Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
0644392
Nº Convencional: JTRP00039722
Relator: DIAS CABRAL
Descritores: BURLA PARA ACESSO A MEIOS DE TRANSPORTE
Nº do Documento: RP200611150644392
Data do Acordão: 11/15/2006
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC. PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Indicações Eventuais: LIVRO 233 - FLS. 145.
Área Temática: .
Sumário: Para efeitos de preenchimento do crime de burla do artº 220º, nº 1, alínea c), do CP95, a "divida contraída" corresponde ao valor do bilhete, sem quaisquer acréscimo.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação do Porto.

O Mº. Pº. junto do Tribunal Judicial de Espinho interpôs recurso do despacho que, nos termos do artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al.d) do CPP, rejeitou a acusação por si deduzida contra B………, a quem imputava a prática de um crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. no artº 220º, nº 1, al. c) do CP, terminando a sua motivação com as conclusões que se transcrevem:
1º – No despacho recorrido a Mma. Juiz "a quo" não recebeu a acusação deduzida contra a arguida a quem é imputada a prática do crime de burla para obtenção de serviço de utilização de meio de transporte, p. e p. pelo artigo 220.º, n.º 1, c) do Código Penal, por entender que os factos nela descritos não integram a previsão do respectivo tipo legal.
2º – São elementos típicos deste tipo de ilícito: a utilização de um meio de transporte; o conhecimento que essa utilização pressupõe o pagamento de um preço; a intenção de não pagar tal preço; a recusa de solver a dívida.
3º – No caso em apreço resulta da acusação que a arguida B............... foi interceptada no comboio sem possuir bilhete e foi instada a pagar a quantia de 50 €, correspondente ao trajecto efectuado, quantia que corresponde ao valor da dívida contraída e que a arguida se recusou a solver.
4º – Diversamente do entendimento sufragado na decisão recorrida de que a dívida contraída é o preço do bilhete em singelo, da interpretação das normas legais que vigoram nesta matéria, designadamente, os art.ºs 7º e 14º da Portaria n.º 403/75 de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.º 1116/80 de 31 de Dezembro, resulta a definição clara por parte do legislador dos requisitos para acesso ao meio de transporte, estipulando a necessidade de aquisição de bilhete como pressuposto, estabelecendo condições mais gravosas para quem pretender viajar no comboio sem se munir do respectivo bilhete.
5º - Assim, quem viaje sem previamente adquirir bilhete, i.e., sem proceder ao pagamento do preço devido pelo serviço, fica obrigado ao pagamento de um bilhete, cujo valor é calculado nos termos do artº 14º da citada Portaria, bilhete esse que assume o valor do preço do serviço.
6º – Para efeitos do disposto no artº 220º nº 1 do Cód. Penal, a dívida contraída é não só o preço da viagem mas ainda a da sobretaxa que àquele acresce.
7º – No caso dos autos, depois de ter optado por utilizar o serviço de transporte sem adquirir o bilhete devido, a arguida colocou-se na situação de passageiro sem bilhete.
8º - Sendo o preço devido pela arguida aquele que lhe foi solicitado, 50€, tendo a mesma recusado o pagamento desse valor, encontra-se preenchido o crime de burla para obtenção de serviços p. e p. pelo artº 220º nº 1c) Cód. Penal.
9º – Ao não entender assim, não recebendo a acusação deduzida contra a arguida B…………, a decisão recorrida violou as disposições legais dos artigos 220º nº 1c) do Cód. Penal, e 311º nº 2 do C.P.Penal.
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Sem resposta subiram os autos a esta Relação onde o Exmº Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer, no sentido do provimento do recurso.

