Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
358/17.2T8OVR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: AMARAL FERREIRA
Descritores: PRINCÍPIO DA RESTAURAÇÃO NATURAL
EXCESSIVA ONEROSIDADE
VALOR A CONSIDERAR
Nº do Documento: RP20200220358/17.2T8OVR.P2
Data do Acordão: 02/20/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Da conjugação dos artigos 562.º e 566.º/1 do C. Civil resulta prevalecer o princípio da reconstituição natural, ou seja, a lei manda reconstituir a situação hipotética não fora o facto determinante da responsabilidade, e só quando se revele impossível, não repare a totalidade dos danos ou for excessivamente onerosa para o devedor, permite a indemnização em dinheiro.
II - Com a expressão “excessiva onerosidade” pretende-se significar as situações em que a restauração natural impõe ao devedor um encargo desmedido, desajustado, que ultrapasse manifestamente os limites impostos a uma legítima indemnização.
III - O valor a considerar para efeito de integração do conceito de “excessiva onerosidade” há-de ser o valor patrimonial do veículo, o valor que o mesmo representa para o património do lesado, e não o seu valor venal.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: TRPorto.
Apelação nº 358/17.2T8OVR.P2. - 2019.
Relator: Amaral Ferreira (1261).
Adj.: Des. Deolinda Varão.
Adj.: Des. Freitas Vieira.

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO.

1. B… instaurou acção declarativa de condenação, com forma de processo comum, contra a seguradora “C…, S.A.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de 8.599,19 €, acrescida de juros de mora desde a citação.
Alega, em síntese, que, na qualidade de proprietário do veículo automóvel de matrícula ..-AI-.., celebrou com a R. um contrato de seguro nos termos do qual esta assumiu a responsabilidade pelos danos próprios do veículo até um capital que, no momento do acidente, ocorrido em 29/12/2016, era de € 8.474,54, acidente que participou à R., que incumbiu uma empresa de proceder à elaboração e relatório dos danos e que orçou o custo da sua reparação em € 12.994,02; na sequência desse relatório a R., que avaliou o salvado em € 3.890,00, comunicou-lhe que, uma vez que a reparação era superior ao capital de cobertura do seguro, se propunha pagar-lhe € 4.584,54; porque com o valor que recebia, somado ao do salvado, não lhe permitia adquirir um veículo da mesma marca, modelo e estado de conservação e, sendo possível a reparação, ficando o veículo em perfeitas condições de circulação, recusou a proposta da R., tendo-lhe comunicado que a oficina do seu pai tinha orçado o custo da reparação em € 7.500,00, com aplicação de peças usadas ou da concorrência e reparação de outras, o que comunicou à R., que considerou ter ocorrido perda total; assim, optou por fazer a reparação, cujo custo ascendeu a € 8.599,19.

2. Contestou a R. que, concluindo pela improcedência parcial da acção e pela sua absolvição parcial do pedido, aceitando ter outorgado o contrato de seguro, a ocorrência do acidente e a peritagem que mandou efectuar na sequência da participação daquele, impugnando parcialmente a factualidade alegada pelo A., designadamente o orçamento e o custo da reparação por ele alegados, aduz que o capital seguro contratado era, como alega o A., de € 8.474,54 e que a indemnização que se propôs pagar era aquela a que estava contratualmente obrigada, nos termos da cláusula 5ª, nº 3, das coberturas facultativas das condições gerais da apólice, dado que o salvado, cujo valor era vinculativo para a entidade que fez a proposta de compra, apenas podia ficar para si se tal tivesse sido estabelecido no contrato, e que, de acordo com cláusula 1ª das referidas coberturas facultativas, ocorre perda total quando o veículo sofra danos de valor igual ou superior ao capital seguro, como era o caso.

3. Respondeu o A. ao que reputou de matéria de excepção alegada pela R., e, reafirmando ter procedido à reparação do veículo e tê-lo submetido à inspecção legal, utilizando-o diariamente, mais sustenta que quando celebrou o contrato de seguro, que incluía a cobertura de danos próprios, estava convicto que os danos nele provocados estavam garantidos até ao capital da cobertura, desconhecendo, por nunca ter sido delas informado, o que torna nulas as respectivas cláusulas, que reputa ainda de abusivas e desproporcionadas, a relativa à situação de perda total no caso de o valor da reparação ser superior ao capital de cobertura e a que prevê que, nessa situação, a R. apenas pagaria a diferença entre o capital de cobertura e o valor do salvado.

