Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1454/13.0TTPNF.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ANTÓNIO JOSÉ RAMOS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
TRABALHADOR AGRÍCOLA
PENSÃO DE SOBREVIVÊNCIA
SUBSÍDIO POR MORTE
Nº do Documento: RP201507081454/13.0TTPNF.P1
Data do Acordão: 07/08/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO (SOCIAL)
Área Temática: .
Sumário: I - Configura acidente de trabalho aquele em que o sinistrado, trabalhador agrícola, sob as ordens e fiscalização da segunda Ré, presta a sua atividade laboral - trabalhos de limpeza de ervas à volta das vides, utilizando para o efeito uma enxada – entre as 9 horas e as 15.30 horas -, sob uma temperatura muito elevada a atingir mais de 40º centigrados, com esforço físico e prolongada exposição ao sol, que lhe provoca um golpe de calor, com perda de consciência, hipertermia (elevação da temperatura do corpo acima do normal), temperatura de 41.º com uma escala de coma de Glasgow de 3, com abundante sangramento pelos orifícios naturais, vindo a falecer cerca das 22h47m.
II - Tendo o Instituto de Solidariedade e Segurança Social pago a pensão de sobrevivência e subsídio por morte a beneficiários de pensões devidas por acidente de trabalho mortal, tem direito a ser reembolsado das quantias pagas, na acção emergente desse acidente, pelo responsável civil desse sinistro, no caso a entidade seguradora.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ACÓRDÃO

PROCESSO Nº 1454/13.0TTPNF.P1
RG 473

RELATOR: ANTÓNIO JOSÉ ASCENSÃO RAMOS
1º ADJUNTO: DES. EDUARDO PETERSEN SILVA
2º ADJUNTO: DES. PAULA MARIA ROBERTO

PARTES:
RECORRENTE: B… – COMPANHIA DE SEGUROS.
RECORRIDOS: C… E INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL, IP.
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Acordam os Juízes que compõem a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
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I – RELATÓRIO
1. Frustrada a tentativa de conciliação, C…, viúva, residente na Rua …, …, ….-… …, Penafiel, intentou a presente acção especial emergente de acidente de trabalho contra “B… COMPANHIA DE SEGUROS” e “D…, LDA.”, que as rés sejam condenadas na medida das respectivas responsabilidades a pagarem-lhe a título de pensão por morte o montante de €2.327,40, a quantia de €5.533,70 relativa a subsídio por morte, a quantia de €10,00 relativa a despesas de deslocação a tribunal, a quantia de €3.689,13 de despesas de funeral com transladação, a quantia de €5.000,00 por dano moral, sendo todas as quantias acrescidas de juros de mora desde o seu vencimento e até integral pagamento.
Alegou, para o efeito, em síntese e com utilidade, que que é esposa do sinistrado E…, sendo que este era trabalhador da 2.ª ré, exercendo as funções de trabalhador agrícola, auferindo a retribuição de €485,00 x 14 + €88.00 x 11.
Alegou, também, que no dia 5/7/2013, pelas 15h30m, quando o sinistrado estava a trabalhar em Felgueiras sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª ré, começou a vomitar e perdeu a consciência, estando o mesmo a tremer, com espasmos e convulsões. A causa da morte do seu marido foi golpe de calor que deriva de uma prolongada exposição ao calor, com o consequente aumento da temperatura corporal.
Alegou, por fim, que entre a autora e o seu marido existia muita união, amor e entreajuda, sendo que o desaparecimento do mesmo foi abrupto e trágico, tendo a autora, em consequência da morte daquele, sofrido uma indescritível dor e angústia.
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2. O INSTITUTO DA SEGURANÇA SOCIAL, IP. veio, a fls. 67 e seguintes, deduzir contra as rés um pedido de reembolso.
Alega, para tanto e em suma, que pagou à autora o subsídio por morte no valor de €1.257,66, bem como pensões de sobrevivência no período de Agosto de 2012 a Junho de 2014 no montante de €3.431,67, sendo o valor mensal actual de €274,53.
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3. Citadas ambas as rés contestaram.
3.1. A Ré “B… COMPANHIA DE SEGUROS”, pugnou pela improcedência do pedido.
Aceitou a ré a existência do contrato de seguro, bem como a transferência para si da responsabilidade pelo valor anual alegado na petição inicial.
Não aceitou, no entanto, qualquer responsabilidade por entender que o evento participado não integra o conceito de acidente de trabalho já que a morte do trabalhador resultou de uma exposição durante cerca de 5h30m a elevadas temperaturas que na altura eram de cerca de 38º a 40º, o que provocou uma forte insolação e desidratação.
Por outro lado, entende que qualquer indemnização a pagar por si à autora deverá limitar-se à responsabilidade para si transferida pelo que os danos morais não se enquadram na mesma.
3.2. A ré “D…, LDA.”, alegou que o sinistrado sempre teve total autonomia para se deslocar para uma sombra, tido sempre acesso fácil a água, quer para beber, quer para se refrescar.
Sempre tiveram os trabalhadores, incluindo a infeliz vítima, a possibilidade de repousar/descansar quando o entendessem, nomeadamente nos dias de temperaturas mais elevadas.
Termina pedindo a sua absolvição.
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4. A Ré “B… COMPANHIA DE SEGUROS” contestou o pedido de reembolso deduzido pelo Instituto de Segurança Social alegando que este não tem direito ao reembolso do subsídio por morte e pensão de sobrevivência por se tratarem de obrigações próprias da segurança social.
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5. Respondeu a Autora à contestação apresentada pela seguradora defendendo o alegado na petição inicial.
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6. Foi proferido despacho saneador onde se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo sido selecionada a matéria de facto assente e controvertida.
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7. Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença, cuja parte decisória tem o seguinte conteúdo:
“A) Pelo exposto, julgo a presente acção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
1. Condeno a ré “B… Companhia de Seguros” a pagar à autora C… as seguintes quantias:
a) €10,00 (dez euros) acrescida de juros de mora, à taxa legal, vencidos e vincendos, contados desde 18/2/2014 e até efetivo e integral pagamento.
b) €5.533,70 (cinco mil e quinhentos e trinta e três euros e setenta cêntimos) a título de subsídio por morte, acrescido de juros de mora, à taxa legal, contados desde 18/2/2014 e até efetivo e integral pagamento.
c) A pensão anual de €2.327,40 (dois mil e trezentos e vinte e sete euros e quarenta cêntimos) devida a partir de 6/7/2013, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a data de vencimento de cada uma das prestações e até efetivo e integral pagamento.
2. Absolvo a ré “D…, Lda.” dos pedidos formulados pela autora.
3. Absolvo a ré “B… Companhia de Seguros” do demais peticionado pela autora.
Custas da acção pela autora e pela ré “B… Companhia de Seguros” na proporção de, respetivamente, 52% para a autora e 48% para a ré, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia a autora.
B) Mais se decide julgar procedente o pedido formulado pelo Instituto de Segurança Social, IP e, em consequência, condenar a ré “B… Companhia de Seguros” a pagar-lhe:
1. A quantia de €1.257,66 (mil e duzentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos) paga à autora a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação, com a inerente desoneração do pagamento de tal quantia até tal limite, por parte dessa ré, à autora.
2. A quantia de €6.382,89 (seis mil e trezentos e oitenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida das pensões que forem pagas até ao trânsito em julgado da presente sentença, bem como de juros de mora contados sobre o valor de €3.431,67 (três mil e quatrocentos e trinta e um euros e sessenta e sete cêntimos) desde a citação e até efetivo e integral pagamento e sobre as prestações vencidas na pendência da presente acção e até ao trânsito em julgado desde o mês seguinte àquele a que respeitam, em relação ao montante de cada pensão, até efetivo e integral pagamento, com a inerente desoneração do pagamento de tal quantia até tal limite, por parte dessa ré, à autora.
Custas quanto a esse pedido pela ré “B… Companhia de Seguros”
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Fixo o valor da acção em €38.688,20 (trinta e oito mil e seiscentos e oitenta e oito euros e vinte cêntimos)
Notifique e registe.”
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8. Inconformada com a sentença a Ré “B… COMPANHIA DE SEGUROS”. veio interpor recurso, pedindo a sua revogação e a sua absolvição, assim concluindo:
I. Não configura o conceito de acidente de trabalho a doença denominada de «golpe de calor», definida como uma doença súbita, derivada de uma prolongada exposição ao calor, com o consequente aumento súbito da temperatura corporal, por resultar duma causa interna ao sinistrado e não duma causa externa ao mesmo, como se impunha para que aquele evento fosse considerado um acidente daquele tipo.
