Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
30/21.9T8PVZ.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ARISTIDES RODRIGUES DE ALMEIDA
Descritores: CONTRATO DE SEGURO
FURTO DE VEÍCULO
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RP2023022330/21.9T8PVZ.P1
Data do Acordão: 02/23/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - Quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exactas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida.
II - Havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita; à outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso; por isso o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário.
III - Numa acção em que se pede o pagamento do valor de um veículo automóvel à seguradora que cobria o risco do respectivo furto, a dificuldade do autor de provar o furto (tal como de a seguradora provar o não furto) não justifica que ao arrepio das regras legais do ónus da prova e da análise técnica do valor probatório dos meios de prova produzidos se atribua à apresentação pelo segurado de queixa-crime pelo furto um valor probatório que manifestamente esta não pode ter, atenta a sua natureza, origem e facilidade, já que se trata de um acto voluntário e livre do próprio interessado insusceptível de qualquer controlo ou fiscalização, não valendo mais do que a própria alegação nos articulados da acção.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Recurso de Apelação
ECLI:PT:TRP:2023:30.21.9T8PVZ.P1
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Sumário:
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Acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto:

I. Relatório:
A..., Unipessoal, pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede na Maia, instaurou acção judicial contra B..., S.A., pessoa colectiva e contribuinte fiscal n.º ..., com sede em Lisboa, pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de €59.507,50, acrescida de juros de mora desde a citação e de €92,50 por cada dia de privação de uso, gozo e fruição do veículo ..-XM-.. desde 08.01.2021 até pagamento da indemnização.
Para fundamentar o seu pedido alegou, em súmula, que é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-XM-.. relativamente ao qual celebrou com a ré um contrato de seguro que cobria designadamente o furto do veículo, sendo que em 15-9-2019 o veículo foi furtado à autora, não mais tendo sido recuperado, razão pela qual a autora sofreu um prejuízo correspondente ao valor venal do veículo que era de €15.200,00 e encontra-se privada do uso do veículo desde essa data.
A ré foi citada e apresentou contestação defendendo a improcedência da acção e alegando para o efeito que em resultado da averiguação que promoveu apurou um conjunto de circunstâncias várias que lhe geraram a convicção de que o sinistro dos autos não ocorreu da forma participada, não se tendo verificado um sinistro coberto pelo contrato.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo a acção sido julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1. Na douta sentença, mais precisamente na fundamentação da convicção formada pelo ilustre julgador (pág. 12) exarou-se que, e passamos a citar: “Acresce que a autora não apresentou qualquer documento comprovativo da utilização do veículo entre 08-07-2019 (data da última utilização do carro, de acordo com os elementos registados na chave digital do mesmo) e 15-09-2019 (data em que a autora afirma ter acontecido o furto), por exemplo, qualquer documento demonstrativo de o carro ter passado numa portagem de uma auto-estrada”.
2. Esta constatação contribuiu determinadamente para escorar a convicção do julgador quanto à dúvida que formou no seu espírito sobre a efectiva ocorrência do furto.
3. Trata-se de “facto”, que nunca antes foi falado no decorrer do processo e que somente surge, como “novidade” e “surpresa”, apenas no texto da fundamentação da sentença.
4. O documento cuja junção se pretende demonstra que o veículo furtado de matrícula ..-XM-.. passou numa portagem, em 08/08/2019, pelo menos.
5. Tal documento indica que o veículo circulou efectivamente após 08/07/2019, data da última utilização registada na denominada chave 0.
6. De modo que, tendo a viatura circulado, não é de excluir e é mesmo de supor que a avaria da chave que não permitiu a leitura tenha ocorrido quando esta se encontrava na posse desses averiguadores.
7. Sem embargo, nada permite concluir e/ou afirmar fundamentadamente que o veículo não podia circular com uso da chave cuja leitura não se tornou possível.
8. A junção do documento em causa torna-se, assim, necessária em virtude do julgamento e subsequente decisão proferida em primeira instância, sendo de admitir nos termos das disposições conjugadas dos artigos 651.º, n.º 1 e 423.º, n.º 3, ambos do C.P.C.
9. Nos termos do disposto nos arts. 662.º e 640.º do C.P.C., o Tribunal da Relação pode alterar a decisão sobre a matéria de facto, no caso vertente, uma vez que a apelante a impugnou, os depoimentos estão gravados e constam dos autos todos os elementos e documentos com base nos quais foi proferida.
10. Tendo em conta os depoimentos da legal representante da recorrente e das testemunhas AA, BB, CC, DD e EE, depoimentos estes constantes do sistema de gravação áudio do Citius, concatenados com os documentos constantes dos autos e com o documento ora junto, o tribunal “a quo” podia e devia ter julgado de modo diverso a matéria do ponto 6) da matéria de facto provada e os pontos I), II), IV), VI) e VI) da matéria de facto não provada.
11. A materialidade do ponto 6) deverá dar-se por não provada.
12. E a materialidade dos pontos I), II), IV), VI) e VI) da matéria de facto não provada deverá dar-se por assente e provada.