4. Em sede de audiência prévia, após prolação de despacho que, tendo considerado que as questões suscitadas pelo A. no que se refere às cláusulas do contrato de seguro invocadas pela R., constituíam ampliação da causa de pedir, porque não alegadas na petição inicial, nem a contestação da R. continha matéria de excepção, como tal só admissíveis com a concordância da R., que disse opor-se à ampliação, foi proferida decisão que, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar ao A. a quantia de € 4.584,54, no mais a absolvendo do pedido.

5. Inconformado, apelou o A., tendo este colectivo proferido acórdão a revogar a decisão que considerou que a R. não havia apresentado defesa por excepção e que o A. havia ampliado o pedido e a anular a sentença recorrida.

6. Remetidos os autos à 1ª Instância, após notificação da R. para exercer o contraditório relativamente ao articulado de resposta apresentado pelo A., o que fez reiterando a posição assumida na contestação, e prolação de despacho que, fixando o valor da causa, afirmou a validade e regularidade da instância, identificou o objecto do litígio e enunciou os temas de prova, procedeu-se a julgamento com gravação da prova produzida, vindo a final a ser proferida sentença que, declarando a factualidade provada e a não provada, com a respectiva motivação, julgou a acção parcialmente procedente e condenou a R. a pagar ao A. a quantia de € 4.584,54, no mais absolvendo a R. do pedido.

7. De novo inconformado, apelou o A., que ofereceu alegações nas quais formula as seguintes conclusões:
1. Deve ser alterado o ponto 5 dos factos provados de modo a que, onde consta “A reparação desses danos custa…”, deve ficar a constar “A reparação desses danos custou …”.
2. Nos termos do contrato de seguro, a Ré assumiu a responsabilidade pelo pagamento dos danos ocorridos no veículo do Autor até ao limite do capital seguro.
3. O princípio da reconstituição in natura só é derrogável quando a reparação não seja tecnicamente possível, não repare devidamente os danos ou for excessivamente onerosa para o devedor da prestação.
4. Tendo o veículo objecto do contrato de seguro sido reparado e submetido à inspecção legal, passando depois a ser utilizado pelo Autor, não existe qualquer salvado.
5. A douta sentença, impondo ao Autor a perda total do veículo e imputando o valor do salvado ao valor do capital da cobertura, reconduz-se a um resultado injustificadamente benéfico para a Ré e gravemente lesivo dos interesses do Autor.
6. Apesar de interpelada para pagar nos termos da presente acção, a Ré não pagou, nem ofereceu em pagamento, qualquer quantia ao Autor.
7. Foi violado o disposto no artº 128º do RJCS e artºs 562º, 566º e 805º do C. Civil.
Termos porque ao presente recurso deve ser dado provimento.

8. A apelada apresentou contra-alegações a sustentar a confirmação da sentença recorrida, concluindo:
1. Considerando que o contrato de seguro que une as partes tem natureza facultativa, pois está em causa a cobertura facultativa de Choque, Colisão e Capotamento, não é admissível ao Recorrente vir alegar o desconhecimento da limitação do capital seguro.
2. A figura da perda total decorre não apenas das cláusulas contratuais mas também da própria lei.
3. In casu, estamos no âmbito de uma relação contratual, em que o Recorrente interveio necessariamente na fixação do capital seguro e constante nas condições particulares da apólice.
4. A partir do momento em que a reparação, sendo possível ou não, ultrapassa o valor fixado pelas partes a título de capital seguro, outra não pode ser a decisão, senão a de considerar que o veículo seguro configura uma perda total,
5. Dispõe o artigo 128º da Lei nº 72/2008, de 16 Abril, que aprovou o Regime Jurídico do Contrato de Seguro, que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro, até ao montante do capital seguro”.
6. Determina ainda o artigo 129º do mesmo diploma legal que “O objecto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer”.
7. Caso a reparação do veículo seguro seja superior ao valor do capital seguro, ao valor do capital terá de ser obrigatoriamente deduzido o valor do salvado que fica na posse do proprietário, ora Recorrente.
8. O contrário, sim, chocaria, porquanto ao Recorrente seria assim pago o valor fixado a título de capital seguro, sendo que, além disso, aquele ficaria ainda na posse do salvado, podendo com ele lucrar.
Nestes termos e nos melhores de direito, que V. Exas. mui doutamente suprirão, não deve ser dado provimento ao presente recurso, mantendo-se a Douta Sentença recorrida, assim se fazendo a COSTUMADA JUSTIÇA!

9. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO.

1. Estão provados os seguintes factos (os que a decisão recorrida teve como provados, improcedente que foi, pelo que se verá infra, na apreciação da alteração requerida pelo apelante):
1. O autor é proprietário do veículo automóvel ligeiro de passageiros de marca Audi, modelo …, matrícula ..-AI-...
2. Em 03.02.2011, o autor (na qualidade de tomador do seguro e segurado) outorgou um contrato de seguro com a ré (na qualidade de seguradora), intitulado “C1…”, titulado pela apólice nº ………. e em vigor na data referida em 3, que integra as condições particulares e especiais de fls. 22 e 23, e as condições gerais e especiais de fls. 34 a 106, cujo teor aqui se dá por reproduzido, nas quais se prevê, entre o mais, o seguinte:
a) Objeto seguro: o identificado em 1;
c) Coberturas facultativas: choque, colisão e capotamento (…);
d) Capital seguro nessa cobertura: €8.474,54, sem franquia;
e) Definição de perda total: “situação decorrente de acidente em consequência do qual o veículo sofra danos de valor igual ou superior ao capital seguro ou não suscetíveis de reparação” - cf. a cláusula 1ª, a fls. 52;
f) Definição de salvado: “veículo que é considerado como perda total” - cf. a cláusula 1ª, a fls. 52;
g) Cálculo da indemnização, em caso de acionamento dessa cobertura: “em caso de sinistro, a C… pagará: a) o capital seguro, deduzido do valor do respetivo salvado (caso este permaneça na posse do seu proprietário), em caso de perda total; b) o custo da reparação do veículo seguro, por incorporação de peças novas, até ao limite do capital seguro, em caso de perda parcial” - cf. o nº 3 da cláusula 5ª, a fls. 54;
3. No dia 29.12.2016, às 08.30 horas, o veículo referido em 1. circulava na Rua …, na localidade de …, tendo o condutor perdido o controlo do mesmo e embatido de frente num eucalipto.
4. Em consequência disso, o veículo sofreu danos na parte da frente.
5. A reparação desses danos custa € 8.599,19.
6. O “salvado” vale € 3.890,00.
7. O autor ficou com o “salvado”.
8. Em 11.01.2017, a ré aceitou pagar ao autor a quantia de €4.584,54, a título de indemnização.

2. Tendo em consideração que o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, não podendo o tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que se trate de questões de conhecimento oficioso, que neles se apreciam questões e não razões, e que os recursos não visam criar decisões novas sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo teor da decisão recorrida, as questões suscitadas na apelação são a alteração da matéria de facto e a integral procedência da acção.

Alteração da matéria de facto.
Tendo o tribunal recorrido considerada provada a factualidade do nº 5. - «A reparação desses danos (os referidos em 4.) custa € 8.599,00» -, sustenta o apelante/A. que deve a palavra «custa» ser alterada para «custou», pretensão que, como se retira do corpo das apelações de recurso, alicerça no facto de a alteração ser conforme ao que alegou e se retirar da fundamentação da sentença.