Cumprido o nº 2 do artº 417º do CPP, não houve resposta.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Em face das conclusões da motivação, que delimitam o âmbito do recurso, a única questão a decidir é a de saber se os factos constantes da acusação integram o crime de burla p. e p. no artº. 220º, nº 1, al. c) do CP.
A acusação deduzida é a seguinte:
«……..
Porquanto:

No dia 21 de Junho de 2004, a arguida embarcou na estação desta cidade e comarca de Espinho com destino a S.Romão, no comboio n° 15817 que efectuava o trajecto entre as estações de Ovar e Porto - S. Bento, sem que fosse portadora de qualquer título de transporte válido.
Tendo sido interceptada pelo revisor da CP em serviço nesse comboio, ao Km n° 317, área desta comarca, a arguida não procedeu ao pagamento do bilhete no montante de 50,00 Euros por aquele emitido, nem até hoje o fez.
A arguida actuou da forma descrita tendo efectuado a sua viagem naquele comboio sem bilhete e, com intenção de não pagar o mesmo.
Bem sabendo que a utilização, como passageira, daquele meio de transporte a obrigava à aquisição prévia de um bilhete e ao pagamento do respectivo preço.
Agiu de forma consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Pelo exposto, cometeu a arguida um crime de burla para obtenção de meio de transporte p. e p. pelo art.º 220° n° 1 alínea c), do Código Penal.».
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O despacho recorrido é o seguinte:
«O Ministério Público deduziu acusação em Processo Comum, mediante intervenção de Tribunal Singular, contra B……….., melhor identificada, imputando-lhe a prática, como autora material, de factos susceptíveis de a fazer incorrer, no seu entendimento, num crime de burla para obtenção de serviços, p. e p. pelo art.º 220.°, n.° 1, c) do C.P..

Para tanto, refere, em síntese, que a arguida, em 21 de Junho de 2004, viajava num comboio da "CP - Caminhos de Ferro Portugueses, EP", que identifica, entre as estações de Ovar e Porto-S. Bento, sem que fosse portadora de qualquer título de transporte válido.
Interceptada pelo revisor da CP daquele comboio a arguida não procedeu ao pagamento do bilhete no montante de 50€ por aquele emitido, nem o fez até hoje.
A arguida actuou da forma descrita, tendo efectuado a sua viagem naquele comboio, com intenção de não pagar o respectivo bilhete, bem sabendo que a circulação no meio de transporte em causa obrigava ao pagamento do respectivo preço, e que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Compulsados os autos, verifica-se que, em face do auto de notícia de fls. 4, o valor de €50,00 exigido, à arguida corresponde ao bilhete de taxa agravada devido pelos passageiros encontrados a circular sem bilhete válido, nos termos do n.° 8 do artigo 14.° da Tarifa de Transportes, aprovada pela Portaria n.° 403/75 de 30 de Junho, alterada pela Portaria n.° 1116/80 de 31 de Dezembro.
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Nos termos do disposto no art.º 311.°, n.° 2, al. a) do C.P.P., o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada, considerando-se a mesma manifestamente infundada se os factos não constituírem crime - cfr. al. d) do n.º 3 do mesmo preceito legal.
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O crime que vem imputado à arguida encontra a sua previsão legal no art.º 220.°, n.° 1, al. c) do C.P. que dispõe que comete este crime quem, com intenção de não pagar, utilizar meio de transporte (...) sabendo que tal supõe o pagamento de um preço e se negar a solver a dívida contraída.
Para preenchimento deste tipo legal torna-se, assim, necessário que o agente voluntária e conscientemente viaje no meio de transporte, no caso dos autos, no comboio, sem bilhete ou outro título apropriado, sabendo que tal utilização supõe o pagamento de um preço, com intenção de não pagar, e se recuse a pagar a dívida contraída.
Ora, compulsada a acusação, em momento nenhum se refere que o bilhete correspondente ao trajecto efectuado pela arguida correspondia ao valor a que a mesma foi instada a pagar (50,00 Euros) e não pagou.
Falta, assim, desde logo, na acusação deduzida, um elemento factual relevante no apuramento do preenchimento deste tipo de ilícito - recusa de pagar a dívida contraída - visto que não se sabe qual era o montante da dívida contraída, pois em momento nenhum da acusação se refere qual o valor do bilhete devido pela arguida, correspondente ao trajecto efectuado.
Ao invés, resulta dos autos que o valor exigido corresponde ao valor do bilhete de taxa agravada devida pelos passageiros encontrados a circular sem bilhete válido.
Neste tipo de ilícito penal, reportado a factos idênticos aos dos autos, tem sido controversa a questão de saber ao que é que corresponde a dívida contraída, se ao preço do bilhete em singelo ou se ao preço do bilhete acrescido da multa ou taxa devida pela entrada no meio de transporte sem a sua aquisição prévia.
É nosso entendimento que a dívida contraída é o preço do bilhete em singelo sem quaisquer acréscimos ainda que legalmente previstos, pois que estes são já a sanção para a contravenção eventualmente aplicável ao caso.
Deveria, assim, da acusação constar qual o montante do preço do bilhete devido pelo trajecto efectuado pela arguida.
Face ao exposto, conclui-se que os factos constantes da acusação não integram a previsão legal do tipo de ilícito que vem imputado ao arguido, pelo que rejeito a acusação deduzida pelo Ministério Público contra B…………….

