Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
215/18.5GBMCN-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: RAUL CORDEIRO
Descritores: PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR
INÍCIO DO CUMPRIMENTO DA PENA
EXECUÇÃO
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
Nº do Documento: RP20230503215/18.5GBMCN-A.P1
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROCEDÊNCIA PARCIAL DO RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO.
Indicações Eventuais: 4. ª SECÇÃO CRIMINAL
Área Temática: .
Sumário: I - O cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor inicia-se com a entrega do título de condução, a qual deverá ocorrer no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, em face do disposto nos artigos 69.º, n.º 3, do Código Penal e 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
II - Porém, se o arguido fizer a entrega do título antes do trânsito em julgado da sentença, inicia-se imediatamente o cumprimento dessa pena, pois tal significa que o mesmo se conformou com a condenação e pretende cumprir com o sentenciado.
III - O cumprimento da proibição de conduzir corre continuamente, pois que o título de condução fica retido na secretaria pelo período de tempo que durar a pena, tal como estabelece o n.º 4 do mesmo artigo 500.º do Código de Processo Penal.
IV - Contudo, não conta para o prazo de proibição de conduzir o tempo em que o condenado estiver a cumprir pena de prisão em regime de permanência na habitação, tal resulta do disposto no n.º 6 do dito artigo 69.º do Código Penal.
V - E não contagem ocorre ainda que o condenado esteja autorizado, pelo tribunal, a sair da residência para actos ou diligências muito específicas e previsivelmente pontuais, destinadas ao cumprimento de deveres legais ou ao exercício de direitos pessoais, que assistem a todos os cidadãos, independentemente da situação em que se encontrem.
VI – A considerar-se o cumprimento da pena acessória em simultâneo com a pena de prisão ficariam completamente postergadas as finalidades daquela e seria retirar-lhe toda a eficácia que se pretende obter com a sua execução.
VII - Tal sentido interpretativo não violada quaisquer normativos ou princípios constitucionais, designadamente o disposto no artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 215/18.5GBMCN-A.P1
Conferência de 03-05-2023.
Relator: Raul Cordeiro.


Sumário:
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I
Acordam, em conferência, os Juízes da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
Nos autos de Processo Comum Singular n.º 215/18.5GBMCN, do Juízo Local Criminal de Marco de Canaveses, em que é arguido AA, foi proferido, em 13-01-2023, despacho homologatório da liquidação da pena principal de 16 meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, e da pena acessória de inibição de conduzir por 16 meses, em que o arguido foi condenado nos autos (ref.ª 90876976).
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Descontente com tal decisão, no que à contagem da pena acessória diz respeito, dela interpôs recurso o arguido AA, tendo apresentado a respetiva motivação e conclusões, as quais se sintetizam nas seguintes questões:
a) Nulidade da “sentença”, por alegada omissão de pronúncia, dizendo o recorrente que não consta da mesma o critério utilizado para proceder à liquidação, o que afecta o seu direito de defesa, invocando a violação do disposto nos artigos 97.º, n.º 4, e 374.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do CPP e 32.º, n.ºs 1 e 5, e 205.º da CRP, com a consequência enunciada no 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do mesmo CPP (conclusões 1.ª a 11.ª).
b) Período de cumprimento da pena acessória, considerando o recorrente que, tendo entregue a carta de condução no dia 31-10-2022, termina o cumprimento dessa pena em 28-02-2024, atento o disposto nos artigos 479.º e 500.º do CPP, não podendo aplicar-se o disposto no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal, sendo a interpretação dada a essas normas pelo Tribunal a quo inconstitucional, por violar o estipulado no artigo 32.º da CRP (conclusões 12.ª a 25.ª).
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Admitido o recurso, respondeu ao mesmo o Exm.º Magistrado do Ministério Público, alegando, em síntese, que o arguido foi notificado da liquidação da pena acessória efectuada pelo Ministério Público e nada disse, sendo que não foi violado qualquer normativo legal pelo despacho homologatório (ref.ª 21590).
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Remetidos os autos a este Tribunal, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, sustentando, em síntese, que o despacho recorrido (e não “sentença”, como o apelida o recorrente) não enferma dos vícios apontados, cujo sentido é perceptível, além de que fez uma correcta contagem do período de inibição de conduzir, pelo que deve o recurso ser julgado improcedente (ref.ª 16790067).
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Foi proferido despacho liminar e colhidos os vistos, com decisão em conferência.
II
As aludidas conclusões, que se sintetizaram, resultado da motivação apresentada, delimitam o objecto do recurso (art. 412.º, n.º 1, CPP), sem prejuízo de apreciação de questões de conhecimento oficioso que pudessem suscitar-se, como é o caso dos vícios indicados no n.º 2 do artigo 410.º do mesmo Código, mesmo que o recurso verse apenas sobre a matéria de direito (cfr. Acórdão do STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/95, de 19-10-1995, in DR I, de 28-12-1995).
