Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
27804/15.7T8PRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS PORTELA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
LITISCONSÓRCIO VOLUNTÁRIO
Nº do Documento: RP2017110927804/15.7T8PRT.P1
Data do Acordão: 11/09/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS, N.º 444, FLS.78-84)
Área Temática: .
Sumário: I - A previsão legal do nº3 do art.498º do Código Civil pode ser aplicada mesmo quando a pessoa colectiva em apreço não pode ser responsabilizada penalmente e quando na acção proposta não foram individualizadas as pessoas físicas sobre as quais deve recair a censura pela omissão causadora do acidente e dos danos (tal como foram descritos na petição inicial).
II - Nos casos em que o segurado - lesante celebrou um contrato de seguro (não obrigatório) no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário até determinada quantia, o cumprimento das obrigações que decorrem daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário sendo só uma, pode, no entanto e por força do mesmo contrato, ser exigida, tanto ao segurado como à seguradora, pelo que o terceiro lesado sempre teria possibilidade de demandar o alegado lesante e a sua seguradora, em litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32º do CPC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Apelação nº27.804/15.7T8PRT.P1
Tribunal recorrido: Comarca do Porto
Porto – Instância Central – 1ª Secção Cível
Relator: Carlos Portela (807)
Adjuntos: Des. José Manuel Araújo Barros
Des. Filipe Caroço
Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação do Porto
I. Relatório:
B…, casado, residente no …, nº …, …, …. - … Porto, veio intentar esta acção declarativa sob a forma de processo comum contra C…, Lda., pessoa colectiva nº … … … com sede na Rua …, …, …. - … Valongo, e contra Companhia de Seguros D… SA, pessoa colectiva nº … … …, com sede na Av. …, …, …. - … Lisboa, pedindo a condenação da segunda ré a pagar-lhe a quantia global de 80.000,00 euros a título de danos patrimoniais e não patrimoniais por si sofridos em consequência de uma queda que sofreu no estabelecimento comercial da primeira ré em virtude de o chão se encontrar molhado e escorregadio, ocasionando-lhe os danos por si descritos na petição inicial, garantindo a segunda ré por contrato de seguro celebrado com a primeira ré os danos ocasionados por responsabilidade civil extracontratual (tudo como melhor consta da sua petição inicial, que se dá por reproduzida).
Contestou apenas Companhia de Seguros D… SA, além do mais e no que releva, excepcionando a sua ilegitimidade passiva.
Funda tal defesa nas seguintes circunstâncias:
O contrato em apreço não consubstancia um contrato de seguro obrigatório, posto que inexiste qualquer norma legal que o imponha ao respectivo tomador.
Também não existe qualquer previsão legal, que à semelhança do que ocorre com o seguro de responsabilidade civil automóvel, atribua directamente à seguradora a legitimidade para ser directamente demandada pelo lesado, como parte principal.
No contrato de seguro em apreço não está previsto o direito do lesado demandar directamente a aqui ré.
Por fim, porque não ocorreu qualquer início de negociações directas entre a ré e o autor, pelo facto daquela, desde o início, ter recusado qualquer tipo de responsabilidade do seu segurado no sinistro dos autos.
Pede pois a sua absolvição da instância.
Mais invocou a seu favor a prescrição do direito invocado pela autora pelo decurso quer do prazo de três anos contido no art.º 498 nº 1 do Código Civil entre o alegado facto danoso (11.10.2012) e a interposição da presente acção (17.11.2015).
O autor respondeu às excepções pugnando pela improcedência das mesma e invocando para si o prazo mais alargado do art.º 498º, nº3 do Código Civil.
Os autos prosseguiram os seus termos acabando por ser proferido despacho saneador/sentença no qual se decidiu do seguinte modo:
Quanto à excepção dilatória da ilegitimidade passiva invocada pela ré D… SA, absteve-se o Sr. Juiz “a quo” de se pronunciar sobre a mesma por considerar que mesma (a proceder) e dando lugar à absolvição da instância ficará prejudicada pela decisão subsequente que julgará no sentido da procedência da excepção peremptória da prescrição.
Já quanto tal excepção peremptória foi decidido o seguinte:
“No que se refere à excepção peremptória de prescrição do direito invocado pelo autor, são os seguintes, no essencial e com relevo para a questão a decidir, os factos por si alegado e/ou que importa tomar em consideração:
- No dia 11.10.2012, por volta das 17 horas, no interior do estabelecimento da primeira ré, quando se dirigia ao balcão para pagar a sua despesa, em consequência de o chão se encontrar molhado e escorregadio, o autor escorregou e caiu, embatendo com a cabeça e ombro no balcão, ocasionando-lhe os danos que descreve na petição inicial;
- No local não havia qualquer sinalização de que o chão se encontrasse molhado e escorregadio;
- A presente acção deu entrada em juízo no dia 17.11.2015.
*
O autor, como vemos, fundamenta os seus pedidos com base na responsabilidade civil por factos ilícitos, nos termos dos arts. 483 e ss. do Cód. Civil, concluindo pedindo a condenação da segunda ré a pagar-lhe as quantias acima referidas a título de danos patrimoniais e não patrimoniais (não formula qualquer pedido quanto à primeira ré).
No que aos pedidos formulados respeita, estabelecem a este respeito as leis civis que aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação, devendo reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, fixando-se a indemnização em dinheiro, sempre que não seja possível a reconstituição natural, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor (arts. 483, 562, 563 e 566, todos do Cód. Civil).
