Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
405/07.6GBAND-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JORGE LANGWEG
Descritores: INIDONEIDADE PARA OBTENÇÃO LICENÇA DE ARMA
PRESUNÇÃO ILIDÍVEL
Nº do Documento: RP20210908405/07.6GBAND-A.P1
Data do Acordão: 09/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: PROVIDO O RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A presunção de falta de idoneidade prevista no número 2 do artigo 14º do Regime das Armas e suas Munições (Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro) é ilidível.
II - A condenação em pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de maus tratos cometido há mais de catorze anos não é susceptível de revelar falta de idoneidade de um requerente para renovar a sua licença de uso e porte de arma da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça, quando o requerente já demonstrou, à saciedade, ser pessoa idónea para o efeito - tendo beneficiado, legalmente, da licença que agora lhe foi recusada, durante cinco anos logo a seguir à sua condenação penal, sem que haja notícia de lhe ter dado mal uso e constituído qualquer perigo para outras pessoas -, tendo constituído uma nova relação sentimental há cerca de 13 anos que se mantém boa e estável, descrevendo-o a nova companheira como pessoa honesta, trabalhadora e pacífica, não tendo o menor receio dele e mostrando-se o relatório social favorável à renovação da licença, sendo o requerente considerado, por todos, enquanto pessoa humilde, calma, séria, honesta, trabalhadora, respeitadora, respeitada, pacífica, solidária e amiga do seu amigo.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 405/07.6GBAND-A.P1
Data do acórdão: 8 de Setembro de 2021

Relator: Jorge M. Langweg
Adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro | Juízo de Competência Genérica de Anadia

Sumário:
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Acordam os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto

Nos presentes autos acima identificados, em que figura como recorrente o requerente B….
I - RELATÓRIO
1. Em 8 de Fevereiro de 2021 foi proferida nos presentes autos a decisão que decidiu não reconhecer a idoneidade do requerente B… para ser detentor de arma de fogo da categoria C, devendo este aguardar o decurso do prazo de cancelamento definitivo do registo criminal.
2. Inconformado com a decisão, o requerente interpôs recurso da decisão, terminando a motivação de recurso com a formulação das conclusões seguidamente reproduzidas:
"1 O recorrente não se conforma com a decisão do Tribunal A QUO ao considerar que ele não tem idoneidade para renovar a licença de uso e pote de arma de caça, da classe C;
2- A matéria de facto dada como provada pelo Tribunal A QUO, nos factos 1.ª a 32.º da matéria provada, que aqui se dá por reproduzida, por razões de economia processual, está em oposição com a subsunção jurídica feita pelo Tribunal A Quo;
3- O Tribunal A QUO ao concluir, como concluiu, na parte dispositiva da sentença- sic- " Pelo exposto, decide-se não reconhecer a idoneidade do requerente B… para ser detentor de arama de fogo da categoria C, devendo este aguardar o decurso do prazo de cancelamento definitivo do registo criminal"- demonstra inequivocamente que o único fundamento em que se fundamentou a sentença foi no averbado constante do registo criminal do recorrente, condenação do recorrente no processo n.º 407/07.6GBAND, respeitante a factos ocorridos no ano de 2007 e não em qualquer outro facto ou fundamento;
4 - Se tivesse tido em consideração a globalidade dos factos dados como provados, tinha de concluir, necessariamente, que o recorrente é pessoa idónea para renovar a licença de uso e porte de arma de caça, classe C, nos termos dos artºs 14, n.º 2 e 3 e 15.º, n.º 1 al. c) e 2, da Lei 5/2006;
5- O ter sido aplicado ao recorrente uma pena de prisão superior a 1 ano, suspensa na sua execução, sem qualquer injunção, é, nos termos da lei, apenas uma susceptibilidade de indiciar falta de idoneidade para o efeito e não uma consequência necessária;
6- Se o espírito do legislador fosse no sentido de considerar que uma condenação em pena de prisão superior a 1 ano, por crime doloso, violento, tinha como consequência a ineidoneidade de quem fosse punido nesses termos, tinha-o dito de forma clara e expressa na lei, o que não aconteceu
7- Ao estipular no art.º 14, n.º 3, do citado diploma que o recorrente no decurso anterior à verificação do cancelamento da inscrição no registo criminal das decisões em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, afastou de forma clara que a condenação em pena de prisão superior a 1 ano, por crime doloso, violento, seja condição, só por si, de ineidoneidade do recorrente.
8- Para o Tribunal A QUO decidir, como decidiu, tinham de existir outros factos que levassem à conclusão que o requerente não tinha idoneidade para ser titular da licença de uso e porte de arma de caça, classe C, o que não acontece no caso do recorrente, todos os outros factos para além do primeiro, dados como provados, são demonstrativos da idoneidade do recorrente.
9- Por outro lado, os factos por que o recorrente foi condenado no processo n.º 405/07.6GDAND e cuja condenação se encontra averbada no seu registo criminal, não foram praticados com uso de arma de fogo, muito menos com caçadeira;
10- O pedido formulado ao tribunal pelo requerente foi o de saber se ele tinha condições, qualidades, aptidões e competências para o desempenho da actividade lúdica que o uso de tal arma pressupõe, e não o perigo de poder cometer um crime com a arma ou fazer um novo julgamento pelos quais já foi condenado anteriormente, já cumpriu, como fez o Tribunal A QUO ao decidir como decidiu.
