Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
3459/16.0T8VFR.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: RGIT
FRAUDE FISCAL
FACTURAS FALSAS
CONDIÇÃO OBJECTIVA DE PUNIBILIDADE
VALOR
CÁLCULO
Nº do Documento: RP201812183459/16.0T8VFR.P1
Data do Acordão: 12/18/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 58/2018, FLS 66-79)
Área Temática: .
Sumário: I – A norma do nº 2 do artigo 103º do RGIT é uma condição objectiva de punibilidade.
II – Assim sendo, só poderá ser punido o crime de fraude fiscal que atinja o valor de quinze mil euros.
III – Esse valor, no caso de facturas falsas, implica que se calcule não só os efeitos decorrentes do IVA indevidamente deduzido, mas também os decorrentes da concomitante adulteração dos valores para efeitos de cálculo do IRC, sendo a esse valor global que deverá atender-se.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 3459/16.0T8VFR.P1.
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1). Relatório.
O M.º P.º interpõe recurso da decisão proferida em 07/02/2018 pelo Juízo Local Criminal de Santa Maria da Feira, juiz 2, que absolveu
B..., nascida em 01/01/1974, natural ..., Santa Maria da Feira, filha de C... e de D..., divorciada, residente em ..., ..., Inglaterra da prática, em autoria material, de um crime de fraude fiscal qualificada, p. e p. pelos artigos 103.º, n.º 1, a) e 104.º, n.º 1, alíneas d) e e), e nºs. 2 e 3, do R. G. I. T. (Regime Geral das Infracções Tributárias).
Em síntese, o recorrente alega que:
. discorda do entendimento segundo o qual a condição de punibilidade (o crime não é punível se se a vantagem patrimonial ilegítima for inferior a 15.000 EUR) deve ser aferida relativamente a cada emitente e quanto à vantagem que cada emitente foi apto a produzir;
. o crime de fraude fiscal é um crime específico, ou seja, um crime que apenas pode ser praticado por quem detenha qualidades pessoais ou sobre quem recaia um dever especial ou que certa situação de facto típica seja fonte desse dever, no caso, o dever especial de declarar certo ato e pagar o imposto respetivo;
. deve então imputar-se a prática do crime desde logo ao destinatário da norma (aquele sobre quem impende o dever de se proceder à declaração e pagar o imposto em causa), sem prejuízo de se mostrar aplicável o regime da comunicabilidade previsto nos artigos 28.º e 29.º do C.P., por força do artigo 3.º, do R.G.I.T.;
. o ato de se emitir e entregar a terceiro faturas falsas por si só não preenche o tipo de crime de fraude fiscal, sendo que aquele que emite as faturas deverá ser punido como co-autor, já que tem o domínio do facto de que depende a sua participação no acordo (no caso, a emissão e entrega da factura falsa);
. sendo aquele limite de 15.000 EUR uma mera condição objetiva de punibilidade, em nada contende com o dolo, nomeadamente com o elemento intelectual do dolo pelo quando se afirma na sentença recorrida que «não se tendo sequer apurado qualquer conluio ou concertação entre todos os emitentes e aquele utilizador mas apenas entre este último e cada um dos emitentes, individualmente considerados, não havendo conhecimento da intervenção paralela dos demais sujeitos, não há, por isso, qualquer fundamento objetivo ou subjectivo para a imputação da conduta global do utilizador à arguida», este raciocínio faria sentido se se considerasse tal limite um elemento do tipo sendo assim necessário que o agente que emite as facturas tivesse conhecimento que as mesmas iriam ser utilizadas, juntamente com outras, numa declaração que visava vantagem superior a 15.000 EUR;
. mesmo segundo esta interpretação, sempre a conduta do emitente pode ser imputada a título de dolo eventual;
. estando provado que a arguida emitiu e entregou uma fatura no valor de 53.845 EUR e que esta foi integrada numa declaração de IRC apresentada pela sociedade E..., Unipessoal Lda. relativa ao ano fiscal de 2007 e que por via dessa declaração esta sociedade veio a obter vantagem ilícita no valor de 29.319,53 EUR, o Tribunal não pode deixar de considerar que a arguida deve ser punida enquanto co-autora do crime de fraude fiscal.
. mesmo que para aquele valor de 29.319,53 EUR tenham contribuído outras faturas, emitidas por outros agentes diferentes da arguida, aquele limite dos 15.000 EUR reporta-se apenas ao valor da vantagem patrimonial obtida por reporte a cada declaração fiscal, sendo que não se compreenderia que numa situação em que um utilizador se munisse de diversas faturas, emitidas por diferentes emitentes, que isoladamente não representassem vantagem superior a 15.000 EUR, fosse aquele condenado pela prática do crime de fraude fiscal e os co-autores do crime (os emitentes), não fossem objeto de qualquer censura penal.
. a circunstância de o emitente ter contribuído para uma parcela menor da vantagem ilícita, deverá ser tida em conta pelo aplicador em sede de determinação da medida da pena.
. o tribunal violou o Tribunal o disposto nos artigos 103.º, n.º1 a), artigo 104.º, n.º 1, d) e e), nºs. 3 e 4, do R. G. I. T., e artigo 28.º, n.º 1, do C. P..
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Não houve resposta a este recurso.
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste tribunal da relação emitiu parecer no sentido de ser dado provimento ao recurso pelos motivos constantes do recurso.
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2). Fundamentação.