13. Portanto, espera-se deste Colendo Tribunal, que, fazendo uma apreciação crítica e conjugada das provas, altere a factualidade apurada nos moldes que se deixam preconizados.
14. Efectuadas tais alterações, nos moldes que se deixam sustentados, a acção deverá proceder.
15. A indemnização a pagar pela recorrida deverá, desde logo, abarcar o valor da viatura furtada, no montante de 15.200,00€, visto ser este o seu valor comercial e de mercado e visto também ser este o valor pelo qual estava segura.
16. Ademais, foi com base neste valor, que a recorrida aceitou, que esta calculou - e cobrou - o respectivo prémio de seguro.
17. E, provado que a recorrente utilizava habitualmente a viatura, deverá também ser ressarcida pela recorrida pelo dano correspondente à privação do respectivo uso.
18. Com efeito, quando alguém, como foi o caso da autora, celebra um contrato de seguro facultativo cobrindo o risco de furto do veículo tem a justa expectativa de que o capital correspondente ao valor da viatura lhe seja disponibilizado no prazo previsto no contrato, tendo em vista poder proceder e custear a aquisição de outra viatura.
19. A conduta da ré, ao declinar injustificadamente a realização da prestação reconduz-se a uma manifesta violação das regras da boa-fé, diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses da segurada/credora, aqui recorrente.
20. Esta violação em matéria de cumprimento das obrigações implica que a ré esteja obrigada a indemnizar a autora pelos prejuízos resultantes da sua conduta omissiva, indemnização esta que vai muito para além dos simples juros moratórios.
21. Efectivamente, vários e múltiplos acórdãos, quer do STJ, quer dos Tribunais da Relação, vêm reforçando e sedimentando um entendimento no sentido de que a seguradora tem que suportar os danos decorrentes do atraso injustificado na realização da prestação convencionada.
22. Conforme se decidiu, no douto Acórdão do STJ de 23.11.2017 (in ITIJ), relatado pelo Ilustre Conselheiro Távora Victor, entendeu-se que: “No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.” “A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato”. (-) “A nível indemnizatório não há qualquer duplicação entre a quantia pedida a título de privação do uso e os juros legais. Ambos visam realidades diversas, já que o quantitativo do capital intenta ressarcir o lesado das importâncias despendidas enquanto que os juros intentam penalizar a mora no respectivo pagamento, não sendo aqueles os valores necessariamente coincidentes.”
23. Assim, com o furto da viatura, a autora ficou privada de a usar e fruir e de gozar as vantagens que esses uso e fruição proporcionavam.
24. E, por virtude da injustificada recusa da ré em indemnizar, a autora ficou privada do montante necessário à aquisição de nova viatura para substituir a que foi furtada.
25. É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a privação do uso de um veículo implica um custo, não só pelo facto de o seu proprietário ver o seu direito de propriedade afectado na sua plenitude, mas e também pelo facto de o uso dado ao bem, ter um valor patrimonial.
26. Como se diz no sumário do douto acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 11/11/2009, proferido no processo 8860/06.5TBBRG.GI, in www.dgsi.pt: 3) O proprietário de um veículo tem o direito de usar, fruir e dispor da coisa (art. 1305.º do Cód. Civil), pelo que considera-se que a privação do uso e fruição constitui, de per si, um dano que justifica a reparação: o autor, por virtude da privação do veículo, aliada à circunstância de o réu não assumir a responsabilidade da reparação ou, assente que está a inviabilidade da reparação, a entrega de valor indemnizatório em sucedâneo, ficou, durante esse período de tempo, sem poder retirar da coisa os benefícios e utilidades que ela lhe proporcionava; 4) Este raciocínio vale tanto para as hipóteses em que é possível e viável a reparação do veículo, como para aquelas em que ocorre a perda total deste, não se vislumbrando motivos para distinguir entre ambas as situações: o dano resultante da destruição da coisa não consome o dano pela privação do uso.
27. A ré terá, pois, de indemnizar a autora pelos danos inerentes à privação do uso da viatura furtada, danos estes aos quais, com a sua conduta violadora das suas obrigações contratuais, nomeadamente da omissão do pagamento pontual da indemnização devida, deu causa.
28. Tais danos, de difícil quantificação exacta, deverão ser fixados mediante recurso a critérios de equidade, afigurando-se que, neste quadro, nada terá de exagerado o valor diário indicado na petição inicial.
29. A douta sentença recorrida violou, entre outras normas, os artigos 342.º do C.C. e 414.º do C.P.C.
Nestes termos, concedendo provimento ao presente recurso, revogando a douta sentença recorrida e alterando a factualidade apurada em conformidade com o exposto, e condenando a ré no valor peticionado, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã Justiça.
A recorrida respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida as seguintes questões:
A) Se deve ser admitida a junção do documento apresentado com as alegações de recurso.
B) Se a decisão sobre a matéria de facto deve ser modificada.
C) Se, uma vez alterada a matéria de facto, a ré deve ser condenada a pagar o valor do bem segurado e uma indemnização pela privação do uso do veículo.