11- Da matéria de facto considerada provada pelo Tribunal A QUO (facto 2 a 32) resulta à saciedade que o requerente é idóneo para renovar a licença de uso e porte de arma de caça, classe C, sendo o único facto desabonatório, o facto provado sob o n.º 1, mas insuficiente para o considerar ineidónio, como aconteceu;
12- A matéria de facto dada como provada sob o n.º 1, respeita a factos ocorridos no ano 2007 (há cerca de 14 anos), não havendo qualquer registo de outro ilícito antes ou depois desses factos, por o requerente não ter cometido.
13- Na condenação que sofreu por violência doméstica, foi-lhe aplicada uma pena de prisão de 2 anos e 6 meses, suspensa a execução pelo mesmo período, sem ser imposto ao recorrente qualquer dever ou regras de conduta, nomeadamente proibição de obter licença de uso e porte de arma de fogo, nos termos dos art.ºs 51 e 52 CP.
14- Já, na altura, o Tribunal que apreciou os factos fez uma prognose favorável da personalidade do ora recorrente, que levou à suspensão da execução da pena, sem qualquer dever ou regra de conduta;
15- Não podia, nem devia, o Tribunal A QUO fundamentar, como fundamentou, a sua decisão única e simplesmente na gravidade do crime de maus tratos e o alarme social que tais crimes causam na sociedade e o risco que representa a atribuição da idoneidade do recorrente;
16- O recorrente pediu ao Tribunal para apreciar se ele era uma pessoa capaz de usar de forma avisada, prudente e de acordo com a lei, a arma no exercício venatório e não a reapreciação dos factos que deram origem ao processo n.º 405/07.6GBAND e pelos quais foi condenado e já cumpriu,
17- O Tribunal A QUO, na nossa modesta opinião, preocupou-se em reapreciar os factos ocorridos em 2007 e o impacto social do crime de violência doméstica, olvidando o pedido do recorrente.
18- O Tribunal A QUO centrou o seu foco de decisão na reapreciação dos factos ocorridos em 2007, que deram origem ao processo n.º 405/07.6GBAND, o alarme social que provocam, bem como o perigo que representava permitir que o recorrente renovasse a licença de uso e porte de arma, classe C, e esqueceu o verdadeiro pedido formulado pelo requerente, como já foi sabiamente decidido em processo semelhante por este Venerando Tribunal da Relação, por acórdão de 29/04/2015, relatado pelo Venerando Desembargador Dr. Ernesto Nascimento, disponível em www.dgsi.pt, onde foi decidido caso semelhante e demonstra o erro cometido pelo tribunal A QUO.
9- Decidiu incorretamente o Tribunal a QUO, ao considerar que o recorrente não tinha idoneidade para renovar a licença de uso e porte de arma, da classe C, para poder exercer a actividade lúdica de caçar, em manifesta oposição à matéria de facto dada como provada.
20- A interpretação feita pelo tribunal A QUO da al. c), do art.º 14, da Lei 5/2006, viola frontalmente os princípios constitucionais ínsitos no art.º 30 CRP., devendo ser declarada inconstitucional.
21- A douta decisão recorrida violou, entre outros, o disposto nos art.ºs 14 e 15 da Lei 5/2006 e 30ª da CRP.
Nestes termos e nos doutamente forem supridos por V. Exas deve dar-se provimento ao recurso, revogando-se a decisão do Tribunal A QUO e ser substituída por outra, que considere que o recorrente é pessoa idónea para renovar a licença de uso e porte de arma de caça, classe C, para exercer a actividade lúdica de caça,
Como é legal e justo."

3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, apresentando as seguintes conclusões:
"1. Face ao regime jurídico em vigor, uma condenação em pena de prisão superior a um ano, pela prática de crime doloso, com uso de violência é suscetível de, por si só, indiciar falta de idoneidade para a concessão ou renovação da licença de uso e porte de arma de caça.
2. A condenação do recorrente pela prática de um crime de maus tratos, que se consubstanciou, para além do mais, no facto deste ameaçar de morte uma outra pessoa e de a ter tentado molestar corporalmente com uma catana, evidencia falta de idoneidade para obtenção de licença de uso e porte de arma de caça, que justifica o indeferimento do pedido.
Nestes termos, não deve o recurso interposto (…) merecer provimento, mantendo-se integralmente a sentença recorrida, assim se fazendo justiça. ."

4. Nesta instância, o Ministério Público[1] emitiu parecer em sentido divergente, pugnando pela procedência do recurso nos seguintes termos:
"(…)
Salvo melhor opinião, estamos crentes que lhe deve ser concedida a idoneidade recusada pela 1.ª instância, além do mais que consta da decisão de facto, porquanto: o recorrente completará, no próximo mês de Setembro, 48 anos de idade; a única condenação data de há 7 anos atrás por crimes cometidos há cerca de 13 anos; está divorciado da ex-mulher (vitima do crime de maus tratos) e dela separado há cerca de 13 anos, tendo constituído uma nova relação há cerca de 12 anos que se mantém estável [cfr. relatório social e decisão de facto];
As penas a que foi condenado encontram-se extintas pelo cumprimento, a última desde finais de 2016; a possibilidade do cancelamento da condenação encontra-se, atualmente, à distância de 6 meses; mas mais relevante, no sentido de influenciar a decisão de recurso, é que o recorrente, apesar da condenação transitada em Junho de 2016, manteve a licença a que agora pretende aceder durante 5 anos, em pleno período da suspensão da pena a que foi condenado e para além dele (entre 19.11.2014 e 18.11.2019), podendo caçar e usar armas de caça, armas que possui e a que tem acesso.