Não se descortinando outras de conhecimento oficioso, passa a apreciar-se as questões suscitadas pelo recorrente AA. Assim,
a) Nulidade da “sentença”, por alegada omissão de pronúncia, dizendo o recorrente que não consta da mesma o critério utilizado para proceder à liquidação, o que afecta o seu direito de defesa, invocando a violação do disposto nos artigos 97.º, n.º 4, e 374.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, do CPP e 32.º, n.ºs 1 e 5, e 205.º da CRP, com a consequência enunciada no 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do mesmo CPP.
Para melhor percepção das questões enunciadas, importa ter presente a decisão proferida, o qual é do seguinte teor:
Liquidação da pena fls. 824:
Veio o Ministério Público promover a liquidação da pena de prisão aplicada ao condenado AA, na sequência do Acórdão que o condenou a 16 meses de prisão em regime de permanência na habitação.
Notificado o arguido, nada foi dito.
Cumpre decidir:
O condenado encontra-se privado da liberdade à ordem destes autos desde 21 de dezembro de 2022 (fls. 822).
Foi detido por um dia, em 20.08.2018 (fls. 20 e 58), à ordem dos presentes autos, pelo que há que proceder a desconto nos termos do artigo 80.°, n.° 1, do CP.
Posto isto, o início do cumprimento da pena ocorreu em 21.12.2022, pelo que:
1/2 ocorrerá em 20.08.2023.
2/3 em 09.11.2023.
Fim em 20.04.2024.
Em face do exposto homologo a liquidação de pena (artigo 477.°, n.° 4, do Código de Processo Penal).
Notifique dando cumprimento ao disposto na parte final do n.° 4 do artigo 477.° do Código de Processo Penal.
Diligencie pela transmissão eletrónica das certidões (artigo 477.°, n.° 1, do CPP).
(…)
Liquidação da pena acessória:
Ao condenado AA foi ainda aplicada a pena acessória de inibição de conduzir veículos por 16 meses.
O condenado entregou a carta de condução em 31.10.2022.
Está privado da liberdade desde 21.12.2022 e até 20.04.2024, como acima liquidado.
Considerando que durante o período de privação de liberdade não estará em cumprimento da pena acessória, cfr. artigo 69.°, n.° 6, do CP,
O termo da pena acessória ocorrerá a 01.07.2025.
Em face do exposto, defiro o promovido.
Notifique e dn.” (ref.ª 90876976).
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Cumpre apreciar.
O presente recurso, atento o seu objecto, versa exclusivamente sobre matéria de direito (n.ºs 1 e 2 do art. 412.º do CPP).
Versando sobre matéria de direito, a lei impõe que sejam indicadas pelo recorrente, designadamente, “as normas jurídicas violadas” e “o sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela deveria ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada” (als. a) e b) do n.º 2 do art. 412.º do CPP).
Efectivamente, os recursos representam um meio de impugnação das decisões judiciais, cuja finalidade consiste na eliminação dos seus erros, defeitos ou lapsos através da sua análise por outro órgão jurisdicional, desse modo constituindo um instrumento processual de consagração prática dos princípios constitucionais de acesso ao direito e de garantia do duplo grau de jurisdição (arts. 20.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da CRP).
Alega o recorrente, em síntese, que da “Sentença recorrida” não consta o critério utilizado para proceder à liquidação da pena acessória, nos termos aí estabelecidos, pelo que tal omissão de pronúncia acarreta a “nulidade da sentença”, uma vez que afecta as suas garantias de defesa constitucionalmente consagradas, devendo tal nulidade ser declarada, bem como os actos posteriores, sendo que a mesma “Sentença recorrida” não fez um exame crítico das provas que permitiram formar a “convicção”, o que igualmente conduz à sua nulidade. Em suporte de tal alegação, o recorrente invoca o disposto nos artigos 374.º, n.ºs 1, alínea d), e 2, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), 355.º, 97.º, n.º 4, e 127.º todos do CPP e nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, e 205.º da CRP.
O invocado artigo 374.º do CPP reporta-se, como é sabido, aos “Requisitos da sentença”, estabelecendo o aludido n.º 1, alínea d), que “A sentença começa por um relatório, que contém: (…) A indicação sumária das conclusões contidas na contestação, se tiver sido apresentada”, referindo, por sua vez, o n.º 2 que “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Essas menções a que alude o n.º 2 assumem tal importância que a lei sanciona a sua falta com a nulidade da própria sentença, tal como ocorre quando o tribunal “deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”, devendo essas nulidades “ser arguidas ou conhecidas em recurso” (als. a) e c) do n.º 1 e n.º 2 do art. 379.º).
Tal abrangência de enunciação e fundamentação factual incide, necessariamente, sobre os factos alegados pela acusação e pela defesa, bem como os que resultarem da prova produzida em audiência, que sejam relevantes para a decisão da causa, designadamente para a caracterização do crime, os quais constituem objecto da prova, sendo essa a amplitude da discussão em audiência de julgamento (arts. 124.º, n.º 1, e 339.º, n.º 4, do CPP).