Depois de referir que, na sequência da participação que lhe fez do sinistro, a R. incumbiu uma empresa de proceder às averiguações e elaborar o relatório dos danos e que o custo da reparação foi orçado pela referida empresa em € 12.994,02, mais alegou o A. na petição inicial o responsável de uma oficina, seu pai, orçou o custo da reparação em € 7.500,00, que referiu ao perito da R., que fez constar do boletim de perda total, pelo que optou por efectuar a reparação, que foi efectuada tendo o seu custo ascendido a € 8.599,19 (artºs 14º a 16º), juntando como documento nº 3 a factura de fls. 11.
Relativamente a essa alegação, a R., aceitando que a reparação foi orçada pela empresa que contratou para o efeito em € 12.994,02, impugnando a demais factualidade, alegou não aceitar o valor constante do documento nº 3 junto pelo A. de que a alegada reparação terá ascendido a € 8.599,19, desconhecer se tal despesa foi efectivamente suportada, porque o referido documento é uma factura manuscrita desacompanhada de recibo de pagamento e que, a aceitar-se tal valor de reparação, ao valor orçamentado teria que ser subtraído o IVA, que só é devido depois de comprovado o pagamento do serviço (artigos 6º e 29º a 33º).
O tribunal recorrido, que no despacho saneador havia enunciado como único tema de prova se “As cláusulas 1ª e 5ª, nº 3, das coberturas facultativas das condições gerais da apólice do contrato de seguro celebrado entre as partes foram comunicadas pela ré ao autor? Como e quando?”, motivou a factualidade do item 5. do seguinte modo:
Quanto ao facto nº 5, existe uma divergência entre as partes sobre o custo da reparação, tendo o autor alegado que a mesma lhe custou €8.599,19 (cf. o artigo 16º da petição inicial) e tendo a ré alegado que o custo é superior, ascendendo a €12.994,02 (cf. o artigo 10º da contestação).
Assim, poder-se-ia concluir, sem necessidade de qualquer prova, que a reparação custa, pelo menos, €8.599,19.
De todo o modo, a versão dos factos alegada pela ré não foi corroborada pela prova produzida sobre esta matéria (prova apenas documental). Efetivamente, o documento de fls. 24 junto pela ré (cópia do relatório de avaliação do custo da reparação, por parte de uma entidade contratada pela ré, em 03.01.2017) refere expressamente a existência de uma oficina que se disponibiliza a reparar o veículo por €7.500,00 e o documento junto pelo autor a fls. 11 (cópia da fatura emitida pela oficina em 15.02.2017) mostra que a reparação foi efetuada pelo preço de €8.599,19.
Por isso, deu-se como provado que a reparação do veículo custa €8.599,19”.

Do que se deixou referido, nomeadamente face à alegação das partes nos articulados, ao tema de prova enunciado e à motivação de facto, de que resulta que a pugnada alteração da factualidade em questão é controvertida e não foi objecto de prova em sede de audiência de julgamento, ao que acresce que os documentos referidos na motivação de facto relativos à reparação, que a apelada impugnou e a que é completamente alheia, não fazem prova das declarações deles constantes, não pode ser dado como provado que a reparação «custou», mas, como consta da decisão recorrida, tão só que «custa».
Improcede, deste modo, a questão.