Ou seja, o recorrente tem um longo período de uso de armas de caça (desde 2008) em atividades lúdicas venatórias sem registo de que delas tenha feito mau uso.
Durante cerca de 11 anos, manteve a licença a que pretende aceder, tendo o procedimento para sua renovação sido travado por causa da condenação que sofreu, mas que não foi óbice à sua renovação em 2014, apesar de já se encontrar em execução a mencionada condenação, mormente relativa à suspensão da pena de prisão (com certeza, derivado do facto da comunicação ao registo criminal da condenação ter ocorrido somente em janeiro de 2015, conforme se constata do CRC junto aos autos).
Em suma, todos os dados de facto, convergem no sentido de que o recorrente irá fazer uso da licença a que pretende aceder para os fins legais da sua concessão.
Pelo exposto, somos de parecer que o recurso deverá proceder."

5. Notificado do teor do parecer, o recorrente concordou com o seu teor.
6. Proferiu-se despacho de exame preliminar e, não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos do Código de Processo Penal].
Questão a decidir
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
O recorrente imputa à decisão recorrida um erro em matéria de direito, do qual resultou o não reconhecimento de idoneidade ao requerente para renovar a licença de uso e porte de arma, da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça.
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Para decidir a questão controvertida, importará, primeiramente, concretizar o facto jurídico-processual relevante – a fundamentação da decisão recorrida -.
II – FUNDAMENTAÇÃO
"O Requerente B…, melhor identificado nos autos, veio, nos termos dos artigos 15, n.ºs 1 e 2, e 14, n.º 3 da Lei 5/2006, requerer a V. Ex.ª lhe seja reconhecida a Idoneidade para efeitos de renovação da licença de uso e porte de arma de caça, da classe C.
O Ministério Público veio requerer a junção de certificado de registo criminal actualizado e informação sobre a pendência de processos crime contra o Requerente.
O Tribunal, para além dos elementos cuja junção aos autos foi promovida pelo Ministério Público, solicitou informação à PSP – Núcleo de Armas e Explosivo de Aveiro sobre a titularidade de licenças de uso e porte de arma pelo requerente, com indicação da categoria, e propriedade de armas por este e solicitou a elaboração de relatório social.
Foi junto o certificado de registo criminal, informações quanto à pendência de processos crime contra o Requerente e informações prestadas pela PSP e relatório social.
O Requerente foi ouvido pessoalmente e foi produzida a prova testemunhal arrolada.
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O Ministério Público pediu justiça.
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A Defesa pronunciou-se no sentido de ser reconhecida a idoneidade do Requerente para a posse de armas da classe C.
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O relatório social pronunciou-se favoravelmente.
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Das várias certidões das sentenças que se encontram juntas aos autos, do certificado de registo criminal juntas, das informações sobre a pendência de processos-crime contra o arguido juntas, informação prestada pela PSP – Núcleo de Armas e Explosivo de Aveiro junta, da audição do Requerente e da prova testemunhal por si arrolada e do relatório social, ficaram provados os seguintes factos:
1) Por sentença datada de 14.5.2014 e transitada em julgado a 3.6.2014, proferida no âmbito do processo comum singular n.º 407/07.6GBAND (a que se encontra apenso o presente apenso) o aqui Requerente foi condenado pela prática:
a) de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na redacção em vigor à data da prática dos factos, praticado em Julho de 2007, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período;
b) de três crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº 1, do Código Penal, praticados a 16.3.2008, nas penas parcelares de 180 (cento e oitenta) dias de multa por cada um deles e, em cúmulo jurídico das penas de multa, na pena única de 300 (trezentos) dias de multa, à taxa diária de € 10,00 (dez euros);
2) A pena de multa foi extinta por cumprimento a 27.8.2016 e a pena de prisão suspensa na sua execução foi extinta a 3.12.2016.
3) O Requerente não tem averbado mais nenhuma condenação para além da descrita no ponto 1) da factualidade provada.
4) Não existem processos crime pendentes contra o Requerente.
5) Foi concedida pelo Núcleo de Armas e explosivos do Comando Distrital de Aveiro licença de uso e porte de arma de fogo-C n.º …/2010, emitida a 19.11.2014 e era válida até 18.11.2019, em nome do Requerente.
6) Encontram-se registados em nome do Requerente a espingarda da marca Pietro Beretta, n.º …….., calibre 12, com o livrete n.º ……, bem como a espingarda de marca Bettinsoli, n.º ….., calibre 12, com o livrete n.º …….
7) A 22.10.2019 o requerente pediu a renovação da licença, tendo sido notificado do indeferimento do licenciamento por indiciar falta de idoneidade nos termos do artigo 14.º, n.º 2 da Lei 5/2006, de 23/2.
8) B… é o mais velho de quatro irmãos, cresceu em meio familiar e ambiente estruturante. Os pais eram emigrantes em França, encontrando-se actualmente e novamente ali.
9) O Requerente nasceu naquele país e acompanhou os familiares para Portugal quando teria cerca de 4 ou 5 anos de idade.
10) Frequentou o ensino na …, até à 4ª classe, e prosseguiu em Anadia o 5º ano. Interrompeu a frequência escolar, cerca dos 16 anos de idade, para trabalhar. Mais tarde inscreveu-se no curso nocturno para prosseguir a escolarização tendo novamente interrompido por ter emigrado. Não concluiu o 2º ciclo.