2.1). Foram julgados provados os seguintes factos:
«Da acusação pública:
1). A sociedade “E..., Unipessoal, Lda.”, pessoa colectiva n.º ........., tinha por objecto social a fabricação de rolhas de cortiça, seu comércio e exportação, a que corresponde CAE ......
2). Encontrava-se colectada, para efeitos de Imposto sobre o Rendimentos das Pessoas colectivas (doravante IRC), no Concelho de Santa Maria da Feira, no regime geral de tributação e, em termos de Imposto sobre o Valor Acrescentado (doravante IVA), enquadrado no regime normal de periodicidade mensal.
3). F... era o sócio gerente da sociedade “E..., Unipessoal, Lda.”.
4). F... e a arguida sabiam a forma como funcionava a incidência fiscal, designadamente em sede do I.V.A., onde o apuramento do imposto devido em cada período (mensal ou trimestral) é feito pela dedução ao imposto liquidado do imposto suportado nas aquisições, isto é, que os sujeitos passivos de I.V.A. suportam impostos nas aquisições de bens e serviços efectuados a outro sujeito passivo (I.V.A. dedutível) e liquidam I.V.A. nas transacções por si efectuadas (I.V.A. liquidado), sendo do encontro desses dois valores que se apura o imposto a pagar em cada período pelo sujeito passivo, ou então o crédito do imposto a receber.
5). Assim, F... sabia que se a sociedade “E..., Unipessoal, Lda.”, que então geria, apresentasse na sua contabilidade valores que na realidade não suportou, procurando que o I.V.A. que pagou anulasse o I.V.A. que recebeu e que deveria ser entregue ao Estado, poderia induzir em erro a Administração Fiscal e, por este meio, à custa do Estado e da comunidade contribuinte, obter vantagens patrimoniais indevidas e susceptíveis de causarem diminuição das receitas tributárias.
6). Igualmente sabia F... que em sede de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas, a apresentação na contabilidade de despesas que não fossem efectivamente suportadas, incrementava os custos, diminuindo o lucro tributável e, consequentemente, o valor do imposto a pagar.
7). Em data não concretamente determinada, E..., na qualidade de sócio-gerente e em nome e representação da sociedade “F..., Unipessoal, Lda.”, decidiu levar a efeito um plano, a concretizar-se nos anos de 2007 e 2008 no intuito de obter proveito económico em detrimento do Estado Português – Fazenda Nacional.
8). Na execução de tal plano previamente traçado, F... ou alguém a seu mando, contactou a arguida B... e solicitou-lhe, directamente ou por interposta pessoa, que emitisse uma factura donde constasse a realização por ela de vendas de rolhas à sociedade E..., Unipessoal, Lda., e que lhe passasse a guia de remessa e o recibo do pagamento do preço respectivo, sem que tal compra tivesse sido efectuada, nada tendo sido adquirido, nem o respectivo preço pago, oferecendo-lhe, como contrapartida, o pagamento de valor não concretamente apurado.
9). Assim, na execução de tal plano previamente traçado, o arguido F... ou alguém a seu mando, contactou B..., a qual emitiu e assinou a seguinte factura, factura que foi entregue ao arguido F... ou ao seu representante:»
. fatura n.º 3, de 28/09/2007, no valor de € 53.845, com valor de IVA liquidado de € 9.345.
«10). A referida factura, de acordo com o plano idealizado por F... e ao qual aderiu a arguida B..., foi integrada por F... na contabilidade da sociedade “E..., Unipessoal, Lda.” como se de verdadeiro custo se tratasse e o montante líquido de tal documento, considerado como despesa/custo da actividade da sociedade arguida na declaração periódica de rendimentos (Modelo 22) relativa ao exercício de 2007, apresentada na Repartição de Finanças de Santa Maria da Feira.
11). Assim, utilizando a referida factura forjada, F..., actuando em nome e representação da sociedade “E..., Unipessoal, Lda.” preencheu a declaração periódica enviada ao SIVA, deduzindo ao montante de IVA liquidado nas suas operações de venda e prestação de serviços a terceiros/clientes da empresa, o montante do imposto que foi ficticiamente facturado, conseguindo induzir em erro a Administração Fiscal.
12). Além disso, relativamente ao I.R.C., a contabilização do valor líquido da referida factura pela sociedade, bem como da factura n.º 95, de 20/01/2007, no valor de € 122.331, emitida pela sociedade “G..., Unipessoal, Lda.”, também ela sem correspondência com qualquer transacção real, na conta de compras provocou um aumento indevido dos custos do exercício, traduzindo-se estes na diminuição dos resultados obtidos, no ano de 2007, que fez diminuir o IRC a pagar e a entregar aos Cofres do Estado no ano de 2007 no valor de € 29.319,53.