II. Não configura o conceito de acidente de trabalho a doença denominada de «golpe de calor», definida como uma doença súbita, derivada de uma prolongada exposição ao calor, com o consequente aumento súbito da temperatura corporal, quando o prolongamento daquela exposição, não sendo uma condição necessária à execução do trabalho (mas apenas a exposição em si mesma), dependeu apenas do próprio sinistrado, que podia, a qualquer momento, interromper aquela exposição e colocar-se à sombra ou refrescar-se com água, o que tudo estava ao seu alcance.
III. O facto de o sinistrado optar por prolongar aquela exposição, nada fazendo, como podia, para a interromper, torna a ocorrência daquela doença algo não só possível, como também previsível e até provável, para o lesado e para qualquer outro trabalhador normal nas mesmas circunstâncias, por ser uma consequência conhecida, normal e frequente daquele tipo de exposição (e até inevitável, dependendo apenas, para cada pessoa, do tempo da exposição, o qual, maior ou menor, acaba, pois, por ser o único fator imprevisível da ocorrência da doença), deixando, como tal, de se poder falar daquela ocorrência como um evento fortuito, súbito e imprevisto e, como tal, num acidente para efeitos do previsto no artº 8º da Lei nº 98/09, de 4 de Setembro.
IV. A Segurança Social é uma instituição “vocacionada para a proteção, entre outros, do evento “morte” dos beneficiários desse regime” (cfr. ac. da RC de 18.10.2005, in www.dgsi.pt), tendo o pagamento do subsídio por morte e pensões de sobrevivência a finalidade compensar o acréscimo de encargos para o agregado familiar decorrentes da morte do beneficiário, facilitando, do ponto de vista económico, a reorganização da vida familiar, constituindo obrigações próprias da segurança social.
V. Isto porque, tais prestações são devidas independentemente da causa da morte, e tendo por base apenas nos descontos feitos pela vítima.
VI. Ao admitir o reembolso de tais subsídios e prestações por parte dos responsáveis civis acabaríamos por cair no insólito de transformar um particular em perene pagador de pensões, em substituição da segurança social,
VII. A sentença recorrida, ao decidir da forma que o fez, violou, pois, o disposto nos art.s 70º da Lei 4/2007, de 16 de Janeiro, e o previsto na Lei 98/2009, de 4 de Setembro, o que tudo deverá levar à alteração daquela referida decisão por uma outra que absolva a recorrente do pedido contra ela formulado.
VIII. A recorrente foi condenada a pagar dois subsídios por morte: um no valor de € 5.533,70 à autora (alínea b) do ponto 1. da alínea A) daquela decisão), e outro à Segurança Social no valor de € 1.257,66, (ponto 1. da alínea B)) o que tudo constitui uma clara duplicação de condenação nos mesmos valores e que deverá levar, pelo menos, à dedução na primeira condenação do valor da segunda.
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9. A Autora apresentou contra-alegações, onde pugna pela improcedência do recurso quanto ao pedido da Autora e provimento do recurso quanto à absolvição da Recorrente no pedido do Instituto da Segurança Social IP, concluindo que:
I – Configura acidente de trabalho as lesões que provocaram a morte súbita do sinistrado ocorreram no tempo e local de trabalho, precipitada pelo esforço físico efetuado a altas temperaturas (causa exógena) que a sua atividade, enquanto trabalhador agrícola, lhe exigiu.
II - O Golpe de calor não é uma doença da vítima é um fenómeno imprevisível e súbito, que deriva de uma prolongada exposição ao calor com o consequente aumento da temperatura corporal, e manifesta-se de forma súbita e repentina, sem que vitima tenha consciência do que está a sofrer;
III - O golpe de calor é provocado por factor externo – temperatura elevada – a que esteva sujeito o sinistrado enquanto trabalhava sob as ordens da sua entidade empregadora e que lhe causou a morte;
IV - Tendo a entidade Empregadora, no dia 5 de Julho de 2013, imposto ao sinistrado e restantes trabalhadores, que, em campo aberto, ao sol e debaixo de temperatura superior a 40º centrífugos, efetuasse limpeza de ervas à volta das vides, usando uma enxada, torna desde logo a exposição a temperatura elevada condição necessária à execução do trabalho que o sinistrado estava a desenvolver;
V – As funções do sinistrado, trabalhador agrícola, são exercidas ao ar livre, onde a entidade empregadora manda, faça chuva, sol, calor ou frio.
VI - A argumentação da recorrente de que o sinistrado só estava a trabalhar porque queria e optou por prolongar a exposição ao calor mantendo-se no seu posto de trabalho a executar a suas funções, é ofensiva e denegri a sua vida e a de qualquer trabalhador, pois o sinistrado, como qualquer ser humano, queria viver, e como trabalhador estava a executar as tarefas que naquele dia hora e local a entidade empregadora lhe ordenou.
VII - Aceita a aqui Recorrida as alegações apresentadas pela Recorrente quanto ao não ser devido o reembolso ao Instituto da Segurança Social os pagamentos efetuados por esses Instituto, correspondentes ao subsídio por morte e à pensão de sobrevivência, à cônjuge do sinistrado E….
VIII - O pagamento pelo Instituto da Segurança social do subsídio por morte e pensão de sobrevivência, à cônjuge do sinistrado E…, é uma obrigação de cariz eminentemente social, que têm como finalidade compensar o acréscimo de encargos para o agregado familiar decorrente da morte do beneficiário, tendo em vista facilitar, do ponto de vista económico, a reorganização daquele.
IX - As referidas prestações são devidas independentemente da causa da morte, e mesmo no caso de se tratar de morte natural, bem como do facto de o beneficiário se encontrar ainda em atividade ou já reformado.
X - Decorre da regulamentação de tais subsídios que eles não tem a natureza de indemnização de um dano, tratando-se antes de uma obrigação de solidariedade que a todos os membros da coletividade, máxime os contribuintes do sistema de segurança social, cabe suportar, tendo por base, única e exclusivamente, os descontos feitos pela própria vítima para aquele instituto, pelo que com critérios autónomos face aos que fixam as indemnizações devidas por acidente de trabalho.
XI - O montante dessa pensão de sobrevivência ao cônjuge corresponde a 60% ao valor da pensão de invalidez ou velhice que o beneficiário recebia ou daquela a que teria direito a receber à data do falecimento. – Vide http://www4.seg-social.pt/pensao-de-sobrevivencia.
XII - A pensão de sobrevivência paga pela Segurança Social é de cariz iminente mente social.
XIII - Se a Segurança Social é desonerada de fazer este pagamento ao cônjuge da vítima, direito que esta adquiriu em função dos descontos feitos pelo marido, perde o direito à prestação de cariz iminentemente social para que toda a vida o seu marido contribuiu.
XIII - Bem diferente é a obrigação da Recorrente de pagar à aqui Recorrida, cônjuge do sinistrado, por força do acidente de trabalho, a pensão no âmbito da responsabilidade laboral que lhe havia sido transferida pela entidade empregadora do sinistrado.
XIV - A responsabilidade da recorrente no pagamento da pensão fixada, no âmbito da responsabilidade laboral, tem a natureza de indemnização de um dano com critérios específicos: a existência de um acidente de trabalho e de todos os pressupostos de que o mesmo depende, com cálculo e aplicação que unicamente tem por base a remuneração salarial do sinistrado na data do acidente, sem haver qualquer restrição pelo número de dias, meses ou anos que o sinistrado recebia aquela remuneração
XV - A pensão de sobrevivência paga pelo Instituto da Segurança Social, apenas tem em conta a data em que o beneficiário se inscreveu na Segurança Social e o montante do rendimento sobre o qual efetua o pagamento das contribuições: isto é menos anos de contribuições menos valor de pensão.
XVII - Porque se tratam de obrigações próprias, a Segurança Social nunca poderá ficar sub-rogada no que pagou à sua beneficiária por tais montantes não serem exigíveis por esta ao próprio lesante.
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10. A Exª. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta deu o seu parecer no sentido de ser concedido parcial provimento ao recurso, apenas no que respeita ao reembolso ao Instituto de Segurança Social, IP.