11) Iniciou actividade laboral nos períodos de férias escolares, em serralharia, onde era aprendiz e ajudava o dono e os pagamentos então recebidos contribuíam para a economia familiar. Cerca dos 16 anos de idade começou a trabalhar na construção civil, como servente, tendo permanecido nesta actividade “algum tempo” (sic). Posteriormente foi ajudante de cozinheiro, em restaurante em Aveiro. Emigrou para a Venezuela, onde trabalhou em padarias com o padrinho, durante 2 anos.
12) Regressou a Portugal e cumpriu serviço militar obrigatório, durante 4 meses, em Chaves e Mafra. Retomou actividade laboral na “C…”. De seguida foi trabalhar na “D…”, como serralheiro mecânico, iniciando períodos de trabalho fora de Portugal. Prosseguiu na empresa “E…” e “F…, Ldª”, após separação de sócios da primeira empresa e criação de novas empresas. B… trabalha nestas empresas há cerca de 20 anos, tendo estado deslocado, por diferentes períodos de tempo, em países da Europa, América do Norte e do Sul, África e Ásia. Nestas empresas exerce as funções de serralheiro mecânico tendo sido colocado em algumas obras como chefe de equipa.
13) Em 1995 contraiu matrimónio com G…, tendo nascido dois filhos: H…, actualmente com 22 anos (tem um filho de 3 anos), e I…, de 18 anos, institucionalizado no CAT “J…” (…), onde irá permanecer até Janeiro próximo. O casal separou-se após cerca de 11 anos de vivência em comum, tendo o divórcio litigioso sido concluído há cerca de um ano. O arguido retomou o contacto regular com os filhos.
14) B… iniciou união de facto, com K…, há cerca de 12 anos.
15) O casal inicialmente habitou a morada da companheira e há 7 anos residem na habitação daquele.
16) O Requerente referiu ter obtido a carta de caçador em 2009.
17) Actualmente integra o agregado familiar constituído pelo próprio e pela companheira (K…, 59 anos, empregada doméstica). Este relacionamento tem cerca de 12 anos. A companheira tem dois filhos, adultos, autónomos. O arguido mantém bom relacionamento com os enteados e retomou o relacionamento com os filhos, que mantém nos períodos de permanência na morada de habitação ou através das redes sociais quando se encontra ausente do país.
18) A actual relação conjugal apresenta-se gratificante para ambos, sentindo-se bem integrados na comunidade de residência.
19) O Requerente é reconhecido na localidade como trabalhador.
20) B… trabalha na empresa “F…, Ldª” há cerca de 9 anos, recebendo salário quando a empresa tem obras em curso, tanto em Portugal como no estrangeiro. Nos períodos entre trabalhos o arguido não recebe salário.
21) Tem como salário base 650 €/mês a que acrescem outros subsídios e pagamentos legais, auferindo de salário líquido cerca de 2500€/mês.
22) Está a efectuar o pagamento da amortização bancária, por compra da habitação, no valor mensal de 300€ e tem outro crédito a pagamento, para efectuar obras de manutenção da habitação, pagando 80€/mês. As despesas com água, electricidade, gaz, telecomunicações, oscilam entre 130 e 150€/mês.
23) O Requerente disse ter como hobbie a caça, sendo sócio de reserva de caça de L… há cerca de 4 anos (caçam na zona de …). Paga de quota o valor anual de 360€. Anteriormente foi sócio de outra reserva de caça também naquela área geográfica.
24) O Requerente gosta desta actividade pelo convívio com os amigos e familiares, participantes também das deslocações efectuadas neste âmbito.
25) Os seus hobbies incluem também a pesca, apicultura, agricultura, realização de obras nas habitações dos enteados como na sua própria residência, futebol.
26) Mantém imagem social de elemento trabalhador, correcto e integrado na comunidade. São referidos, na comunidade de residência, empenhamento profissional favorável, não havendo informação da ocorrência de factos negativos por parte de B….
27) O Requerente é considerado uma pessoa humilde, calma, séria, honesta, trabalhadora, respeitadora, respeitada, pacífica, solidária, amiga do seu amigo, companheiro;
28) O Requerente desde o ano 2008, todos os anos exerceu a actividade lúdica da caça e pretendia continuar a fazê-lo anualmente.
29) O Requerente nunca praticou qualquer crime no exercício da caça.
30) É um caçador respeitador, sério, colaborante e muito cuidadoso.
31) O Requerente pretende continuar a exercer a actividade lúdica da caça.
32) O Requerente não tem averbado no certificado de registo criminal qualquer condenação pela prática de um crime.

B) FACTOS NÃO PROVADOS
Não existem quaisquer factos relevantes que tenham ficado por provar.
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MOTIVAÇÃO
Para formar a sua convicção o Tribunal teve em consideração o teor da sentença e do acórdão condenatório, o teor das declarações do Requerente, o depoimento das testemunhas K… (actual companheira do Requerente), M… e N… (amigos do Requerente), bem como o relatório social junto a fls. 40 e ss., e os vários documentos juntos aos autos, a saber o certificado de registo criminal junto aos autos a fls.5-6/16-17, cópia da carta de caçador de fls. 7, notificação da licença de fls. 8, comprovativo da entrega de fls. 9, e notificação da proposta de decisão de indeferimento da renovação, pesquisa que comprova a inexistência de processos pendentes além deste (fls. 21), informações de inexistência de inquéritos (fls. 23-24 e 25, 26, 27), informação da PSP de fls. 28.