Notifique.
Após trânsito dê baixa e remeta os autos ao Ministério Público.».
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A jurisprudência sobre a questão em apreço está muito dividida.
O STJ, em Ac. de 21/10/87, BMJ 370, 312, considera que «A conduta do passageiro que se faz transportar de comboio sem estar munido do respectivo título de transporte válido pode integrar a previsão das normas contravencionais dos artºs. 39º e 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro aprovado pelo Dec.-Lei nº 39/80, em caso de negligência, ou da norma criminal da al. c) do nº 1 do artº 316º (actual 220º) do CP, em caso de dolo».
Por sua vez o Ac. da Relação de Évora de 4/4/2000, in CJ XXV, t II, 283, considera que «o passageiro que utilize o transporte ferroviário sem possuir título de transporte válido, comete a contravenção prevista e punida pelos artigos 39º e 43º do Regulamento.... e não o crime de burla», mantendo-se em vigor o Regulamento para Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro.
Já o Ac. dessa mesma Relação, de 11/4/00, a fls. 287 da mesma CJ, entende que «A utilização de transporte público, sem título válido, sabendo e tendo consciência de que deve pagar um preço por essa utilização recusando-se, no entanto, a pagá-lo, constitui o crime de burla, previsto e punido na alínea c) do nº 1 do artigo 220º do CP).
Neste último Aresto considerou-se que o elemento integrador do crime de burla p. e p. no artº 220º do CP, “se negar a solver a dívida contraída”, era o não pagamento do preço do bilhete, sem qualquer acréscimo, nomeadamente uma sobretaxa por não se ser possuidor de bilhete.
Como já decidimos nos acs. proferidos nos processos nº 5630/03, 6954/04 e 6855/05, relatados pelo ora relator, parece-nos ser de acolher esta última solução.
Sobre a mesma questão e em recurso do mesmo Tribunal já foi decidido por Ac. de 4/10/2006, proferido no processo 0613692, da 1ª Sec., desta Relação (in dgsi.pt), no sentido por nós defendido.
Em sentido contrário, além de outros, os Acs. desta Relação de 8/1/03, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo I/2003, p. 207 e de 29/6/05, no proc. nº 1016/05, em que foi relatora a ora 1ª Adjunta (Drª Isabel Pais Martins).
O crime de burla para a obtenção de alimentos, bebidas ou serviços está previsto no citado artº 220º, onde estão previstas várias situações que o integram. Não se compreendendo que, por ex., para o caso de não pagamento de uma refeição a dívida fosse apenas o preço do almoço e para a viagem de transporte público já fosse o preço de bilhete acrescido de acréscimos por falta desse bilhete.
Concordamos com o Ac. RC, de 3/11/03, publicado na Colectânea de Jurisprudência, Tomo V/2003, p. 39 e ss., onde se escreveu: «De avivar, desde já, que a dívida contraída é o preço do bilhete e, nunca, os acréscimos previstos, pois que estes são já a sanção para a contravenção.».
Até o próprio acto de autuação referido na “queixa” anda ligado à ideia de aplicação de multa. E do auto de notícia consta que o arguido foi informado de que não pagando os 50 euros ficava “sujeito ao pagamento do décuplo daquela importância, ou seja Euros 500,00, de acordo com o disposto no nº 8 do artº 14 da Tarifa Geral de Transportes, Parte I, aprovado pela Portaria nº 403/75…..».
A sanção para o não pagamento atempado dos 50 euros é o pagamento do décuplo dessa importância, ou seja a sanção para a contravenção.