Sucede que a alegação do recorrente parte de um pressuposto totalmente errado, qual seja a afirmação de que a decisão recorrida é uma sentença, o que, como certamente bem saberá, não corresponde à verdade.
A sentença dos autos foi proferida em 15-09-2021, depois alterada por acórdão deste Tribunal da Relação de 27-04-2022, que reduziu as penas ali aplicadas, fixando a principal em 16 meses de prisão, a executar em regime de permanência na habitação, e a acessória em 16 meses de proibição de conduzir.
Tais actos decisórios, que conheceram, a final, do objecto do processo, é que têm a natureza de sentença e acórdão, respectivamente, tal como definidos pelo artigo 97.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do CPP.
Manifestamente que não cabe no conceito de sentença o acto decisório pelo qual se efectuou o cômputo das penas principal e acessória em que o agora recorrente foi condenado, tratando-se, antes, de um despacho (al. b) n.º 1 do referido art. 97.º).
Tais normativos dos artigos 374.º e 379.º do CPP são aplicáveis somente à sentença (ou acórdão), não sendo aí feita qualquer alusão à sua aplicabilidade aos restantes actos decisórios, ao contrário do que sucede com outras normas, onde essa aplicação está expressamente prevista (cfr. n.º 3 do art. 380.º).
Tanto basta para “fazer cair” toda a argumentação do recorrente, estribada nos mencionados artigos 374.º e 379.º do CPP.
E o mesmo se diga quanto aos invocados artigos 127.º (livre apreciação da prova) e 355.º (proibição de valoração de provas) do CPP, não se descortinando a sua relevância para o caso em apreciação, nem a mesma é referida na motivação, pois que não ocorreu qualquer produção de prova relativamente à prolação do despacho recorrido, o qual incidiu somente sobre o cômputo das penas em que foi condenado o recorrente AA.
É verdade que os actos decisórios que assumem a forma de despachos devem ser fundamentados, atento o disposto no n.º 5 do referido artigo 97.º do CPP, em obediência ao estabelecido no artigo 205.º, n.º 1, da CRP.
Mas tal dever de fundamentação não assume a amplitude e especificidade que a lei estabelece para a sentença, atenta a relevância desta no processo criminal.
E no caso presente trata-se, especificamente, de um despacho homologatório do cômputo das penas principal e acessória, efectuado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 477.º, n.ºs 2 e 4, do CPP, o qual incidiu também sobre a contagem, indicando o início e o termo, da pena acessória de inibição de conduzir, sendo que a execução desta pena acessória está regulamentada no artigo 500.º do mesmo Código.
E referindo a norma o prazo para o condenado entregar a licença de condução e que a mesma “fica retida na secretaria do tribunal pelo período de tempo que durar a proibição” (n.ºs 2 e 4 deste último preceito), basta que, perante a data da entrega, seja indicada a data em que deverá ser devolvida ao condenado, assim ficando clarificados o início e o termo da execução da pena acessória.
E tal consta expressamente do despacho recorrido, no qual se menciona também que o período em que o condenado estará privado da liberdade, em cumprimento da pena de prisão, não é considerado para o cumprimento da pena acessória, em face do disposto no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal.
Tudo suficientemente fundamentado e absolutamente cristalino.
Questão diferente é o recorrente não concordar com tal liquidação, mas isso nada tem a ver com os “vícios” que aponta à decisão recorrida, que apelida sucessivamente de “Sentença”.
Não se descortina, pois, qualquer falta de fundamentação do despacho recorrido, dando o mesmo, atenta a sua finalidade (indicação da data da entrega da carta de condução e o termo do cumprimento pena acessória), pleno cumprimento ao disposto nos referidos artigos 97.º, n.º 5 [e não n.º 4, como indica o recorrente], do CPP e 205.º, n.º 1, da CRP.
Nem se vislumbra em que medida e momento o direito de defesa do recorrente alegadamente terá sido afectado, sendo que o mesmo foi até notificado da liquidação da pena efectuada pelo Ministério Público e nada disse, no exercício do contraditório, pelo que não se mostram violados os “princípios consignados” nos artigos 32.º, n.ºs 1 e 5, e 205.º da CRP.
Contudo, sempre se dirá que, salvo nos casos de cominação expressa como nulidade, o que não é o caso, a falta de fundamentação constitui uma irregularidade, sujeita ao regime geral do artigo 123.º, n.º 1, do CPP, devendo ser atempadamente suscitada, nos termos e prazos aí indicados, sob pena de se considerar sanada.[1]
Efectivamente, todos os vícios que inquinem actos processuais, que não sejam expressamente feridos de nulidade, constituirão uma mera irregularidade (arts. 118.º, n.ºs 1 e 2, e 123.º, n.º 1, do CPP).