O Requerente referiu que os factos pelos quais foi condenado aconteceram há 12 anos, quando estava casado com a sua ex-mulher, salientando que o relacionamento que existia entre ambos era conflituoso, de parte a parte, salientando que desde tal data não mantém qualquer relacionamento com a sua ex-mulher. Esclareceu ainda vive há vários anos com uma companheira, com quem mantém uma boa relação. Para além disso, referiu que pretende renovar a licença de uso e porte de arma para continuar a caçar.
A testemunha K…, companheira do Requerente, referiu que há 13 anos que vive com este, mantendo com ele um bom relacionamento.
Descreveu o Requerente com uma pessoa honesta, trabalhadora e pacífica, tendo ainda referido que não tem qualquer receio do Requerente. Disse ainda que o Requerente é caçador e costuma caçar no Verão.
A testemunha M…, amigo do Requerente, referiu que o conhece há mais de 20 anos, que caça com o Requerente há cerca de 5/6 anos, descrevendo-o como uma pessoa pacífica e trabalhadora e com grande gosto pela caça, não tendo qualquer reparo a fazer à conduta do arguido, designadamente na caça. Resulta, pois, da prova testemunhal que o Requerente é uma pessoa bem reputada no meio onde se insere, sendo considerado pessoa pacífica, trabalhadora e com grande gosto pelo caça.

DO DIREITO
Nos termos do n.º 1 do artigo 15.º da Lei 5/2006, de 23.2 “As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de actos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador com arma de fogo ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
Por sua vez, o n.º 2 estabelece que a apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos nºs 2, 3 e 4 do artigo 14.º do referido diploma.
Nos termos do artigo 14.º, 2 da Lei 5/2006, de 23/2, sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode ser-lhe reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação, mediante parecer fundamentado homologado pelo juiz, elaborado pelo magistrado do Ministério Público que para o efeito procede à audição do requerente, e determina, se necessário, a recolha de outros elementos tidos por pertinentes para a sua formulação (n.º 3 do artigo 14.º da Lei 5/2006, de 23/2).
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29.5.2019, proc. 446/13.4PAGM-A.P1, “I - A Lei nº 5/2006, de 23/02, na sua actual redacção, não define o conceito de idoneidade, apenas indicando, a título não taxativo, factos susceptíveis e indiciar a sua falta.
A idoneidade significará a aptidão de alguém para o uso e porte ou detenção de arma de acordo com as normas imperantes” – consultável na íntegra em www.dgsi.pt.
Ou, como se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16.9.2015, proc. 3/13.5GACVL-A.C1, cuja relatora foi Olga Maurício, “a idoneidade exigida para a concessão de autorização de uso de arma de fogo traduz a capacidade técnica de o titular usar a arma, por um lado, e de a usar de forma avisada, prudente e de acordo com as leis em vigor, por outro.
Não existe uma presunção de idoneidade geral e abstracta e reportada a qualquer eventual interessado, subjacente ao concreto juízo prévio da idoneidade para ser titular de licença de uso e porte de arma. Face à letra da lei a idoneidade tem que ficar provada, tem que ser demonstrada por factos” – consultável na íntegra em www.dgsi.pt.
Significa, pois, que a idoneidade não é algo que se presuma relativamente a todas as pessoas. Porém, a lei refere uma das situações (não taxativa) que é susceptível de indiciar essa falta de idoneidade: o requerente ter sido submetido a medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
O Requerente tem uma condenação averbada no registo criminal pela prática de 1 crime de maus tratos e 3 por crimes de ofensa à integridade física. Os factos pelos quais foi condenado remontam já a 2007/2008.
O Requerente não tem qualquer outra condenação averbada no certificado de registo criminal.
O Requente foi condenado pela prática de um crime de maus tratos (na pessoa da sua então mulher G…) numa pena de prisão de 2 anos e 6 meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período e ainda como autor de três crimes de ofensa à integridade física, nas penas parcelares de 180 dias de multa e, em cúmulo jurídico, na pena única de 300 dias de multa, à taxa diária de €10.
A condenação em pena superior a 1 ano de prisão, pela prática de um crime doloso com violência, é susceptível de, por si só, indiciar a falta de idoneidade do arguido.
A favor da pretensão do Requerente há que ter em consideração o seguinte:
- o arguido foi condenado em penas de multa e uma pena de prisão suspensa na sua execução;
- os factos remontam a 2007/2008;
- o arguido já foi condenado por sentença transitada em julgado a 3.6.2014 e a pena de multa foi extinta por cumprimento a 27.8.1016 e a pena de prisão suspensa na sua execução foi extinta a 3.12.2016.
- o arguido não tem qualquer outra condenação averbada no certificado de registo criminal.
- o arguido é visto como pessoa pacífica e reconhecido como tal pela sua actual companheira e amigos.
Ou seja, desde a prática dos factos já decorreram mais de 10 anos e desde a extinção da pena mais de 4 anos, sem que o arguido tenha voltado a cometer novos crimes.
Nos termos do artigo 11.º, n.º 1, al. a) da Lei n.º 37/2015, de 05 de Maio, as decisões inscritas cessam a sua vigência no registo criminal decorridos 5 anos sobre a extinção da pena, desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime de qualquer natureza.
A condenação ainda se encontra averbada no registo criminal, muito embora já tenham decorridos mais de 4 anos sobre a extinção da pena, faltando cerca de 6 meses para decorrerem os 5 anos.
