Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1987/11.3TAMAI.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MANUEL SOARES
Descritores: CRIME
USURPAÇÃO DE FUNÇÕES
BEM JURÍDICO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
EXCESSO DE PRONÚNCIA
OMISSÃO DE DILIGÊNCIA
Nº do Documento: RP201611231987/11.3TAMAI.P1
Data do Acordão: 11/23/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 697, FLS.334-349)
Área Temática: .
Sumário: I – O tribunal de recurso tanto pode suprir a nulidade da sentença por excesso de pronúncia como por omissão de pronúncia.
II – A incriminação da usurpação de funções visa a protecção do sistema público de credenciação para o exercício de certas profissões com especial interesse colectivo, e consiste na violação da integridade daquele sistema através de uma acção enganosa de quem falseia a sua qualidade ou título profissional e causa engano.
III – O tribunal de recurso só pode sindicar a omissão de uma diligência de prova se os dados do processo permitirem concluir que teria sido possível produzir essa prova com a informação que o juiz no momento dispunha.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1987/11.3TAMAI
Comarca do Porto, Tribunal da Maia
Instância Local, Secção Criminal, J3

Acórdão, deliberado em Conferência

1. Relatório

1.1 Decisão recorrida
Por sentença proferida em 24MAI2016 foi o arguido B… condenado por um crime de usurpação de funções e por um crime de falsificação de documento, previstos respectivamente nos artigo 358º al. b) e 256º als. c), d) e e) do CP, nas penas de 140 dias e 110 dias de multa, ambas à taxa diária de €7,00, e na pena única de 200 dias de multa, à taxa diária de €7,00. Foi também condenado a pagar à assistente Ordem dos Advogados a indemnização de €400,00 por danos patrimoniais e de €1.500,00 por danos não patrimoniais e à demandante C… a indemnização de €3.412,00 por danos patrimoniais e de €1.800,00 por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora desde a notificação do pedido quanto aos primeiros e desde a sentença quanto aos segundos.

1.2 Recurso
O arguido recorreu da sentença, invocando para tanto, em suma, os seguintes fundamentos, ordenados por sequência lógica:
- Os demandantes civis são parte ilegítima para formular pedidos de indemnização civil, uma vez que o interesse tutelado no artigo 358º al. b) do CP são os dos utentes dos serviços profissionais, na sua qualidade de consumidores;
- A sentença é nula por falta de fundamentação, em violação do disposto nos artigos 97º nº 5 e 374º nº 2 do CPP e do artigo 205º nº 1 da Constituição;
- A sentença é também nula por não se ter pronunciado sobre factos alegados na contestação, relevantes para a decisão da causa, e por não ter apreciado a arguição de inconstitucionalidade do artigo 358º al. b) do CPP formulada na contestação, em violação do disposto no artigo 379º nº 1 al. c) e 410º nº 2 al. a) do CPP;
- Há vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão porque nada foi apurado sobre a situação económica e social do arguido, o que era relevante para a fixação dos danos com base em critérios de equidade, o que integra o vício previsto no artigo 410º nº 2 al. a) do CPP.

1.3 Respostas
O Ministério Público respondeu alegando em síntese que a sentença não padece dos apontados vícios porque nela se indicam as provas que o tribunal examinou criticamente e com fundamentação suficiente e porque o tribunal não tem de se pronunciar sobre factos alegados na contestação que sejam irrelevantes para a decisão, como é o caso.
A assistente Ordem dos Advogados respondeu também, dizendo que o recurso da sentença na parte referente ao pedido de indemnização civil por si formulado é irrecorrível dado que os valores do pedido e da condenação não excedem os limites definidos no artigo 400º nº 2 do CPP. Respondeu também aos outros fundamentos do recurso mas como veremos essa parte da resposta vai ficar prejudicada.

1.4 Parecer do Ministério Público na Relação
Nesta Relação o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, remetendo para as alegações do Ministério Público no Tribunal recorrido. Acrescentou ainda, quanto à insuficiência dos factos para a decisão, que o arguido não deu cumprimento às prescrições do artigo 412º nº 2 do CPP e que o tribunal apenas tem de se pronunciar sobre factos relevantes, tendo em qualquer caso dado como provados os factos da acusação que são contrários aos alegados na contestação.

2. Questões a decidir no recurso

As questões que temos de decidir no recurso são sequencialmente as seguintes:
- Recorribilidade da sentença, na parte em que julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela Ordem dos Advogados;
- Legitimidade processual dos demandantes civis;
- Nulidade da sentença por falta de fundamentação;
- Nulidade da sentença por omissão de pronúncia, por não haver decisão sobre factos alegados na contestação e sobre a inconstitucionalidade também aí suscitada.
- Insuficiência para a decisão do pedido de indemnização civil da matéria de facto provada sobre a situação económica e social do arguido.

3. Fundamentação

3.1. Questão prévia: admissibilidade do recurso da sentença, na parte em que julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil formulado pela Ordem dos Advogados
A Ordem dos Advogados formulou um pedido de indemnização no valor de €5.000,00, tendo o mesmo sido julgado parcialmente procedente na sentença, com a condenação do arguido no pagamento da indemnização de €1.900,00.
O artigo 44º da lei nº 62/2013, de 26AGO, estabelece a alçada dos tribunais de primeira instância em €5.000,00, dispondo ainda que é esse o valor a considerar para a admissibilidade do recurso em matéria civil nos processos criminais.
O artigo 400º nº 2 do CPP não admite o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil nos casos em que o valor do pedido não exceda a alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada não seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da mesma. Portanto, é evidente que a condenação do arguido no pagamento de indemnização à Ordem dos Advogados é irrecorrível, uma vez que são inferiores àqueles limites quer o valor do pedido quer o valor da sucumbência.
A admissão do recurso em primeira instância não vincula o tribunal da Relação, como decorre do disposto nos artigos 405º nº 4 e 417º nº 6 al. b) do CPP. A decisão de rejeição pode ser tomada por decisão do relator em despacho autónomo no momento do exame preliminar, do qual caberia reclamação para a conferência, ou no próprio acórdão deliberado em conferência.
Em face do exposto, tem de ser rejeitado por legalmente inadmissível o recurso da sentença, na parte em que condenou o arguido a pagar indemnização à Ordem dos Advogados.

3.2. Legitimidade processual da demandante civil
A apreciação deste fundamento do recurso quanto à legitimidade da Ordem dos Advogados está prejudicada, visto o recurso ter sido rejeitado nessa parte. Temos assim apenas de analisar a legitimidade processual da outra demandante.
Diz-se no recurso que a demandante não é parte legitima porque os interesses protegidos na norma incriminadora são os dos utentes dos serviços prestados com usurpação de funções. É evidente que o arguido invocou a ilegitimidade de ambos os demandantes com fundamentos pensados para a constituição da Ordem dos Advogados como assistente, que não são aplicáveis à demandante C…. Ademais, o recurso confunde as questões legitimidade para a constituição de assistente com a legitimidade para a dedução de pedido de indemnização civil, tratadas separadamente nos artigos 68º e 74º nº 1 do CPP.
Independentemente de saber qual é o bem jurídico protegido pela norma incriminatória, que não temos de apreciar por não estar em causa a constituição da demandante como assistente, é manifesto que a mesma se tem de considerar lesada para os efeitos daquele artigo 74º nº 1. Foi na sua esfera patrimonial e não patrimonial que se verificaram os danos causados pela acção do arguido qualificada como crime, em resultado dos serviços que lhe prestou arrogando-se uma qualidade profissional que não tinha.
É assim improcedente este fundamento do recurso.