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11. Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do nº 2 do artigo 657º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
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II – QUESTÕES A DECIDIR
Tendo em conta que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações da recorrente - artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho -, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões a decidir são as seguintes:
A)– SABER SE O EVENTO SOFRIDO PELO SINISTRADO CONSTITUI OU NÃO UM ACIDENTE DE TRABALHO;
B)– SABER SE O INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL TEM DIREITO AO REEMBOLSO DO QUE PAGOU À AUTORA A TÍTULO DE SUBSÍDIO POR MORTE E PENSÕES DE SOBREVIVÊNCIA.
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III – FUNDAMENTOS
SÃO OS SEGUINTES OS FACTOS QUE A SENTENÇA RECORRIDA DEU COMO PROVADOS E QUE NÃO FORAM IMPUGNADOS:
A) E… nasceu a 13 de Outubro de 1958 e faleceu no dia 5 de Julho de 2013 no estado de casado com a autora C… (alínea A) dos factos assentes).
B) O sinistrado E… era trabalhador assalariado da 2.ª ré, onde exercia as funções de Trabalhador agrícola (alínea B) dos factos assentes).
C) No dia 5 de Julho de 2013, pelas 15h30m, o sinistrado encontrava-se, sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª ré, a trabalhar num terreno agrícola quando foi vítima de um acidente mortal (alínea C) dos factos assentes).
D) O sinistrado encontrava-se a desenvolver trabalhos de limpeza de ervas à volta das vides, utilizando para o efeito uma enxada (alínea D) dos factos assentes).
E) Nesse dia estava temperatura muito elevada a atingir mais de 40º centigrados ao sol, sendo que o sinistrado desenvolvia o seu trabalho desde as 9 horas, com esforço físico e prolongada exposição ao calor (alínea E) dos factos assentes).
F) Cerca das 15h30m o sinistrado estava a limpar ervas à volta das vides quando começou a vomitar e perdeu a consciência (alínea F) dos factos assentes).
G) Foi transportado pelo INEM para o Hospital de Penafiel – Centro Hospitalar Tâmega e Sousa – onde entrou com diagnóstico de insolação e golpe de calor, com perda de consciência, hipertermia (elevação da temperatura do corpo acima do normal), temperatura de 41º com uma escala de coma de Glasgow de 3, com abundante sangramento pelos orifícios naturais, vindo a falecer cerca das 22h47m (alínea G) dos factos assentes).
H) A causa da morte foi golpe de calor e deveu-se ao tipo de trabalho que desenvolvia sobre prolongada exposição ao calor (alínea H) dos factos assentes).
I) O golpe de calor deriva de uma prolongada exposição ao calor com o consequente aumento da temperatura corporal (alínea I) dos factos assentes).
J) O sinistrado foi a sepultar no cemitério …, Penafiel, pelo que houve transladação (alínea J) dos factos assentes).
K) À data do acidente o sinistrado auferia mensalmente 485,00 euros x 14 + 88,00 euros x 11 (alínea K) dos factos assentes).
L) À data do acidente, a 2ª corré tinha transferido para a 1ª corré a responsabilidade infortunística resultante de acidentes de trabalho mediante contrato titulado pela apólice …………… (alínea L) dos factos assentes).
M) O sinistrado era beneficiário da segurança social n.º ………../.. (alínea M) dos factos assentes).
N) A segurança social pagou à autora o subsídio por morte no valor de €1.257,66 com início em agosto de 2013 (alínea N) dos factos assentes).
O) A pensão de sobrevivência tem vindo a ser paga à autora desde agosto de 2013 (alínea O) dos factos assentes).
P) A segurança social pagou à autora, a título de pensões de sobrevivência no período de agosto de 2013 a Março de 2015 o montante de €6.382,89 sendo o valor mensal atual de €274,53.
Q) Entre a autora e o sinistrado havia muita união, amor e entreajuda (resposta ao art. 1.º da base instrutória).
R) O sinistrado era a companhia da autora e o seu amparo (resposta ao art. 2.º da base instrutória).
S) O seu desaparecimento foi abrupto e trágico (resposta ao art. 3.º da base instrutória).
T) A autora, em consequência da morte do sinistrado, sofreu dor e angústia que perdura e há de perdurar, chora e lamenta o sucedido (resposta ao art. 4.º da base instrutória).
U) A autora gastou a quantia de €10,00 com as deslocações a tribunal (resposta ao art. 5.º da base instrutória).
V) O sinistrado sempre teve total autonomia para, em condições atmosféricas adversas, se deslocar para uma sombra ou para qualquer local abrigado (resposta ao art. 6.º da base instrutória).
W) Os trabalhadores tiveram acesso fácil a água, quer para beberem, quer para se refrescarem (resposta ao art. 7.º da base instrutória).
X) E sempre tiveram a possibilidade de repousar/descansar quando o entendessem, nomeadamente nos dias de temperaturas mais elevadas (resposta ao art. 8.º da base instrutória).
Y) A cerca de 30/40 metros do local onde o sinistrado trabalhava havia um fontanário com água potável (resposta ao art. 9.º da base instrutória).
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2. Cabe, então, resolver a primeira das questões trazida pela recorrente, ou seja, saber se O EVENTO SOFRIDO PELO SINISTRADO CONSTITUI OU NÃO UM ACIDENTE DE TRABALHO.
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2.1. REGIME LEGAL APLICÁVEL
O evento dos autos ocorreu em 05 de Julho de 2013, por isso, no plano infraconstitucional aplica-se o regime jurídico da Lei n.º 98/2009, de 04 de Setembro[1], cuja entrou em vigor em 01 de Janeiro de 2010 e apenas se aplica aos acidentes ocorridos após a sua entrada em vigor (artigos 187º, nº 1 e 188º).
2.2. Nos termos do nº 1 do artigo 8º da NLAT, constitui acidente de trabalho o acidente que se verifique no local e no tempo de trabalho e produza direta ou indiretamente lesão corporal, perturbação funcional ou doença de que resulte redução na capacidade de trabalho ou de ganho ou a morte.
Trata-se de uma conceção complexa demarcada por vários elementos cumulativos, a saber:
- Um elemento espacial (local de trabalho);
- Um elemento temporal (tempo de trabalho); e
- Um elemento causal.
Quanto a este terceiro elemento – nexo causal – pressupõe a existência de um nexo de causalidade (causa/efeito) entre o evento e as lesões, perturbação ou doença e não propriamente uma relação de causalidade entre o trabalho e o acidente, pois esta já resulta dos dois elementos anteriormente citados.
Mas a verdade é que, apesar da indicação daqueles elementos caraterizadores do acidente de trabalho, a lei não nos dá a noção de acidente de trabalho.
Como se refere no acórdão do STJ 30-05-2012[2], e a montante da verificação cumulativa destes pressupostos, torna-se imperioso que ocorra um evento que possa ser havido como “acidente”, que a doutrina e a jurisprudência definem como o evento anormal, em geral súbito, ou pelo menos de duração curta e limitada, com origem externa, e que acarreta uma lesão à integridade ou à saúde do corpo humano.
Por isso, sendo o acidente de trabalho um fenómeno complexo, o mesmo pressupõe e tem por base um feixe de factos, composto por vários elos causais, nomeadamente, entre o trabalho e o evento (este terá de provir daquele), entre este e a lesão, perturbação funcional ou doença (estas hão-de resultar do evento) e entre estas e a incapacidade ou a morte do sinistrado (a incapacidade ou a morte do sinistrado devem ter como causa a lesão, a perturbação ou doença)[3].
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Para o que aqui interessa, e tendo em conta as conclusões de recurso, importa desenvolver os elementos caracterizadores do acidente de trabalho, que a recorrente põe em causa.
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2.3. Uma das características do acidente de trabalho é que o mesmo tenha origem externa, ou seja, que tenha uma origem estranha à constituição orgânica da vítima. Isto é, tem de existir um evento ou acontecimento que, de fora, atue sobre o sinistrado, nele produzindo determinado efeito[4].
Adrien Sachet[5], na sua obra “Traité théorique et pratique de la législation sur les accidents du travail et les maladies professionnelles”, apontava como características essenciais do acidente de trabalho a causa exterior - origem estranha à constituição orgânica da vítima; a subitaneidade - algo que atua num espaço de tempo muito breve - e a acção lesiva do corpo humano.
