Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2001/15.5T8OVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ABÍLIO COSTA
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
EX-CÔNJUGE
BEM COMUM
ILEGITIMIDADE
Nº do Documento: RP201810082001/15.5T8OVR-A.P1
Data do Acordão: 10/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º681, FLS.132-139)
Área Temática: .
Sumário: I – Por dívida própria do executado foi penhorado um bem comum do ex-casal, constituído pelo executado e pela embargante, e ainda não partilhado.
II – Tendo ex-mulher do executado sido citada no âmbito da execução para os efeitos do disposto no n.º1 do art.º 740.º do Código de Processo Civil, não pode a mesma fazer uso dos embargos de terceiro, previstos no artigo 343.º do Código de Processo Civil, por carecer de legitimidade para o efeito.
III – A mesma apenas pode, na execução, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2.001/15.5T8OVR-A.P1
Acordam no Tribunal da Relação do Porto
Por apenso à execução, para pagamento de quantia certa, movida por B… contra C…, veio D… deduzir embargos de terceiro, pedindo que seja cancelada a penhora efectuada sobre o prédio rústico que identifica.
Alega, entre o mais, estar em causa uma dívida alegadamente constituída em 13-1-2013 - após a dissolução do casamento, por divórcio, entre embargante e executado, ocorrida por decisão de 31-10-2011 - dívida própria do executado, portanto; tendo sido, no entanto, penhorado um bem comum do ex-casal, ainda não partilhado.
Seguiu-se decisão que indeferiu liminarmente os embargos, “com fundamento na falta de legitimidade da Embargante, dado que esta, apesar da qualidade de cônjuge não contraente, não tem posição de terceiro”.
Escreveu-se, a propósito, na respectiva fundamentação:
“O cônjuge do executado pode ser citado em três situações distintas. Em todas elas é pressuposto que o cônjuge não seja executado, que é a situação dos autos, dado que o título executivo configura a dívida como própria do executado (declaração de confissão de dívida à qual se aplica o regime previsto no art. 458.º, n.º 1 do CC).
A primeira situação encontra-se prevista na primeira parte da al. a) do art 786º, conjugada com o n.º 1 do art. 787.º, ambos do nCPC, e caracteriza-se por, estando em causa dívida própria do executado ter sido objeto de penhora na execução um imóvel (ou um estabelecimento comercial) que o executado não pode alienar livremente; isto no pressuposto que o regime de bens é um regime de comunhão, dado que, sendo o regime de bens o da separação, o consentimento de ambos os cônjuges apenas se exige relativamente à casa de morada de família (cf. art. 1682.º-A, n.º 2, CC). Nesta situação, o cônjuge tem de ser citado, dado que, independentemente de os bens penhorados serem próprios do executado ou comuns, está em causa a possibilidade de alienação forçada de bens que só por ambos podem ser alienados (cf. art. 34.º, n.ºs 1 e 3, parte final, nCPC).
A segunda situação em que o cônjuge tem de ser citado ocorre quando, na execução movida contra um dos cônjuges se hajam penhorados bens comuns, sendo o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena da execução prosseguir sobre os bens comuns (cf. art. 786.º, n.º 1, al. a), segunda parte, nCPC).
A terceira situação que justifica a citação do cônjuge do executado resulta das hipóteses previstas nos arts. 741.º e 742.º do nCPC (cf. art. 786.º, n.º 5, nCPC), pressupondo-se nessas hipóteses, em ambos os casos, que o cônjuge do executado pretenda contestar a comunicabilidade da dívida (alegada pelo exequente, no caso do art. 741.º, ou alegada pelo cônjuge executado, no caso do art. 742.º, ambos do nCPC).
No caso dos autos, não foi alegada a comunicabilidade da dívida, nem pelo exequente, nem pelo executado. Encontra-se penhorado um prédio rústico, com a descrição n.º 5497 da União de freguesias de …, …, … e …. A Embargante e o executado encontravam-se casados no regime de bens de comunhão de adquiridos. A dívida exequenda é própria do executado, como já se disse.