III. Os factos:
A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. Encontra-se definitivamente inscrita no registo automóvel, desde 10-07-2019, em nome da autora, a propriedade do veículo automóvel da marca BMW, com a matrícula ..-XM-...
2. A autora celebrou com a ré um acordo, com início em 12-07-2019 e que estava em vigor à data de 15-09-2019, designado por “automóvel ligeiros mais”, ao qual corresponde a apólice n.º ..., sujeito às condições particulares, gerais e especiais constantes do documento 1 apresentado com a petição inicial e dos documentos 1 e 2 apresentados com a contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
3. Em 15-09-2019, a autora apresentou na Esquadra da PSP da Maia uma denúncia por furto do mencionado veículo automóvel nos termos do auto de denúncia com o teor que consta do documento 2 apresentado com a petição inicial (fls. 14v. 15v. do suporte físico do processo), o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
4. No dia 24-09-2019, a autora comunicou à ré o desaparecimento do mencionado veículo automóvel, nos termos do documento intitulado «participação amigável de acidente automóvel», com o teor que consta do documento 2 apresentado com a petição inicial (fls. 13v. 14 do suporte físico do processo), o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
5. A ré declinou a responsabilidade pela cobertura do sinistro participado, o que comunicou à autora através de carta datada de 16-01-2020, com o teor que consta do documento apresentado com o requerimento com a ref.ª 39821810 (fls. 103 do suporte físico do processo), o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
6. Em 12-07-2019, o veículo automóvel da marca BMW, com a matrícula ..-XM-.. tinha um valor de mercado inferior a € 15.200,00.

Para tornar compreensível a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, que abaixo se fará, transcreve-se, de seguida, os factos que a instância julgou não provados:
I. No dia 15-09-2019, pelas 10 horas, FF e BB estacionaram o veículo supramencionado em 1., na via pública, concretamente nas baías de estacionamento existentes na Praça ..., em frente ao nº ..., ..., Vila do Conde.
II. E, nesse mesmo dia, pelas 15:00 horas, FF e BB dirigiram-se ao local onde haviam estacionado o veículo supramencionado em 1. e verificaram que o mesmo lá não se encontrava, tendo alguém subtraído o veículo contra a sua vontade.
III. Foi a autora que indicou à ré, aquando da celebração do acordo referido em 2., que o veículo automóvel da marca BMW, com a matrícula ..-XM-.., tinha um valor de mercado de € 15.200,00.
IV. Em 15-09-2019, o veículo automóvel da marca BMW, com a matrícula ..-XM-.. tinha um valor de mercado de € 15.200,00.
V. O custo de aluguer para a utilização diária de um veículo de características semelhantes às do ..-XM-.. é de € 120,00 por dia.
VI. Até 15-09-2019, a gerente da autora utilizava diariamente o veículo de matrícula ..-XM-.. nas suas deslocações entre a sua residência e a sede da autora e nas deslocações para os mais diversos locais, para aquisição e venda de veículos, para reparação e conservação de veículos, sendo nele que transportava os elementos e materiais de trabalho que necessita na sua actividade profissional, designadamente computador portátil, entre outros.
VII. E utilizava também o veículo ..-XM-.. em deslocações de lazer e passeio, acompanhada do seu agregado familiar, aos sábados e aos domingos.
VIII. Em 15-09-2019, a autora não dispunha de outro veículo motorizado destinado às deslocações de trabalho e de lazer da sua legal representante.

IV. O mérito do recurso:
A] da junção de um documento com as alegações de recurso:
Com as alegações de recurso a recorrente juntou um documento particular composto pela cópia de uma notificação por falta de pagamento da taxa de portagem por uma circulação do veículo ..-XM-.. numa auto-estrada concessionada com o qual pretende demonstrar que esse veículo circulou nas estradas no dia 06-08-2019.
A junção de documentos com as alegações de recurso é um acto processual regulado nos artigos 425.º e 651.º do Código de Processo Civil, os quais fixam os casos em que essa junção é permitida às partes, pelo que estas não gozam de um direito potestativo de natureza processual de apresentarem documentos livremente.
Nos termos da primeira destas disposições legais, depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento. Nos termos da segunda, as partes apenas podem juntar documentos às alegações naquela situação e ainda o caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
A primeira situação que torna admissível a junção reporta-se aos documentos, objectiva ou subjectivamente, supervenientes. São supervenientes os documentos produzidos depois do encerramento da discussão na primeira instância e, bem assim, aqueles cuja existência, apenas foi conhecida pelo apresentante depois desse momento, apesar de terem sido produzidos anteriormente.
No caso, o documento tem data de 16.10.2019 e foi recepcionado pela recorrente em 23.10.2019, pelo que não é, nem objectiva nem subjectivamente, um documento superveniente, uma vez que a acção apenas foi instaurada em 07.01.2021.