No entanto, o conceito de acidente de trabalho tem evoluído e tem-se entendido que não se deve ter uma visão redutora de tal conceito, pois múltiplas dúvidas se levantam em redor da causa exterior ou externa, nomeadamente, “se a origem da lesão tinha que resultar de uma acção direta sobre o corpo humano ou se bastava uma acção indireta; se ela tinha que ser clara, visível, evidente ou se podia atuar insidiosamente; se devia ser de perceção imediata; se tinha que atuar de forma violenta, através de choque, de golpe ou de qualquer outro contacto semelhantemente violento ou se podia insinuar-se sem violência. A verdade é que, nem o acontecimento exterior direto e visível, nem a violência são, hoje, critérios indispensáveis à caracterização do acidente. A sua verificação é extremamente variável e relativa, em muitas circunstâncias. Além disso, a causa exterior da lesão tende a confundir-se com a causa do acidente de trabalho, num salto lógico, nem sempre evidente”[6].
O evento exterior é, assim, um conceito cuja verificação é grandemente variável e relativa.
Tem-se defendido[7], e com acerto adiantamos nós, que a causa do acidente pode não ser unicamente externa podendo, eventualmente, ter origem do próprio organismo do trabalhador, “como é o caso do surgimento de um edema pulmonar, insuficiência cardíaca, lombalgia ou até o stress. Esta causa pode também advir de um fator microbiótico ou viral que penetre no organismo humano, determinando a alteração do equilíbrio anatomico-fisiologico do trabalhador.[8]”
Desta forma, a causa do acidente, seja ela exterior ou intrínseca ao organismo do trabalhador, pode ter origem em vários fatores, mormente, biológico, humano, natural ou relacionado com o ambiente físico do local de trabalho, desde que incorporem o risco específico da atividade laboral ou um risco genérico agravado do trabalho em si mesmo.
Como escreveu VICTOR RIBEIRO[9] “para que se desencadeie o dispositivo legal reparatório, torna-se necessário que alguma coisa aconteça no plano das coisas sensíveis. Algo que seja, enfim, uma condição ou causa próxima da produção do dano indemnizável (…); tudo o que é suscetível de alterar o equilíbrio anterior; tudo quanto “viole” esse equilíbrio, quer seja uma explosão, quer seja uma emanação de gás tóxico, um golpe de frio ou calor, ou mesmo uma situação particularmente angustiante, ou de trabalho excessivo que faça, por exemplo, desencadear um ataque cardíaco ou uma perturbação mental”.

2.4. A subitaneidade do acidente, em termos gerais, pressupõe que o evento seja repentino, instantâneo, imediato. Todavia, este conceito de subitaneidade tem de ser apreciado com alguma relatividade, uma vez que qualquer que seja a natureza do evento, o mesmo terá de ter sempre alguma duração, seja ela maior ou menor, e, como tal, devemos associar a essa subitaneidade uma ideia de duração curta e limitada[10]. “A subitaneidade da causa significa que a atuação desta se deve circunscrever o limitado período de tempo, assim se excluindo os processos de formação lenta e progressiva, característicos das doenças profissionais, mas não os efeitos daquelas que sofram evolução gradual, visto que essa característica se reporta unicamente ao momento da produção da causa e não aos seus efeitos"[11].
A característica da subitaneidade possibilita datar o acidente, ou seja, localizá-lo no tempo, mesmo que a lesão corporal se manifeste muito mais tarde, permitindo distinguir o acidente da doença profissional, caracterizada esta última por uma evolução lenta e progressiva. Porém, “existem zonas cinzentas em que a subitaneidade se esbate perante uma evolução lenta, como é, por exemplo, a que resulta da acção contínua de um instrumento de trabalho ou do agravamento de uma predisposição patológica ou das afeções patogénicas contraídas por razão do trabalho [...]. O agravamento de um estado patológico já existente ou de uma predisposição patológica, por efeito do trabalho, é uma das zonas cinzentas da acutilância da característica da subitaneidade”[12].
Segundo CUNHA GONÇALVES[13] a subitaneidade do facto, com os seus dois elementos – a imprevisão e a limitação de tempo – é característica essencial do acidente, pois não pode ser assim designada uma lesão que, embora produzida durante o trabalho, foi lenta e progressiva. Ainda que a lesão possa agravar-se pouco a pouco a causa é que será, sempre, súbita: golpe, queda, hérnia, queimadura, pancada, explosão, entalação, etc.”.
Já VEIGA RODRIGUES afirmava que o carácter repentino do acidente naturalístico não quer dizer que este deva ser instantâneo, pois pode tratar-se dum acontecimento que coincida com o dia de trabalho[14]. E segundo o mesmo autor, acidente é qualquer facto ou ocorrência modificadora de um estado físico anterior, sendo que “essa modificação há-de objetivar-se na produção de uma lesão ou doença física ou psíquica, aparente ou não, interna ou externa, profunda ou superficial, de evidenciação imediata ou mediata”[15].
Como se salienta no Acórdão do STJ de 21.03.2009[16], «um evento, que contende com a saúde, para ser súbito não tem que ser instantâneo.
Súbito é o que é imprevisto, inesperado, invulgar, algo que por não ser expectável, surpreende, está fora de previsão, na justa consideração da relatividade dos conceitos saúde-doença».
De qualquer forma, só através de uma observação casuística, caso a caso, se poderá apreciar este elemento.
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2.5. Violência
CARLOS ALEGRE afirma que “se a violência da causa exterior da lesão acompanha um grande número de acidentes – ela é, em regra, a responsável direta pelo ferimento, golpe, contusão, fratura, mutilação, esmagamento e mesmo morte – a violência não existe na agressão insidiosa e indolor de um agente patogénico ou de radiações e, todavia, tratam-se de causas exteriores ocasionadoras de lesão corporal.
A violência não constitui, pois, a não ser como critério subsidiário, uma característica essencial do acidente de trabalho”[17].
A violência não consistirá necessariamente em lesão traumática, devendo entender-se que são violentas, designadamente, as descargas elétricas, as mordeduras ou picadas de animais e as insolações[18].
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2.6. Discordando da sentença recorrida, sustenta a recorrente que o evento de que foi vitima o sinistrado não configura qualquer acidente de trabalho, uma vez que a doença denominada de «golpe de calor», definida como uma doença súbita, derivada de uma prolongada exposição ao calor, com o consequente aumento súbito da temperatura corporal:
a) Resulta duma causa interna ao sinistrado e não duma causa externa ao mesmo.
b) Quando o prolongamento daquela exposição, não sendo uma condição necessária à execução do trabalho (mas apenas a exposição em si mesma), dependeu apenas do próprio sinistrado, que podia, a qualquer momento, interromper aquela exposição e colocar-se à sombra ou refrescar-se com água, o que tudo estava ao seu alcance.
c) O facto de o sinistrado optar por prolongar aquela exposição, nada fazendo, como podia, para a interromper, torna a ocorrência daquela doença algo não só possível, como também previsível e até provável, para o lesado e para qualquer outro trabalhador normal nas mesmas circunstâncias, por ser uma consequência conhecida, normal e frequente daquele tipo de exposição (e até inevitável, dependendo apenas, para cada pessoa, do tempo da exposição, o qual, maior ou menor, acaba, pois, por ser o único fator imprevisível da ocorrência da doença), deixando, como tal, de se poder falar daquela ocorrência como um evento fortuito, súbito e imprevisto e, como tal, num acidente para efeitos do previsto no artigo 8º da Lei nº 98/09, de 4 de Setembro.
Vejamos se lhe assiste razão:
2.7. A sentença recorrida perfilhou o entendimento de que o evento sofrido pelo sinistrado configura um verdadeiro acidente de trabalho, na medida em que o golpe de calor sofrido pelo sinistrado, quando se encontrava sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª ré, a trabalhar num terreno agrícola, derivou de um acontecimento externo ao próprio sinistrado e de verificação inesperada porquanto o sinistrado, não obstante ter perceção do calor que se fazia sentir, não anteciparia os efeitos dessa onda de calor e das consequência que a mesma poderia provocar no seu organismo.
Assim sendo, a causa adequada à morte do sinistrado – golpe de calor – ocorreu porque este se encontrava em pleno esforço físico no desenvolvimento da sua atividade sujeito a tais temperaturas, pois provou-se que foi essa exposição solar que precipitou o golpe de calor que o veio a vitimar, ainda que não se possa excluir em abstrato que possam ter existido outras causas que potenciaram o desencadeamento desse golpe de calor.
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2.8. Começa a recorrente por alegar que o acidente resulta duma causa interna ao sinistrado e não duma causa externa ao mesmo.