Neste pressuposto, de dívida própria do executado, tendo a execução sido movida apenas contra o cônjuge contraente, e tendo sido objeto de penhora na execução um imóvel que é um bem comum, o cônjuge do executado é citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena da execução prosseguir sobre os bens comuns. Aliás, foi com este conteúdo que a Embargante foi citada para os termos da execução (cf. ref.ª interna 6440179 e 6319409).
Tendo o cônjuge sido citado, não pode embargar de terceiro, por falta de legitimidade. Com efeito, apenas pode embargar de terceiro quem não é parte na causa (cf. art. 342.º, n.º 1, nCPC). Ora, se a Embargante foi citada, é parte na execução. Quer dizer: para o critério de legitimidade nos embargos de terceiro não releva a circunstância de o terceiro se achar indiferente ou estranho à causa, mas antes a circunstância de ele não ter sido citado para os termos da causa principal; por que se o for, mal ou bem citado, perde a legitimidade para deduzir embargos de terceiro, ainda que, no plano substantivo, não seja sujeito da relação jurídica que está na base do litígio da causa principal.
Por conseguinte, o que a Embargante deveria ter feito – e não fez – seria requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de ação em que a separação já tenha sido requerida, quanto ao prédio rústico penhorado, sob pena de a execução prosseguir sobre este bem comum”.
Inconformada, a embargante interpôs recurso.
Conclui:
- A execução em apreço apresenta como título executivo um documento particular com o título “CONFISSÃO DE DÍVIDA”, assinado, alegadamente, a 13 de Janeiro de 2013, ou seja, após o divórcio de Recorrente e Executado, ocorrido a 31 de Outubro de 2011 e a partilha do património conjugal (no dia 26 de Julho de 2013);
- Fora daquela partilha ficou apenas o prédio rústico, terreno a pinhal, inscrito na matriz predial sob o n.º 5524, da União de freguesias de …, …, … e …, Concelho de Ovar, Distrito de Aveiro, descrito na Conservatória do Registo Predial de Ovar sob o n.º 5497/199980319, penhorado no âmbito da presente execução;
- Esse prédio manteve-se como bem comum, tendo Recorrente e Recorrida direito à respectiva meação naquele bem;
- A 20/10/2017 foi a Recorrente citada, pela Sra. Agente de Execução E…, «nos termos do artigo 740º do Código do Processo Civil (CPC)», «tendo o prazo de 20 (vinte) dias para requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência da acção em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns». Com essa citação foi junto o requerimento executivo e o auto de penhora, no qual consta a penhora da totalidade daquele prédio rústico, mantido em comum por Recorrente e Executado;
- A 17 de Novembro de 2017 a Recorrente apresentou requerimento esclarecendo que não era cônjuge do Executado, por se encontrar divorciada por decisão de 31 de Outubro de 2011, pelo que a haver lugar à sua citação seria a mesma em qualidade diversa e sob cominação diversa, sendo que a 28/11/2017 (referência n.º 99898842) o ilustre Tribunal decidiu pelo indeferimento da nulidade de citação do cônjuge;
- Perante tal despacho, tendo a Recorrente compreendido que o Tribunal “a quo” tinha partido do pressuposto errado de que se estaria perante «dívidas contraídas durante a pendência do casamento», não sendo o caso, apresentou embargos de terceiro a 7 de Dezembro de 2017;
- Nos embargos de terceiro a Recorrente veio invocar a ausência de título executivo, dado o art. 703.º do CPC deixar de reconhecer natureza de título executivo aos documentos particulares; a nulidade do título por ausência de indicação da relação causal geradora de direitos e obrigações entre Exequente e Executado, sendo que caso fosse um contrato de mútuo sempre teria de ter sido celebrado por escritura pública ou por documento autenticado, o que não se verifica; e por a dívida ser exclusiva do Recorrido, dado ser posterior à dissolução do casamento, pelo que não poderia ter sido penhorado o bem na sua totalidade;
- A 07/08/2018 (notificada à Recorrente a 15/02/2018) foi proferida a sentença de que ora se recorre;
- Segundo o Tribunal “a quo” tendo a Embargada sido citada («mal ou bem citada») perde a legitimidade para deduzir embargos de terceiro, passando a ser parte na execução;
- É inquestionável que, embora após a dissolução do casamento os bens comuns mantenham essa qualidade até à liquidação e partilha, cada um dos cônjuges passa a poder dispor da sua meação, podendo a mesma ser alienada ou objecto de penhora;
- Acontece que, no caso em apreço, Recorrente e Recorrida procederam à partilha do património comum, tendo apenas deixado o bem em apreço fora da partilha, pelo que são ambos comproprietários no património comum daquele bem;