13). Com efeito, no âmbito do processo comum colectivo n.º 1047/08.4TAVFR, da 2ª Secção Criminal da Instância Central de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro (J2), foi dada como provada a seguinte factualidade: «Os Arguidos conheciam como se desenvolvia a incidência fiscal, designadamente que, em sede de IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado), o apuramento do imposto devido em cada período é efectuado pela dedução, ao imposto liquidado, do imposto suportado no pagamento das aquisições; isto é, que o operador económico pode deduzir em cada período de imposto o IVA incluído nas facturas de aquisição de bens e serviços, sendo o imposto a entregar ao Estado o que resulta da diferença entre o IVA liquidado nas facturas de venda e o IVA incluído nas facturas de aquisição de bens e serviços. Assim, os Arguidos sabiam que se apresentassem na contabilidade das empresas que geriam ou das actividades que desenvolviam como empresários em nome individual do sector corticeiro, ou se possibilitassem contabilizar a terceiros que geriam empresas ou desenvolviam actividades empresariais no sector corticeiro, valores que na realidade não tinham suportado, procurando que o IVA que tivessem pago anulasse o IVA que tivessem recebido e que deviam entregar ao Estado, ou mesmo receber do Estado (no caso de terem pago mais do que tinham recebido), poderiam induzir em erro a Administração Fiscal e, por essa forma, à custa do Estado e da comunidade contribuinte, aceder a benefícios fiscais indevidos, designadamente através da dedução indevida do referido imposto, ocasionando dessa forma uma diminuição das receitas tributárias do Estado. Com tal conhecimento, parte dos Arguidos, com o objectivo de obterem vantagens patrimoniais indevidas, solicitaram a outra parte dos Arguidos a entrega de facturas em branco (que depois preencheram) ou o preenchimento e entrega de facturas, não correspondentes às transacções ou às prestações de serviços nelas inscritas (bem como os correspondentes recibos e por vezes as correspondentes guias de remessa), facturas que contabilizaram, ou fizeram com que fossem contabilizadas, nas empresas ou nas actividades empresariais que geriam do sector corticeiro, deduzindo ilegitimamente o IVA inscrito nas referidas facturas, nas declarações periódicas, deixando assim de entregar ao Estado o IVA inscrito nas facturas, obtendo desse modo vantagens patrimoniais indevidas à custa do Estado e de toda a comunidade contribuinte. Como compensação e contrapartida pela emissão e entrega das facturas acima referidas, os Arguidos utilizadores daquelas entregaram normalmente quantias monetárias cujos valores concretos não se lograram concretamente apurar, beneficiando, assim, também os emitentes de forma ilegítima com tais factos, para além de permitirem aos respectivos utilizadores a obtenção de vantagens patrimoniais indevidas, conforme infra se concretiza. Os referidos emitentes, por regra, não cumpriam as suas obrigações fiscais, não entregando as declarações periódicas de IVA, nem pagando os respectivos impostos, motivo pelo qual podiam emitir facturas não correspondentes a qualquer transacção comercial ou, quando cumpriam as suas obrigações fiscais, por norma adquiriam facturas não correspondentes a transacções reais a outros a fim de compensar aquelas. Por outro lado, com o objectivo de dissimular a falsidade das referidas facturas, e de acordo com plano previamente engendrado pelos Arguidos, os Arguidos emitentes, a solicitação dos utilizadores, entregaram igualmente recibos referentes às mesmas facturas, que os Arguidos utilizadores arquivaram e registaram, ou fizeram registar, nas contabilidades das suas empresas ou actividades empresariais. Por vezes, a entrega de facturas era efectuada por terceiros que serviam de intermediários entre os emitentes e os utilizadores de facturas não correspondentes a transacções reais, sendo que os referidos emitentes tinham conhecimento que as facturas que entregaram iriam ser utilizadas por empresários na obtenção de vantagens fiscais ilícitas, porquanto as transacções nelas inscritas não iriam ocorrer na realidade. (…) Por escritura pública, datada de 24-01-2003, lavrada no Cartório Notarial do Centro de Formalidades das Empresas de Coimbra, o arguido F... constituiu a sociedade comercial unipessoal por quotas denominada E..., Unipessoal Lda., cujo objecto social consiste na “indústria e transformação de cortiça, seu comércio e exportação”, situando-se a sua sede na Rua ..., nº ..., ..., Santa Maria de Feira. A referida sociedade tinha como único sócio e gerente, o arguido F..., sendo este Arguido quem de forma exclusiva geria e controlava a sociedade E..., Unipessoal Lda., designadamente realizando todos os contactos com clientes e fornecedores, dispondo de todos os documentos bancários, contabilísticos, controlando as contas bancárias, a emissão e contabilização de facturas e recibos, o cumprimento das obrigações contabilísticas, fiscais, entre outras. Como contribuinte, a E..., Unipessoal Lda. é titular do NIPC ..........., estando colectada para o exercício de “indústria de cortiça – CAE .....”, enquadrando-se, para efeitos de IVA, no regime normal de periodicidade trimestral até 31.12.2006 e no regime de periodicidade mensal de 01.01.2007 até 31.12.2008, estando sujeita a IRC pelo regime geral. O arguido F... enviou aos Serviços Fiscais competentes as declarações periódicas de IVA da E..., Unipessoal Lda., referentes aos períodos de imposto dos anos de 2006 e 2007. O arguido F... resolveu angariar documentação comprovativa de negócios não efectuados com terceiros (facturas emitidas por terceiros cujo negócio que titulavam não tinha ocorrido na realidade – facturas falsas) e utilizar as mesmas na contabilidade da sociedade E... – Unipessoal Lda., possibilitando-lhe assim a dedução do IVA respectivo, alegadamente pago. No seguimento de tal resolução, o arguido F..., com o objectivo de obter benefícios fiscais indevidos, acordou designadamente com os arguidos H... e I... (gerente da G..., Unipessoal Lda.) ou com terceiros, receber e utilizar na contabilidade da E..., Unipessoal Lda. várias facturas emitidas por aqueles, sem que às mesmas correspondessem transacções ou prestações de serviços efectivos, com vista a que o arguido F..., na qualidade de gerente de facto da sociedade E... – Unipessoal Lda., deduzisse indevidamente o montante de IVA correspondente a tais facturas, sendo certo que todos os Arguidos conheciam perfeitamente o mecanismo e natureza de tal imposto e que, com tal actuação faziam diminuir as receitas do Estado em seu próprio benefício. Deste modo, o arguido F... contabilizou na escrita da E..., Unipessoal Lda. e indevidamente deduziu e deixou de entregar ao Estado o IVA inscrito nas seguintes facturas timbradas em nome de:
- H... que, como se tratassem de verdadeiras (isto é, correspondendo a transacções reais), entregou e preencheu, ou permitiu que preenchessem, as seguintes facturas, timbradas com o seu nome, não correspondentes a transacções reais, nos períodos e montantes que a seguir se discriminam:

- G..., Unipessoal Lda, sendo que I..., como se tratassem de verdadeiras (isto é, correspondendo a transacções reais), entregou e preencheu, ou permitiu que preenchessem, as seguintes facturas, timbradas com afirma G..., Unipessoal Lda., não correspondentes a transacções reais, nos períodos e montantes que a seguir se discriminam:

As supra referidas facturas não correspondem a transacções efectivamente realizadas, porquanto os negócios que titulam não ocorreram na realidade. Não obstante, o arguido F... registou as mesmas, ou fez com que fossem registadas, na escrita da sociedade E..., Unipessoal Lda., como se fossem verdadeiras, tendo deduzido o IVA nelas mencionado nas declarações periódicas de IVA, com o objectivo de obter benefícios indevidos. Para simular a falsidade das referidas facturas timbradas com o nome de H..., o arguido F... igualmente emitiu, ou fez com que fossem emitidas, guias de remessa, nas quais consta como meio de transporte utilizado no transporte dos alegados fardos de cortiça a viatura de matrícula ..-..-VN, a qual corresponde a uma viatura ligeira de mercadorias, marca Mitsubishi, modelo ..., autorizada a transportar no máximo 7.000 kg. Porém, a factura nº 360 supra referida, tem associada como documento de transporte a guia de remessa nº ..., com a mesma data da factura, referente ao alegado fornecimento e transporte de 180 fardos de cortiça ¼. Ora, cada fardo de cortiça pesa em média cerca de 70 ou 75 kg cada, pelo que pesariam, no seu conjunto, cerca de 12.600 kg /13.500 kg, não tendo assim a referida carrinha capacidade para transportar os mesmos. Do mesmo modo, a factura nº 368 supra referida tem associado como documento de transporte a guia de remessa nº ..., com a mesma data da factura, referente ao fornecimento e transporte de 150 fardos de cortiça 1/3. Porém, uma vez que os 150 fardos pesariam, no seu conjunto, cerca de 10.500 kg / 11.250 kg, constata-se que a referida carrinha não tinha capacidade para transportar os mesmos. Para simular a falsidade das supra referidas facturas timbradas com a firma G..., Unipessoal, Lda., o arguido F... igualmente emitiu, ou fez com que fossem emitidas, guias de transporte timbradas com a firma G..., Unipessoal Lda., nas quais se consigna como viatura que procedeu ao transporte, a viatura com a matrícula ..-..-BL. Esta viatura encontrava-se registada, na data dos factos, em nome de J.... O arguido F... agiu de forma livre, voluntária e consciente, utilizando facturas emitidas por terceiros não correspondentes a transacções reais e introduziu-as na contabilidade da empresa que geria, E..., Unipessoal Lda., deduzindo o valor do IVA nelas inscrito nas declarações periódicas de IVA, não obstante saber que as mencionadas facturas titulavam transacções inexistentes, e como tal simuladas, actuando com o objectivo de defraudar, como efectivamente defraudou, a Fazenda Nacional, pelo menos em sede de IVA, e assim obter benefícios fiscais e patrimoniais indevidos. Com a dedução do imposto de IVA implícito nas supra referidas facturas falsas, o arguido F... deixou de entregar nos cofres do Estado o IVA inscrito nas facturas supra referidas, obtendo, desse modo, uma vantagem patrimonial em sede de IVA no montante que a seguir se discrimina:
Ano Trimestre Vantagem Patrimonial(IVA)
2007 Janeiro 2007 21.231,00 €
2007 Total - 21.231,00 €
O arguido F... sabia que a sua conduta é proibida e punida por lei.».
14). A arguida B... obteve pela emissão e cedência da referida factura, vantagem não concretamente apurada.
15). A arguida B..., ao forjar a factura supra mencionada, bem sabia que a mesma não titulava qualquer transacção realmente efectuada e que apenas se destinava a ser entregue à sociedade “E..., Unipessoal, Lda.”, através do seu sócio-gerente, para que este a utilizasse na contabilidade dessa sociedade e alterasse os factos constantes nas declarações periódicas de IRC e IVA e que serviriam de base à determinação da matéria colectável e, deste modo, viesse a obter vantagens patrimoniais não permitidas por lei, conforme plano previamente delineado.
16). A arguida B... sabia que, ao actuar da forma descrita, punha em causa o valor probatório, segurança e fiabilidade de tal documento, bem como a transacção e custos comerciais que o mesmo se destinava a certificar, e a fé pública que a lei atribui à factura como documento essencial a emitir por cada transmissão de bens ou prestação de serviços e às declarações de imposto como documento idóneo de autoliquidação do imposto devido assente no compromisso de verdade que o contribuinte assume ao emiti-las e entregá-las e que deste modo lesavam os interesses do Estado, nomeadamente os de natureza fiscal.
17). A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
Mais se provou:
18). À data dos factos, a arguida não tinha antecedentes criminais.
