com o teor constante de fls. 48 e 49, na qualidade de avalista da subscritora “F…. & Companhia, Lda.”
9º- A sociedade “F…. & Companhia, Lda.” deixou de pagar a prestação que se venceu em 18 de Dezembro 2008 e as que se venceram subsequentemente.
10º- O requerente tem um crédito sobre a requerida no montante de €278.874,60.
11º- A requerida não tem qualquer outra dívida para além da dívida ao requerente referida em 10º.
12º-Encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, com inscrição de aquisição a favor da requerida, o imóvel referido em 4º, com o valor tributável atribuído de € 48.095, 29.

IV.
A] da junção de documentos:
Com as suas alegações de recurso, a recorrente apresentou três documentos, constituídos por cadernetas prediais urbanas dos prédios que compõem o seu património.
Para justificar a sua junção a recorrente não invocou qualquer preceito legal habilitador e limitou-se a referir que a junção só agora é feita “por só agora se verificar que foi dado como provado um facto que agora se supõe ter tido por base o doc. 4 junto com a PI, o qual não teve em conta as atualizações dos valores tributáveis, e deste modo não correspondente à verdade”.
Nos termos do disposto no artigo 651.º do novo Código de Processo Civil, as partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais previstas no artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
No tocante ao primeiro segmento da previsão é evidente que a situação não se coloca uma vez que, como vimos, não foi sequer alegada qualquer impossibilidade[1] de junção dos documentos no momento aprazado, quando a única situação prevista no artigo 425.º é precisamente a de não ter sido possível apresentar os documentos antes do recurso.
No que concerne ao segundo segmento, a disposição legal já existia no antigo Código de Processo Civil estando prevista no artigo 693.º-B, aditado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e antes deste no artigo 706.º, n.º 1, mantendo sempre a mesma redacção.
A jurisprudência e a doutrina sempre convergiram na ideia de que a previsão normativa se reporta às situações em que a 1.ª instância conhece oficiosamente de uma questão que não estava suscitada ou tratada pelas partes, toma em consideração meio de prova inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou se baseia em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado (por todos, Antunes Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 115,º, pág. 95 e segs., e Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1ª edição, pág. 517; os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.1999, Ferreira de Almeida, e de 26.09.2012, Gonçalves Rocha, da Relação do Porto de 29.05.2014, Leonel Serôdio, e da Relação de Guimarães de Guimarães, 27.02.2014, Ana Cristina Duarte, todos in www.dgsi.pt).
O que releva, portanto, é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência. Quando, pelo contrário, a junção do documento corresponde a um dever de diligência que já antes a parte sabia ou devia saber que a onerava e a decisão de 1.ª instância é uma das que a parte tinha a obrigação de contar que pudessem ser proferidas, por mais que esperasse que a decisão fosse diferente, a junção do documento não se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Por isso, tem-se afirmado repetidamente que a junção de documento nas alegações de recurso não pode servir para suprir a insuficiência que a 1.ª instância assinalou aos meios de prova produzidos pela parte no decurso da instrução do processo, pela simples razão de que a necessidade da prova dos factos, que é o objectivo final da junção do documento, qualquer que seja a fase do processo em que pode ser feita, é algo com que a parte, a partir do momento em que intervém no processo, alegando ou impugnando a alegação alheia, não pode deixar de contar.
Como se afirma no Acórdão de 13.03.2003, relatado por Araújo Barros, in www.dgsi.pt, citando o Acórdão do mesmo tribunal de 27.06.2000, “a junção de documentos em fase de recurso, nos termos do art. 706º, nº 1, do CPC ... tem razão de ser quando a fundamentação da sentença ou o objecto da decisão (e acrescentamos nós, de direito ou de facto) fazem surgir a necessidade de provar factos (ou infirmá-los) com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes dela, e não quando a parte, já sabedora da necessidade de produzir prova (ou contraprova) sobre certos factos, obtém decisão que lhe é desfavorável e pretende, mais tarde, infirmar o juízo já proferido”.
Dito isto, é fácil de ver que o referido preceito legal não pode servir de fundamento para a junção dos documentos apresentados. A questão do valor tributário e de mercado dos imóveis da recorrente estava colocada no requerimento de declaração de insolvência e na contestação que lhe foi oferecida, sendo por isso algo que as partes não podiam deixar de saber que iria ser apreciado pelo tribunal.