Daí que, mesmo que o despacho recorrido enfermasse de falta de fundamentação, o que, como se disse, não corresponde à verdade, tal irregularidade processual encontrava-se sanada, por não ter sido tempestivamente arguida perante o Tribunal a quo.
Pelo que se deixa dito, não se reconhecem ao despacho recorrido os vícios apontados pelo recorrente, pois que não foram inobservadas ou violadas as referidas normas legais e constitucionais, nem tão pouco a extensa panóplia de preceitos e princípios indicados na conclusão 26.ª, a qual se transcreve para melhor percepção da sua amplitude, mas sem que algo se fundamente no recurso, nesse sentido, relativamente à maioria deles:
26.ª - A decisão recorrida, para além de outras normas e princípios, violou os artºs 312; 313; 332; 119; 355; 358; 359; 374; 379; 127; 163; 410, nº 2; 412; 426; 426-A; 479 e 500, todos do C.P.P., violou os artºs 14; 22, nº 1 e nº 2, al. c); 23, n°s 1 e 2, 40, n° 2; 43; 49; 50; 68; 71; 73, n° 1, als. a) e c); 77; 72, e art° 69, todos do C.P., violou também, os princípios de caso julgado formal; da Legalidade; da Acusação; da Investigação; do Contraditório; da vontade do prosseguimento criminal; In dubio pro reo, e a presunção de inocência do arguido (art° 32 n° 2 da C.R.P.), com a interpretação dada ao art° 69, do C.P. e ao art° 479, do C.P.P., violou os princípios consignados no art° 32, n° 1, e 5 e art° 205 da C.R.P., violação que aqui se invoca, também com o objetivo de dar cumprimento ao disposto no art° 72 da Lei do Tribunal Constitucional.
Na verdade, lida toda a motivação, o que o recorrente realmente questiona é o termo considerado para o cumprimento da pena acessória, mas tal será apreciado na questão subsequente.
Assim, improcede este segmento do recurso.
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b) Período de cumprimento da pena acessória, considerando o recorrente que, tendo entregue a carta de condução no dia 31-10-2022, termina o cumprimento dessa pena em 28-02-2024, tendo em conta o disposto nos artigos 479.º e 500.º do CPP, não podendo aplicar-se o disposto no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal, sendo a interpretação dada a essas normas pelo Tribunal a quo inconstitucional, por violar o estipulado no artigo 32.º da CRP.
Nesta parte da motivação e respectivas conclusões o recorrente manifesta a sua discordância quanto ao período enunciado no despacho recorrido [que apelida sempre de “Sentença”] para o cumprimento da pena acessória, considerando ele que tal cumprimento é contínuo, pelo que, tendo entregue a licença de condução em 31-10-2022, o mesmo termina em 28-02-2024.
Para tal invoca o disposto nos artigos 479.º e 500.º do CPP, bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º 3/2023, de 13-02-2023.
Mais refere que, tendo iniciado o cumprimento de pena acessória no dia 31-10-2022 (data da entrega da carta) apenas iniciou o cumprimento de “pena de prisão domiciliária no dia 31 de dezembro de 2022” [certamente quis dizer dia 21 de dezembro], não podendo aplicar-se o disposto no artigo 69.º, n.º 6, do Código Penal, sendo a interpretação daquelas normas pelo Tribunal a quo inconstitucional, por violar “o estipulado no artigo 32.º da CRP.
Refere, ainda, que “está em cumprimento da pena de prisão na sua habitação, mas com autorização de saída, para cumprimento de obrigações profissionais, legais e outras, pelo que, ao não conduzir veículos a motor, está a cumprir a sua Pena Acessória.” (conclusão 24.ª).
Apreciando.
Há duas questões que se colocam neste caso: uma delas é a data a considerar para o início do cumprimento da pena acessória; uma outra é a eventual não consideração do tempo em que o condenado estiver privado da liberdade (por força de medida de coacção, pena ou medida de segurança).
Vejamos a primeira.
Dispõe o n.º 2 do artigo 69.º do Código Penal que “A proibição [de conduzir] produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos de qualquer categoria.
Por sua vez, estabelece o n.º 3 do mesmo artigo que “No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo.”
Igualmente estabelece n.º 2 do artigo 500.º do CPP (inserido no capítulo relativo à execução das penas acessórias) que “No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que a remete àquela, a licença de condução, se a mesma não se encontrar já apreendido no processo.”
Todas as mencionadas normas estabelecem como data referência a do trânsito em julgado, pois que as decisões penais condenatórias dos tribunais somente se tornam definitivas e exequíveis após o respectivo trânsito em julgado, tanto mais que, até aí, o arguido beneficia da presunção constitucional de inocência (n.º 2 do art. 32.º da CRP).
E é sabido que a decisão se considera transitada em julgado “logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação” (art. 628.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP).
E também é seguro que as decisões penais condenatórias só têm força executiva após o seu trânsito em julgado (n.º 1 do art. 467.º do CPP).