19). Após os factos, a arguida foi julgada e condenada:
. por decisão proferida no dia 9 de Junho de 2014, transitada em julgado no dia 25 de Janeiro de 2017, no âmbito do processo comum singular n.º 304/11.7GAVFR, do 1º Juízo Criminal de Santa Maria da Feira, na pena única cento e trinta dias de multa, à taxa diária de € 6, pela prática, no dia 19 de Maio de 2011, de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, 1, do Código Penal, e de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelo artigo 191.º do Código Penal; a que corresponderam as penas parcelares de, respectivamente, trinta e cento e vinte. Tal pena única foi julgada extinta por decisão proferida no dia 28 de Setembro de 2017.
. por decisão proferida no dia 24 de Outubro de 2016, transitada em julgado no dia 23 de Novembro de 2016, no âmbito do processo comum colectivo n.º 16/12.4IDAVR, do J2 da Instância Central Criminal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, na pena de um ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos, subordinada à obrigação de, nesse prazo, proceder ao pagamento à Administração fiscal da quantia de € 25.000, pela prática, no ano de 2008, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelo artigo 104.º, n.ºs 1 e 2, do RGIT.
. por decisão proferida no dia 10 de Novembro de 2016, transitada em julgado no dia 12 de Dezembro de 2016, no âmbito do processo comum colectivo n.º 855/15.4T8VFR, do J2 da Instância Central Criminal de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por cinco anos, subordinada à obrigação de, nesse prazo, proceder ao pagamento à Administração fiscal dos tributos em falta e demais acréscimos legais, pela prática, no ano de 2010, de um crime de fraude fiscal qualificada, previsto e punido pelos artigos 103.º, n.º 1, e n.º 2, e 104.º do RGIT.
20). Durante o ano de 2007, a arguida trabalhou para a sociedade “K...”, auferindo uma remuneração base média de aproximadamente € 300 mensais.
21). E não possuía qualquer bem móvel ou imóvel fiscalmente registado em seu nome.
22). A arguida encontra-se emigrada em Inglaterra, trabalhando como ajudante de cozinha num restaurante, auferindo um vencimento mensal médio de € 1.700 líquidos.
23). Vive em casa arrendada, pagando uma renda de € 670 mensais.».
E foram julgados não provados os seguintes factos:
«Da contestação da arguida:
a) A arguida não conhece pessoalmente ou sequer pelo nome, nunca privou, falou ou teve qualquer ligação pessoal, profissional ou outra com os restantes arguidos pessoas singulares ou pessoa colectiva identificadas na acusação.
b) A aqui arguida nunca esteve ligada a qualquer actividade relacionada com a cortiça ou sequer foi trabalhadora nesse sector de actividade.
c) A aqui arguida emigrou em Outubro de 2008 para Inglaterra.
d) Nos cerca dos 9 meses anteriores à data em que emigrou, dirigiu-se à repartição de finanças para iniciar actividade com vista a emitir recibos verdes para a empresa em S. João da Madeira onde trabalhava no controlo de qualidade de peças eléctricas auto.
e) O início de actividade que pediu na Repartição de Finanças era para emitir recibos verdes relativamente à prestação de serviços de controlo de qualidade à empresa de S. João da Madeira e não para exercer qualquer actividade comercial, industrial ou de prestação de serviços ligada à cortiça ou à sua transformação.
f) Desconhece quem em seu nome pediu livro de facturas, uma vez que, os designados recibos verdes que tinha e emitia para aquela empresa, ao que se lembra foram adquiridos na tesouraria da repartição de finanças.
g) Nunca emitiu qualquer factura, mormente as dos autos, desconhecendo quem as emitiu a que se refere o seu conteúdo.
h) A arguida está convicta que alguém usando o seu nome e a sua identificação, sem a sua autorização e conhecimento, forjaram, falsificaram vários documentos, com vista a emissão das facturas dos autos.
i) A arguida, com os consumos de água e electricidade gasta mensalmente a quantia de £ 122,50.
j) E de transportes públicos, nas deslocações diárias de casa para o trabalho e vice-versa, £ 4, o que perfaz o montante mensal de £120.».
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2.2). Dos fundamentos do recurso.
A sentença recorrida concluiu pela absolvição da arguida B... por entender que se tinha de provar que a conduta da arguida (emissão de fatura falsa a favor de E..., Unipessoal, Lda.) tinha de ser preordenada a infligir um dano patrimonial ao erário público e tinha de ser objetivamente idónea a produzir uma vantagem patrimonial ilegítima não inferior a 15.000 EUR, não se exigindo ainda assim que tal resultado fosse efetivamente alcançado.
E, concretizando, a conduta da arguida não foi idónea a produzir uma vantagem de valor superior a 15.000 EUR uma vez que a fatura falsa que emitiu tinha o valor de 53.845 EUR, com I.V.A. liquidado no valor de 9.345 EUR, tendo ainda sido integrado esse mesmo valor de 53.845 EUR como uma despesa/custo de atividade do ano de 2007 que, em conjunto com uma outra fatura (n.º 95, no valor de 122.331 EUR) em sede de I.R.C., fez com que a empresa E..., Unipessoal, Lda. tivesse um benefício em termos de I. R. C. de 29.319,53 EUR.
A arguida emitiu uma única fatura, não tinha domínio do facto global praticado unicamente pelo utilizador das faturas, não se tendo apurado qualquer conluio ou concertação entre todos os emitentes e o utilizador, não conhecendo a arguida a intervenção dos demais sujeitos.
Assim, por a atuação da arguida não ter atingido aquele valor de vantagem patrimonial ilegítima de 15.000 EUR, então não tem a sua atuação dignidade penal.