Quanto à segunda situação que poderia permitir a junção, a solução depende do que se deve entender por junção tornada necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Esta disposição já existia no antigo Código de Processo Civil estando prevista no artigo 693.º-B, ditado pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, e antes deste no artigo 706.º, n.º 1, mantendo sempre a mesma redacção.
A jurisprudência e a doutrina sempre convergiram na ideia de que a previsão normativa se reporta às situações em que a 1.ª instância conhece oficiosamente de uma questão que não estava suscitada ou tratada pelas partes, toma em consideração meio de prova inesperadamente junto por iniciativa do tribunal ou se baseia em preceito jurídico com cuja aplicação as partes justificadamente não tivessem contado (por todos, Antunes Varela in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 115,º, pág. 95 e segs., e Antunes Varela, Miguel Beleza e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 1ª edição, pág. 517; os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.01.1999 e de 26.09.2012, da Relação do Porto de 29.05.2014, e da Relação de Guimarães de Guimarães de 27.02.2014, todos in www.dgsi.pt).
O que releva, portanto, é que a necessidade do documento não seja preexistente à decisão da 1.ª instância, não seja um dado com o qual a parte devesse contar já antes da decisão e independentemente desta, mas antes algo resultante da própria decisão, no sentido de que é a abordagem feita nesta que torna indispensável o documento e justifica que a parte não devesse contar antecipadamente com essa exigência.
Quando, pelo contrário, a junção do documento corresponde a um dever de diligência que já antes a parte sabia ou devia saber que a onerava e a decisão de 1.ª instância é uma das que a parte tinha a obrigação de contar que pudessem ser proferidas, por mais que esperasse que a decisão fosse diferente, a junção do documento não se tornou necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
Por isso, tem-se afirmado repetidamente que a junção de documento nas alegações de recurso não pode servir para suprir a insuficiência que a 1.ª instância assinalou aos meios de prova produzidos pela parte no decurso da instrução do processo, pela simples razão de que a necessidade da prova dos factos, que é o objectivo final da junção do documento qualquer que seja a fase do processo em que pode ser feita, é algo com que a parte, a partir do momento em que intervém no processo, alegando ou impugnando a alegação alheia, não pode deixar de contar.
As partes sabem que no nosso sistema jurídico o tribunal é livre na avaliação dos meios de prova e, como tal, que uma vez chegado o momento de formar a sua convicção e a motivar pode perfeitamente considerar que a prova produzida pela parte é insuficiente, que lhe falta razão de ciência que era exigível para a demonstração do facto, que no caso eram exigíveis outros meios de prova com maior valor probatório. Por isso, parte alguma pode pretender que a circunstância de a decisão não vir de encontro à sua expectativa quanto à convicção do julgar representa algo com que não podia razoavelmente contar.
O processo civil continua a reger-se pelos princípios do dispositivo e da auto-responsabilização das partes pelo resultado do seu esforço processual em ordem à satisfação dos deveres de prova que as oneram. Sem prejuízo do dever de colaboração, não cabe ao tribunal a obrigação de analisar antecipadamente os meios de prova que estão a ser produzidos e produzir uma espécie de pré-juízo ou juízo em abstracto para alertar a parte para os riscos de os vir a julgar insuficientes, definindo o próprio juiz os meios de prova que deverão ser produzidos para os aceitar como suficientes e concedendo um novo prazo suplementar para a sua produção. A parte é que tem de decidir que meios de prova produzir e suportar o risco de se vir a entender que esses meios são insuficientes, ainda que tenha à sua disposição outros meios que podiam vir a ser aceites como suficientes.
Ora, no caso, a necessidade de provar que o veículo circulou nas estradas depois de 08.07.2019 resultava já do teor da contestação apresentada na qual a ré, para colocar em dúvidas o alegado furto do veículo no dia 15.09.2019, alegou que das duas chaves do veículo uma estava inoperacional e não podia ser usada para o colocar em circulação e a outra foi usada pela última vez em 08.07.2019 (artigo 39.º da contestação).
A recorrente alega, no entanto, que foi a motivação da decisão recorrida, ao retirar ilações da não junção de um documento que demonstrasse a utilização do veículo após essa data, que tornou necessária a junção do documento apresentado. Trata-se de um argumento que a nosso ver e nas circunstâncias do caso deve ser acolhido.
Com efeito, embora resultasse claro dos articulados que a utilização do veículo após 08.07.2019 estava posta em causa e que o tribunal a quo teria de apreciar os meios de prova produzidos para determinar se os mesmos provavam essa a utilização em data posterior, a verdade é que dispondo o veículo de duas chaves e ignorando-se em que data ficou inutilizada a chave que após a participação do sinistro se veio a descobrir que (pelo menos nessa data) estava inutilizada, só mesmo aquela motivação, ao exigir prova documental da utilização do veículo e, desse modo, desprezando a hipótese de o veículo ter sido utilizado com a outra chave e de esta só ter sido inutilizada em data posterior a 08.07.2019, tornou patente para a parte a necessidade dessa prova documental.
Nessa medida e de acordo com esta avaliação, está verificada a situação excepcional da segunda parte do n.º 1 do artigo 651.º do Código de Processo Civil que consente a junção de documentos com as alegações de recurso, razão pela qual se admite essa junção.