Daí que a lei se refira ao trânsito em julgado como momento a considerar para se poder impor o cumprimento da pena, pois que antes a sentença ou acórdão não têm força executiva.
Assim, da conjugação de tais normas resulta que o legislador estabeleceu um início (data do trânsito em julgado da decisão) e um termo (10.º dia a contar desse trânsito) do prazo para o condenado na pena acessória de inibição de conduzir veículos motorizados proceder à entrega do título de condução, ressalvado o caso de o mesmo já se encontrar apreendido no processo (designadamente em consequência de medida de coacção – art. 199.º do CPP).
Nessa medida, sendo evidente que a decisão apenas é exequível depois do trânsito em julgado, parece resultar do regime legal em vigor que o cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir somente se inicia com a entrega ou apreensão do título de condução e não, necessariamente, na precisa data do trânsito em julgado da sentença ou acórdão (a não ser que o título já esteja apreendido nos autos), pois que este é o momento em que o prazo da obrigação de entrega começa a correr.[1]
Porém, diferente posição é sustentada por Pedro Albergaria e Pedro Lima,[2] em anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-07-2002, aí concluindo que “o artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal faz coincidir o início da execução da pena acessória de proibição de conduzir com o trânsito de decisão que a aplica, independentemente da entrega ou apreensão do título…”.
Embora sabendo que a questão não é pacífica, propendemos para considerar mais ajustada ao conjunto das normas reguladoras aquele entendimento, pois que, apesar da redacção do citado n.º 2 do 69.º (“A proibição produz efeito…”),[3] a considerar-se que o início da execução/cumprimento da pena coincide com a data do trânsito em julgado, independentemente da entrega ou apreensão do título, não faria qualquer sentido impor ao condenado a entrega do título de condução, a realizar no prazo de 10 dias a contar do trânsito, bem como, não o fazendo, determinar-se a sua apreensão (n.º 3 do art. 500.º do CPP), pois que a execução já estaria em curso (podendo até tal ocorrer à muito tempo), além de que deverá ser feita tal advertência para a entrega com a cominação de desobediência, conforme Jurisprudência Obrigatória do STJ.[4]
Assim, nas situações em que o cumprimento de pena acessória pressupõe legalmente a entrega ou apreensão do título que permite o exercício da actividade, o início da execução dessa pena somente poderá ocorrer quando tal entrega ou apreensão à ordem dos autos se concretize, sendo, a nosso ver, tal regime o que melhor se coaduna com o disposto nos artigos 69.º, n.º 3, do Código Penal e 500.º, n.ºs 2, 3 e 4, do CPP.[5]
Contudo, julga-se que, em algumas situações, o cumprimento dessa pena acessória poderá considerar-se iniciado antes da data do trânsito em julgado, concretamente quando o condenado proceder, voluntariamente, à entrega do título depois da condenação, mas antes de ela se tornar definitiva, sendo o mesmo aceite pelo Tribunal ou entidade policial (nos termos dos citados n.º 3 do art. 69.º do C. Penal e n.º 2 do art. 500.º do CPP).
Com efeito, proferida a condenação, o condenado poderá com ela conformar-se, entregando logo o título de condução, correspondendo esse acto a uma aceitação tácita da sentença ou acórdão, assim perdendo o direito de deles recorrer (n.º 3 do art. 632.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP).
E a questão não é diferente quando é interposto recurso para o Tribunal da Relação e este mantém a pena acessória de inibição de conduzir (como aqui sucedeu, ainda que reduzindo a sua duração), vindo o condenado, após o conhecimento da decisão, mas antes do seu trânsito em julgado, a entregar o título de condução, assim aceitando o veredicto e renunciando a eventual novo recurso, agora para o STJ, caso fosse admissível (art. 432.º do CPP), ou mesmo para o Tribunal Constitucional (art. 70.º e 72.º da LOTC),[6] bem como a eventual reclamação ou arguição de nulidade (daquela decisão da segunda Instância).
Assim, consideramos que se o condenado entregar o título de condução antes da data do trânsito em julgado da sentença ou acórdão e o mesmo for aceite, tem de considerar-se o tempo decorrido, desde então, como de cumprimento da pena acessória, não podendo esse período de privação do título deixar de ser levado em conta para tal efeito (ressalvado o que abaixo se dirá, quanto à segunda questão enunciada).
Este mesmo entendimento é sustentado por Fernando Gama Lobo, ao referir que “se o condenado entregar antes do trânsito o título de condução (v.g., aceite por erro do recebedor nos casos de não renúncia ao recurso) deve proceder-se ao desconto desse tempo.”[7]
E foi também o entendimento perfilhado no Acórdão desta Relação de 19-01-2000, dele constando que se “o arguido procedeu à entrega da sua carta de condução em data anterior ao trânsito em julgado, deve entender-se que iniciou o cumprimento da pena acessória na data em que fez tal entrega.” (in BMJ n.º 493, pág. 419).