Desse auto de notícia consta que, além de ter infringido os artºs 39º e 43º do Regulamento para a Exploração e Polícia dos Caminhos de Ferro (contravenção), também “cometeu o crime previsto na alínea c) do nº 1 do artº 316º do Código Penal”. Com o não pagamento dos 50 euros a arguida teria cometido uma contravenção e um crime, o que não pode ser.
Antes de entrar no comboio a arguida tomou a resolução de viajar “de borla” e sabendo que tinha que adquirir bilhete antes do embarque não o fez. Parece-nos ser esta a dívida contraída – o preço do bilhete adquirido na bilheteira ou na máquina. O “acréscimo” para 50 euros, o mínimo, para o preço do bilhete tem que ser considerado como uma penalização. Qual era a quantia em dívida no caso da arguida não ter sido encontrada a viajar sem bilhete e só passado um mês a CP tivesse conhecimento do facto e participasse criminalmente? O preço do bilhete na bilheteira (1, 2 euros?) ou o mínimo de 50 euros, montante que seria devido se tivesse intervindo a fiscalização?
Como se refere na acusação, o que a arguida sabia era “que a utilização, como passageira, daquele meio de transporte a obrigava à aquisição prévia de bilhete e ao pagamento do respectivo preço”. O efectivo prejuízo da CP foi o preço do bilhete e foi esse o prejuízo que a arguida sabia e decidiu que ia causar.
Para que se verifique a consumação do crime torna-se necessário que se verifiquem os seguintes requisitos: intenção de não pagar; utilização de meio de transporte; saber que tal pressupõe o pagamento de um preço; recusa de solver a dívida contraída.
A intenção de não pagar, conforme se escreveu no Ac. da RE, de 11/4/00, acima citado, «…essa intenção deverá ocorrer antes da autuação, isto é, imediatamente antes da viagem ou no decorrer desta, e, assim, da acusação deveria constar que a arguida utilizou o transporte com o antecedente propósito de não pagar… a assim não se entender, estaríamos a confundir essa prévia intenção de não pagar com o dito quarto requisito, ou seja, “o negar-se a solver a dívida contraída”».
Como se refere no Ac. 0613692, acima referido, citando o Ac. proferido no proc. 0612288, «considerar que a expressão “dívida contraída” engloba também o montante das multas ou “sobretaxas” (ou seja, das quantias devidas a título de sanção) só seria possível através de uma interpretação extensiva e, “… como se sabe, a adopção de interpretações extensivas para efeitos de incriminação de condutas é violadora do princípio da tipicidade, enquanto uma das dimensões do princípio da legalidade, decorrente do art. 29.º, n.º 1 da C. Rep. e 1.º do Código Penal.”».
Da acusação não constam factos que integrem o requisito acima referido de recusa de solver a dívida contraída (preço do bilhete adquirido antes de embarcar).
Faltando um dos elementos constitutivos do crime de burla, p. e p. no artº 220º, nº 1, al. c) do CP, é evidente que outra solução não há que não seja a rejeição da acusação.

DECISÃO

Em conformidade, decidem os juízes desta Relação em, negando provimento ao recurso, manter a decisão recorrida.

Sem tributação.

Porto, 15 de Novembro de 2006
Joaquim Rodrigues Dias Cabral
Isabel Celeste Alves Pais Martins (com a seguinte declaração de voto: daria provimento ao recurso pelos fundamentos do acórdão de 29.6.2005, no recurso nº 1016/05, desta relação do qual fui relatora, publicado no C.J. Tomo III, 2005, pag. 222-223)
David Pinto Monteiro