B] da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
A recorrente impugna a decisão de julgar provado o facto do ponto 6 e a decisão de julgar não provados os factos dos pontos I, II, IV, VI e VII[1] do elenco dos factos não provados (que para o fim estrito da análise desta impugnação acima se reproduziu na fundamentação de facto), defendendo a modificação da decisão.
Mostram-se cumpridos os requisitos da impugnação da referida decisão, consagrados no artigo 240.º do Código de Processo Civil, nada obstando ao seu conhecimento.
Os factos em apreço prendem-se com a ocorrência do sinistro (o furto do veículo) – factos I e II –, com o valor de mercado do veículo – factos 6 e IV – e com a utilização que era feita do veículo – factos VI e VII –.
Atentas as circunstâncias do caso e a grande dificuldade que é, por um lado, provar que um terceiro se apropriou e fez seu o bem objecto do seguro e, por outro lado, provar que o bem não foi furtado quando não se tem acesso ao bem, será oportuno tecer algumas considerações sobre a prova e os respectivos critérios.
A primeira ideia a sublinhar é a de que no nosso sistema processual, com algumas excepções, vigora o sistema da prova livre. Este sistema caracteriza-se por duas ideias força complementares: o tribunal não só aprecia livremente os meios de prova (o que o meio prova) como é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido (a quantidade de prova produzida por aquele meio). Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (leia-se: de maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão).
Esse aspecto não se confunde com o do standard ou padrão de prova, o qual se relaciona com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus.
Os artigos 346.º do Código Civil e 516.º do Código de Processo Civil mandam que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova. Todavia, não existe entre nós norma ordinária ou constitucional que se pronuncie sobre o que deve ser entendido por dúvida, rectius, por dúvida relevante para fazer operar essa consequência.
A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade.
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.
Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção.
Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam.
A segunda ideia que importa destacar é que a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correcto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exactas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida.
Quando os factos têm intervenção humana ou resultam de acções humanas é necessário atentar que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objectivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias.
Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.
Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende.
Não tem dificuldade alguma as partes prestarem depoimentos ou apresentarem em juízo testemunhas que prestem depoimentos relativamente seguros e consistentes e, no entanto, totalmente fantasiosos, falsos ou apenas desconformes com a realidade. E isso pode dever-se a um propósito doloso da parte/testemunha ou apenas à circunstância, porventura a mais frequente e menos detectável, de no processo de formação e/ou revelação da sua memória terem ocorrido factores que motivaram ou a formação de uma falsa memória ou a incapacidade de recuperar com rigor a memória registada no cérebro.
Qualquer juiz ou advogado com alguns anos de experiência em sala de audiência sabe que esta vicissitude é frequente e sabe quão difícil é, por vezes, detectá-la e evitá-la. Esta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto, sob pena de o tribunal acabar por ser o cemitério da justiça quando se pretende que seja a vida dos direitos.
Outra ideia a destacar é a de que o reconhecimento de um direito pressupõe a demonstração dos factos geradores do direito e para isso existem regras que distribuem o ónus da prova dos factos. Todavia, a função dessas regras não é tanto a de definir quem tem de provar o quê, mas essencialmente a de determinar contra quem se irá repercutir a não prova (por falta ou insuficiência dos meios de prova) de um facto.
Nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita. À outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso. Isso mesmo resulta do artigo 346.º do Código Civil segundo o qual à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos e se o conseguir, rectius, se lograr criar dúvidas sobre a verificação dos factos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova. Por conseguinte, o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário.
Por fim, cabe referir que existe alguma jurisprudência que depois de afirmar a dificuldade em fazer a prova de que o veículo foi furtado para efeitos de accionamento do seguro que cobre o risco de furto ou roubo do mesmo, se inclina para atribuir à participação do furto às autoridades policiais pelo lesado a natureza de «prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 08.11.2022, proc. n.º 2842/20.1T8STS.P1), considerando-a «suficiente… desde que a seguradora não consiga afastar essa prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 28.10.2021, proc. n.º 1857/19.7T8VNG.P2), em resultado do que incumbiria à «seguradora, para afastar a sua responsabilidade … pôr em causa a aludida verosimilhança das alegações fácticas da autora fundada naquela prova» (cf. Acórdão desta Relação de 10.01.2022, proc. n.º 6509/18.2T8MTS.P1).
Outro Acórdão entende mesmo que «o indeferimento da pretensão do beneficiário de seguro pode resultar da suspeita de que o mesmo facto foi falsa e ilicitamente por si alegado. Mas, porque encerra uma suspeição criminal, esse indeferimento pressupõe estejam reunidos indícios que diríamos quase suficientes, isto é, ainda que não revistam a característica de provas que ultrapassem a dúvida sobre uma possível condenação (caso fosse submetido a julgamento criminal), tornem mais verosímil a conclusão pela fundamento da suspeita de burla» (cf. Acórdão desta Relação de 09.12.202, proc. n.º 3521/17.2T8GDM.P2).