- Significa isto que, e não tendo sido a comunicabilidade da dívida alegada pelo executado (como bem reconhece o Tribunal “a quo”) a Sra. Agente de Execução nunca poderia ter penhorado todo o bem, mas apenas e tão só o direito do Executado à meação naquele bem comum do dissolvido casal;
- Veja-se que, no caso em apreço, nem sequer se poderá falar de património colectivo de afectação especial, autónomo, cabendo a cada cônjuge um único direito sobre o mesmo, uma vez que não existe um conjunto de bens comuns, já que o património comum do casal foi partilhado a 26 de Julho de 2013, mantendo-se de fora dessa partilha apenas o prédio rústico penhorado nos presentes autos;
- Deveria assim a Sra. Agente de Execução ter redigido um auto de penhora, onde constasse a penhora da meação do executado no prédio rústico em discussão, e não a penhora de todo o prédio. Daí a necessidade sentida pela Recorrente de, a 17 de Novembro de 2017, requerer que houvesse a correcção da citação, devendo ser a mesma citada em qualidade e sob cominação diversas;
- Foi na sequência daquele requerimento de 17 de Novembro de 2017 que o Tribunal “a quo” se pronunciou sobre a validade da citação, sem, contudo, (ao que parece) ter consultado o processo e aquilatado dos termos em que a penhora se veio a concretizar, uma vez que motiva o seu indeferimento da nulidade da citação na seguinte conclusão: «o regime de responsabilidade por dívidas contraídas durante a pendência do casamento mantém-se mesmo depois do divórcio ou separação de pessoas e bens, mas só até à partilha, quando as dívidas tenham reflexo sobre o património comum impartilhado; este património funciona como garantia geral dos credores»;
- Acontece que, como se tinha deixado claro no requerimento de 17 de Novembro de 2017, as dívidas foram contraídas após o divórcio, pelo que não se aplicava, nem se aplica o quanto vinha dito naquele despacho, o que motivou a apresentação dos embargos de terceiro;
- Não há dúvidas de que os nossos tribunais vêm entendendo que o n.º 1 do artigo 740.º do CPC abrange igualmente os casos em que, apesar do divórcio, exista uma comunhão conjugal por não se ter procedido ainda à partilha. Contudo, o que maioritariamente se tem discutido na jurisprudência são situações em que a obrigação exequenda é anterior à dissolução da sociedade conjugal, ainda
que seja da responsabilidade de um único cônjuge, pelo que, nestas situações não restam dúvidas de que os bens comuns do casal mantêm essa qualidade, até à sua divisão e partilha;
- Salvo melhor opinião em contrário, a situação dos autos tem especificidades que impõe um tratamento diferenciado, uma vez que, neste caso, não podemos falar verdadeiramente de um património comum (visto já se ter procedido à partilha do património conjugal no dia 26 de Julho de 2013, tendo ficado de fora apenas o bem penhorado), mas de um único bem e em causa encontra-se uma alegada dívida posterior ao divórcio;
- Queremos com isto dizer que a disposição do art. 740.º do CPC não se pode aplicar ao caso em apreço, na medida em que a Recorrente assume verdadeiramente a posição de terceira face à execução, como qualquer comproprietário colocado na sua situação;
- Acresce que não se pode aceitar que o Tribunal “a quo” considere a Recorrente parte pelo simples facto de ter sido citada. Se a Recorrente é parte então dever-lhe-ão ser reconhecidos os meios de defesa do Executado, já que, como deixou claro nos seus embargos, entende que nem sequer existe título executivo;
- A verdade é que a Recorrente não tem acesso ao processo via citius; não sabe qual o despacho proferido pelo Tribunal “a quo” para aceitar a confissão de dívida apresentada como título executivo, tendo em conta as alterações introduzidas ao artigo 703.º do CPC; nem sabe igualmente qual a posição assumida pelo Tribunal “a quo” relativamente ao facto de não constar da confissão de dívida, nem do requerimento executivo a relação causal geradora de direitos e obrigações entre Exequente e Executado, sendo que se for um contrato de mútuo sempre teria de ter sido celebrado por escritura pública ou por documento autenticado, o que não se verifica;
- Não tendo a Sra. Agente de Execução penhorado apenas ao direito à meação no único bem comum do ex-casal do Executado e não tendo o meritíssimo juiz ordenado a correcção do auto de penhora, tendo em conta o facto de se estar perante uma dívida posterior à dissolução do casamento, a Recorrente tem legitimidade para apresentar embargos de terceiros, não sendo PARTE nos presentes autos pelo simples facto de ter sido erradamente citada pela Sra. Agente de Execução nos termos do art. 740.º do CPC;
- A douta Decisão em referência violou, desta forma, os artigos 743.º e 342.ºdo C.P.C.