Também no Acórdão da Relação de Lisboa de 10-11-2016 (Proc. 27/14.5GALNH.L1-9) se decidiu que “tendo o condenado em inibição de conduzir, antes do trânsito em julgado da decisão, entregue a carta de condução na Secretaria do Tribunal e esta aceitado tal entrega, o tempo em que a carta permaneceu no Tribunal conta para efeitos de execução de tal pena acessória(in www.dgsi.pt).
Igualmente no acórdão da Relação de Coimbra de 04-12-2019 (Proc. 37/17.0PTLRA-A.C1) se decidiu que “o arguido, condenado em pena acessória de conduzir veículos motorizados, não pode / deve ser prejudicado quando entregou no Tribunal, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, a sua licença de condução, a qual foi recebida por funcionário judicial.” (in www.dgsi.pt).
No caso sub judice foi esta a situação que se verificou. Com efeito, tendo sido proferido o acórdão deste Tribunal da Relação em 27-04-2022, dele foi ainda interposto recurso pelo arguido para o Tribunal Constitucional, o qual proferiu decisão sumária em 08-07-2022, não conhecendo do objecto desse recurso, sendo esta mantida pelo acórdão de 18-10-2022, o mesmo veio a fazer a entrega da carta de condução em 31-10-2022, sendo que a decisão condenatória somente transitou em julgado em 03-11-2022, conforme certificado pela Secretaria (ref.ªs 90226980 e 90643639/91593388).
Ao assim proceder, o arguido fez a entrega da carta antes da data do trânsito em julgado, pois que poderia fazê-lo entre 04 e 14-11-2022 (dia 13 foi domingo).
Tal significa que o mesmo se conformou com a decisão proferida, pois que cumpriu com a obrigação de entrega da carta antes do trânsito em julgado.
E tendo o título de condução sido aceite pelo Tribunal, a entender-se que apenas podia fazer a entrega após decorrer a data do trânsito em julgado e que, a fazê-lo em momento anterior, só contariam os 16 meses de inibição a partir do trânsito, deveria ter sido recusado o recebimento ou informado o arguido em conformidade, o que, aparentemente, não terá sido feito, sabendo-se que os sujeitos processuais não podem ser prejudicadas por eventuais actos ou omissões da Secretaria Judicial (n.º 6 do art. 157.º do CPC, ex vi art. 4.º do CPP).
Ademais, sabendo-se que frequentemente não ocorre a entrega voluntária (ainda que isso acarrete consequências para o incumpridor), sendo a mesma feita ainda antes de iniciar-se o prazo dessa exigência legal, tal comportamento evidencia uma postura de boa-fé e sentido de cooperação na realização da justiça, o que encontra consagração da lei adjectiva em termos de conduta processual dos intervenientes (arts. 7.º, n.º 1, e 8.º do CPP, ex vi art. 4.º do CPP).
Em face do que fica dito, ainda que apenas estivesse obrigado a fazê-lo nos dez dias após o trânsito em julgado, considera-se que o início do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir ocorre na data da entrega da carta - 31-10-2022 -, pelo que os 16 meses de inibição de conduzir terminariam em 29-02-2024, tendo em conta o critério estabelecido no artigo 479.º, n.º 1, alínea b), do CPP, o qual é aplicável ao cômputo da pena acessória de inibição de conduzir, conforme decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2023, publicado no DR I-A de 13-02-2023 (invocado pelo recorrente).
Mas importa, agora, atentar na segunda questão enunciada.
Dispõe o n.º 6 do referido artigo 69.º do Código Penal, invocado no despacho recorrido, que “Não conta para o prazo de proibição [de conduzir] o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança.”
Conforme refere Jorge de Figueiredo Dias, a pena acessória desempenha uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade [das pessoas], mas se dirige, também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do delinquente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação.” E acrescenta que “deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano.”[8]
Com efeito, a pena acessória somente surtirá o seu efeito preventivo se impedir, no decurso do seu cumprimento, o agente de exercer, efectivamente, a actividade em causa, tendo um efeito de neutralização ou inocuização, o que não será alcançado se o mesmo já estiver, por outra razão, impedido de desempenhar essa actividade, designadamente por estar privado da liberdade, em cumprimento de pena de prisão.
De outra forma, tal pena perderia a sua finalidade e todo o efeito que, através dela, o legislador pretendeu alcançar, pois que nenhum sacrifício representaria para o condenado. E isso só é obtido através do cumprimento efectivo da pena acessória, o qual tem de representar uma real impossibilidade de conduzir.
Trata-se de “razões de justiça material”, conforme se escreveu no dito Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 3/2023 – DR I, de 13-02-2023 (vide pág. 88).