Da mesma forma que não podiam deixar de considerar tratar-se de um aspecto relevante para a apreciação do mérito da acção e, portanto, algo a que o tribunal iria por certo dar relevo quer ao nível da decisão da matéria de facto quer ao nível da apreciação jurídica.
Finalmente, uma vez que o valor tributário é um facto que apenas pode provar-se por documento, as partes também não podiam deixar de antever que o tribunal iria pronunciar-se sobre esse facto com base nos documentos que até ao momento da decisão se encontrassem juntos aos autos, independentemente da conformidade entre o que esses documentos revelam e a verdade ontológica do facto uma vez que, como sabemos, a verdade processual não tem de ter estrita correspondência com a verdade ontológica. No caso, portanto, não foi em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância que a junção dos documentos se tornou necessária.
Pelo exposto, decide-se não admitir a junção dos documentos, os quais não serão atendidos nos autos para qualquer efeito.

B] da matéria de facto:
A recorrente impugna a redacção dada ao item 12 da matéria de facto, pretendendo que a mesma seja alterada, substituindo-se o valor constante desse item e que o tribunal a quo retirou da certidão do registo predial que a requerente tinha junto aos autos (doc. n.º 4) pelo valor que consta das certidões da matriz predial juntas com as alegações do recurso e que ascende a €162.593,36.
Tendo sido rejeitada a admissão destes documentos, por não se encontrar preenchido qualquer dos requisitos que consentiria a sua junção com as alegações de recurso, naturalmente que nos está vedado atender a esses documentos para alterar a matéria de facto no sentido defendido pela recorrente.
Todavia, é necessário ainda assim alterar a redacção do mencionado item 12 da matéria de facto, porquanto o valor atendido não traduz com rigor o que resultava das certidões prediais juntas aos autos e que eram então, como agora, os únicos documentos susceptíveis de serem atendidos para efeitos de demonstração do valor tributário do património imobiliário da requerida.
Na verdade, certamente por lapso, a Mma. Juíza a quo não se apercebeu que os imóveis são três (fracções X, habitação, BZ, garagem, e DD, lugar de garagem), pelo que o respectivo valor tributário não é apenas o correspondente ao primeiro deles mas o que resulta da soma do valor dos três (€48.096,29 + €2.598,69 + €1.949,02), ou seja, €52.643,00.
Decide-se, por conseguinte, alterar a matéria de facto no ponto 12 o qual passará a ter a seguinte redacção: “Os imóveis referidos em 4.º encontram-se registados na Conservatória do Registo Predial de Santo Tirso, com inscrição de aquisição a favor da Requerida, tendo o valor tributável conjunto de €52.643,00.
Por outro lado, verifica-se que o elenco da matéria de facto fixado pelo tribunal recorrido não inclui todos os factos alegados pelas partes com relevo para a decisão de mérito. Foram, com efeito, alegados pela própria requerida mais factos que se nos afiguram relevantes e que por serem desfavoráveis à requerida se mostram confessados e, por via disso, assentes, podendo ser atendidos por esta Relação, ainda que oficiosamente, ao abrigo do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil.
Decide-se, assim, ao abrigo da citada disposição legal, aditar ao elenco da matéria de facto os seguintes factos alegados e confessados pela requerida:
13º- A requerida encontra-se desempregada.
14º- O seu único património imobiliário é constituído pelos bens referidos em 4º.

C] da matéria de direito:
Para fundamentar a alegação de que a requerida se encontra numa situação de insolvência, o requerente alegou que a requerida:
não tem capacidade para solver as obrigações que voluntariamente assumiu e contraiu” - 24.º
não cumpre, nem tem possibilidade de cumprir pontualmente as suas obrigações vencidas, por falta de meios próprios, de crédito e de património bastante” - 25.º
encontra-se impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, cujo pagamento suspendeu de forma generalizada e, bem assim, verifica-se o incumprimento generalizado (bem anterior a 6 meses)” - 27.º
o seu activo disponível é insuficiente para satisfazer o seu passivo exigível” - 28.º
Eliminadas as prolixidades, a requerente alegou efectivamente que a requerida: i) não tem rendimentos, património ou crédito para satisfazer as suas obrigações vencidas; ii) encontra-se, há mais de 6 meses, numa situação de incumprimento generalizado das suas obrigações.