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Questão a decidir:
- legitimidade da embargante.
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A matéria a considerar já resulta do relatório.
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Adiantámos não assistir razão à recorrente.
Assim, dispõe-se no art.343º do CPC: “O cônjuge que tenha posição de terceiro pode, sem autorização do outro, defender por meio de embargos os direitos relativamente aos bens próprios e aos bens comuns que hajam sido indevidamente atingidos pela diligência prevista no artigo anterior”.
Não estamos perante bens próprios da embargante.
Estamos, sim, perante a penhora de bens comuns dos ex-cônjuges – art.740º do CPC.
E dispõe-se no nº1 daquele preceito legal: “Quando, em execução movida contra um só dos cônjuges, forem penhorados bens comuns do casal, por não se conhecerem bens suficientes próprios do executado, é o cônjuge do executado citado para, no prazo de 20 dias, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência da ação em que a separação já tenha sido requerida, sob pena de a execução prosseguir sobre os bens comuns”.
Ora, no caso, a recorrente foi citada nos termos e para os efeitos do disposto no art.740º, nº1, do CPC, o que não vem posto em causa – aliás, tanto quanto decorre dos autos, arguiu a nulidade daquela citação, o que foi indeferido por despacho de 28-11-2017.
Não estamos, assim, perante bens comuns indevidamente atingidos pela penhora. Não podendo, por isso, a recorrente fazer uso dos embargos de terceiro – cfr., a propósito, LEBRE DE FREITAS e ISABEL ALEXANDRE in CPC Anotado, 1º, 668, e o ac. do STJ de 5-3-2015, in CJ, XXIII, I, 147.
Acrescente-se, apenas, ser irrelevante a data do divórcio, relevando, antes, a da partilha – e, neste caso, estamos perante um bem imóvel do ex-casal ainda não partilhado.
Na verdade, mantendo-se o património comum do ex-casal, continua a ter de se observar o disposto no art.740º, nº1, do CPC – cfr. acórdão supra citado.
E que, diferentemente do que parece concluir a recorrente, o facto de o bem penhorado ser o único que resta do património comum – segundo alega a recorrente, em 26-7-2913 procederem à partilha do património comum, restando por partilhar o imóvel penhorado – não transforma o direito do ex-casal que sobre ele incide – comunhão de mão comum – em direito de compropriedade: a forma de pôr fim àquela comunhão será sempre a partilha e não a divisão do bem.
Em suma, tendo sido penhorado um bem comum por dívida própria do executado, e procedendo-se à citação da recorrente nos termos e para os efeitos do disposto no art.740º, nº1, do CPC, não pode aquela fazer uso dos embargos de terceiro previstos no art.343º do CPC – antes, requerer a separação de bens ou juntar certidão comprovativa da pendência de acção em que a separação já tenha sido requerida.
Não o tendo feito, prossegue a execução sobre o bem comum penhorado – revertendo, naturalmente, metade do produto da sua venda para a embargante, dado não se tratar de uma dívida própria dela, mas própria do executado.
Pelo que o recurso não merece provimento.
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Acorda-se, em face do exposto, em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela embargante.
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Porto, 08-10-2018
Abílio Costa
Augusto de Carvalho
Carlos Gil