É também neste contexto que a jurisprudência dos Tribunais Superiores se vem pronunciando, de forma que julgamos consensual, relativamente à impossibilidade de substituição e de cumprimento descontínuo ou intermitente da pena acessória.[9]
Neste caso, o arguido iniciou, como se disse, o cumprimento da pena acessória em 31-10-2022 (data da entrega da carta), mas encontra-se a cumprir a pena de prisão de 16 meses a que foi condenado desde 21-12-2022, a qual terminará em 20-04-2024, pois que foi descontado 1 dia, em que havia estado detido, nos termos do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal.
No cômputo do período de cumprimento dessa pena de prisão, o qual o arguido não contesta, foi, pois, observado o disposto no artigo 479.º, n.º 1, alínea b), do CPP.
Ainda que a execução da pena seja em regime de permanência na habitação, não deixa de ser uma pena de prisão, com privação da liberdade, o que torna manifesto, à luz daquele normativo legal (n.º 6 do art. 69.ºdo C. Penal), que esse período de privação da liberdade não conta para o cumprimento da pena acessória.
Daí que o cumprimento da pena acessória não possa ocorrer ininterruptamente, com termo em 28-04-2024, como pretende o recorrente. Tal sucederia se não tivesse ficado privado da liberdade entretanto.
Assim, considerando a data de início do cumprimento dessa pena acessória de 16 meses (31-10-2022), mas estando o recorrente em cumprimento da pena de prisão, também de 16 meses, entre 21-12-2022 e 20-04-2024 (já descontado 1 dia de detenção), período que não conta para o prazo daquela primeira, tendo em consideração os critérios de contagem estabelecidos no artigo 479.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, do CPP, aplicáveis também à pena acessória, por imposição do referido Acórdão do STJ n.º 3/2023, o termo desta pena acessória de inibição de conduzir ocorrerá em 29-06-2025.
Na verdade, tendo presente que o cumprimento de ambas as penas não corre em simultâneo, se considerado o início em 31-10-2022 (entrega da carta - último dia do mês) e que ambas somam 32 meses (16 + 16), perante aqueles critérios o termo da pena acessória ocorreria no último dia do mês de Junho de 2025, mas como há aquele dia de detenção que foi descontado, ocorrerá um dia antes, ou seja, em 29-06-2025, devendo a devolução do título ser efectuada a partir do dia 30-06-2025, inclusíve (n.º 4 do art. 500.º do CPP).
Alega, contudo, o recorrente, em abono do seu entendimento de que deve também contar para o cumprimento da pena acessória o tempo em que está a cumprir a pena principal de prisão na habitação, pois que tem autorizações de saída, para cumprimento de obrigações profissionais, legais e outras, pelo que, ao não conduzir veículos a motor, está a cumprir a sua pena acessória (conc. 24.ª).
Compulsados os autos principais (através do Cítius), aos quais foi facultado acesso, constata-se que aos mesmos foi remetido, em 23-01-2023, um despacho do TEP do Porto, com essa mesma data, no qual, além do mais, se fez constar, que o condenado fica, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 11.º, n.º 1, da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro, e 222.º-B, n.º 1, do CEP, genericamente autorizado a ausentar-se da sua residência com vista a:
“- consultas médicas, tratamentos e similares,
- solicitação e recebimento de prestação pecuniária regular e de carácter legal que exija comparência pessoal junto da respectiva entidade,
- cerimónias fúnebres ou funerais (apenas nos casos de cônjuge não separado de pessoas e bens ou pessoa com quem viva em união de facto ou economia comum e de parente ou afim na linha recta ou até ao 3.º grau da linha colateral),
- obtenção/renovação de documentos oficiais (com excepção de passaporte, visto de deslocação e diligências conexas),
- actos judiciais e diligências perante o Ministério Público, o órgão de polícia criminal, a DGRSP e a CPCJ previamente agendadas ou programadas,
- exercer o direito de voto em eleição organizada por Estado do seu recenseamento,
- participar em sessões organizadas pela DGRSP, no quadro da execução da pena,
- acompanhamento de filho recém-nascido em actos de saúde e/ou obtenção de documentos oficiais relativos ao mesmo, para a qual seja necessária a presença do condenado (a) ( com excepção de passaporte e visto de deslocação),
devendo, contudo, previamente, comunicar tais realidades/necessidades, nos termos dos seus deveres legais, aos serviços de reinserção social que, por seu turno, para além de antecipadamente as comprovarem devidamente, também em termos de necessidade real e efectiva, exercendo ainda a adequada fiscalização, as devem comunicar ao tribunal com antecedência conveniente, sem prejuízo do mais previsto no artigo 11.º da referida lei.
Para qual(is)quer outra(s) autorização(ões) excepcional(is) de ausência da sua residência, da competência deste Tribunal (artigo 11.º, n.º 1, da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro, e artigo 222.º-B do CEP), deverá o(a) condenado(a) contactar directamente os serviços de reinserção social com pelo menos três dias úteis de antecedência, conjuntamente fornecendo as informações necessárias (art. 6.º, alínea e), da Lei n.º 33/2010, de 2 de Setembro).” (ref.ª 5539807).