3.3. Matéria de facto da sentença
Antes de passarmos à análise dos alegados vícios da sentença e do julgamento da matéria de facto, importa enunciar os factos provados e não provados que constam na sentença recorrida, no que respeita à matéria criminal e ao pedido de indemnização formulado pela demandante C…:
(transcrição)
Factos provados
Da acusação pública:
a) O arguido é licenciado em direito e exerceu funções de magistrado do Ministério Público entre 1 de Outubro de 1987, data em que tomou posse como delegado do procurador da República em regime de estágio, e 20 de Dezembro de 2000, quando foi demitido do exercício dessas funções, por deliberação da Secção Disciplinar do Conselho Superior do Ministério Público, de 15 de Junho de 2000, confirmada em Plenário do mesmo órgão, em 13 de Dezembro de 2000.
b) O arguido nunca esteve inscrito na Ordem dos Advogados, motivo pelo qual, como ele bem sabia, não podia exercer actos próprios dos advogados, nem intitular-se como advogado.
c) Apesar desse conhecimento, no dia 11 de Fevereiro de 2010, num escritório de advogados, nesta comarca da Maia, o arguido, intitulando-se advogado, atendeu D… e E… a quem explicou quais os procedimentos e documentos necessários para intentar uma acção de divórcio em representação da filha de ambos, C1... (actualmente C…), à data a residir em Inglaterra.
d) No final dessa consulta, o arguido solicitou para despesas a quantia de €600,00 (seiscentos euros) que D… lhe entregou através de cheque à ordem do arguido.
e) No dia 23 de Março de 2010, no escritório de advogados da sociedade "G…, RL", sita na Rua …, nº …, .º andar, sala ., na Maia, o arguido atendeu o referido casal e entregou-lhes um documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça relativamente à acção de divórcio da filha de ambos que havia já sido proposta, solicitando-lhes a quantia de €2.035,00 para pagamento da referida taxa de justiça e honorários, o que eles pagaram através de cheque à ordem do arguido.
f) Nos dias 30 de Junho e 9 de Setembro de 2010, mais uma vez no referido escritório, o arguido atendeu a C… e os pais desta, tendo-lhes explicado o estado do processo de divórcio e solicitado da primeira vez a quantia de €700,00 e da segunda a quantia de €686,00, o que eles pagaram através de dois cheques emitidos à ordem do arguido.
g) Para justificar os honorários solicitados, o arguido, sem o conhecimento e contra a vontade do Dr. H…, único sócio e gerente da sociedade "G…, RL", utilizando papel timbrado da aludida sociedade, forjou uma nota de despesas e honorários que assinou onde solicitou à C… a quantia de €2.710,40.
h) Recebido o referido montante a título de honorários, o arguido, mais uma vez sem o conhecimento e contra a vontade do Dr. H…, preencheu e assinou o recibo nº ….., cuja cópia se encontra a fls. 26, referente à actividade de advocacia, onde declarou que a sociedade "G…, RL", através da aposição do referido carimbo recebeu a quantia de €2.710,40 da C….
i) Todavia, tal quantia nunca foi recebida pela referida sociedade, mas sim pelo arguido que fez constar do recibo o seu número fiscal de contribuinte ……… como se tratasse do número da mencionada sociedade.
j) A solicitação do arguido, o Dr. H… intentou no Tribunal de Família e Menores do Porto a acção de divórcio sem consentimento em representação da C…, tendo-lhe sido atribuído o nº 765/10.1TMPRT do 1º Juízo, 1ª Secção.
k) Além de consultas no referido escritório, a propósito da aludida acção de divórcio, o arguido estabeleceu diversos contactos telefónicos, bem como via e-mail, com a C…, a qual sempre esteve convencida, bem como os seus pais, de que o arguido era advogado.
I) O arguido, arrogando-se pelo menos tacitamente a qualidade de advogado, exerceu actos próprios dessa profissão no interesse e a pedido da C…, nomeadamente recebendo-a a ela e aos pais num escritório de advogados para efeitos de consulta jurídica, dando previsões, explicações e interpretações, sobre a aplicação de normas substantivas e processuais a um caso da vida concreta.
m) Para justificar o recebimento de dinheiro da referida cliente por actos próprios da advocacia, o arguido elaborou e assinou a nota de despesas e honorários de fls. 24 e 25, onde fez constar, contra a vontade do respectivo representante legal, que a sociedade "G…, RL" solicitava a quantia de €2.723,00 à cliente C…, o que, como o arguido bem sabia, não correspondia à verdade.
n) Ao receber a referida quantia, o arguido preencheu e assinou o recibo nº ….., fazendo constar do mesmo um carimbo da aludida sociedade com vista a fazer crer que tal quantia seria recebida pela sociedade, o que como ele bem sabia não correspondia à verdade, tanto mais que fez constar do recibo o seu número fiscal de contribuinte ……….
o) Ao forjar a nota de honorários e despesas, bem como o recibo, o arguido bem sabia que estava a fabricar documentos falsos, idóneos a induzir outras pessoas em erro como, de facto, aconteceu, com a C…, fazendo crer que tais documentos eram verdadeiros e que tinham sido efectivamente elaborados e assinados pelo representante legal da referida sociedade de advogados ou então por alguém por ele autorizado.
p) Com a conduta descrita, agiu o arguido com o objectivo de obter um benefício ilegítimo, colocando, dessa forma, em causa a segurança e a credibilidade do tráfico jurídico probatório, confiança essa que a generalidade das pessoas deposita relativamente à autenticidade e genuinidade da origem dos documentos.
q) Agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Do pedido cível da ofendida C…:
aa) Em 11 de Fevereiro de 2010, a ofendida residia em Inglaterra, motivo pelo qual quem foi à a consulta com o arguido forma os pais da demandante.
bb) Nesse dia o arguido solicitou €600,00 para despesas que o pai da demandante lhe entregou através de cheque à ordem do arguido.
cc) No dia 23 de Março de 2010, o arguido voltou a atender os pais da demandante, entregou-lhes um documento comprovativo de pagamento de taxa de justiça relativo à acção de divórcio que disse ser da apresentação da réplica, solicitando-lhes a quantia de €2.035,00 para pagamento da referida taxa de justiça e honorários.
dd) O que os pais da demandante pagaram através de cheque à ordem do arguido aqui demandado.
ee) No processo de divórcio da demandante não foi apresentada réplica, e além da taxa de justiça inicial não foi paga qualquer outra taxa de justiça preparo ou despesa no processo durante o período em que o acompanhamento do mesmo esteve confiado ao arguido.
ff) Nos dias 30 de Junho e 9 de Setembro de 2010, o arguido atendeu a ofendida C… e seus pais, explicou-lhes o estado do processo e da primeira vez solicitou a quantia de €700,00 e da segunda a quantia de €686, que os pais da demandante pagaram através de dois cheques emitidos em nome do arguido.
gg) O arguido apresentou à demandante a nota de honorários referida em h) pretendendo justificar a título de despesas e honorários uma parte das quantias que os pais da demandante lhe entregaram as quais ascenderam no total a €4.021,00.
hh) Para além da taxa de justiça de €600,00 que efectivamente foi paga no processo, o arguido apropriou-se de todas as demais quantias que lhe foram entregues a título de despesas e honorários.
ii) Tais quantias foram entregues pelos pais da demandante ao arguido, que as emprestaram à filha, e que esta teve de lhes teve de pagar.
jj) A demandante, vivendo na altura no Reino Unido, deslocou-se várias vezes a Portugal tendo gasto nessas deslocações €206,00, €314,00 em passagens de avião.
kk) E em Novembro de 2010 despendeu com a deslocação a Portugal (voo e aluguer de viatura) a quantia de €312,00.
II) A demandante ficou psicologicamente afectada por se sentir enganada e desprotegida na assistência jurídica que julgava que lhe estava a ser prestada por um profissional idóneo e competente para a defesa dos seus interesses materiais e morais envolvidos no divórcio.
mm) E mais defraudada se sentiu quando verificou que algumas informações e conselhos dados pelo demandado no decurso do processo, com impacto negativo na sua vida, carecia de justificação legal, como foi o caso de lhe ter dito que não podia vir definitivamente para Portugal enquanto o divórcio não estivesse resolvido.
nn) O que foi extremamente penalizador para demandante num momento de particular fragilidade em que enfrentava uma situação de ruptura conjugal e vivia sozinha em Inglaterra com um filho menor.
oo) E pretendia por isso voltar para Portugal onde podia encontrar o apoio da família e amigos.
pp) O que a abalou psicologicamente.
Mais se provou que:
qq) Actualmente não se conhecem antecedentes criminais ao arguido.
Factos não provados
Não resultou provado que:
O escritório onde o arguido atendeu os pais da ofendida no dia 11 de Fevereiro era da sociedade "G…, RL" e sito na Rua …, nº …, .º andar, sala ..
Os gastos referidos em jj) e kk) da demandante em deslocações a Portugal são causa directa e necessária da conduta do arguido.