A requerida contestou confessando que se encontra em dificuldades financeiras, que está desempregada e à procura de trabalho, que não tem podido cumprir pontualmente as suas obrigações para com o requerente mas: i) o seu património imobiliário é suficiente para satisfazer integralmente o crédito do requerente; ii) vem pagando todas as demais despesas da sua vida quotidiana, sendo o requerente o seu único credor; iii) apresentou uma proposta de regularização da dívida ao requerente.
Na sentença recorrida entendeu-se que a decisão passava por averiguar se “os factos provados se subsumem aos factos-índice de insolvência previstos no artigo 20º, n.º 1 do CIRE”. E concluiu-se no seguinte sentido: “afigura-se-nos que os mesmos são subsumíveis à alínea b), acima citada. Com efeito, o montante da obrigação incumprida pela Requerida em relação à Requerente, no montante de 278.874,60€, aliada ao facto de o incumprimento persistir já desde 2008 e 2009, revelam, por si só, a impossibilidade de a Requerida satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações. Note-se que, considerando a circunstância da data do incumprimento e de à Requerida ser conhecido como património apenas um imóvel com o valor patrimonial tributável de € 48.095,29, temos necessariamente que concluir que a Requerida se encontra impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, pelo que encontra-se em situação de insolvência – artigo 3º, n.º 1 do “C.I.R.E.”.
No recurso, como vimos, a recorrente continua a sustentar que não está insolvente e que não foram demonstrados factos suficientes para preencher a previsão das alíneas a) ou b) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE que faria presumir a situação de insolvência.
Vejamos.
Consabidamente, a declaração de insolvência de uma pessoa depende da verificação de um pressuposto óbvio: a sua insolvência. A lei define essa situação de insolvência como sendo aquela em que “o devedor se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas” – artigo 3.º, n.º 1, do CIRE –.
Uma vez que a caracterização dessa situação não seria imune a controvérsias e que nem sempre será fácil a um credor munir-se de meios para provar que na situação de incumprimento em que está, o devedor se encontra efectivamente impossibilitado de cumprir as suas obrigações, o legislador isolou um conjunto de situações que estão de tal modo associadas, de acordo com a normalidade, a uma efectiva situação de insolvência que autorizam presumir a existência desta, e concedeu legitimidade aos credores para requererem a declaração de insolvência apenas com base nos factos que integram uma ou mais das situações desse elenco, sujeitando então o devedor ao ónus de afastar a presunção de insolvência, sob pena de esta ser declarada. São os célebres factos-índices da insolvência previstos no artigo 20.º do CIRE.
De acordo com este normativo, conjugado com o artigo 30.º, n.º 3, a insolvência deve ser decretada desde que o credor demonstre a existência dos factos que integram alguma das diversas situações aí previstas e o devedor não tenha demonstrado que, apesar delas, efectivamente não se encontra numa situação de insolvência.
Nessa situação, o pressuposto da declaração de insolvência continua a ser a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas; sucede apenas que em vez de essa impossibilidade se encontrar directamente demonstrada nos autos, a sua existência se presume a partir dos factos que a lei selectivamente escolheu para funcionarem como presunção da sua existência.
No caso concreto, a discussão parece algo deslocada uma vez que, pese embora o mesmo não tenha sido claramente isolado na petição inicial ou precisado na decisão recorrida, se mostra perfeitamente demonstrado um dos factos-índices da insolvência, mais concretamente o previsto no ponto iv) da alínea g) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
Este índice da situação de insolvência caracteriza-se, nos termos da norma citada, pelo “incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas de … prestações do preço da compra ou de empréstimo garantido pela respectiva hipoteca, relativamente a local em que o devedor realize a sua actividade ou tenha a sua sede ou residência”.
Como resulta da matéria de facto e dos documentos autênticos para que remete, a maior parte (€215.932,27) da dívida reclamada pelo credor requerente e reconhecida pela devedora tem origem precisamente na compra dos imóveis que constituem a totalidade do património imobiliário da devedora o qual se destinou e continua constituir o local da sua residência, recaindo sobre os mesmos uma hipoteca.