E fundamenta a sua posição dizendo que o sinistrado foi vítima duma doença súbita chamada de golpe de calor, que provocou a sua morte e que tal doença “deriva de uma prolongada exposição ao calor com o consequente aumento da temperatura corporal.
Assim, o aumento da temperatura corporal, que leva àquele «golpe de calor» e à morte do sinistrado, revela que esta resultou duma causa interna ao próprio sinistrado e não duma causa externa ao mesmo, sendo as elevadas temperaturas uma mera condição, resultando a lesão em causa – morte – de circunstâncias internas da própria vítima.
Relacionado com esta questão, resultou provado que:
No dia 5 de Julho de 2013, pelas 15h30m, o sinistrado encontrava-se, sob as ordens, direção e fiscalização da 2.ª ré, a trabalhar num terreno agrícola quando foi vítima de um acidente mortal.
Nessas circunstâncias de tempo e lugar o sinistrado encontrava-se a desenvolver trabalhos de limpeza de ervas à volta das vides, utilizando para o efeito uma enxada, sendo que nesse dia estava temperatura muito elevada a atingir mais de 40.º centigrados ao sol, sendo que o sinistrado desenvolvia o seu trabalho desde as 9 horas, com esforço físico e prolongada exposição ao calor.
Cerca das 15h30m o sinistrado estava a limpar ervas à volta dos vides quando começou a vomitar e perdeu a consciência, tendo sido transportado pelo INEM para o Hospital de Penafiel – Centro Hospitalar Tâmega e Sousa – onde entrou com diagnóstico de insolação e golpe de calor, com perda de consciência, hipertermia (elevação da temperatura do corpo acima do normal), temperatura de 41.º com uma escala de coma de Glasgow de 3, com abundante sangramento pelos orifícios naturais, vindo a falecer cerca das 22h47m.
Mais se apurou que a causa da morte foi golpe de calor e deveu-se ao tipo de trabalho que desenvolvia sobre prolongada exposição ao calor, sendo que o golpe de calor deriva de uma prolongada exposição ao calor com o consequente aumento da temperatura corporal.

2.9. Deste quadro circunstancial em que o sinistrado prestava a sua atividade laboral resulta que o golpe de calor que o vitimou mortalmente, configura um evento exterior, súbito e inesperado.
No caso, é certo que a morte do sinistrado resultou do chamado «golpe de calor», cujo deriva de uma prolongada exposição ao calor com o consequente aumento da temperatura corporal.
“O golpe de calor resulta duma insuficiência aguda da termorregulação e constitui uma situação clínica de extrema urgência, porque é de aparecimento muito rápido e de evolução fatal se não for imediatamente tratada.”[19]
Ao contrário do que defende a recorrente perfilhamos o entendimento de a causa da morte do sinistrado teve como origem primária uma causa externa. Ficou provado que a causa da morte foi golpe de calor e deveu-se ao tipo de trabalho que aquele desenvolvia sobre prolongada exposição ao calor, sendo que o golpe de calor deriva de uma prolongada exposição ao calor com o consequente aumento da temperatura corporal. Foi esta exposição prolongada a altas temperaturas que se faziam sentir na altura, por parte do sinistrado, no desenvolvimento da sua atividade laboral, que levou ao chamado golpe de calor. Isto é, o golpe de calor, teve a sua origem num fator ou elemento externo ao sinistrado – a exposição prolongada a altas temperaturas - e não na constituição orgânica deste. Por outro lado, é inequívoco que a causa do acidente, ou seja, a exposição prolongada ao calor, resultou de um risco específico da atividade laboral do sinistrado. Na verdade, o sinistrado exercia funções de trabalhador agrícola e encontrava-se a desenvolver trabalhos de limpeza de ervas à volta das vides, utilizando para o efeito uma enxada. Ora, como é sabido, na maior parte das situações, os trabalhadores agrícolas desenvolvem a sua atividade a campo aberto, ao ar livre, sujeitos às condições climatéricas existentes na altura, às intempéries, etc. O seu trabalho não é compatível com ares condicionados, pelo que tanto podem trabalhar com temperaturas baixas, como com elevadas temperaturas. Tanto podem trabalhar com muito frio, geada, vento, chuva e neve, como com muito calor. No verão, com sorte poderão trabalhar sob alguma sombra. Ora, o desenvolvimento da atividade laboral levada a cabo pelo sinistrado na altura do evento leva a que a exposição ao sol, porque necessária para esse mesmo desenrolar da atividade laboral, é um risco criado pelas condições de trabalho. Daí que esteja afastada a aplicação ao caso do artigo 15º da NLAT.
Assim, a causa próxima («causa causans») residiu no exercício da atividade laboral do sinistrado desde as 9 horas até às 15.30 horas, com esforço físico e prolongada exposição ao calor que levou ao aparecimento do golpe de calor – que como deixamos escrito é de aparecimento muito rápido - e à consequente morte do mesmo.

2.10. No bom rigor dos princípios, se é certo que não podemos afirmar que o evento que, de fora, - exposição ao calor - atuou sobre o sinistrado e lhe provocou a morte, tenha atuado de forma súbita e repentina, em termos absolutos, também não se pode dizer que, apesar de prolongada, atuou de forma contínua, por um período de tempo suficientemente significativo, de modo a podermos considerar que estamos perante uma doença profissional, na medida em que o mesmo ficou perfeitamente limitado no tempo, conforme é hoje, quer pela doutrinam quer pela jurisprudência, caraterizado o elemento «subitaneidade», próprio do acidente de trabalho e que deixamos exarado no ponto 2.4.
Dúvidas não existem de que o evento teve uma duração curta e limitada no tempo – a exposição ao sol do sinistrado ocorreu entre as 9 horas, e as 15 h30 m. E se é certo, repetimos, não estamos perante um acontecimento súbito e repentino, pois, como acabamos de expor, tratou-se dum episódio que perdurou durante algum tempo, todavia, o carácter repentino do acidente não quer dizer que este deva ser instantâneo, basta-se com uma duração curta e limitada – que foi o que aconteceu no caso em apreço.

2.11. Por outro lado, também não deixamos de estar perante um evento imprevisto. E é imprevisto, porque era inesperado, não era expetável que surgisse.
Alega a recorrente que prolongada exposição ao calor não era uma condição necessária à execução do trabalho que o sinistrado estava a desenvolver, pelo que não foi imposta ao mesmo.
Condição necessária, diz, era apenas a exposição ao calor (por força das temperaturas, no dia, e o facto do trabalho se desenvolver ao ar livre), mas já não o prolongamento dessa exposição, tendo sido este esforço prolongado – e não apenas o mero esforço ocasional a altas temperaturas – que esteve na base da ocorrência, tanto mais que o sinistrado (como os seus demais colegas, que, nas mesmas circunstâncias, nada sofreram) podia ter evitado o prolongamento dessa exposição, dado que ficou provado ter, por perto, condições de sombra e abrigo e de acesso a água, para beber, refrescar-se e descansar
Mais alega que, a exposição ao calor foi, pois, mera condição da ocorrência da lesão/doença e não sua causa e o prolongamento dessa exposição apenas resultou de ato/opção do próprio sinistrado, sendo ainda certo que a exposição prolongada tornou o evento lesivo, a dita doença de golpe de calor, possível, previsível e até provável, para o lesado ou qualquer outro trabalhador nas mesmas circunstâncias por ser uma consequência conhecida, normal e frequente daquele tipo de exposição, e até inevitável, ao fim de terminado período de tempo, dependendo apenas, para cada pessoa, do tempo da exposição, o qual, maior ou menor, acaba, pois, por ser o único fator imprevisível da ocorrência da doença.
Desta alegação, se bem a compreendemos e interpretamos, induz a Ré que o sinistrado ao trabalhar de modo tão intenso nas circunstâncias em que o fez – perante temperaturas elevadas que atingiram 40º centigrados, com esforço físico e prolongada exposição ao sol –, não deveria ter excluído a hipótese de ser acometido de um golpe de calor, sendo, ainda, a exposição ao calor opção do próprio sinistrado.
Ressalvando sempre o devido respeito, esta alegação colide até com a dignidade de quem trabalha arduamente sobre condições atmosféricas imprevisíveis e adversas. O trabalhador agrícola não é um trabalhador de gabinete, tendo de se sujeitar às condições atmosféricas existentes, as quais nem sempre lhe são favoráveis. Mas isso é um risco inerente às próprias condições de trabalho, sob pena de o mesmo não ter lugar. No inverno não pode esperar que o tempo aqueça, ou que deixa de chover, assim, como no verão, não pode esperar que o tempo arrefeça ou que deixe de fazer calor. Por outro lado, não pode manipular um qualquer botão de uma máquina e climatizar o seu local de trabalho a temperaturas do seu agrado. Por regra, o seu local de trabalho, é ao ar livre, sem paredes e tetos.