3.4. Nulidade da sentença por falta de fundamentação
Muito embora isso não tivesse sido afirmado de forma clara no recurso, o que está em causa é o vício da sentença previsto no artigo 379º nº 1 al. a), por violação do dever de fundamentação imposto pelos artigos 374º nº 2 e 97º nº 5 do CPP e 205º nº 1 da Constituição.
As alegações de recurso contêm um conjunto de considerações gerais sobre o dever de fundamentação das decisões judiciais e a conclusão de que a sentença está mal fundamentada. Não se diz nem onde nem porquê. Não obstante, lendo a sentença recorrida de ponta a ponta vê-se que o arguido não tem razão.
O dever de motivação da sentença penal consagrado nos referidos artigos 97º nº 5 e 374º nº 2 decorre do dever constitucional de fundamentação das decisões afirmado no artigo 205º nº 1 da Constituição e também da garantia do processo equitativo, inerente ao Estado de direito democrático. O artigo 374º nº 2 atrás estabelece o conteúdo desse dever de fundamentação, preceituando que a sentença deve conter a enumeração dos factos provados e não provados e a exposição, ainda que concisa, dos motivos facto e de direito que fundamentam a decisão, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Trata-se, afinal, de garantir que a sentença cumpre a sua dupla finalidade de, dentro do processo, assegurar a efectividade do exercício do direito de defesa, nomeadamente o direito ao recurso, e de, fora do processo, garantir a transparência e legitimidade do poder soberano que o Estado exerce através do Juiz.
A fundamentação pode ser sintética mas tem de ser suficiente, cobrindo as questões de facto, o exame crítico das provas e a exposição das razões de facto e de direito. A função da sentença é apenas “dizer o direito” do caso concreto – juris dicere – não necessitando para tanto de ser exaustiva e de dar uma resposta pormenorizada e esgotante a cada argumento, como se fosse um tratado académico com uma teoria geral da questão submetida ao tribunal. Para além disso, a fundamentação deve ser coerente, racional e clara. A sentença é o instrumento de comunicação da decisão judicial e como tal tem de ser perceptível para os destinatários.
Ora, a sentença recorrida contém a enumeração dos factos provados e não provados. Explica em que provas se baseou a Sra. Juiz para formar a sua convicção e analisa essas provas com critério, à luz do seu conteúdo e das regras da experiência. Expõe as razões porque tais factos integram os crimes pelos quais o arguido foi condenado e os motivos que levaram à opção por penas de multa e à respectiva graduação. E no que respeita ao pedido de indemnização civil formulado pela demandante C…, refere os pressupostos legais da responsabilidade civil extracontratual por facto ilícito e os factores relevantes para a fixação dos danos, em cujo ressarcimento condenou o arguido.
É para nós evidente que a sentença está motivada de forma adequada e suficiente. Ela permite perceber com exactidão as razões em que a Sra. Juiz se baseou para decidir. Não vemos como possa o arguido dizer que falta à sentença a fundamentação que devia ter, quando a impugnou no recurso sem mostrar confusão ou desconhecimento do seu conteúdo e significado. O arguido não concorda com a sentença, mas isso é outra questão.
Improcede portanto este fundamente do recurso.