Vejamos então.
O recorrente não questiona a apreciação da matéria de facto, nem indica qual eventualmente seria a prova que mereceria outra apreciação pelo que não se aprecia a matéria de facto para aferir, nomeadamente, se houve ou não dolo da arguida em relação à atuação referente à emissão de outra fatura que não a emitida por si.
Prosseguindo, não há dúvida nos autos de que F..., em representação da empresa «E..., Unipessoal, Lda.», decidiu levar a cabo um plano, a concretizar-se nos anos de 2007 e 2008, no intuito de obter proveito económico em detrimento do Estado Português – Fazenda Nacional -.
Na execução desse plano, F... ou alguém a seu mando, contactou a arguida B... e solicitou-lhe, diretamente ou por interposta pessoa, que emitisse uma fatura donde constasse a realização por ela de vendas de rolhas à sociedade «E... …» e que lhe passasse a guia de remessa e o recibo do pagamento do preço respetivo, sem que tal compra tivesse sido efetuada, nada tendo sido adquirido, nem o respetivo preço pago, oferecendo-lhe, como contrapartida, o pagamento de valor não concretamente apurado.
Na execução de tal plano traçado, F... ou alguém a seu mando, contactou a arguida a qual emitiu e assinou a fatura n.º 3, de 28/09/2007, no valor de 53.845 EUR, com I.V A. liquidado de 9.345 EUR, que foi entregue a F... ou a seu representante – factos provados 7 a 9 -.
Assim, a arguida emite uma fatura que titula uma transação comercial que não existiu sendo assim uma fatura que se reporta a «operações inexistentes…» - n.º 2, a), do artigo 104.º, do R.G.I.T. -.
A atuação da arguida consistiu então na emissão de uma fatura que, falsamente, titula uma relação comercial; essa fatura depois foi entregue ao legal representante de uma empresa que deduziu o I.V.A. liquidado (9.345 EUR), tendo ainda sida integrado o valor líquido da fatura (sem I.V.A. – 44.500 EUR -) como uma despesa/custo de atividade do ano de 2007, em conjunto com uma outra fatura (101.100 EUR) em sede de I.R.C., que fez com que a empresa tivesse um benefício em termos deste imposto de 29.319,53 EUR – factos provados 10 a 12 -.
O crime de fraude fiscal, praticado deste modo, é um crime de perigo abstracto-concreto, ou seja, a conduta «é suscetível de causar diminuição das receitas tributárias, não importando que essa diminuição se verifique para a consumação do crime mas é necessário que seja apta a causá-la» - Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, página 225 –
Daí que o artigo 103.º, n.º 1, do R.G.I.T. determine que é fraude fiscal a conduta que seja suscetível de causar diminuição das receitas tributárias mas em que se têm de praticar determinados atos que possam criar tal diminuição de receitas.
O crime que integre a factualidade como a que está em causa nos autos tem uma dupla perspetiva, tomando como base os agentes envolvidos:
. a arguida que emite e entrega a fatura sem correspondência com a realidade que titula;
. o representante da empresa que nesta a incorpora como genuína e se aproveita do seu valor para procurar obter uma vantagem tributária a que não tem direito.
Importa determinar quando se consuma a prática deste crime, em especial para a arguida que é o objeto do recurso.
Para nós, quando uma entidade (singular ou coletiva) emite uma fatura que contém o elenco de uma operação comercial que não existe, entregando a quem a pode usar para obter a diminuição do valor de obrigações tributárias, preenche desde logo os elementos do tipo de crime de fraude fiscal assim que a emite e entrega.
Pensamos que é insuficiente a emissão da fatura para se consumar o crime já que a pode emitir mas se nunca a fizer chegar às mãos de quem a pode incorporar numa declaração tributária, essa mesma emissão não foi apta a causar diminuição de receitas tributárias. A declaração tem de chegar ao alcance da pessoa que vai apresentar a declaração à administração tributária pois só assim se torna possível obter a indicada diminuição de receitas tributárias.
Também se nos afigura que não é necessário para a consumação do crime que o representante da empresa (no caso) apresente a declaração à administração fiscal que inclua aquela fatura já que aqui o que está em causa não é a consumação formal do crime por só então (com a apresentação da declaração) estarem preenchidos os elementos do tipo legal de crime mas antes o, estando já anteriormente consumado formalmente o crime por se terem preenchido na íntegra os elementos do tipo, concretizar-se agora o resultado material sendo este a realização completa do conteúdo do ilícito em vista da qual foi erigida a incriminação – Figueiredo Dias, Direito Penal, I, Coimbra, 207, p. 686 -.
Quando a fatura é emitida e entregue, já está violado o bem jurídico deste crime que é o «dever de colaboração leal dos cidadãos na determinação dos factos tributários» - Germano Marques da Silva, obra citada, página 222 -.
A proteção do património do Estado é o motivo por que se incrimina e daí que que não se exija um efetivo prejuízo do Estado (ao contrário da burla, p. e p. pelo artigo 217.º, n.º 1, do C. P) «bastando-se» com a criação de um perigo concreto de que ocorra tal prejuízo; com a emissão e entrega da fatura, já está violado aquele dever de lealdade; se for incorporada numa declaração fiscal, o perigo adensa-se mas o mesmo perigo já existia e, se for atendida a declaração que incorpora aquela fatura, ocorre o dito prejuízo.
Assim, os factos praticados pela arguida são, como o tribunal recorrido concluiu e o recorrente concorda, integradores de um crime de fraude fiscal qualificada (artigos 103.º e 104.º, n.º 2, a), do R.G.I.T.) que se consuma em momento concreto que não está provado mas que provavelmente será no ano de 2007 – facto 10 –.