Integral procedência da acção.
A decisão recorrida, afastando (excluindo) a aplicabilidade das cláusulas do contrato, constantes dos factos provados de 2., por falta de prova de que as mesmas foram comunicadas ao A., cujo ónus impendia sobre a R., julgou a acção apenas parcialmente procedente mediante a seguinte fundamentação:
«Com relevo para o cálculo da prestação que o autor tem a receber da ré, há que atender, então, ao RJCS, uma vez que este diploma regula o contrato de seguro de danos próprios, inclusive na modalidade de seguro de coisas - como o contrato em causa nos autos.
Ora, como já se disse, nos termos previstos no artigo 128º do RJCS, “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Além disso, o RJCS também dispõe que “no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o do valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” (nº 1 do artigo 130º) e que “o objeto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer” (artigo 129º).
Da conjugação desses preceitos legais resulta que, no caso concreto, o cálculo da prestação a pagar pela ré deve ter em conta o valor do veículo antes do acidente (no caso concreto não foi alegado nem se provou qual é esse valor, mas lógica e equitativamente deve corresponder ao valor do capital contratado, ou seja €8.474,54, por nada ter sido referido nos autos sobre a posterior desvalorização do veículo seguro) e o valor “objeto salvo do sinistro”, uma vez que o mesmo ficou na posse do autor - cf. o facto provado nº 7.
Tendo-se provado que o “objeto salvo do sinistro” tem o valor económico de €3.890,00 (cf. os factos provados nº 6), deve deduzir-se essa quantia na prestação devida pela ré.
No mesmo sentido aponta o nº 3 do artigo 41º do Regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, aprovado pelo Decreto-Lei nº 291/2007, de 21 de agosto. Efetivamente, essa norma prescreve que o valor da indemnização por perda total corresponde ao valor venal do veículo antes do sinistro, deduzido do valor do respetivo salvado, caso este permaneça na posse do seu proprietário.
Ou seja, também por via da aplicação dessa norma, com as necessárias adaptações, sempre chegaríamos à conclusão que o valor da prestação a pagar pela ré deveria ser encontrado deduzindo o valor do salvado, quando este se mantém na propriedade do segurado.
E o teor das normas acima mencionadas mostra que a solução convencionada no contrato de seguro para o cálculo da prestação a pagar pelo segurador ao segurado, ao prever a dedução do valor do salvado, não é desproporcional, nem consequentemente abusiva. Trata-se de uma forma que o próprio legislador, ao fixar o Regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, encontrou, para assegurar o equilíbrio das prestações das partes em matéria de indemnização, porquanto se o salvado tem um valor económico e permanece na posse do segurado, é justo que tal valor seja abatido ao quantum indemnizatório.
Como refere Arnaldo Costa Oliveira, na anotação ao artigo 28º do RJCS constante da obra coletiva Lei do Contrato de Seguro Anotada, Almedina, 2009, pág. 365, “a dedução, ao valor da indemnização devida pelo segurador, do valor do salvado que permaneça na posse do proprietário (nº 3 do mesmo artigo 41º [do Decreto-Lei nº 291/2007]) é uma manifestação do princípio indemnizatório [previsto no artigo 128º do RJCS], e não uma sua derrogação”.
Finalmente, importa referir que no contrato de seguro de danos, como o outorgado pelas partes, o segurador se obriga a efetuar a prestação acordada, em caso de ocorrência de um sinistro coberto (cf. o artigo 128º do RJCS), e não a indemnizar o segurado pelos danos que sofreu em consequência do sinistro, de acordo com as regras gerais da responsabilidade civil.
Assim, e sem prejuízo de não serem aplicáveis as cláusulas 1ª e 5ª, nº 3, das coberturas facultativas das condições gerais do contrato de seguro celebrado entre as partes, sempre o autor terá direito a receber da ré a quantia de €4.584,54, correspondente à diferença entre €8.474,54 e €3.890,00.
5. O autor pediu também a condenação da ré no pagamento de uma indemnização moratória, correspondente aos juros vencidos e vincendos desde a citação.
Todavia, tendo-se provado que a ré, em 11.01.2017 (antes da citação), aceitou pagar ao autor a quantia de € 4.584,54, não está a mesma em situação de mora - cf. o facto provado nº 8 e o disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 804º e no nº 1 do artigo 806º do Código Civil, a contrario».
Ou seja, como dela se retira, partiu do pressuposto de que tinha ocorrido perda total do veículo e atribuiu ao A. o montante correspondente à diferença entre o valor seguro e o valor dos «salvados».

Dela discorda o apelante que, pelos fundamentos aduzidos nas conclusões das alegações de recurso, continua a pugnar pela integral procedência da acção, em que peticionou a condenação da R. a pagar-lhe o montante da reparação do veículo.