Além do mais, não faz qualquer sentido defender que uma pessoa de boa saúde, ao trabalhar intensamente, nas circunstâncias em que o sinistrado o fez, deva prever como consequência, ainda que remota, a possibilidade de sofrer um golpe calor e a própria morte. O que aqui transparece é que a Ré, embora de forma camuflada, entende que existe culpa do sinistrado, por ter trabalhado de forma tão ativa e sob uma forte onde de calor e que, ao fazê-lo dessa forma, arriscou ter um golpe de calor.
Esta afirmação não pode ser aceite, nem pelas regras da experiência comum, além de ser contra a dignidade da pessoa do trabalhador e, também, pelo facto de nada se ter provado quanto à causalidade adequada.
Além do mais, a culpa do trabalhador na produção do evento, que eleva à descaracterização do acidente, pressupõe que estejamos perante uma negligência grosseira e exclusiva do sinistrado.
Neste contexto, para descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que a sua conduta (por acção ou omissão) atentou contra o mais elementar sentido de prudência e que a sua falta de cuidado não resultou da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão. É preciso, em suma, que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum.
A negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo[20].
A jurisprudência tem vindo a associar o comportamento temerário em alto e relevante grau a um comportamento inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência[21].
Por outro lado, a falta grave e indesculpável deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta.
Acresce que a descaracterização do acidente constitui um facto impeditivo do direito que o autor se arroga e, como tal, de acordo com os critérios gerais de repartição do ónus da prova, a sua prova compete ao réu na acção, ou seja, à entidade patronal ou à respetiva seguradora (artigo 342º, n.º 2, do Código Civil).
Ora, não vislumbramos onde exista tal negligência do sinistrado e muito menos, que a mesma seja, grosseira e exclusiva. Se é certo que ficou provado que o sinistrado sempre teve total autonomia para, em condições atmosféricas adversas, se deslocar para uma sombra ou para qualquer local abrigado; que os trabalhadores tiveram acesso fácil a água, quer para beberem, quer para se refrescarem e sempre tiveram a possibilidade de repousar/descansar quando o entendessem, nomeadamente nos dias de temperaturas mais elevadas e que a cerca de 30/40 metros do local onde o sinistrado trabalhava havia um fontanário com água potável, isso não é suficiente só por si para dizer que o sinistrado, perante a temperatura elevada em que exercia e desenvolvia a sua atividade física, deveria prever que ia ser tomado por golpe de calor e que deveria ter descansado e bebido água.
Em primeiro lugar, nem se sabe se o sinistrado e restantes trabalhadores fizeram alguma pausa e beberam ou não água durante aquelas elevadas temperaturas.
Também não se sabe se o sinistrado sofria de alguma doença ou debilidade que o tornasse mais frágil e débil perante o aparecimento daquelas circunstâncias climatéricas.
Além do mais, também não está demostrado que o sinistrado soubesse que uma exposição prolongada ao calor pudesse levar a um golpe de calor e à morte, pois não devemos esquecer que, por norma, os trabalhadores rurais não são pessoas altamente instruídas e com conhecimentos médicos.
Por outro lado, não está demonstrado que o sinistrado tivesse sinais ou sintomas que o levassem a prever que ia ter um golpe de calor. Na verdade, para além do que já dissemos quanto ao golpe de calor, este «pode desenvolver-se rapidamente e nem sempre é precedido de sinais alarmantes, como dor de cabeça, vertigens (uma sensação de andar à roda) ou fadiga. A sudação costuma diminuir, embora nem sempre. A pele fica quente, avermelhada e geralmente seca. O ritmo cardíaco acelera-se e depressa pode atingir as 160 ou 180 pulsações por minuto, em vez do índice normal de 60 a 100 pulsações por minuto. O ritmo respiratório aumenta, mas a tensão arterial raramente varia. A temperatura corporal, que deverá ser medida no reto, rapidamente ascende a 40º ou 41ºC, provocando uma sensação de fogo interior. A pessoa pode sentir-se desorientada e confusa, perder rapidamente a consciência ou ter convulsões»[22].
Concluímos, pois, como iniciamos, e afirmamos que, além de o evento ter tido uma curta e limitada duração, o mesmo reveste a pele de um evento imprevisto.
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2.12. No que se refere à violência é verdade que não estamos perante uma lesão traumática no sentido clássico do conceito. Todavia, este aspeto também não é relevante, pois como já afirmamos anteriormente, na senda do que defende Carlos Alegre, a violência não constitui, a não ser como critério subsidiário, uma característica essencial do acidente de trabalho.
Além do mais, conforme salienta Victor Ribeiro, violento é afinal “tudo o que é suscetível de alterar o equilíbrio anterior; tudo quanto «viole» esse equilíbrio, quer seja uma explosão, quer seja uma emanação de gás tóxico, um golpe de frio ou calor, ou mesmo uma situação particularmente angustiante, ou de trabalho excessivo que faça, por exemplo, desencadear um ataque cardíaco ou uma perturbação mental”[23], pelo que, a violência não consistirá necessariamente em lesão traumática, devendo entender-se que são violentas as insolações[24].
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2.12. Também não existem quaisquer dúvidas, que no caso em apreço, conforme é salientado na sentença recorrida, existiu uma relação direta e causal entre as elevadas temperaturas e a exposição às mesmas do sinistrado e as lesões que lhe determinaram a morte.
Significa isto que existiu um nexo de causa e efeito entre o evento e a lesão e, por outro lado, existiu um nexo entre a(s) lesão/lesões e a morte. A causa adequada à morte do sinistrado – golpe de calor – ocorreu porque este se encontrava em pleno esforço físico no desenvolvimento da sua atividade sujeito a tais temperaturas, pois provou-se que foi essa exposição solar que precipitou o golpe de calor que o veio a vitimar, independentemente da possibilidade de poderem ter existido outras causas que potenciaram o desencadeamento desse golpe de calor – mas que não foram demonstradas.
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2.13. Constituí, pois, um verdadeiro acidente de trabalho, aquele em que o sinistrado, trabalhador agrícola, sob as ordens e fiscalização da segunda Ré, presta a sua atividade laboral - trabalhos de limpeza de ervas à volta das vides, utilizando para o efeito uma enxada – entre as 9 horas e as 15.30 horas -, sob uma temperatura muito elevada a atingir mais de 40º centigrados, com esforço físico e prolongada exposição ao sol, que lhe provoca um golpe de calor, com perda de consciência, hipertermia (elevação da temperatura do corpo acima do normal), temperatura de 41.º com uma escala de coma de Glasgow de 3, com abundante sangramento pelos orifícios naturais, vindo a falecer cerca das 22h47m.
Em conclusão, perante todo o circunstancialismo factual em que o sinistrado desenvolvia a sua atividade laboral, poderemos afirmar, com a segurança necessária, que o acontecimento que determinou o falecimento do sinistrado reveste as necessárias características de um evento súbito, inesperado e exterior à vítima, ocorrido no local, no tempo e por causa do trabalho, e foi causa adequada da sua morte, pelo que integra um verdadeiro acidente de trabalho, tal como previsto no artigo 8º da NLAT.
Por todo o exposto, improcede, nesta parte, o recurso.
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3. Cabe agora indagar da segunda das questões trazidas pela recorrente a este Tribunal: SABER SE O INSTITUTO DE SEGURANÇA SOCIAL TEM DIREITO AO REEMBOLSO DO QUE PAGOU À AUTORA A TÍTULO DE SUBSÍDIO POR MORTE E PENSÕES DE SOBREVIVÊNCIA.
Alega a recorrente, ao contrário do que foi decidido na sentença recorrida, a que tendo o pagamento do subsídio por morte e pensões de sobrevivência a finalidade compensar o acréscimo de encargos para o agregado familiar decorrentes da morte do beneficiário, facilitando, do ponto de vista económico, a reorganização da vida familiar, constituindo obrigações próprias da segurança social, independentemente da causa da morte, e tendo por base apenas nos descontos feitos pela vítima.