O tribunal concluiu então que a arguida praticou o crime mas que, por a fatura que emite ter dado origem a uma dedução de I.V.A. no valor de 9.345 EUR e, integrada em sede de I.R.C., em conjunto com uma outra fatura no valor de 122.331 EUR, diminuiu o I.R.C. a pagar em 29.319,53 EUR, sendo notoriamente o benefício da fatura emitida pela arguida inferior ao valor do I.V.A. deduzido, o crime não é punível.
Não se descriminou o valor da contribuição da fatura emitida pela arguida em sede de I.R.C. para se determinar o valor em que o Estado seria lesado, neste imposto, ou seja, não se concretizou qual o valor do benefício em termos de I.R.C. para a empresa em causa se tivesse sido só esta a fatura a ser descontada ao valor dos proveitos da empresa em 2007 como custos indispensáveis para a realização de proveitos (artigo 23.º, do CIRC então vigente como consta no relatório de inspeção a fls. 15 verso).
Concluiu-se que a fatura emitida pela arguida em conjunto com outra no valor de 122.331 EUR fez diminuir o I.R.C. a pagar em 29.319,53 EUR sendo por isso «notório que o valor do contributo da arguida em tal redução do tributo a entregar ao Estado não poderia suplantar o valor do IVA deduzido, isto é, de €9.354» - fls. 1065 -.
A atuação da arguida provoca dois tipos de diminuição de receitas tributárias:
. dedução indevida de I.V.A. – 9.345 EUR;
. dedução indevida de custo de 44.500 EUR em I.R.C. (valor líquido constante da fatura).
Ora, havendo dois possíveis prejuízos, a conduta da arguida abrange-os, ou seja, a sua conduta é apta a causar ao Estado uma diminuição de receitas tributárias a título de I.V.A. e I.R.C.; daí que não é, para nós, rigorosa a conclusão de que como o valor da contribuição da arguida em relação a I.R.C. não pode ser notoriamente superior a 9.354 EUR, então não é punida a conduta por não atingir o valor de 15.000 EUR previsto no artigo 103.º, n.º 2, do R.G.I.T pois, por exemplo, se fosse de 5.646 EUR já o prejuízo causado pela atuação da arguida era igual a 15.000 EUR.
Não são valores alternativos mas antes valores que se cumulam pois todos integram uma única realidade: a conduta apta a causar um determinado prejuízo total ao Fisco.
Assim, para aferir se a conduta da arguida foi apta a causar um prejuízo em termos de receitas tributárias ao Estado, com a consequente obtenção de vantagem patrimonial ilegítima igual ou superior a 15.000 EUR, é preciso saber qual o contributo em termos de I.R.C. do ano de 2007 que aquela fatura teve para se aferir a medida de prejuízo/vantagem em causa.
O processo contém a contabilidade efetuada pelos serviços de finanças em relação a esta questão, a qual foi ponderada pelo tribunal e não foi questionada por qualquer sujeito processual; assim, para se aferir se é necessário alterar a matéria de facto e eventualmente evitar o reenvio dos autos para se apreciar esta questão – artigo 431.º, a), do C.P.P. -, iremos aferir se há necessidade de alterar a matéria de facto quanto a este ponto.
A fatura em causa tem o valor líquido (sem I.V.A.) de 44.500 EUR.
A fls. 16 consta a correção efetuada em sede de I.R.C. no que respeita às compras, tendo-se deduzido o valor de 145.600 EUR que corresponde à soma das duas faturas de 44.500 EUR (emitida por arguida) e 101.100 EUR (emitida por G..., Unipessoal, Lda.).
Assim, o que há que realizar é operar o desconto unicamente à fatura emitida pela arguida no valor de 44.500 EUR.
Desse modo, em vez de obter um valor corrigido de compras de produtos de 82.320 EUR, obtém-se um valor corrigido desse mesmo item de 183.420 EUR.
Este valor depois é somado à parcela anterior de existências iniciais (38.775 EUR) e às seguintes (fornecimentos, impostos, custos com pessoal, amortizações e custos e perdas financeiros) obtendo-se o valor de 271.131,27 EUR de total de custos.
Este valor subtrai-se então ao total dos proveitos (280.671,02 EUR), obtendo-se o resultado líquido e, no caso, de lucro fiscal de 9.539,75 EUR.
Obtido este lucro tributável, aplicando a taxa normal de 25%, obtém-se um imposto a pagar de 2.284,93 EUR, a que acresce a derrama de 4% (91,39 EUR), no total de 2.376,32 EUR, tendo por base também o apuramento de lucro tributável de fls. 17 verso.
Há umas correções constantes dos «detalhes de liquidação» de I. R. C. de fls. 977, que não têm explicação (nem no documento nem foram dadas pelas duas testemunhas que trabalham nos serviços fiscais ouvidas em julgamento – L... e M...) referente ao valor da derrama mas que, mesmo com correção, não sofre uma alteração de relevo sobre os valores acima referidos, sendo seguramente um acréscimo praticamente residual (se num valor de 1.106,40 EUR se corrigiu para 1.659,60 EUR, naquele valor de derrama de 91,39 EUR a correção, a ter de ser efetuada, seria ainda mais diminuta).
Assim, o contributo da fatura emitida pela arguida em termos de prejuízo para o Estado tributário quanto a I. R. C. foi de 2.376,32 EUR ou um valor muito próximo deste que, na falta de outra informação, se toma como aquele a considerar.