Em causa está, portanto qual o valor indemnizatório a atribuir ao A.
Não vem questionado, e temos por inquestionável face aos factos provados de 2., que, no caso, estamos perante um contrato de seguro denominado «seguro de danos», regulado nos artºs 123º a 174º do DL nº 72/2008, de 16/04, que instituiu o regime jurídico do contrato de seguro (RJCS).
Em obediência ao princípio da liberdade contratual - artº 405º do Código Civil (CC) -, que se encontra expressamente reafirmado no artº 11º do RJCS, o contrato de seguro é regulado pelas estipulações da respectiva apólice, que não sejam proibidas pela lei e, subsidiariamente, pelas disposições do RJCS e pelas disposições da lei comercial e da lei civil (artº 4º do RJCS, que revogou os artºs 425º a 462º do Código Comercial).
Excluídas que foram na decisão recorrida, sem impugnação, as cláusulas do contrato referidas nos factos provados de 2.e) a g), há que aplicar subsidiariamente as disposições do RJCS e da lei civil.
Sendo o seguro de responsabilidade civil obrigatório, o denominado seguro de danos próprios, que abrange os prejuízos sofridos pelo veículo seguro, ainda que o seu condutor seja responsável pelo evento, que pode incluir várias coberturas, entre elas as de choque, colisão e capotamento, de acordo com opções disponibilizadas pelas seguradoras, que se destina a eliminar prejuízos (contratados) que determinado evento cause no património do segurado, sendo que, em regra, em tal tipo de seguro se estabelece uma quantia máxima para a cobertura do dano nele previsto, pagando-se o montante de tal dano até esse valor.
Sobre o objecto deste tipo de seguro estipula o artº 123º do RJCS que “O seguro de danos pode respeitar a coisas, bens imateriais, créditos e quaisquer outros direitos patrimoniais”.
As disposições pertinentes ao caso constam da Secção III do RJCS, sobre a epígrafe “Princípio Indemnizatório”, que dispõem:
Artº 128º:
A prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro”.
Artº 129º:
O objecto salvo do sinistro só pode ser abandonado a favor do segurador se o contrato assim o estabelecer
Artº 130º:
1. No seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro.
2. No seguro de coisas, o segurador apenas responde pelos lucros cessantes resultantes do sinistro se assim for convencionado.
3. O disposto no número anterior aplica-se igualmente quanto ao valor de privação de uso do bem”.
Por sua vez, estipula o nº 1 do artº 131º (Regime Convencional), que “Sem prejuízo do disposto no artigo 128º e no nº 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização, não devendo esse valor ser manifestamente infundado”.
O citado artº 128º consagra o chamado “princípio indemnizatório” que visa evitar um enriquecimento do segurado com o sinistro nos seguros de danos em coisas, sendo que o nº 1 do artº 130º expressamente prevê a admissibilidade de derrogação desse princípio indemnizatório, consagrando a prevalência, sobre este, do princípio da liberdade contratual.
Foi precisamente para resolver situações criadas pela discrepância entre o valor seguro e o “valor real” do veículo por ocasião do sinistro, que o DL nº 214/97, de 16/8, que permaneceu vigente após o DL nº 72/2008, de 16 de Abril, veio estabelecer um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, com o objectivo de acabar ou minorar com os frequentes litígios surgidos entre o tomador do seguro e as seguradoras a propósito da discrepância entre o valor seguro e o valor indemnizatório apurado por ocasião do sinistro.