Por outro lado, há que considerar o seguinte: o Requerente foi titular de licença de uso e porte de arma de fogo-C, emitida a 19.11.2014 e era válida até 18.11.2019. Ou seja, mesmo após ter sido condenado, o arguido foi titular de licença de uso e porte de arma durante 4 anos.
Porém, em desfavor do Requerente há que considerar a pena em que este foi condenado – 2 anos e 6 meses de prisão pelo crime de maus tratos, para além da pena única de 300 euros pela prática de 3 crimes de ofensa à integridade física – e os tipos de crime em questão – maus tratos e ofensas à integridade física, sendo que o primeiro dele tem especial gravidade.
Por outro lado, e apesar do Requerente ser bem visto no meio onde se insere e e apenas ter averbado no certificado de registo criminal uma condenação (por 4 crimes) e já ter decorrido mais de 10 anos sobre a prática dos crimes e mais de 4 anos sobre a extinção das penas, não podemos descurar a gravidade do crime de maus tratos (quer em abstracto, quer no caso concreto) e o alarme que tais crimes causam na sociedade, face à frequência com que acontecem e os desfechos, por vezes, bastante trágicos que acarretam.
Ora, considerando que é a própria lei que estabelece que é susceptível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão e, por outro lado, ponderando os interesses em causa – direito a renovar a licença de caça, faltando cerca de 6 meses para que a condenação seja eliminada do certificado de registo criminal (caso não sejam aí averbadas outras condenações), e o risco que representa atribuir ao Requerente a declaração de idoneidade, atendendo ao tipo de crime pelo que foi condenado e o risco que existe em atribuir licenças a quem cometeu crimes com uso de violência, sobretudo quando estes ocorrem no seio familiar - , entende o Tribunal que não estão reunidas as condições para declarar a idoneidade do Requerido, tanto mais que se vivem tempos de grande tensão provocados pela situação pandémica e os constrangimentos e tensão que tudo isso acarreta.
Pelo exposto, decide-se não reconhecer a idoneidade do requerente B… para ser detentor de arma de fogo da categoria C, devendo este aguardar o decurso do prazo de cancelamento definitivo do registo criminal. (…)"

(…)"

Recordada a fundamentação da decisão recorrida importa, ora, aferir o mérito do recurso.
Do erro em matéria de direito:
O recorrente imputa à decisão recorrida um erro em matéria de direito, do qual resultou o não reconhecimento de idoneidade ao requerente para renovar a licença de uso e porte de arma, da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça.
Motivando o seu recurso, alega que a globalidade dos factos dados como provados permite concluir que o recorrente é pessoa idónea para renovar a licença de uso e porte de arma de caça, classe C, nos termos dos artigos 14, n.º 2 e 3 e 15.º, n.º 1 al. c) e 2, da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro e que a aplicação, ao requerente, de uma pena de prisão superior a 1 ano, suspensa na sua execução, sem qualquer injunção, é, nos termos da lei, apenas uma suscetibilidade de indiciar falta de idoneidade para o efeito e não uma consequência necessária. Se o espírito do legislador fosse no sentido de considerar que uma condenação em pena de prisão superior a 1 ano, por crime doloso, violento, tinha como consequência a inidoneidade de quem fosse punido nesses termos, tinha-o dito de forma clara e expressa na lei, o que não aconteceu
Ao estipular no art.º 14, n.º 3, do citado diploma que o recorrente no decurso anterior à verificação do cancelamento da inscrição no registo criminal das decisões em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, afastou de forma clara que a condenação em pena de prisão superior a 1 ano, por crime doloso, violento, seja condição, só por si, de inidoneidade do recorrente.
Da matéria de facto considerada provada resulta à saciedade que o requerente é idóneo para renovar a licença de uso e porte de arma de caça, classe C, sendo o único facto desabonatório, o facto provado sob o n.º 1, mas insuficiente para o considerar inidóneo, como aconteceu;
A matéria de facto dada como provada sob o n.º 1, respeita a factos ocorridos no ano 2007 (há cerca de 14 anos), não havendo qualquer registo de outro ilícito antes ou depois desses factos, por o requerente não o ter cometido.
Na condenação por violência doméstica foi-lhe aplicada uma pena de prisão de 2 anos e 6 meses, suspensa na sua execução pelo mesmo período, sem ser imposto ao requerente qualquer dever ou regras de conduta, nomeadamente proibição de obter licença de uso e porte de arma de fogo, nos termos dos artigos 51º e 52º do Código Penal.
Já na altura o Tribunal que apreciou os factos fez uma prognose favorável da personalidade do ora recorrente, que levou à suspensão da execução da pena, sem qualquer dever ou regra de conduta.
Em resposta ao recurso, o Ministério Público da primeira instância pugnou pela confirmação da decisão recorrida, essencialmente, com base na sua fundamentação.