O Instituto de Segurança Social, alegando ter efetuado pagamentos, correspondentes ao subsídio por morte e à pensão de sobrevivência ao cônjuge do sinistrado, pediu o reembolso dos mesmos junto da aqui recorrente, tudo num valor global, e após atualização em sede de audiência de discussão e julgamento, de € 7.640,55.
A sentença recorrida, entendendo que aquele valor era devido, condenou a aqui recorrente a pagar ao requerente:
1. A quantia de €1.257,66 (mil e duzentos e cinquenta e sete euros e sessenta e seis cêntimos) paga à autora a título de subsídio por morte, acrescida de juros de mora contados, à taxa legal, desde a citação, com a inerente desoneração do pagamento de tal quantia até tal limite, por parte dessa ré, à autora.
2. A quantia de €6.382,89 (seis mil e trezentos e oitenta e dois euros e oitenta e nove cêntimos), acrescida das pensões que forem pagas até ao trânsito em julgado da presente sentença, bem como de juros de mora contados sobre o valor de €3.431,67 (três mil e quatrocentos e trinta e um euros e sessenta e sete cêntimos) desde a citação e até efetivo e integral pagamento e sobre as prestações vencidas na pendência da presente acção e até ao trânsito em julgado desde o mês seguinte àquele a que respeitam, em relação ao montante de cada pensão, até efetivo e integral pagamento, com a inerente desoneração do pagamento de tal quantia até tal limite, por parte dessa ré, à autora.
Vejamos se lhe assiste razão.
A sentença recorrida quanto à pensão se sobrevivência referiu que «é de concluir que os montantes da pensão de sobrevivência pagos pelo Instituto de Segurança Social devem ser reembolsados, independentemente da sua natureza e do facto de constituírem obrigações próprias da Segurança Social – cfr. acórdãos o S.T.J. de 17 de Junho de 2008, disponível em www.dgsi.pt/stj, e do Tribunal da Relação do Porto de 14.03.2006 e de 19/12/2007, disponível em www.dgsi.pt.
Salientámos que, tal como é referido no último acórdão citado deverá existir a inerente desoneração do pagamento de tal quantia até tal limite, por parte da ré à autora, sob pena de ocorrer um enriquecimento sem causa para esta.
Assim, os valores pagos pela segurança social à autora a esse título devem ser deduzidos ao montante da indemnização fixada nestes autos, sob pena de se acolher uma cumulação indevida de benefícios ou um enriquecimento injusto da autora em prejuízo da ré».
Já no que concerne ao subsídio por morte salientou que «[n]o artigo 36.º da referida Lei( está-se a referir à Lei nº 4/2007, de 16 de Janeiro) definem-se os objetivos do sistema de solidariedade e de segurança social.
Estatui o artigo 50.º que “o sistema previdencial visa garantir, assente no princípio de solidariedade de base profissional, prestações pecuniárias substitutivas de rendimentos de trabalho perdido em consequência da verificação das eventualidades legalmente definidas.”
A proteção social regulada neste subsistema integra as eventualidades previstas neste artigo, entre elas, a morte – artigo 52.º, n.º 1, al. g).
Para ser atribuída uma prestação social, isto é, reconhecido o respetivo direito, é indispensável que ocorra um evento (uma contingência) que dê origem a uma eventualidade protegida.
A prestação social que está, aqui, em causa é o "subsídio por morte".
Logo, é a contingência "morte" que nos interessa.
Esta contingência determina, pelas suas características a extinção do contrato de trabalho ou da atividade profissional desenvolvida pelo falecido ou a extinção da pensão que este já estivesse a receber.
Assim, origina uma quebra súbita e irreversível dos rendimentos de trabalho que eram, porventura, a base de apoio económico dos familiares dependentes do beneficiário, designadamente do cônjuge. Ao mesmo tempo, a ocorrência origina um acréscimo de despesas, como acontece com os encargos inerentes à realização do funeral e força a adaptação da família à (nova) situação criada.
As prestações da segurança social têm uma função reparadora. Visam fazer face a uma situação danosa de carácter patrimonial, traduzindo-se os prejuízos ou numa perda de rendimentos e/ou num acréscimo de encargos.
A ocorrência "morte" faz surgir inevitavelmente certos encargos e provoca simultaneamente uma quebra súbita e irreversível de rendimentos. Aquele subsídio visa, justamente, fazer face a esta situação danosa. O facto de a lei ter optado, no caso de subsídio por morte, por uma prestação concentrada a permitir uma disponibilização "imediata" dum certo quantitativo, não significa que ela seja um "bónus" da segurança social, à margem daquele princípio.
Assim, correspondendo o subsídio por morte a despesas e perdas de rendimentos que, no âmbito da responsabilidade civil, correspondem a danos emergentes e lucros cessantes, torna-se evidente que, por aqui, nenhum obstáculo haverá à sub-rogação.
Quanto ao argumento da ré de que o subsídio por morte é pago em cumprimento de uma obrigação própria da segurança social e como correspetivo de descontos efetuados pelos beneficiários inscritos o mesmo também não colhe. Em primeiro lugar porque a situação não é exclusiva do subsídio por morte. Depois, porque concorrendo o direito a prestações sociais com o direito de indemnização a suportar por terceiro, a lei não só afasta a possibilidade de o respetivo titular cumular os dois "benefícios", como coloca em planos diferentes aqueles direitos.
Assim, da lei resulta claramente que a intervenção das instituições da segurança social assume natureza supletiva. Pagam (adiantam o pagamento) ao beneficiário/lesado, mas, através do fenómeno sub-rogatório, vão recuperar de terceiro o que pagaram (na medida da sua responsabilidade).
A solução não choca, se se tiver em conta o sistema de financiamento da segurança social que em boa parte é suportada por todos os contribuintes e não só pelos beneficiários inscritos, que fazem deduções.
Por outro lado, porque, em última análise, não seria o beneficiário/lesado que ganharia com o não reembolso à segurança social, mas sim o terceiro lesante (ou a sua seguradora), que ficaria com a indemnização reduzida.
Ante o exposto, entendemos que deve proceder também esse pedido de reembolso, deduzindo-se o montante pago ao montante da indemnização fixada nestes autos, sob pena de enriquecimento injusto da autora em prejuízo da ré».
Adiantamos desde já que sufragamos este entendimento.
A natureza da pensão da sobrevivência e do subsídio por morte é determinável com base no seu regime legal, o qual advém do DL 322/90, de 18/10, que define e regulamenta a proteção na eventualidade da morte dos beneficiários do regime geral da segurança social (art.º 1º, nº 1).
De acordo com o artigo 3º de tal diploma legal, «[a]a proteção por morte dos beneficiários ativos ou pensionistas é realizada mediante a atribuição das prestações pecuniárias denominadas pensão de sobrevivência e subsídio por morte".
A pensão de sobrevivência é uma prestação social pecuniária que visa compensar os familiares do falecido beneficiário da segurança social da perda do rendimento de trabalho determinada pela morte - cfr. artº 4º, n.º1 do citado diploma legal.
Já a prestação social designada por subsídio por morte tem como finalidade compensar o acréscimo dos encargos decorrentes da morte do beneficiário, com vista à facilitação da reorganização da vida familiar - cfr. artº 4º n.º 2, do mesmo diploma.
Estas prestações de natureza social não constituem assim uma direta contrapartida das contribuições dos beneficiários, caracterizam-se antes por prestações sociais obrigatórias do Instituto de Segurança Social aos seus beneficiários, e diferem das prestações devidas por terceiros, em razão da perda de rendimentos de trabalho e do despendido com o funeral do beneficiário, no quadro da responsabilidade civil, que assumem uma natureza indemnizatória.
A lei vigente à data da morte do sinistrado - 05-07-2013 -, prescreve que no caso de concorrência pelo mesmo facto do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiros, as instituições de segurança social ficam sub-rogadas nos direitos do lesado até ao limite do valor das prestações que lhes cabe conceder (artigo 70º da Lei nº 4/2007, de 16 de Janeiro).
A referida concorrência depende das circunstâncias de haver obrigação de indemnizar por parte de terceiro e de a indemnização abranger a perda de rendimento de trabalho e maior dispêndio implicado pelo funeral (Ac. do STJ, de 3.7.2002, CJ, Ano X, Tomo 2, pág. 237).
No desenvolvimento do referido regime de sub-rogação, a lei estabeleceu mecanismos tendentes a facilitar às instituições de segurança social o reembolso do valor por elas despendido a título de prestações sociais, sem distinção de natureza, à custa dos responsáveis pelo pagamento de indemnizações derivadas de factos que originaram o evento delas determinante (artigos 1º e 2º do Decreto-Lei nº. 59/89, de 22 de Fevereiro).