Ora, como resulta de tal despacho, trata-se de autorizações de saída da residência para actos ou diligências muito específicas, com a necessária e prévia comunicação aos Serviços de Reinserção Social por parte do recorrente, que averiguará da real necessidade de saída, comunicando-a depois esse organismo ao Tribunal.
Não foi, ao contrário do alegado, concedida qualquer autorização para cumprimento de obrigações profissionais, concretamente para poder exercer actividade laboral de forma regular, nos termos do n.º 3 do artigo 43.º do Código Penal.
Tais autorizações de saída, previsivelmente muito pontuais, além de previamente comprovada a sua necessidade, destinam-se, na sua maioria, ao cumprimento de deveres legais ou ao exercício de direitos pessoais, que assistem a todos os cidadãos, independentemente da situação em que se encontrem, estando legalmente previstas para tais situações de privação da liberdade, não assistindo, contudo, ao arguido ou condenado, de entre aqueles que a lei lhe reconhece, um qualquer “direito” de se ausentar da habitação, mas sim o dever de “permanecer nos locais onde é exercida a vigilância electrónica” (cfr. arts. 5.º e 6.º, al. a), da dita Lei n.º 33/2010).
Neste contexto de privação da liberdade do recorrente, em cumprimento da pena de prisão, não poderá considerar-se o tempo respectivo para cumprimento, em simultâneo, também da pena acessória da proibição de conduzir, sob pena de serem postergadas as finalidades desta e de lhe retirar toda a eficácia que se pretende obter com a sua execução, sendo esta a razão de ser do regime estabelecido no dito n.º 6 do artigo 69.º do Código Penal.
Nem se vislumbra que, com tal sentido interpretativo, sejam violados quaisquer normativos legais ou constitucionais, como argumenta o recorrente, designadamente os artigos 69.º, n.º 6, do Código Penal e 479.º e 500.º do CPP, bem como os princípios enunciados nos artigos 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, e 205.º da CRP, sendo que o entendimento agora sustentado vem sendo adoptado pela jurisprudência,[10] além de que o mesmo também resulta da fundamentação do dito Acórdão do STJ n.º 3/2023 (vide pág. 88).
Assim, não pode proceder a pretensão do recorrente de ver terminado o cumprimento da pena acessória no dia 28-02-2024, sendo que, ainda que por diferentes fundamentos, impõem-se alterar o despacho recorrido em conformidade com a acima referido, procedendo apenas o recurso nessa medida.

III
Pelo exposto, na procedência parcial do recurso, decide-se revogar o despacho recorrido na parte em que considerou o termo do cumprimento da pena acessória de proibição de conduzir no dia 01-07-2025, determinando-se que o mesmo ocorrerá no dia 29-06-2025.

Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrário).
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Notifique.
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Porto, 03-05-2023.

Raul Cordeiro
Carla Oliveira
Paula Pires
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[1] Vejam-se, neste sentido, os Acórdãos da Relação de Guimarães de 08-07-2002, CJ IV, págs. 282 a 284, e de 07-04-2013, CJ II, págs. 294 e 295; da Relação do Porto de 10-03-2004, CJ II, págs. 205 e 206, e de 11-05-2005, CJ III, págs. 201 a 203, e da Relação de Évora de 20-12-2005, CJ V, págs. 282 e 283.
[2] In Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 13, N.º 2 [abril – junho de 2003], págs. 271 a 287.
[3] Contudo, importa ter presente que a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, devendo ter-se também em conta a unidade do sistema jurídico, presumindo-se que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (n.ºs 1 e 3 do art. 9.º do C. Civil).
[4] Vide Acórdão n.º 2/2013, in DR I, de 08-01-2013.
[5] Diferentemente, nas situações em que não está em causa qualquer título para o exercício de actividade ou profissão, o cumprimento de pena acessória inicia-se com o trânsito em julgado da decisão condenatória. Atente-se, por exemplo, nas penas acessórias previstas nos artigos 69.º-B e 69.º-C do Código Penal.
[6] Lei n.º 28/82, de 15-11 (com as alterações posteriores, a última delas pela Lei Orgânica n.º 1/2022, de 04-01).
[7] In Código de Processo Penal Anotado, 3.ª Edição, Almedina, pág. 1021.
[8] Cfr. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, págs. 96, 165 e 181.
[9] Cfr. entre outros os Acórdãos da Relação de Coimbra de 29-11-2000 (CJ V, pág. 50); de 04-02-1999 (CJ II, pág. 40); de 29-11-2000 (CJ V, pág. 49), e de 17-01-2001 (CJ I, pág. 50), e da Relação de Lisboa de 30-10-2003 (CJ IV, pág. 143).
[10] Designadamente no Ac. da RC de 04-05-2022 (Proc. 30/21.9GCFVN-A.C1), in www.dgsi.pt (citado na resposta do Ministério Público e no parecer do Exm.º Procurador-Geral Adjunto).