Diferentemente e mais no sentido da nossa opinião, outro Acórdão manifesta que incumbe a quem «invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro …, em consequência de se ter verificado um furto, … a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito. Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais» (cf. Acórdão desta Relação de 10.07.2019, proc. n.º 1521/17.1T8AMT.P1).
A este respeito afigura-se-nos que não existem razões nem fundamento para a propósito de acções deste género nos afastarmos das regras legais do ónus da prova e do regime imperativo consagrado no artigo 347.º do Código Civil. Tais regras são, aliás, modelações legais do princípio da livre apreciação da prova, razão pela qual, em respeito pelas regras do Estado de Direito democrático que balizam o âmbito dos poderes dos vários órgãos de soberania, devem ser acatados pelo julgador de modo estrito.
Por outro lado, tanto quanto vemos, a constatação correcta da dificuldade de provar determinados factos, que não é exclusiva das acções com este objecto e se intensifica quando estão em causa, por exemplo, factos negativos ou factos futuros, qualquer que seja a acção onde devem ser provado, não pode justificar que se atribua a um acto voluntário e livre do próprio interessado (o deslocar-se a um posto de policia para apresentar uma queixa) que é insusceptível de qualquer controlo ou fiscalização um valor probatório que manifestamente este não pode ter, atenta a sua natureza, origem e facilidade. Não é certamente por acaso que a lei penal consagra em os vários tipos legais de crime, o crime de simulação de crime (artigo 366.º do Código Penal) punindo-o com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Desse modo, na nossa leitura, numa situação como a que nos ocupa, não existe meio de prova que seja, pela sua própria natureza, isto é, abstractamente, mais valioso que outro, e todos se encontram sujeitos não apenas à livre apreciação do tribunal, como, sobretudo, aos critérios racionais de avaliação epistemológica do seu valor probatório relativo.
Tudo na vida importa riscos; a decisão judicial também. Um dos riscos que uma pessoa corre na vida em sociedade é a de ser titular de um direito e não conseguir fazer a prova dos respectivos pressupostos. A decisão judicial defronta-se com o risco de não lograr alcançar a realizada ontológica e, portanto, acabar por aplicar o direito a uma hipótese de facto, não a uma realidade da vida. Como escreveu Augustina Bessa-Luís, in Dicionário Imperfeito, a propósito dela mesma, mas se aplica a qualquer juiz: «Eu não sou justa, ajuízo as coisas. Eu e a justiça somos pura coincidência; o facto de isto se repetir faz talvez o prodígio, mas não a certeza
Com estas ideias presentes, partamos então para a análise da prova produzida.
Como se assinalou, a questão nuclear consiste em saber se à prova produzida pela autora (que a há indiscutivelmente) a ré opôs contraprova bastante para tornar duvidosos os factos que incumbia à autora demonstrar, rectius, se essas dúvidas são juridicamente relevantes, no sentido em que ultrapassam o limiar a partir do qual se deve aplicar a consequência prevista no artigo 346.º do Código Civil.
Nessa perspectiva, cumpre assinalar que existem diversas situações relacionadas com o veículo que tresandam de anomalia e estão associadas a comportamentos dúbios.
Desde logo, a própria aquisição do veículo que alegadamente foi efectuada pela autora para uma cliente específica, a qual teria depois desistido do negócio por não ter conseguido a aprovação de um crédito que lhe permitisse pagar o preço. Esta versão não apenas é inverosímil como é mesmo fantasiosa, conforme aliás o gerente de facto da autora bem sabe, embora tenha declarado o contrário. Qualquer pessoa minimamente inteligente (e respeitadora da inteligência dos outros) teria, antes de encomendar o veículo ou de o trazer do estrangeiro, consultado o mercado financeiro e averiguado se a pessoa ao qual ele se destinaria e que iria pagar o respectivo preço obteria o financiamento necessário. Por isso, adquire relevância (até por a pessoa em causa não ter prestado depoimento em juízo, apesar das tentativas de produzir o depoimento) o relato do averiguador do sinistro de que aquela pessoa lhe declarou ter-se limitado a dar o nome para permitir que a autora trouxesse o veículo em seu nome.
Refira-se que a facilidade com que o «gerente de facto» da autora fez, a esse respeito, apesar do juramento prestado, afirmações que sabe bem não corresponderem à verdade, nos leva a acompanhar na íntegra a afirmação do Mmo. Juiz a quo sobre a falta de credibilidade do respectivo depoimento.
A seguir, a quilometragem do veículo que segundo se apurou foi adulterada para dar a ideia de ser muito inferior àquela que o veículo tinha efectivamente percorrido, o que evidencia a intenção clara de burlar os futuros adquirentes do veículo. É certo que não se apurou exactamente quando isso sucedeu e quem foi o autor dessa adulteração e os dados recolhidos permitem situar a «conversão» dos «237.399 km» em «150.632 km» num espaço temporal que compreende um tempo anterior à compra do veículo pela autora realizada, segundo a data da respectiva factura, em 14.12.2018.