Ao expressar no preâmbulo deste diploma legal que as instituições de segurança social se substituem às pessoas responsáveis em favor dos beneficiários, proporcionando-lhe rendimentos de que são privados por ato de terceiro determinante de responsabilidade civil de que tenha resultado incapacidade temporária ou definitiva para o exercício de atividade profissional ou a morte, o legislador esclareceu, de algum modo, a intencionalidade da lei no sentido da incomunicabilidade em análise.
O disposto no artigo 70º da Lei nº. 4/2007, de 16 de Janeiro, traduz-se em normativo especial de sub-rogação legal, no confronto do que prescreve o artigo 592º, nº. 1, do Código Civil, segundo o qual, o terceiro que cumpre a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor se tiver garantido o cumprimento ou haja outra causa do seu interesse direto na satisfação do direito de crédito.
O direito de sub-rogação das instituições de segurança social e, consequentemente, a não definitividade do encargo com o pagamento, por exemplo, das pensões de sobrevivência e do subsídio por morte, só existe no caso de concorrência, pelo mesmo facto, do direito a prestações pecuniárias dos regimes de segurança social com o de indemnização a suportar por terceiro.
Esta especialidade da sub-rogação deriva da finalidade das prestações sociais em causa, certo que podem implicar um encargo definitivo para as instituições de segurança social, designadamente no caso de a morte do beneficiário resultar de causa natural, por exemplo de envelhecimento ou doença, ou à própria vítima exclusivamente imputável.
Tal direito de sub-rogação coloca as instituições de segurança social na titularidade do direito de crédito indemnizatório dos familiares do falecido contra o terceiro civilmente responsável pela morte do beneficiário em causa.
Este direito de sub-rogação, estabelecido sem qualquer distinção no artigo 70º da Lei nº. 4/2007, de 16 de Janeiro, num quadro em que se não vislumbram razões de sistema para distinguir, não é afastado pela natureza do subsídio por morte, certo que não é atribuído como contrapartida de descontos em vida do beneficiário.
Dir-se-á que as instituições de segurança social assumem um papel subsidiário e provisório face à obrigação de indemnização de que é sujeito passivo o autor do ato determinante da responsabilidade civil[25].
Assim, face ao regime de sub-rogação enunciado, concluímos pela incomunicabilidade na esfera patrimonial dos beneficiários, da indemnização por perda de rendimento do trabalho realizado pelo falecido e do dispêndio com o seu funeral, a ser-lhes devida pela recorrente/seguradora e à luz da Lei n.º100/97, com as prestações de segurança social consubstanciadas na pensão de sobrevivência e no subsídio por morte pagos pelo ISS.
Tem, pois, o ISS o direito de exigir da aqui recorrente o que pagou a título das aludidos pensão de sobrevivência e subsídio por morte, com a necessária implicação de esse valor ser deduzido ao montante indemnizatório atribuído à beneficiária por terceiro, no caso a aqui seguradora/recorrente. O que aliás foi feiro na sentença recorrida.
Pelo que tendo o ISS pago a pensão de sobrevivência e subsídio por morte à beneficiária de pensões devidas por acidente de trabalho mortal, tem direito a ser reembolsado das quantias pagas, na acção emergente desse acidente, pelo responsável civil desse sinistro.
Improcede, assim, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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3. RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA
As custas do recurso ficam a cargo da recorrente [artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].
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IV. DECISÃO
Em conformidade com os fundamentos expostos, acordam os juízes que compõem a Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
A) - Em julgar improcedente o recurso interposto por B… COMPANHIA DE SEGUROS e, em consequência manter a sentença recorrida nos seus termos.
B) – Condenar a recorrente no pagamento das custas do recurso [artigo 527.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil].
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Anexa-se o sumário do Acórdão – artigo 663º, nº 7 do CPC.
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Processado e revisto com recurso a meios informáticos.

Porto, 08 de Julho de 2015
António José Ramos
Eduardo Petersen Silva
Paula Maria Roberto
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[1] Doravante designada por NLAT.
[2] Processo nº 159/05.0TTPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[3] VÍTOR RIBEIRO, in Acidentes de Trabalho, Reflexões e Notas Práticas, Rei dos Livros, 1984, pp. 219/ 221.
[4] Cf. Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-geral da República nº 7/85, de 14 de Março de 1985, no Diário da República, II Série, nº 108, de 11 de Maio de 1985, pág. 4387, com extensa citação de anteriores pareceres, e, em especial, o parecer nº 206/78 de 2 de Novembro de 1978, no Boletim do Ministério da Justiça, nº 286, pág. 121.
[5] Onde os nossos doutrinadores foram beber os ensinamentos básicos relativos à matéria.
[6] Cf. CARLOS ALEGRE, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais, Almedina, 2001, p. 36.
[7] Cf. CARLOS ALEGRE, obra citada, p. 36.
[8] MARIANA GONÇALVES DE LEMOS, DESCARACTERIZAÇÃO DOS ACIDENTES DE TRABALHO, Lisboa 2011, ttps://www.google.pt/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=1&ved=0CCAQFjAA&url=http%3A%2F%2Frun.unl.pt%2Fbitstream%2F10362%2F6903%2F1%2FLemos_2011.PDF&ei=1bx1Vd3iKoaysQGxhp_wAQ&usg=AFQjCNGXphr-UO6RExIpwLNhM-v8sVEJxQ&sig2=KEewrW-BymHDe4e0j_g2wg
[9] Acidentes de Trabalho. Reflexões e Notas Práticas, Rei dos Livros Editor, Lisboa, 1984, pp. 208/210.
[10] Neste sentido Acórdão do STJ de 21.11.2001, Processo nº 01S1591, in www.dgsi.pt.
[11] Parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria-geral da República anteriormente citado.
[12] CARLOS ALEGRE, obra citada, pp. 37/38.
[13] “Responsabilidade Civil pelos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, p.31.Apud CARLOS ALEGRE, ob. cit., p. 38.
[14] VEIGA RODRIGUES, Acidentes de Trabalho, anotações à Lei 1942 (LAT anterior à Lei 2 127), p. 17, Apud Acórdão do STJ de 30.05.2012, Processo nº 159/05.0TTPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt.
[15] Obra citada e local referido na nota anterior.
[16] Processo nº 09A0449, in www.dgsi.pt.
[17] CARLOS ALEGRE, obra citada, p. 37.
[18] JOSÉ VASQUES, in “Contrato de Seguro”, 1999, p. 60/61.
[19] In www.infarmed.pt/portal/page/portal/...USO.../utilizacao_meds.pdf.
[20] Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal, de 29.11.2005, proferido no processo n.º 1924/05, da 4.ª Secção, www.dgsi.pt.
[21] Acórdão dos STJ de 7 de Novembro de 2001, Revista 1314/01, processo 01S1314, www.dgsi.pt,
[22] In http://www.manualmerck.net/?id=306&cn=1325.
[23] VÍTOR RIBEIRO, obra cit., p. 210.
[24] JOSÉ VASQUES, in “Contrato de Seguro”, 1999, p. 60/61.
[25] Para maiores desenvolvimentos e informação cf. Acórdão do STJ de 25.03.203, processo nº 03B3071, in www.dgsi.pt.
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SUMÁRIO – a que alude o artigo 663º, nº 7 do CPC.
I) - Configura acidente de trabalho aquele em que o sinistrado, trabalhador agrícola, sob as ordens e fiscalização da segunda Ré, presta a sua atividade laboral - trabalhos de limpeza de ervas à volta das vides, utilizando para o efeito uma enxada – entre as 9 horas e as 15.30 horas -, sob uma temperatura muito elevada a atingir mais de 40º centigrados, com esforço físico e prolongada exposição ao sol, que lhe provoca um golpe de calor, com perda de consciência, hipertermia (elevação da temperatura do corpo acima do normal), temperatura de 41.º com uma escala de coma de Glasgow de 3, com abundante sangramento pelos orifícios naturais, vindo a falecer cerca das 22h47m.
II) - Tendo o Instituto de Solidariedade e Segurança Social pago a pensão de sobrevivência e subsídio por morte a beneficiários de pensões devidas por acidente de trabalho mortal, tem direito a ser reembolsado das quantias pagas, na acção emergente desse acidente, pelo responsável civil desse sinistro, no caso a entidade seguradora.

António José Ramos