Muito embora estejamos perante dois contratos de mútuo realizados em momentos distintos, o primeiro visou directamente o pagamento do preço dos imóveis e ambos os contratos ficaram garantidos por hipotecas dos imóveis, preenchendo assim, em ambos os casos, a previsão do preceito, cuja lógica parece ser a de que em condições normais as pessoas só colocam em risco a sua própria residência quando de todo não conseguem mesmo satisfazer as suas obrigações, ou seja, estão insolventes.
Ora, no caso, está ainda demonstrado que a devedora deixou de cumprir as obrigações relativas a esses contratos de mútuo desde o primeiro trimestre de 2009, o que é bem mais do que o período dos últimos seis meses a partir do qual, de acordo com a norma, se passa a presumir a situação de insolvência. Por conseguinte, ainda que por este fundamento jurídico e independentemente da verificação de qualquer outro dos índices previstos no artigo 20.º do CIRE, sempre estaria demonstrado um facto suficiente para a insolvência poder ser declarada, como foi.
Defende, no entanto, a recorrente que não está em situação de insolvência. É óbvio que não existe na matéria de facto absolutamente nada que demonstre que a mesma não se encontra em situação de insolvência, o que vale por dizer, que se encontra em condições de poder satisfazer a generalidade das suas obrigações vencidas.
No tocante ao seu património, não foi demonstrado que o mesmo tenha um valor de mercado suficiente para a devedora satisfazer as suas obrigações perante o credor requerente da insolvência.
Para o efeito, chama-se à atenção que o que releva não é o valor tributário dos imóveis mas o seu valor venal, isto é, o valor que a sua alienação possa gerar com vista à satisfação das obrigações, pelo que o facto julgado provado a esse respeito pouco interesse tem já que se reporta exclusivamente ao valor tributário dos imóveis. O valor tributário apenas teria interesse se excedesse o montante em dívida uma vez que sempre se poderia presumir, por mera presunção judicial, que não sendo o valor de mercado, normalmente, inferior ao valor tributário, a circunstância de só este já exceder o valor das dividas seria suficiente para concluir pela suficiência do património para o cumprimento das obrigações vencidas.
Ora, mesmo que se atendesse ao valor tributário que a recorrente afirma corresponder actualmente ao seu património (€162.593,36), ainda assim seria impossível estabelecer aquela presunção por se tratar de um valor bastante inferior ao montante das obrigações vencidas (€278.874,60), nada existindo que permita presumir que a venda dos imóveis geraria um produto suficiente para pagar este montante, sobretudo num momento de crise como aquele que vivemos e que se faz sentir com particular acuidade no mercado da construção civil e do imobiliário.
Sabendo-se, além disso e pela própria devedora, que esta se encontra desempregada e tem os referidos imóveis como único património susceptível de responder pelas suas obrigações vencidas, não se vê como pode a recorrente defender ter demonstrado que a sua situação económica lhe permite cumprir com as suas obrigações vencidas, isto é, demonstrado que não se encontra insolvente.
Podemos, bem pelo contrário, deduzir claramente do montante das dívidas, próximo das três centenas de milhares de euros, do período de tempo de vários anos que já decorreu desde que estas deixaram de ser pagas, da ausência de rendimentos do trabalho e da insolvência da sociedade que parecia ser a fonte de rendimentos da devedora, que esta se encontra mesmo impossibilitada de satisfazer as suas obrigações vencidas.
Sustenta a recorrente, por outro lado, que o credor requerente da insolvência é o seu único credor não devendo nenhuma quantia a qualquer outra pessoa, já que as demais despesas do seu dia a dia têm sido pagas com regularidade e tem estado em negociações com o requerente para estabelecer um acordo de pagamento dessa dívida.
O que dizer?
Em primeiro lugar, recordar que há muito está assente, na doutrina como na jurisprudência, que para se estar perante uma situação de insolvência não se torna necessário que a impossibilidade de incumprimento abranja a totalidade das obrigações vencidas do insolvente, isto é, que o facto de algumas das obrigações vencidas terem sido pagas não obsta a que o devedor esteja mesmo insolvente[2].
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2009, reimpressão, em anotação ao artigo 3.º, o que caracteriza essencialmente a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Por isso, acrescentam estes autores “pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até mesmo de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante” (sublinhados nossos).
Nessa medida, é óbvio que não se pode equiparar a dívida ao requerente da insolvência com a dívida relativa às despesas pessoais com alimentação, saúde e mesmo a habitação (como o fornecimento de água ou energia), porque a dimensão destas nada tem a ver com a expressão da dívida ao requerente e essa possui, de per si, uma expressão capaz de demonstrar se a devedora está ou não em condições de satisfazer a generalidade (e não necessariamente a totalidade) das suas obrigações.