Todavia, existem dois pormenores que não podem ser escamoteados. O primeiro é que segundo a declaração aduaneira, em 14.12.2018 o veículo ostentava «158.100 km.»; segundo o certificado de aprovação em inspecção técnica em 23.04.2019 o veículo ostentava «160.166 km» (o que é compatível com a circulação do mesmo desde o local onde foi adquirido na Bélgica – e não França como declarou o gerente de facto da autora – até Portugal) e segundo a BMW, através da leitura do registo da chave do veículo, em 08/07/2019 este já ostentava apenas «150.632 km». Esta sucessão indicia (é apenas um indício) uma segunda adulteração da quilometragem do veículo quando ele já se encontrava em poder da autora.
Por outro lado, é absolutamente estranho que a autora, dedicando-se à importação e comercialização de carros usados e sabendo que a quilometragem do veículo é um dado importante mas susceptível de ser falsificado para induzir em erro os compradores, o que pode originar graves problemas para a autora na revenda do veículo no mercado nacional face à sua responsabilidade perante o comprador, tenha aceitado que o vendedor estrangeiro onde comprou o veículo emitisse a respectiva factura e nesta apusesse no espaço próprio para a indicação dos quilómetros a menção de «000000». O simples facto de a factura apresentava possuir essa característica e não ter sido prontamente recusada pela autora, permite as maiores suspeitas sobre as razões que presidiram a essa tão estranha quanto incompreensível aceitação que num profissional do ramo não pode resultar de leviandade ou descuido.
A seguir temos o aspecto das chaves do veículo. Embora fossem duas e aparentemente, segundo a fotografia delas junta aos autos, ambas estivessem em bom estado de conservação, certo é que a BMW não conseguiu fazer a leitura dos registos de uma das chaves por a mesma se encontrar inutilizada, não permitindo a leitura. É possível, mas não deixa de ser estranho, que uma das chaves estivesse em condições e a outra não, tanto mais que o gerente de facto da autora declarou que usavam ambas indistintamente e tinham-nas depositadas no mesmo local para serem usadas (curiosamente por cima de um «microondas» como aquele afirmou no seu depoimento de um modo que deixa dúvidas sobre a intenção subjacente a essa afirmação). É sobretudo estranho sabendo-se que existem processos de duplicação de chaves de veículos que inutilizam o dispositivo electrónico daquela a partir da qual se gera a cópia.
Depois temos o aspecto das alegadas circunstâncias do furto: em pleno dia, num espaço público muito frequentado por pessoas e veículos (no dia 15 de Setembro, Domingo, no parque de estacionamento de uma praia, onde haviam vários outros veículos estacionados, a chegar e a partir, e nas imediações do qual existe um bar e muito próximo o areal, num período horário situado à volta da hora de almoço), diferente e situado longe da sede da autora e/ou da residência dos respectivos «donos» (a «testemunha» BB e a mulher FF).
O facto de não haver no local vestígios de arrombamento ou estroncamento do veículo (não foram alegados e seria estranho que o modus operandi fosse esse com um veículo desta gama e naquele local) significa que o veículo só podia ter sido furtado por quem dispusesse de uma chave que lhe permitisse abrir e colocar o veículo em circulação de forma perfeitamente normal. Nessa situação, o furto pressupunha que previamente tivesse sido duplicada uma das chaves ou produzida uma nova chave mediante a intercepção do sinal emitido pelo veículo. Nada disso parece compatível com a consumação do furto num local esporádico, acidental, distinto e distante do local onde normalmente o veículo estava estacionado ou guardado e no qual, com tempo e sem levantar suspeitas se podia interceptar o sinal de modo a produzir uma nova chave.
Por fim, temos aspectos relacionados com o próprio contrato de seguro. Desde logo, a enorme proximidade entre o início do seguro (12.07.2019) e a data do alegado furto (15.09.2019), pese embora seja certo que o sinistro possa ocorrer a qualquer momento exactamente por ser (quando é) … incerto. Depois, o enorme lapso de tempo decorrido entre a aquisição do veículo (14.12.2018), a sua inscrição no registo a favor da autora (10.07.2019) imediatamente após a inscrição no registo a favor da pessoa em nome da qual a factura de venda tinha sido emitida e o veículo importado para Portugal (sinal de que a autora possuía documentos para poder proceder a esse registo quando fosse da sua conveniência ou interesse, o que confirma a tese da «testa de ferro») e a celebração do seguro (12.07.2019), sinal de que durante mais de meio ano a autora procurou vender o veículo e como não conseguiu fazê-lo decidiu fazer a sua inscrição no registo e contratar um seguro específico.
A seguir a circunstância de o seguro exceder o mero seguro de responsabilidade civil, mas cobrir precisamente o risco de furto ou roubo e não cobrir por exemplo os danos próprios. É certo que se trata de um seguro entre os vários que a ré oferece aos seus clientes para contratar, obedecendo a um conteúdo de cobertura já fixado pela seguradora (produto que possui mesmo um nome comercial específico: Mais), pelo que a opção pela sua celebração em si mesma não possui nada de anormal. Isso deixa, no entanto, de ser assim quando se repara que o valor do veículo não justificava assumir um encargo de 600,00€ anuais com o seguro, deixando de lado a cobertura de danos de choque, colisão ou capotamento, que eram precisamente os danos de verificação mais provável e frequente com a utilização do veículo.