3.5. Nulidade da sentença por omissão de pronúncia
O arguido afirma que a sentença não se pronunciou sobre factos alegados nem apreciou a inconstitucionalidade arguida na contestação. Não é claro se pretendeu invocar o vício da sentença previsto no artigo 379º nº 1 al. c) ou o vício da decisão da matéria de facto do 410º nº 2 al. a).
O artigo 410º refere-se a vícios cruciais de apreciação da prova, que resultam ostensivamente do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência, sem necessidade de analisar as provas ou o que consta no processo. Só há, portanto, vício de insuficiência de factos provados, se pela simples leitura do texto se percebe que a decisão a que se chegou foi tomada com base em factos inexistentes na própria sentença. O caso colocado pelo arguido é outro. O que diz não é que a decisão foi tomada com base em factos que não estão indicados como provados, mas sim que a sentença deixou de se pronunciar sobre os factos que devia ter julgado como provados ou não provados e que deixou de decidir a inconstitucionalidade arguida como fundamento de oposição à acusação.
Muito embora haja jurisprudência que acolhe a qualificação jurídica do vício invocado no recurso como insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a nosso ver este vício corresponde à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, prevista no artigo 379º nº 1 al. c). No plano da análise lógica, a verificação da validade da sentença precede a averiguação dos vícios de apreciação da prova, pois quando a sentença é nula a apreciação da prova fica à partida prejudicada, contenha ou não os vícios do artigo 410º. Neste sentido, de que a falta de julgamento dos factos alegados na contestação constitui nulidade da sentença por omissão de pronúncia e não vício de apreciação da prova por insuficiência dos factos provados para a decisão, decidiu-se também nos acórdãos do TRL, de 10JAN2013 e do TRP, de 16JAN2013[1]. De todo o modo este diferente enquadramento do vício não influi no conhecimento do recurso.
Vejamos então se a sentença é nula por omissão de pronúncia. Trataremos primeiro da omissão de pronúncia sobre factos alegados na contestação e depois sobre a arguição de inconstitucionalidade.
O vício está apontado à omissão de pronúncia sobre os seguintes segmentos da contestação:
- Aliás, quando a procuração forense foi entregue aos pais da lesada, para esta assinar, após contacto da ofendida com o Dr. H…, consta no lado esquerdo, o nome de todos os advogados que exerciam funções no escritório de advogados “G…” e em último lugar da lista, e como Jurista, aparece o nome de “I…” (alegação 11ª);
- As relações entre o arguido e a ofendida foram sempre de grande intimidade. Veja-se como o arguido tratava a ofendida, como amiga – cfr. os e-mails juntos aos autos. Os aconselhamentos dados pelo arguido à ofendida eram típicos de uma relação própria de amigos (alegações 25ª e 26ª);
- Ao arguido nunca foi passada qualquer procuração forense (alegação 32ª);
- Nunca o arguido acompanhou a ofendida a qualquer diligência judicial (alegação 33ª);
- Nunca o arguido contactou nem pessoalmente nem por qualquer outro meio com o advogado da parte contrária (alegação 34ª).
Não há dúvida que a sentença não contém uma pronúncia expressa sobre qualquer uma destas alegações. Não estão enumeradas nos factos provados ou não provados, nem especificamente referidas na respectiva motivação. Todavia, a questão que se põe é a de saber se a Sra. Juiz deveria ou não ter-se pronunciado sobre elas.
O objecto do julgamento submetido à apreciação e decisão do tribunal é definido em primeira linha pela acusação e pela contestação (e quando há pedido de indemnização civil também pelos respectivos pedido e contestação). É nestas peças processuais que os sujeitos em confronto alegam os factos que submetem ao julgamento, indicam as provas, enunciam as normas jurídicas aplicáveis e apresentam os seus argumentos. Além disso, na audiência podem surgir outras questões substanciais ou não substanciais modificativas do objecto do julgamento, desde que sejam comunicadas e aceites nos termos dos artigos 358º e 359º do CPP.
De acordo com o disposto nos artigos 368º nº 2 e 369º nº 2 do CPP o tribunal deve decidir todos os factos alegados pela acusação ou pela defesa e os que resultem da discussão da causa, desde que sejam relevantes (sublinhado nosso) para a decisão das diversas questões em que se desdobra a análise da culpabilidade e da determinação da espécie e da medida da pena. São esses os limites da descoberta da verdade e da boa decisão da causa, que constituem a finalidade primordial do julgamento penal. Por isso, como resulta da expressão que sublinhamos e também do princípio geral da utilidade dos actos processuais, só estão abarcadas pelo dever de pronúncia os factos relevantes para a decisão, tendo em conta as suas diversas soluções plausíveis.
Por outro lado, estão também excluídas do dever de pronúncia do tribunal todas alegações sem conteúdo factual, incluindo-se aqui as meramente conclusivas ou reveladoras de juízos de valor sobre os factos ou sobre o direito, bem assim como as que se limitem a descrever provas ou apresentar argumentos de prova.
Deve ainda ter-se em conta que em certos casos a pronúncia do tribunal sobre o facto alegado, ainda que relevante, não tem de ser expressa. Se o facto alegado pela defesa não é mais do que a afirmação contrária ao facto alegado na acusação, o tribunal ao motivar expressa a convicção da demonstração da veracidade de um está também a justificar de forma implícita e numa relação de causalidade lógica as razões porque teve o outro por indemonstrado. Seria descabido exigir que o tribunal se pronunciasse expressamente sobre o mesmo facto duas vezes, tendo de dar como provado e de motivar o “não” relativamente a um facto em que deu como provado e motivou o “sim”. Havendo incompatibilidade lógica entre factos contraditórios, a pronúncia expressa sobre um contém uma pronúncia implícita sobre o outro.
Vejamos então se as alegações referidas pelo arguido têm conteúdo factual, se são relevantes e se não foram objecto de pronúncia implícita.
A primeira refere-se ao conteúdo e forma da procuração forense certificada a fls. 97. O tribunal deu como provado que a acção judicial a que se refere a certidão de fls. 89 e seguintes foi intentada (facto j). Isso naturalmente pressupõe que o foi com a referida procuração – porque outra não houve. Sendo assim, é para nós claro que o tribunal aceitou com provado, ainda que de forma remissiva, que a procuração referida no recurso é aquela que consta no processo e que tem a forma e os dizerem que se podem constatar ao analisá-la. É certo que nessa procuração o arguido figura com “jurista” e não como “advogado”. Mas em parte alguma da acusação ou da sentença se diz o contrário, ou seja, que o arguido estava indicado como “advogado” na procuração em causa. Aquilo que o arguido pretendia demonstrar com a alusão à procuração não é que lá figura como “jurista”, dado isso ser óbvio, mas sim que, por causa disso, se apresentou à demandante como jurista e não como advogado. Trata-se, portanto, de uma alegação instrumental, com função argumentativa para a veracidade de um facto alegado na contestação contrário ao alegado na acusação. Só que o tribunal afastou de forma clara e cabal essa alegação, ao dar como provado que o arguido se apresentou como advogado e foi percebido como tal pelos interlocutores. Essa decisão contém uma pronúncia implícita negativa sobre a alegação que visava demonstrar que o arguido se apresentou como jurista. Não tinha assim o tribunal, depois de dar como provado que o arguido se apresentou como advogado, de dar expressamente como não provado o contrário disso. E ao dar implicitamente como não provado o facto essencial da contestação, era redundante e inútil pronunciar-se expressamente sobre o facto instrumental de constar na procuração o título de “jurista”.
Alegou também o arguido na contestação que tinha grande intimidade com a ofendida e que por isso o aconselhamento que lhe deu foi típico de uma relação de amizade. Não é correcto afirmar que o tribunal não se pronunciou sobre esta alegação de facto. Ficou provado que o arguido foi apresentado à ofendida como advogado, que se intitulou como tal, que foi nessa suposta qualidade que a aconselhou e que cobrou honorários e provisão para despesas. Resulta da motivação dos factos provados que o arguido e a ofendida não se conheciam e isso está explicado de forma plausível, sem que exista um único elemento que indicie essa alegada relação de intimidade e amizade ao abrigo da qual o arguido teria dado conselhos. Nos e-mails referidos para prova da sua afirmação (fls. 17 a 22) o arguido trata a destinatária por você e as suas mensagens começam com expressões como “Boa tarde C…” e “Boa tarde Dª C…” e terminam com a expressão “Sem mais, atentamente”. É evidente que esta prova não suporta minimamente a afirmação do arguido de que havia uma grande intimidade e amizade na relação estabelecida com a demandante. Apesar da alegação do facto em causa ser relevante, também neste caso houve uma pronúncia implícita do tribunal. A consequência lógica e necessária de se ter dado como provado que a relação estabelecida entre o arguido e a ofendida teve natureza profissional [suposta] e que nem se conheciam antes, é o ter de se considerar não provado que a fonte dessa relação e do aconselhamento foi a relação de amizade alegada na contestação.