Nesta instância, o Ministério Público pugnou pela procedência do recurso, ponderando, expressamente, o seguinte:
a) o requerente completará, no decurso do presente mês de Setembro, 48 anos de idade;
b) a sua única condenação data de há 7 anos atrás por crimes cometidos há cerca de 13 anos;
c) encontra-se divorciado e separado da ex-mulher (vítima do crime de maus tratos) há cerca de 13 anos, tendo constituído uma nova relação há cerca de 12 anos que se mantém estável [cfr. relatório social e decisão de facto];
d) as penas a que foi condenado encontram-se extintas pelo cumprimento, a última desde finais de 2016;
e) apesar da condenação transitada em Junho de 2016, manteve a licença a que agora pretende aceder durante 5 anos, em pleno período da suspensão da pena a que foi condenado e para além dele (entre 19.11.2014 e 18.11.2019), podendo caçar e usar armas de caça, armas que possui e a que tem acesso; e
f) o requerente tem um longo período de uso de armas de caça (desde 2008) em atividades lúdicas venatórias sem registo de que delas tenha feito mau uso.
g) durante cerca de 11 anos, manteve a licença a que pretende aceder, tendo o procedimento para sua renovação sido travado por causa da condenação que sofreu, mas que não foi óbice à sua renovação em 2014, apesar de já se encontrar em execução a mencionada condenação, mormente relativa à suspensão da pena de prisão (com certeza, derivado do facto da comunicação ao registo criminal da condenação ter ocorrido somente em janeiro de 2015, conforme se constata do CRC junto aos autos).
Cumpre apreciar e decidir.
De jure
A questão controvertida nos autos encontra-se regulada nos artigos 14º e 15º, 1 e 2, do Regime das Armas e suas Munições, aprovado pela Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro:
«Artigo 15º
1 - As licenças C e D podem ser concedidas a maiores de 18 anos que reúnam, cumulativamente, as seguintes condições:
a) Se encontrem em pleno uso de todos os direitos civis;
b) Demonstrem carecer de licença de uso e porte de arma dos tipos C ou D para a prática de atos venatórios, e se encontrem habilitados com carta de caçador ou demonstrem fundamentadamente carecer da licença por motivos profissionais;
c) Sejam idóneos;
d) Sejam portadores de certificado médico, nos termos do artigo 23.º;
e) Obtenham aprovação em curso de formação técnica e cívica para o uso e porte de armas de fogo.
2 - A apreciação da idoneidade do requerente é feita nos termos do disposto nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 14.º.»
Por seu turno, o artigo 14º do mesmo texto legal estatui o seguinte:
«1 – (…)
2 - Sem prejuízo do disposto no artigo 30.º da Constituição e do número seguinte, para efeito de apreciação do requisito constante da alínea c) do número anterior é suscetível de indiciar falta de idoneidade para efeitos de concessão de licença o facto de, entre outras razões devidamente fundamentadas, ao requerente ter sido aplicada medida de segurança ou ter sido condenado pela prática de crime doloso, cometido com uso de violência, em pena superior a 1 ano de prisão.
3 - No decurso do período anterior à verificação do cancelamento definitivo da inscrição no registo criminal das decisões judiciais em que o requerente foi condenado, pode este requerer que lhe seja reconhecida a idoneidade para os fins pretendidos, pelo tribunal da última condenação.
4 - A intervenção judicial referida no número anterior não tem efeitos suspensivos sobre o procedimento administrativo de concessão ou renovação da licença em curso.
5 - O incidente corre por apenso ao processo principal, sendo instruído com requerimento fundamentado do requerente, que é obrigatoriamente ouvido pelo juiz do processo, que decide, produzida a necessária prova e após parecer do Ministério Público.
(…)"

Com evidente interesse para a compreensão deste regime legal, recorda-se a fundamentação do acórdão do Tribunal Constitucional nº 243/2007, publicado no Diário da República, II Série, nº 98, de 22 de Maio de 2007, segundo a qual “estamos em presença de uma atividade cujo exercício está genericamente dependente de licença, o que significa (…) que não existe um direito constitucional ao uso e porte de armas (…), independentemente dos condicionamentos ditados designadamente pelo interesse público em evitar os inerentes perigos, interesse que é acautelado através de autorizações de carácter administrativo condicionadas por ilações extraídas da verificação jurisdicional de comportamentos que a lei qualifica como censuráveis.
Com efeito, a lei rodeia com frequência a prática de certas atividades de precauções, traduzidas em licenciamentos, em razão da perigosidade que encerram, e da necessidade de conhecimentos técnicos específicos não comuns à generalidade dos cidadãos, como é o uso de armas de fogo, ou o exercício da condução de veículos automóveis. Nesses casos, é legítimo afirmar que a licença visa excluir a ilicitude de um ato que é genericamente proibido.
Na verdade, a necessidade do licenciamento pressupõe mesmo uma proibição geral do exercício destas atividades, como é indiscutivelmente o caso do uso e porte de armas.
Nada há, portanto, de ilegítimo no estabelecimento de restrições e condicionamentos diversos à posse de armas por particulares”.
A questão controvertida nos presentes autos situa-se na avaliação da idoneidade do requerente para renovar a sua licença de uso e porte de arma, da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça de uso e porte de arma de caça.
Tendo-se provado que o requerente foi condenado por sentença datada de 14 de Maio de 2014, pela prática, em Julho de 2007, de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período, o Tribunal "a quo" fez operar a presunção de falta de idoneidade prevista no número 2 do artigo 14º do Regime das Armas e suas Munições, indeferindo a pretensão do requerente.
Porém, a presunção estabelecida nessa norma é ilidível, ao ser estatuído que "é susceptível de indiciar falta de idoneidade (…)", em vez de outra formulação como "revela falta de idoneidade".