O normal, razoável e economicamente adequado é garantir o risco de furto de bens de valor elevado por só nessa situação o prejuízo poder vir a ser considerável. Todavia, a autora apenas havia gasto na compra do veículo o valor de 13.500,00€ (preço + custo legalização) o que não parece justificar economicamente (e a autora é uma sociedade comercial) um encargo com o seguro daquela dimensão.
Acresce que se, como alegado, o veículo foi afecto à utilização quotidiana da gerente de direito (que, não obstante, nem se recordava se o veículo tinha mudanças manuais ou automáticas) e do gerente de facto da autora, o normal seria então, se a intenção fosse preservar o veículo como sugere a contratação do risco de furto ou roubo, contratar o risco de danos próprios uma vez que se estava disponível para suportar aquele encargo fixo e atento o valor do veículo isso não iria incrementar muito o valor do prémio. Por fim, segundo indicação do averiguador do sinistro a autora possuía outros veículos, designadamente outro semelhante a este, e não contratou para nenhum deles um seguro com a cobertura de furto ou roubo, o que acentua a estranheza desta decisão e/ou dos respectivos motivos.
Neste contexto corroboramos inteiramente as dúvidas colocadas pela Mma. Juiz a quo e, em consciência, por aplicação das regras do ónus da prova, decidimos a impugnação da decisão sobre a matéria de facto contra a autora por ser a ela que tais factos aproveitariam. Confirmamos, por isso, a decisão de julgar não provados os factos dos pontos I e II, cuja decisão vem impugnada.
Passemos aos factos relacionados com o valor de mercado do veículo – factos 6 e IV.
Perante a controvérsia sobre se o valor de mercado do veículo era de €15.200,00, conforme se fez constar do contrato de seguro, ou inferior a isso, o tribunal a quo julgou provado que o veículo tinha um valor de mercado inferior a € 15.200,00. Independentemente das cópias de anúncios comerciais juntas aos autos e das puras opiniões manifestadas nos depoimentos, aquela decisão é inteiramente correcta por uma circunstância inultrapassável.
Trata-se do facto de o veículo já ter percorrido, afinal de contas, uma quilometragem superior em quase 1/3 àquela que ostentava, situação que não apenas fazia baixar objectivamente o seu preço, como, ao traduzir uma viciação do veículo, geraria uma descida subjectiva do preço que qualquer comprador que viesse a saber desse facto estaria disponível para pagar por ele.
Portanto, tendo a aquisição e importação do veículo gerado um encargo total de apenas 13.500,00€ e possuindo aquela característica, devemos concluir com a segurança necessária que o seu preço (objectivo e subjectivo) seria inferior a €15.2000,00 que a autora lhe atribuiu, na perspectiva errónea de que o veículo não tinha sido adulterado e tinha quase 1/3 menos quilometragem.
Por fim, no tocante à utilização do veículo (factos dos pontos VI e VII) a pretensão da recorrente defronta-se de novo com um facto que foi provado por meios bastante mais seguros que os depoimentos que fez produzir para tentar demonstrar a utilização quotidiana do veículo.
Com efeito, se a quilometragem ostentada pelo veículo em vez de subir, como seria de esperar em resultado da sua circulação, até diminuiu (!) ao longo do tempo, só há duas hipóteses: ou o veículo não circulava ou o seu conta-quilómetros foi (novamente) adulterado. Na dúvida é impossível dar como provada a intensa utilização diária e ao longo de todos os dias da semana que a autora alega. E esta conclusão é válida independentemente do teor dos depoimentos que foram prestados, sem sequer ser necessário analisar a respectiva credibilidade.
Em conclusão, improcede na totalidade a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

C] da matéria de direito:
O pedido de modificação da decisão recorrida funda-se em exclusivo na alteração da respectiva fundamentação de facto, a qual, a proceder permitiria o preenchimento dos pressupostos do direito à indemnização prevista no contrato de seguro e/ou no respectivo incumprimento e cujo preenchimento a recorrente não questiona independentemente daquela alteração ou por razões puramente jurídicas.
Consequentemente, subsistindo a fundamentação de facto da decisão recorrida, inexistem questões de direito que caiba apreciar.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e, em consequência, negando provimento à apelação, confirmam a decisão recorrida.
Custas do recurso pela recorrente, a qual vai condenado a pagar à recorrida, a título de custas de parte, o valor da taxa de justiça que suportou e eventuais encargos.
*
Porto, 23 de Fevereiro de 2023.
*
Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 734)
Francisca Mota Vieira
Paulo Dias da Silva

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]
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[1] Certamente por lapso, nas conclusões é indicado, repetidamente, o ponto VI quando resulta do corpo das alegações que a recorrente visava sim o ponto VII.