Por fim, afirmou o arguido na contestação que nunca lhe foi passada qualquer procuração forense, que nunca acompanhou a ofendida a qualquer diligência judicial e que nunca contactou com o advogado da parte contrária. Estas alegações, muito embora tenham conteúdo factual, são irrelevantes para a decisão. O arguido não foi acusado de ter actuado no processo judicial com procuração passada pela ofendida, mas sim de ter prestado aconselhamento jurídico e de ter engendrado uma situação em que a acção foi intentada por um advogado sem conhecimento da ofendida, conforme efectivamente aconteceu e se dá conta nos factos provados e na sua motivação. Ora, os factos alegados para contrariar uma imputação inexistente não são relevantes para a decisão, pois estão fora do objecto temático da acusação.
Não há, portanto, falta de pronúncia do tribunal sobre as questões relevantes para a decisão. A sentença dá conta de se terem analisado as duas versões em confronto sobre os factos essenciais, tendo a Sra. Juiz formado a sua convicção no sentido contrário à do arguido. Apesar do que referimos, mesmo que num rigor mais formal se considerasse que a sentença se deveria ter pronunciado de forma expressa sobre aquelas alegações, dando-as como não provadas ou como como insusceptíveis de resposta pela sua irrelevância, isso apenas cumpriria um ritualismo que talvez conferisse mais adequação “estética” à sentença, mas nada acrescentaria à essência da decisão. No plano da utilidade dos actos processuais e da protecção dos interesses dos sujeitos, seria inconsequente anular agora uma sentença por omissão de pronúncia sobre factos que, tendo em conta a decisão tomada, estão ou plenamente contraditados pelos factos provados ou são face aos mesmos completamente irrelevantes.
Consideramos, enfim, que a sentença não incorre no vício de omissão de pronúncia sobre factos relevantes para a decisão.
Avançando, vamos agora ver a omissão de pronúncia sobre a arguição de inconstitucionalidade deduzida na contestação.
O arguido invocou na contestação a inconstitucionalidade do artigo 358º al. b) por violação do disposto nos artigos 18º nº 2, 27º nº 1 e 47º nº 1 da Constituição. A sentença é totalmente omissa na apreciação deste fundamente de oposição à acusação.
A procedência da arguição de inconstitucionalidade da norma incriminatória determina a absolvição do arguido do crime imputado na acusação. Assim, o tribunal devia ter começado por apreciar essa questão incidental que constitui um fundamento de direito contraditório à acusação e decidir em conformidade – artigos 368º nº 1 e 374º 374º nº 2 atrás referidos. Não o tendo feito, a sentença está ferida pela nulidade prevista no artigo 379º nº 1 al. c).
Dito isto, há que ver se esta nulidade pode ser suprida pelo tribunal da Relação, ao abrigo do disposto no artigo 379º nº 2 do CPP.
No Comentário do Código de Processo Penal, o Professor Paulo Pinto de Albuquerque considera que o tribunal de recurso só pode exercer o poder de suprir a nulidade da sentença nos casos de excesso de pronúncia, declarando suprimida a parte que não devia ter sido conhecida, mas não a omissão de pronúncia. No mesmo sentido podem ser consultados os acórdãos do TRL, de 14ABR2003 e TRE, de 8JUL2003 e o mais recente do TRL, de 8NOV2015[2]. O argumento fundamental daquelas decisões é o de que o suprimento do vício pela Relação elimina um grau de recurso.
Não concordamos com esta interpretação limitadora dos poderes da Relação. Por um lado, a garantia constitucional do direito ao recurso não exige que a parte vencida tenha direito a interpor recurso de cada segmento da decisão. Numa situação como esta que estamos a analisar, não vemos que sentido pudesse ter remeter a decisão da inconstitucionalidade para a primeira instância, para que depois o arguido pudesse recorrer de novo para este tribunal e para que então pudéssemos proferir a mesma decisão que neste momento já estamos em condições de proferir.
Por outro lado, julgamos que a redacção do artigo 379º nº 2 introduzida pela Lei 26/2010, de 30AGO, substituindo o vocábulo “sendo lícito ao tribunal supri-las” pelo vocábulo “devendo o tribunal supri-las”, outra finalidade não teve que não fosse a de impor ao tribunal de recurso um dever de suprimento do vício – pressupondo obviamente que estão disponíveis todos os elementos necessários – e não uma mera faculdade.
Por fim, pensamos que o acórdão de uniformização de jurisprudência nº 4/2016, de 22FEV, segundo o qual, resumidamente, a absolvição pelo tribunal de primeira instância, a ter de ser revertida para condenação, deve sê-lo no tribunal de recurso e não no tribunal recorrido com o reenvio do processo, retirou importância àquele argumento. Na verdade, se a garantia do duplo grau de recurso não obriga a reenviar para a o tribunal de primeira instância a prolação de uma decisão condenatória, por maioria de razão não imporá esse reenvio no caso de se tratar de sanar uma nulidade da sentença.
Concordamos com a solução interpretativa de que a nulidade da sentença por omissão de pronúncia deve, sempre que possível, ser suprida pelo tribunal de recurso, como decidido nos acórdãos do STJ, de 2JUN2014 e 30MAR2016[3].
Passamos assim a apreciar a arguição de inconstitucionalidade.
No essencial, argumenta o arguido que as restrições impostas por lei penal à liberdade de escolha de profissão e ciência apenas podem resultar da exigência de requisitos de idoneidade técnica e científica e não de outros condicionalismos ao exercício de actividades profissionais privadas, como autorizações, inscrições ou aprovações. A inscrição na Ordem dos Advogados não é mais do que uma formalidade administrativa que não pode afectar a liberdade prévia de escolher a profissão. Por isso, a incriminação do artigo 358º al. b) do CP, bastando-se com a verificação de formalidades, condições e requisitos administrativos, viola as regras constitucionais da liberdade de escolha de profissão (artigos 47º nº 1 e 27º nº 1) e constitui uma restrição desproporcionada ao exercício de um direito fundamental (artigo 18º nº 2).
Pensamos que o arguido não tem razão.
O direito constitucional à livre escolha e exercício da profissão não é ilimitado. A segunda parte do nº 1 do artigo 47º da Constituição admite as restrições ao exercício desse direito que sejam impostas pelo interesse colectivo. Parece-nos pois que o raciocínio do arguido está viciado à partida por duas razões fundamentais: (i) a proibição do exercício da advocacia sem a necessária habilitação administrativa não decorre da norma em que se prevê a incriminação penal da usurpação de funções mas sim do Estatuto da Ordem dos Advogados, cuja constitucionalidade não está questionada; (ii) de todo modo, a inconstitucionalidade arguida não pode resultar tão somente da existência de uma limitação ao exercício do direito mas sim da desproporcionalidade ou desnecessidade dessa limitação.
A Ordem dos Advogados, em quem o Estado delegou por lei a autorização para o exercício da profissão de advogado, prossegue interesses de ordem pública com relevância constitucional, uma vez que o exercício da advocacia é considerado essencial para a administração da justiça enquanto função soberana do Estado (artigo 208º da Constituição). O direito à livre escolha da profissão decorre sobretudo de interesses de natureza particular, que devem ceder na medida do indispensável quando estão e causa interesses públicos também objecto de protecção constitucional. Sendo assim, existem fundadas razões de interesse colectivo que justificam a instituição de mecanismos de limitação ao livre exercício da advocacia por quem não tem o título de advogado, que não são nem desnecessárias nem desproporcionais.
A incriminação da usurpação de funções não é justificada pelos interesses particulares ou corporativos das ordens profissionais ou dos seus membros. O que está em causa é a protecção do sistema público de credenciação para o exercício de certas profissões com especial interesse colectivo. A determinação da violação desse interesse não está na maior ou menor competência técnica ou científica de quem pratica os actos sem título habilitante mas sim na violação da integridade daquele sistema público de credenciação através de uma acção enganosa de quem falseia a sua qualidade ou título profissional e causa engano.
Concluímos, assim, que a incriminação da usurpação de funções não viola as regras constitucionais referidas pelo arguido, na medida em que se justifica plenamente para a protecção do interesse colectivo da boa administração da justiça, que se sobrepõe ao interesse particular na livre escolha da profissão.
Concluindo esta parte, é verdade que a sentença incorreu na nulidade de omissão de pronúncia, mas suprido o vício verifica-se que o arguido não tem razão.