Daí que a conduta da arguida foi apta a causar um prejuízo patrimonial total (I.V.A. e I.R.C.) de 11.721,32 EUR.
Assim, efetivamente, o prejuízo que a Autora podia causar é inferior a 15.000 EUR, não havendo que alterar a matéria de facto pois, apesar de poder constar esse mesmo valor, o certo é que a sentença recorrida raciocinou com base num pressuposto que se vem a verificar ser válido, ou seja, o prejuízo é inferior a 15.000 EUR pelo que, ainda que com uma análise um pouco diversa, se atinge a mesma conclusão.
Definido o valor do prejuízo, importa aferir se a conduta da arguida é punível.
O crime base de fraude fiscal estipula que não é punida a conduta que não seja apta a permitir obter uma vantagem patrimonial inferior a 15.000 EUR; assim, na nossa opinião, também este valor tem de ser aplicado ao crime qualificado, ou seja, se o legislador entende que até aquele montante não tem a conduta dignidade penal, tanto a não tem no caso de ser uma fraude simples como uma fraude qualificada; a censura mais grave em termos éticos quanto a esta última já se reflete nas penas aí estipuladas, não sendo de entender que, por ser qualificada, qualquer valor tem de ser punido – Germano Marques da Silva, ob. citada, página 235 -.
Aplicando-se então esse limite também à fraude qualificada como é o caso, na nossa opinião o que está em causa é que o legislador não quis que o agente do crime fosse punido por atuações que levassem a uma vantagem inferior a 15.000 EUR não só por questões de dignidade penal mas por não querer que se tivesse de proceder a julgamentos por valores que podem ser diminutos.
Optou assim por, em relação a valores inferiores a 15.000 EUR, «se quedar» pela cobrança do imposto; nos restantes casos, entende a conduta como criminalmente punível.
E, estando a questão na punibilidade e não na existência de crime, conclusão que se retira pela leitura da norma «…não são puníveis…» e também pela doutrina que fixa que quando está em causa a punibilidade ou não de uma conduta, o que existe são condições objetivas de punibilidade (veja-se o Ac. de Fixação de Jurisprudência n.º 9/2013, de 24/04/1993, D. R. n.º 80, série I, que cita vária doutrina portuguesa e estrangeira quanto a esta questão), pensamos que tal norma do n.º 2, do artigo 103.º, do R.G.I.T. é uma condição objetiva de punibilidade (veja-se a situação diversa do crime de emissão de cheque sem provisão pós-datado em que a datação posterior é um elemento negativo do tipo legal de crime conforme artigo 11.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 454/91, de 28/12, com a redação conferida pelo Decreto-Lei n.º 316/97, de 19/11, tal como igualmente mencionado naquele Acórdão de Fixação de Jurisprudência).
Assim, só pode ser punido o crime de fraude fiscal que atinja o valor de 15.000 EUR.
A arguida pratica um crime de fraude fiscal qualificada ao emitir e entregar uma fatura de 44.500 EUR a acrescer I.V.A. no valor de 9.539,75 EUR e consuma o crime com tal entrega.
Desso modo a sua atuação foi apta a criar um benefício tributário ilegítimo à empresa «E... …» de 11.721,32 EUR e tão só este valor.
Se depois de consumar o crime, a empresa fez juntar outras faturas em acordo com outras pessoas que não a arguida, que fizeram aumentar tal vantagem patrimonial ilícita, no caso dos autos, a arguida é alheia a tal atuação, não tendo praticado de qualquer modo (autoria, cumplicidade, instigação) qualquer facto relativo a esse aumento de vantagem.
Para se poder concluir que a arguida também era co-autora desse valor total, teria que se provar que tinha igualmente intervindo de algum modo, mesmo que tacitamente, na prática da emissão da outra fatura e na sua entrega, algo que não consta da acusação.
O que sucedeu foi que a arguida fez um acordo com o legal representante da empresa em causa, permitiu a esta obter aquela vantagem patrimonial ilícita e depois, noutra atuação que, como o tribunal recorrido menciona, foi paralela à sua, é praticado um outro crime de fraude fiscal entre o mesmo representante e quem emitiu e entregou a outra fatura.
Ambas as condutas não se tocam, sucedendo que existe uma «verificação causal de várias situações de autoria única, em que cada contribuição pode ser julgada por si mesma, independente das demais» - Sónia Fidalgo, «Responsabilidade Penal por negligência no exercício de Medicina em grupo», página 125 -, pelo que «na atuação paralela, por não haver qualquer acordo entre os agentes, ainda que pratiquem atos dirigidos ao mesmo fim, cada agente é responsável pelo resultado a que a sua conduta individual deu lugar» - Ac. do S.T.J. de 16/01/1990, com sumário em www.dgsi.pt -.
Assim, a arguida «só» comete o crime de fraude fiscal qualificada em causa em relação à fatura que emite e entregue, assim consumando o crime mas, por razões legislativas, não sendo a sua atuação apta a criar um benefício patrimonial ilegítimo igual ou superior a 15.000 EUR, a sua conduta não é punível, pelo que tem de ser absolvida da prática do crime.
Não há que lançar mão do disposto no artigo 28.º, do C. P. uma vez que inexiste qualquer co-autoria aqui em questão.
Deste modo, improcedem os argumentos do recorrente, concluindo-se pelo não provimento do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
*
3). Decisão.
Pelo exposto, julga-se o recurso interposto pelo M.º P.º improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.

Porto, 2018/12/18.
João Venade
Paulo Costa