Relatadas que se deixaram as posições assumidas pelas partes, em que o A. pretende ressarcido pelo montante que custa a reparação do veículo (€ 8.599,19) e a R., com base na consideração de que ocorreu perda total, pagar apenas a diferença entre o valor seguro e o valor dos salvados (€ 8.474,54 - € 3.890,00 = 4.584,54), a sentença recorrida, não obstante ter excluído do contrato em causa nos autos as cláusulas do contrato referidas nos factos provados de 2.e) a g), designadamente a que definia perda total, decidiu atribuir ao A. a indemnização defendida pela R., essencialmente no pressuposto de que ocorreu perda total do veículo e de que o A. ficou com o «salvado», e apesar de entendido que da conjugação dos citados preceitos legais do RJCS a prestação a pagar pela R. devia ter em conta o valor do veículo antes do acidente, que era o do valor contratado de € 8.474,54.
Discorda-se de tal entendimento.
Como se referiu, o princípio indemnizatório consagrado no artº 128º do RJCS é o de que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro, que, no caso é de € 8.474,54.
O princípio geral em matéria de indemnização é o de que quem está obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (artº 562º do CC), dispondo o art. 566º, nº 1, do mesmo diploma, que a reparação do dano se fará, em princípio, pela reconstituição natural da situação que existia antes da lesão e apenas se fará em dinheiro quando a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Ora, nada permite concluir que a reconstituição natural (reparação do veículo) não era possível ou não reparasse integralmente os danos, pois que a R., relativamente a esta matéria, se limitou a aludir às cláusulas do contrato que definiam perda total e ao critério ou parâmetro definido na artº 41º do DL 291/2007, em função das quais concluiu que a indemnização deveria ser fixada com base em perda total do veículo.
Repare-se que a palavra salvado se encontra transposta dos factos provados entes aspas, pois que foi apenas a R. que alegou ter existido perda total, enquanto o A. sustentou que era possível a reparação do veículo.
O artº 41º, nº 1, do DL 291/2007, de 21/8, que aprovou o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel não pode ser convocado para, sem mais, definir o valor da indemnização devida ao Autor.
Com efeito, o critério aí estabelecido - para apurar os casos em que há perda total do veículo - releva apenas - como decorre dos artºs 31º, 36º e 38º do mesmo diploma - para efeitos de formulação de uma proposta razoável com vista à regularização dos sinistros de forma pronta e diligente por parte das empresas de seguros.
Mas essas propostas e os critérios legais que definem os critérios objectivos em que elas devem assentar não são vinculativos para os lesados e não impedem, naturalmente, que as indemnizações que lhes são devidas venham a ser fixadas em valor superior, sendo que o apuramento dos danos e respectivas indemnizações está submetido às regras fixadas no Código Civil e não aos critérios e parâmetros definidos no diploma supra citado.
E a questão de saber se a reparação é (ou não) excessivamente onerosa não pode ser resolvida com base no critério matemático que está estabelecido no artº 41º, nº 1, do DL 291/2007 e com base na mera circunstância de o valor da reparação exceder o valor venal do veículo, valor esse que não resulta dos factos provados, mas que tem que se entender ser o do valor do capital contratado; tal questão terá que ser resolvida casuisticamente com a devida ponderação das circunstâncias concretas do caso e dos interesses do lesado, tendo presente a ideia de que a reconstituição natural apenas pode e deve considerar-se excessivamente onerosa para o devedor quando houver manifesta desproporção entre o interesse do lesado, que importa recompor, e o custo que a reparação natural envolve para o responsável.
E, para esse efeito, não basta ter em conta o valor venal ou comercial do veículo, antes se impondo - como se refere no acórdão do STJ de 12/01/2006, Proc. nº 05B4176, disponível em www.dgsi.pt. - “…o seu confronto com o valor de uso que o lesado dele extrai pelo facto de dele dispor para a satisfação das suas necessidades”, ou, como é sublinhado no acórdão do STJ de 21/04/2010, Proc. nº 17/07.4TBCBR.C1.S1, no mesmo sítio da Internet, “Um veículo de valor comercial reduzido pode estar em excelentes condições e satisfazer plenamente as necessidades do dono. Nestas circunstâncias a quantia equivalente ao valor de mercado do veículo (muitas vezes ínfima) não conduzirá à satisfação dessas mesmas necessidades, o que equivale a dizer-se que não reconstituirá o lesado na situação que teria se não fosse o acidente, pelo que a situação inicial do lesado só será reintegrada com a reparação do veículo”; “A indagação sobre a restauração natural ou a indemnização equivalente, deve fazer-se casuisticamente, sem perder de vista que se deve atender à melhor forma de satisfazer o interesse do lesado, o qual deve prevalecer sobre o do lesante, sendo pouco relevante, para os fins em análise, que o valor da reparação do veículo seja superior ao seu valor comercial”.
Um veículo muito usado fica desvalorizado e vale pouco dinheiro, mas, ainda assim, pode satisfazer as necessidades do dono, enquanto a quantia equivalente ao seu valor comercial pode não conduzir à satisfação dessas mesmas necessidades e, por essa razão, não reconstitui a situação que o lesado teria se não fossem os danos.
No caso sub judice, sabemos apenas que o custo da reparação do veículo é de € 8.599,19 e que o valor do capital contratado, que, como sublinha a decisão recorrida, deve ser tido como o valor do veículo antes do acidente, é de € 8.474,54, factos que não permitem, só por si, a conclusão de que a reparação era excessivamente onerosa, cujo ónus da prova cabia à R.
Impõe-se, portanto, concluir que o valor do dano sofrido pelo Autor é de € 8.474,54, por esse o valor contratado (artº 128º do RJCS), não obstante a reparação do veículo custar € 8.599,19.
Sobre esse montante incidem juros de mora, à taxa legal, desde a citação, como peticionado pelo A., porquanto o valor proposto pela R. e referido em 8. dos factos provados não corresponde à prestação que se encontrava obrigada a satisfazer - artº 805º, nº 1, do CC.
Procede, assim, parcialmente a apelação.

III - DECISÃO.

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta Secção Cível do Tribunal da Relação do Porto em julgar parcialmente procedente a apelação e, consequentemente, em alterar a sentença recorrida e condenar a R. a pagar ao A. a quantia de 8.474,54, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
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Custas por A. e R. na proporção do decaimento.
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Porto, 20/02/2020
Amaral Ferreira
Deolinda Varão
Freitas Vieira