3.6. Insuficiência para a decisão do pedido de indemnização civil da matéria de facto provada sobre a situação económica e social do arguido
Segundo o arguido, há vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão porque nada foi apurado sobre a sua situação económica e social, o que era relevante para a fixação dos danos com base em critérios de equidade.
Está em causa o vício do 410º nº 2 al. a) do CPP.
Vejamos primeiro o que nos diz o processo sobre as reais possibilidades que o tribunal tinha de averiguar as condições económicas e sociais do arguido.
Notificado para o julgamento, o arguido apresentou contestação mas não invocou quaisquer factos relativos às suas condições económicas e sociais para serem considerados no momento da eventual condenação no pagamento de indemnização. Designada a data do julgamento, requereu que o mesmo decorresse na sua ausência, mas o tribunal, por ter considerado necessária a sua presença e ter tido dúvidas sobre aquele requerimento, adiou a audiência e determinou que o arguido informasse quando regressava do estrangeiro – isto ocorreu em 16JUN2014 (fls. 420 e 422). A partir desse momento, não foi mais possível localizar ou notificar o arguido, pese embora as várias diligências feitas nesse sentido (fls. 439, 502, 504, 551). Em 7OUT2015 o arguido indicou uma nova morada em Moçambique, mas a notificação para aí enviada foi devolvida com indicação de ser lá desconhecido (fls. 586 e 600). Face à impossibilidade de notificar o arguido noutra morada, acabou por ser de novo notificado para o julgamento na morada indicada no TIR. Porém, faltou ao julgamento, a todas as sessões, realizadas em 17FEV, 7MAR, 30MAR, 11MAR e 24MAR2016.
Esta breve resenha das ocorrências processuais relevantes mostra-nos que o arguido se desinteressou por completo da comparência do julgamento e se colocou em situação de dificultar ao máximo a sua própria notificação. O que nos leva neste momento à questão de saber se a omissão de diligências probatórias resultou de inércia censurável do tribunal ou de uma situação de impossibilidade ou excessiva morosidade objectivamente causada pelo arguido.
Embora a propósito da determinação da pena, a jurisprudência maioritária tem decidido no sentido de a omissão na sentença dos factos relativos às condições pessoais e sociais do arguido poder gerar o vício do referido artigo 410º nº 2 al. a) e o reenvio para o tribunal de primeira instância para concluir o julgamento:
Acórdão do STJ, de 18DEZ2008[4]: «A circunstância de o recorrente não ter comunicado regularmente a mudança de residência não inviabilizaria a realização do relatório social fundamental uma vez que se trata de arguido julgado na ausência e com tão parca matéria recolhida dos elementos relevantes para a determinação da sanção, quando acabou por ser aplicada uma pena de prisão, necessariamente pela sua medida, efectiva».
Acórdão do STJ, de 14MAR13[5]: «Prova essencial à boa decisão da causa, no caso de condenação e aplicação de pena, conforme resulta expressamente da própria lei (artigos 369.º e ss. do CPP), é a relativa aos antecedentes criminais do arguido, à sua personalidade e às suas condições pessoais, sendo certo que a lei prevê mesmo a possibilidade de produção de prova suplementar, tendo em vista a determinação da espécie e da medida da sanção a aplicar, para o que, sendo necessário, poderá ser reaberta a audiência – artigo 371.º do CPP». «A existência dos vícios supra referidos, torna impossível decidir a causa».
Acórdão do TRP, de 2DEZ2010[6]: «Este conjunto de circunstâncias, que deriva duma conduta omissiva da arguida, não dispensava, no entanto, o tribunal de, oficiosamente, determinar a elaboração dum relatório social pelos serviços competentes da DGRS, ficando, assim, numa situação de conhecimento das condições pessoais, sociais e económicas da arguida que lhe permitissem, de modo bem mais seguro, dosear a pena e pronunciar-se acerca da medida substitutiva que ao caso há-de caber». «Não o tendo feito, como revela a mera análise do texto da decisão, existe uma situação de insuficiência da matéria de facto para a decisão relativa à medida da pena».
Acórdão do TRP, de 19DEZ2012[7]: «Sendo o objeto do processo delimitado pela acusação/pronúncia, pela contestação e pelos factos que resultarem da prova produzida em audiência (cfr. artº 339º nº 4 do C.P.P.) e estando tribunal obrigado a enumerar os factos provados e não provados (cfr. artº 374º nº 2 do C.P.P.) esta enumeração respeita aos factos alegados pela acusação e pela defesa que sejam essenciais para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e os factos provados que resultem da prova produzida em audiência que sejam relevantes para a questão da culpabilidade e determinação da sanção a aplicar (cfr. artºs 368º e 369º do C.P.P.). Para, de um ponto de vista substancial, sedimentar a obrigação do tribunal de investigar todos os factos relevantes ainda que não alegados e ainda que as partes não ofereçam prova sobre eles, o artigo 340º do Código de Processo Penal impõe ao tribunal a obrigação de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (consagrando-se, assim, na fase de julgamento, o primado do princípio da investigação – poder-dever que incumbe ao tribunal de investigar autonomamente os factos, para além das contribuições de acusação e defesa). E o artº 369º já citado impõe ainda que o tribunal reabra a audiência se a matéria factual investigada for insuficiente para a determinação da espécie e medida da sanção». «Assim, a sentença, na falta de prova dos factos respetivos, terá de expressar e justificar a impossibilidade do seu conhecimento, se relevantes para a boa decisão da causa. Só esta interpretação do artº 374º, nº 2 do C.P.P. é compaginável com a demonstração do cumprimento daqueles artigos e de que a mesma não padece de insuficiência factual para a decisão».
Acórdão do TRP, de 9SET2015[8]: «Assim, in casu, bastaria solicitar a realização de relatório social, tendo em consideração a morada que o arguido fornecesse aquando da sua identificação ou, então, e se tal se viesse a revelar viável, considerar as declarações do arguido a tal propósito. Não tendo assim procedido, e encerrando a produção da prova sem os necessários elementos fáticos relativos às condições de vida e personalidade do arguido, cometeu o Tribunal a quo a nulidade prevista no artigo 120º, nº 2, al. d) do Código de Processo Penal. E, depois, proferindo decisão condenatória com omissão de factos relevantes para a determinação da sanção, produziu sentença ferida do vício da insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, a que alude a al. a), do nº 2, do artigo 410º do Código de Processo Penal. Na medida em que do próprio texto da decisão recorrida, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, resulta uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito” (relativa à determinação da sanção), que permite a “conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher” (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos Penais, 8ª ed. Lisboa, 2012, p. 74)».
Nestes acórdãos, há dois aspectos comuns que parecem reunir algum consenso. Em primeiro lugar, considera-se que a sentença só incorrerá no vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão naquelas situações em que houver possibilidade efectiva de realizar as diligências investigatórias necessárias para apurar os factos relativos às condições pessoais, sociais e económicas do arguido. Em segundo lugar, se ocorrer essa impossibilidade, deve o tribunal expressá-la e justificá-la na sentença para que esta não incorra no vício de insuficiência da matéria de facto.
O primeiro requisito é óbvio. Seria de todo irrazoável entender que a lei impõe ao tribunal um dever de investigação que em face das particularidades do caso seja impossível de cumprir, sob pena de anulação do julgamento. Já o segundo requisito nos merece reservas. A impossibilidade do tribunal investigar os factos relevantes é uma circunstância objectiva que a análise do processo permite facilmente verificar se existia ou não à data do julgamento. Se existia essa impossibilidade, então a exigência da sua expressão na sentença é redundante para concluir pela inexistência do vício de insuficiência da matéria de facto. Mas se, pelo contrário, o processo fornece os elementos necessários para verificar que o tribunal podia ter investigado aqueles factos, não há-de ser por se dizer o contrário na sentença que aquele vício ficará afastado.
Do nosso ponto de vista, nas situações em que a sentença é omissa na indicação dos factos revelantes para a decisão, para se concluir se a sentença padece do vício de insuficiência da matéria de facto deve fazer-se uma a avaliação um pouco diferente daquela que tem sido seguida pela jurisprudência que referimos.
Em regra, a alegação dos factos e a indicação das respectivas provas – neste caso para a fixação da indemnização – deve ser feita no pedido de indemnização civil e na respectiva contestação. No entanto, ainda que os factos não sejam introduzidos em julgamento pelos sujeitos processuais no momento próprio, no decurso da audiência o tribunal pode ordenar a produção das provas necessárias para os investigar, ao abrigo do disposto no artigo 340º do CPP. E os sujeitos processuais interessados na prova dos factos podem também requerer ao tribunal que proceda a essas diligências.
Chegados aqui, a questão que se nos coloca agora é a de saber que consequência tem o facto de o tribunal não ter averiguado oficiosamente as condições económicas e sociais do arguido, para o efeito de poder fixar a indemnização com recurso ao critério de equidade previsto na lei civil nem justificado a omissão, num caso em que tais factos não foram alegados no pedido de indemnização civil nem na respectiva contestação e em que o arguido não requereu que fossem averiguados.
As referências jurisprudenciais que fazemos de seguida têm a ver com a indagação das condições económicas e sociais do arguido para a determinação da pena, mas são aplicáveis por maioria de razão à situação que estamos a analisar, que é a da relevância desses factos para a fixação da indemnização.
No acórdão do STJ de 5SET2007[9] escreveu-se o seguinte: «independentemente de se considerar ser ou não ser obrigatória a requisição daquele relatório social ou daquela informação dos serviços de reinserção social para aplicação de uma pena de prisão efectiva (cfr. conclusão 7ª da motivação) – a letra da lei sugere francamente que se trata de uma faculdade do tribunal e o Tribunal Constitucional, no seu acórdão nº 182/99, Pº nº 759/98, de 22.03.99, já decidiu não ser inconstitucional a norma do nº 1 do artº 370º do CPP quando interpretada no sentido de não ser obrigatória essa solicitação – entendemos, na esteira da jurisprudência mais comum do Supremo Tribunal de Justiça, que a falta desse relatório ou informação ou a falta de produção de qualquer outra prova suplementar para determinação da espécie e da medida da pena a aplicar poderá justificar o reenvio do processo para novo julgamento, quando o resultado for a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, nos termos dos arts. 410º, nº 2-a) e 426º, ambos do CPP».
Considerou-se nesta decisão que a indagação oficiosa pelo tribunal dos elementos necessários para graduar a pena – ou para fixar a indemnização, acrescentamos nós – é apenas uma faculdade e que a sua omissão nem sempre levará ao vício da insuficiência da matéria de facto provada na sentença.
Tal entendimento parece-nos correcto. Só pode concluir-se que a omissão na sentença dos factos relevantes para fixar a indemnização conduz ao vício previsto no artigo 410º nº 2 al. a), se do processo resultar que o tribunal não teve a iniciativa de os investigar quando devia e podia tê-la tido – ou por ter indeferido requerimento nesse sentido ou por não ter actuado oficiosamente quando era clara a possibilidade e necessidade de o fazer. O foco de análise para apurar se há vício processual não deve estar, portanto, na omissão dos factos na sentença, mas sim na existência ou não de motivo justificativo para a abstenção da acção investigatória pelo tribunal.