Para que o devedor possa estar insolvente e a sua insolvência declarada é absolutamente irrelevante se o seu passivo está concentrado num único credor ou disperso por vários credores. Repete-se que o que releva para a verificação da situação de insolvência é a dimensão do passivo e a sua relação com o activo ou a capacidade de obter activos que possam permitir a satisfação daquele. E para isso nem sequer se torna indispensável demonstrar que essa incapacidade é irremediável, inalterável ou definitiva, pois a declaração de insolvência não é o fim absoluto da vida pessoal ou económica do devedor.
Também não constitui obstáculo à declaração de insolvência a circunstância de o devedor não ter sido ainda objecto de qualquer execução coerciva do seu património. O pressuposto da declaração de insolvência, se quisermos, do direito a requerer essa declaração, é a situação de insolvência e não o esgotamento prévio de todas as diligências judiciais possíveis para obter a satisfação dos créditos e a manutenção de créditos por satisfazer. Portanto, uma vez demonstrados os factos que preenchem o pressuposto da insolvência, esta pode ser declarada, ainda que o património do devedor não haja sido previamente objecto de qualquer execução.
Aliás, na definição do artigo 1º do CIRE, o processo de insolvência é ele mesmo “um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património de um devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência que nomeadamente se baseie na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente”. O que significa que existe um campo de convergência entre o processo de execução, digamos individual, e o processo de insolvência, digamos de execução universal, que faz com que não faça sentido exigir que aquele anteceda este, precisamente porque é possível realizar já neste actos que esgotariam o objecto daquele.
Finalmente, cabe dizer que não se vislumbra qualquer abuso de direito na actuação do credor de instaurar o processo de insolvência apesar de alegadamente o devedor lhe ter apresentado propostas de liquidação da dívida. Com efeito, afigura-se-nos absolutamente decisivo que o incumprimento da dívida se prolongue já desde 2009, sem o devedor ter feito qualquer pagamento por conta, numa manifestação inequívoca de que apenas fará qualquer pagamento se/quando for obrigada a isso. Acresce a enorme discrepância entre os valores em dívida e o montante do pagamento regular das prestações que estavam previstas e os valores que a devedora se propõe pagar e os prazos em que se disponibiliza a fazê-lo, discrepância essa que justificam claramente que o devedor entenda não aceitar a proposta e avançar com mecanismos judiciais destinados a obter a liquidação universal do património da devedora. Havendo uma situação de insolvência, não se vê como recusar a possibilidade de o mecanismo eleito ser o processo de insolvência.
Em suma: improcedem todos os argumentos apresentados pela recorrente para motivar a revogação da decisão recorrida, a qual deve assim ser confirmada.

V.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em (i) rejeitar a junção dos documentos apresentados pela recorrente com as alegações de recurso; (ii) alterar a decisão da matéria de facto no sentido acima assinalado; (iii) julgar, no mais, o recurso improcedente, confirmando a douta decisão recorrida.
Condena-se a recorrente nas custas do incidente relativo aos documentos com 2 UC de taxa de justiça e na totalidade das custas do recurso sem prejuízo do apoio judiciário concedido (tabela I-B).
Porto, 18.09.2014.
Aristides Manuel Rodrigues de Almeida (Relator; Rto161)
José Fernando Cardoso Amaral
Teles de Menezes e Melo
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[1] Impossibilidade que aparentemente não podia mesmo existir porque os dados da avaliação são anteriores à data da apresentação da contestação pela insolvente.
[2] Cf. Catarina Serra, in O Novo Regime Jurídico Aplicável à Insolvência, 3ª edição, pág. 23; Carvalho Fernandes, in Colectânea de Estudos sobre a Insolvência, O CIRE na Evolução do Regime da Falência no Direito Português, pág. 67; Acórdãos da Relação do Porto de 4.12.2007 (Carlos Moreira) e de 12.04.2007 (Deolinda Varão), da Relação de Coimbra de 26.10.2010 (Regina Rosa) e de 15.09.2009 (Emídio Costa) e da Relação de Lisboa de 23.02.2006 (Ilídio Sacarrão Martins); todos in www.dgsi.pt.