Trata-se, inclusivamente, de uma inovação legislativa em face do regime legal anterior (Lei nº 22/97 de 27 de Junho), que previa no número 3 do seu artigo 1º que "Constituem crimes que, nos termos da alínea c) do número anterior, implicam a não concessão de licença: homicídio, homicídio qualificado, homicídio privilegiado, homicídio a pedido da vítima, incitamento ou ajuda ao suicídio, infanticídio, homicídio por negligência com uso de arma, ofensa à integridade física grave, ofensa à integridade física qualificada, maus tratos ou sobrecarga de menores, de incapazes ou do cônjuge, participação em rixa ou em motim, ameaça com arma de fogo, sequestro, escravidão, rapto, tomada de reféns, coacção sexual, violação, abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, abuso sexual de pessoa internada, tráfico de pessoas, lenocínio, abuso sexual de crianças, abuso sexual de adolescentes e dependentes, actos homossexuais com menores, lenocínio de menor, roubo, violência depois da subtracção, genocídio, discriminação racial, crimes de guerra contra civis, incêndios, explosões e outras condutas especialmente perigosas, tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos, substâncias explosivas ou análogas e armas, captura ou desvio de aeronave, navio ou comboio, atentado à segurança de transporte por ar, água ou caminho de ferro, associação criminosa, organizações terroristas e terrorismo."
O legislador recuou assim nessa opção legislativa, deixando de constituir efeito necessário de certas condenações penais a impossibilidade de concessão e renovação de licença de uso e porte de arma, correspondendo, aliás, à garantia constitucional prevista no artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, que se traduz na proibição de que à condenação em certas penas se acrescente, de forma automática, mecânica, e independentemente de decisão judicial, apenas por força da lei, a perda de quaisquer direitos civis, profissionais e políticos.
Resulta do quadro legal acima exposto que a suscetibilidade de se mostrar indiciada a falta de idoneidade para a renovação da licença de uso e porte de arma requerida pela condenação do requerente pela prática de um crime terá, assim, de ser apreciada casuisticamente. Tal idoneidade deverá traduzir-se na capacidade ou qualidade de alguém para ser titular de licença de uso e porte de arma e de quem se espera que, em caso de concessão, dela faça um uso correspondente aos fins legais.
A decisão recorrida negou ao requerente, em 8 de Fevereiro de 2021, a renovação da licença de uso e porte de arma da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça, por este ter sido condenado por sentença datada de 14 de Maio de 2014, pela prática, em Julho de 2007, de um crime de maus tratos, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a) e 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução pelo mesmo período.
Trata-se do único facto provado de algum modo prejudicial à pretensão do requerente.
Porém, tal condenação judicial do recorrente não se revela suficiente, "in casu", para fundamentar uma recusa de reconhecimento de idoneidade para renovar a sua licença de uso e porte de arma de fogo da categoria C, para poder exercer a atividade lúdica da caça, uma vez que resultou provado um amplo quadro factual que revela a idoneidade do requerente, destacando-se deste que foi concedida ao requerente pelo Núcleo de Armas e explosivos do Comando Distrital de Aveiro uma licença de uso e porte de arma de fogo-C n.º 420/2010, emitida a 19.11.2014, válida até 18.11.2019, ou seja, poucos meses após ter sido condenado pela prática do crime acima referido, o arguido passou a beneficiar, legalmente, da licença que agora lhe foi recusada, tendo sido titular da mesma durante cinco anos, sem que haja notícia de lhe ter dado mal uso e constituído qualquer perigo para outras pessoas.
Além disso, ao suspender a execução da pena, o tribunal da condenação expressou um juízo de prognose positivo, atendendo à personalidade do então arguido, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluindo que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizariam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição – tendo o ora requerente sido merecedor dessa confiança, pois a pena viria a ser declarada extinta, por não ter voltado a delinquir -.
Por outro lado, o arguido tem estado bem inserido social, laboral e familiarmente, tendo constituído uma nova relação sentimental há cerca de 13 anos que se mantém estável: a sua companheira, K…, referiu em julgamento que há 13 anos que vivem juntos, mantendo um bom relacionamento, descrevendo o requerente com uma pessoa honesta, trabalhadora e pacífica, não tendo o menor receio dele.
O relatório social elaborado mostrou-se favorável à renovação da licença, sendo o requerente considerado, por todos, enquanto pessoa humilde, calma, séria, honesta, trabalhadora, respeitadora, respeitada, pacífica, solidária, amiga do seu amigo, companheiro – tal como resultou provado na decisão recorrida -.
Nestes termos, concordando-se com o parecer do Ministério Público junto deste Tribunal, entende-se, claramente, que a condenação em pena de prisão suspensa na sua execução pela prática de um crime de maus tratos cometido há mais de catorze anos não é susceptível de revelar falta de idoneidade para renovar a sua licença de uso e porte de arma da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça, uma vez que o requerente já demonstrou, à saciedade, ser pessoa idónea para o efeito, tendo beneficiado, legalmente, da licença que agora lhe foi recusada, durante cinco anos logo a seguir à sua condenação penal, sem que haja notícia de lhe ter dado mal uso e constituído qualquer perigo para outras pessoas.
Pelo exposto, o recurso é julgado procedente.
*
Sendo julgado procedente, não há lugar ao pagamento de custas.
*
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes subscritores, por unanimidade, julgar procedente o recurso e, em consequência:
a) revogam a decisão recorrida; e
b) reconhecem ao requerente B… idoneidade para renovar a sua licença de uso e porte de arma da classe C, para poder exercer a atividade lúdica da caça, nos termos do disposto no artigo 15º da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.

Porto, em 8 de Setembro de 2021.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
______________
[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. Joaquim Lopes Gomes.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.