Queremos com isto dizer que o problema que o recurso nos coloca não está propriamente na suficiência ou insuficiência da matéria de facto provada para a decisão sobre a fixação da indemnização, mas sim na regularidade processual da abstenção de investigação dos factos pelo tribunal. O que nos remete para um outro problema, que é o de saber quais são as consequências da violação do poder-dever de investigar factos em julgamento ao abrigo do mencionado artigo 340º.
Nos acórdãos do TRG, de 27ABR2009 e do TRC de 7OUT2014[10], com os quais concordamos, concluiu-se que a omissão de exercício daquele poder-dever constitui nulidade processual ou erro de aplicação da lei, consoante tenha ou não sido activado por requerimento dos sujeitos processuais. No caso de o tribunal omitir o exercício oficioso desse poder-dever de produção de um meio de prova essencial para a descoberta da verdade sem que algum sujeito processual o tenha solicitado, essa omissão integra a nulidade prevista no artigo 120º nº 2 al. d) do CPP, que deve ser arguida nos termos do seu nº 3. Porém, se ao tribunal for requerida a produção de uma prova ao abrigo do referido artigo 340º e o tribunal indeferir esse requerimento, a forma de sindicar a correcta aplicação dos fundamentos de rejeição ali previstos é o recurso. A distinção fundamental a ter em conta é que a ilegalidade decorrente da omissão de um acto processual obrigatório é um vício relativo à forma do procedimento, ao passo que a ilegalidade da recusa da prática desse acto é um vício relativo ao conteúdo ou substância da decisão, sobre a correcta ou incorrecta interpretação ou aplicação da lei.
A necessidade de produção de um meio de prova suplementar, necessário para investigar o facto em julgamento, obriga o tribunal a praticar o acto processual prescrito no artigo 340º nº 1. Logo, uma vez que a omissão de tal acto está expressamente cominada na lei como nulidade dependente de arguição (artigos 118º nº 1 e 120º nº 1 al. d) do CPP), a sua impugnação tem de fazer-se pela via da arguição da nulidade. Este mecanismo de impugnação que permite despoletar a correcção do vício processual e a prática do acto omitido, em tempo útil e perante o juiz em primeira instância é o que melhor protege os princípios da celeridade e estabilidade dos actos processuais. Apenas haverá vício de conteúdo da decisão nas situações em que o tribunal recuse a realização da diligência de prova, ou desatenda a arguição de nulidade que referimos, por considerar que não se verificam os pressupostos do artigo 340º.
Por outro lado, pensamos também que o tribunal de recurso só pode sindicar postumamente a omissão de uma diligência de prova se os dados do processo permitirem concluir que teria sido possível produzir essa prova, com a informação que o juiz no momento dispunha. Aquilo que se analisa num recurso é o acerto da decisão judicial com base nas circunstâncias em que foi tomada e não em face de factores supervenientes que o juiz à data não conhecia. O que nos importa é se a Sra. Juiz tinha ou não o dever de investigar as condições sociais e económicas de um arguido que nada requereu, que manifestamente não quis comparecer em julgamento – o que para nós equivale a ter comparecido e se ter recusado a prestar declarações – e que forneceu uma morada para ser contactado na qual não era conhecido.
Diante deste cenário de desinteresse do arguido, o que podia ter feito a Sra. Juiz? Emitir mandados para condução à audiência para lhe permitir exercer o direito de prestar declarações? Seria provavelmente inútil, dado o histórico das dificuldades de localização. Chamar testemunhas para depor sobre as suas condições pessoais do arguido? Mas quais, se a defesa não as indicou e se da discussão em julgamento também não resultou quem podia ser chamado? Solicitar informação documental? Mas a quem? No plano da exigibilidade e razoabilidade consideramos que a Sra. Juiz não estava obrigada a investigar oficiosamente os factos para decidir sobre a fixação da indemnização, sendo irrelevante que isso não esteja consignado expressamente na sentença.
Quando vemos a situação pelo ângulo dos deveres processuais do arguido, acrescem ainda argumentos de outra ordem a que não podemos ser indiferentes. Ele esteve devidamente representado no julgamento por advogado que tinha a incumbência de assegurar a defesa dos seus interesses, que conhecia o processo e assistiu à produção de prova. Não podia a defesa do arguido desconhecer que o tribunal não tinha outros elementos factuais para decidir sobre a fixação da indemnização para além do que resultava da prova produzida em audiência. A defesa do arguido nada requereu e ao verificar que o tribunal não actuou oficiosamente para indagar aqueles factos também não arguiu a nulidade dessa omissão. Só agora no recurso é que vem esgrimir argumentos contra uma omissão que conheceu no julgamento e que em parte decorre também da sua inacção. Mesmo agora no recurso ficamos sem saber que diligência poderia, na opinião da defesa, ter o tribunal realizado, o que seria essencial para podermos concluir que havia alguma possibilidade efectiva de indagar os factos em questão e para podermos agora formular um juízo crítico sobre a omissão do tribunal.
Os direitos de defesa não são absolutos e ilimitados. Os comportamentos processuais contraditórios – venire contra factum propriu – constituem uso abusivo do processo, fora das finalidades para que os direitos são concedidos. A lei não isenta o arguido desses deveres.
Do acórdão de fixação de jurisprudência do STJ, de 16DEZ2010[11] retiramos alguns trechos que nos parecem relevantes para a análise do nosso caso, na perspectiva do cumprimento pelo arguido dos deveres inerentes à lealdade processual.
Citando o autor Paulo Pinto de Albuquerque[12]:
«O princípio da lealdade processual impõe-se aos sujeitos e participantes processuais e, por força deste princípio, não pode recorrer quem tiver promovido a decisão proferida e, designadamente, aquele que impugna decisão concordante com a sua anterior posição assumida no processo».
«O princípio da lealdade no comportamento processual, nomeadamente na recolha de prova, representa uma imposição de princípios gerais inscritos na própria dignidade humana, e da ética, que deve presidir a todos os actos do cidadão. O mesmo liga-se, de forma inexorável, ao direito a um processo justo e ao princípio da igualdade de armas.
Em termos gerais e, em qualquer litígio, a existência de um princípio geral da lealdade é essencial para a afirmação da existência do Estado de Direito».
Referindo-se ao acórdão do STJ de 24SET 2003[13]:
«Princípio essencial, fundador e conformador do processo penal (de todos os modelos ou soluções particulares e mais ou menos idiossincráticas dos diversos sistemas processuais democráticos), o princípio do processo equitativo, na dimensão de "justo processo" ("fair trial"; "due process"), é integrado por vários elementos, um dos quais se afirma na confiança dos interessados nas decisões de conformação ou orientação processual; os interessados não podem sofrer limitação ou exclusão de posições ou direitos processuais em que legitimamente confiaram, nem podem ser surpreendidos por consequências processuais desfavoráveis com as quais razoavelmente não poderiam contar: é o princípio da confiança na boa ordenação processual determinada pelo juiz.
O processo equitativo, como "justo processo", supõe que os sujeitos do processo usem os direitos e cumpram os seus deveres processuais com lealdade, em vista da realização da justiça e da obtenção de uma decisão justa».
«A lealdade, a boa-fé, a confiança, o equilíbrio entre o rigor das decisões do processo e as expectativas que delas decorram, são elementos fundamentais a ter em conta quando seja necessário interpretar alguma sequência que, nas aparências, possa exteriormente apresentar-se com algum carácter de disfunção intraprocessual».
E avançando nos argumentos:
«Neste domínio são de realçar os deveres de vigilância e de boa fé processual: o primeiro obriga os sujeitos processuais a «reagir contra nulidades ou irregularidades que considerem cometidas e entendam relevantes, na perspectiva de defesa, não podendo naturalmente escudar-se na sua própria negligência no acompanhamento das diligências ou audiências para intempestivamente vir reclamar o cumprimento da lei relativamente a actos em que estiveram presentes e de que, agindo com a prudência normal, não puderam deixar de se aperceber»; o segundo impede que os sujeitos processuais possam «aproveitar-se de alguma omissão ou irregularidade porventura cometida ao longo dos actos processuais em que tiveram intervenção, guardando-a como um “trunfo”, para, em fase ulterior do processo, se e quando tal lhes pareça conveniente, a suscitarem e obterem a destruição do processado» – cf. Ac. n.º 429/95 do TC.».
«Assim, é inteiramente adequado o entendimento de que aquele que admite a possibilidade de, no futuro, vir a impugnar a matéria de facto, colabore e, evidenciando uma postura de lealdade processual, verifique, no final da respectiva audiência ou no prazo de arguição da irregularidade, se existiu alguma deficiência. Proc. n.º 77/00.9GAMUR.S1 - 3.ª Secção».
«É que, para além da teleologia do processo penal, é o próprio dever de lealdade processual de todos os intervenientes no processo que impõe que a imperfeição seja suscitada por forma a causar o menor dano na tramitação processual e não como último argumento que se mantém resguardado para se utilizar como último recurso caso o resultado final não agrade. Proc. n.º 578/08 - 3.ª Secção».
O reconhecimento da existência de um dever de lealdade processual e da sua relevância para analisar a legitimidade para interpor recurso de decisões em contradição com comportamentos processuais anteriores é muito importante.
No nosso entendimento, actua com deslealdade processual e em abuso de direito de defesa o arguido que faltou ao julgamento e que ostensivamente não tornou possível a sua localização atempada, cuja defesa não requereu ao juiz durante o julgamento que activasse os poderes de investigação concedidos pelo referido artigo 340º e que nem mesmo na fase de recurso revela que diligência poderia razoavelmente ter sido ordenada pelo tribunal para indagar sobre as suas condições económicas e sociais, limitando-se a invocar essa omissão para obter a anulação do julgamento, por um pretenso vício processual que resultaria em grande parte da sua omissão.
Achando o arguido que era necessário realizar diligências de prova ao abrigo do disposto no artigo 340º e ao ver que o tribunal omitia essa acção, deveria ter suscitado durante o julgamento a nulidade processual prevista no artigo 120º nº 2 al. d) – omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade. Não tendo isso sido feito, a nulidade que pudesse ocorrer encontra-se agora sanada.
Poderia também ter requerido ao abrigo do mesmo artigo 340º que o tribunal realizasse a diligência de prova que considerava viável e necessária. E então, se o tribunal a indeferisse sem fundamento bastante, teria aí o fundamento de recurso que agora lhe falta. Não tendo isso sido feito, não vemos como possa agora concluir-se que o tribunal omitiu a prática de um acto de investigação necessário para apurar os factos relevantes para a fixação da indemnização e que a sentença que omite esses factos padeça do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º nº 2 al. a).
No caso de não serem activados os poderes do artigo 340º no decurso do julgamento, através do requerimento dirigido ao juiz para agir ou da arguição da nulidade da sua omissão, pensamos que o vício de insuficiência da matéria de facto na sentença apenas ocorrerá naquelas situações em que seja evidente, face aos dados do processo, que o tribunal tinha à sua disposição provas cuja produção podia ter ordenado, que conhecia a possibilidade de fazer essa indagação oficiosa e que mesmo assim a omitiu. Neste caso justificar-se-ia que o tribunal de recurso concluísse pela existência do vício da sentença revisto no artigo 410º nº 2 al. a) porque a prova determinante para apurar os factos necessários para a decisão existia e era conhecida do tribunal. Mas como vimos a situação que temos à nossa frente não é essa.
Improcede portanto o recurso também nesta parte.

3.7. Custas
Não são devidas custas pelo recorrente. Tendo sido reconhecida a existência de uma nulidade na sentença, que foi suprida, não houve decaimento total no recurso (artigo 513º do CPP).

4. Decisão
Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente apenas na parte relativa à nulidade da sentença por omissão de pronúncia sobre a questão da inconstitucionalidade suscitada na contestação, que porém ficou suprida neste acórdão, e improcedente em tudo o mais, confirmando-se a sentença recorrida com aquela ressalva.
Sem custas.

Porto, 23 de Novembro de 2016
Manuel Soares
João Pedro Nunes Maldonado
________________
[1] http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/bf50ca889db56b7680257afd003bdeb2?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/9ee4d76d205cf0ca80257b0b0033dc6f?OpenDocument
[2] Respectivamente em CJ, XXVIII, 2, páginas 143 e segs., e CJ XXVIII, 4, páginas 252 e segs. e http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/d4317e798834746c80257ec8004de08f?OpenDocument
[3] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7b3427c1c70d074780257d70003fa445?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/effc004ee8ef49f580257f87004eefc9?OpenDocument
[4] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/257ac46d385ece178025752400370f08?OpenDocument
[5] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f05529da57edfddd80257b520048f308?OpenDocument
[6] http://www.dgsi.pt/JTRP.NSF/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/a6b25ed272f6696d80257832004c4c62?OpenDocument
[7] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/7c256faefd86373d80257af00040e6af?OpenDocument
[8] http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/6b8ba74165c0410780257ec7004c1c98?OpenDocument
[9] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/2829d130594fae1c80257378004e88f9?OpenDocument
[10] http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/0/ace02a02312ac533802575da00394040?OpenDocument
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/9c82a23d055d5ca280257ed900336b17?OpenDocument
[11] http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/0a5f4cb6a6d8ec9d802578230035bc9d?OpenDocument
[12] Comentário do Código de Processo Penal, 3ª Edição, 2009, anotação ao artigo 401°, págs. 1021 a 1023.
[13] Colectânea de Jurisprudência, Nº 171 Tomo III/2003.