Tais dispositivos legais, portanto, têm como pressuposto um facto culposo do agente causador dos danos: “aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ... fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Porém, no que se refere à responsabilidade civil por factos ilícitos, preceitua também o art. 498 nº 1 do Código Civil que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mesmo com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos.
Ora, como vemos, o sinistro em causa ocorreu no dia 11 de Outubro de 2012 e a respectiva acção para efectivação da responsabilidade pelo mesmo deu entrada em tribunal no dia 17 de Novembro de 2015, ou seja, ultrapassado aquele limite de três anos acima referido.
O autor, porém, pede para si o prazo mais alargado do nº 3 do art. 498 do Código Civil, alegando que a conduta omissiva dos responsáveis da primeira ré constituiu também conduta criminal, invocando a seu favor o disposto no art. 143 do Código Penal.
Com efeito, prescrevendo o art. 498 nº 1 do Código Civil um prazo de três anos de prescrição do direito à indemnização, acrescenta no seu nº 3 que, se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, será este o prazo aplicável.
A sujeição ao prazo de prescrição da lei penal só se verifica, assim, se esta fixar um prazo mais longo, tendo no entanto o lesado de alegar e provar, se quiser prevalecer-se desse prazo mais longo, que o facto ilícito constituía crime, atentas as regras da repartição do ónus da prova contidas no art. 342 e ss. do Código Civil.
Efectivamente, dispõe o art. 143 do Código Penal (disposição legal invocada pelo autor) que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
Cremos, no entanto, que a disposição legal a enquadrar no presente caso, seria o disposto no art 148 do Código Penal que, sob a epígrafe de “ofensa à integridade física por negligência”, preceitua que “quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”
Negligência que pode advir de comissão por acção ou por omissão, nos termos do art. 10 do Código Penal, que dispõe que “quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.”
Porém, relativamente aos prazos de prescrição, preceitua também o art. 118 do Código Penal que “o procedimento criminal extingue-se, por efeito de prescrição, logo que sobre a prática do crime” tiverem decorrido “5 anos, quando se tratar de crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a 1 ano, mas inferior a 5 anos”.
Pretendendo o autor prevalecer-se deste prazo mais alargado de cinco anos, teria de alegar e demonstrar uma conduta criminosa imputável à primeira ré, pessoa colectiva.
A este respeito, estabelece o art. 11 nº 1 do Código Penal que, “salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal.”
O número seguinte (art. 11 nº 2 do Código Penal), preceitua por sua vez que “as pessoas colectivas e entidades equiparadas, com excepção do Estado, de pessoas colectivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 152.º-A e 152.º-B, nos artigos 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 176.º, 217.º a 222.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285,º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 376.º, quando cometidos” nas condições elencadas nas diversas alíneas dessa disposição legal.
O art. 148 do Código Penal, disposição legal que, eventualmente, seria chamada à colação nos presentes autos, não se insere nas disposições legais que permitem imputar como criminosa a actuação de pessoas colectivas.
Razões pelas quais não pode, no presente caso, o autor invocar para si o prazo mais alargado do art. 498 nº 3 do Código Civil.
Em conclusão, é de julgar procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela segunda ré, o que importa a sua absolvição dos pedidos formulados pelo autor.
*
Tudo ponderado, nos termos das disposições legais acima referidas, julgo procedente a excepção peremptória de prescrição invocada pela ré Companhia de Seguros D… SA, e, em consequência decido absolver as rés dos pedidos contra si formulados pelo autor B…, todos com os demais sinais dos autos (como acima já referimos, o autor não formula qualquer pedido de condenação contra a primeira ré, C… Lda.).”.
*
Inconformado com o teor desta decisão dela veio recorrer o autor, apresentando desde logo e nos termos legalmente prescritos as suas alegações.
A ré E… S.A. (actual designação da Companhia de Seguros D…) contra alegou formulando pedido de ampliação do objecto do recurso interposto pelo autor.
Foi proferido despacho no qual se considerou o recurso tempestivo e legal e se admitiu o mesmo como sendo de apelação, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.
Recebido o processo nesta Relação emitiu-se despacho que teve o recurso por próprio, tempestivamente interposto e admitido com efeito e modo de subida adequados.
Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
*
II. Enquadramento de facto e de direito:
Ao presente recurso são aplicáveis as regras processuais da Lei nº 41/2013 de 26 de Junho.
Como é consabido, o objecto do presente recurso e sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso obrigatório, está definido pelo conteúdo das conclusões vertidas pelo autor/apelante nas suas alegações (cf. artigos 608º, nº2, 635º, nº4 e 639º, nº1 do CPC).
E é o seguinte o teor das mesmas:
1. O despacho saneador ora recorrido julgou errada e antecipadamente procedente a excepção peremptória de prescrição do direito do Autor, arguida pela ré;
2. O recorrente teve conhecimento do direito que lhe assiste em 11 de Outubro de 2012, tendo exercido o seu direito somente em Outubro de 2015, ou seja ainda não tinham volvido 5 anos sobre aquela anterior data;
3. Sendo certo que o prazo prescricional de 5 anos de que pode beneficiar o Autor, depende que esta demonstre que o facto ilícito apurado seja subsumível no tipo legal de crime de ofensa à integridade física grave, o que nesta fase dos autos está ainda por apurar;
5. O recorrente, atento os graves circunstancialismos do acidente, sofreu lesões corporais gravíssimas, das quais ainda padece actualmente, nomeadamente sofrendo de limitação funcional do ombro esquerdo que clinicamente apontava para lesão da coifa dos rotadores.
6. Ora alega o recorrente na petição inicial que, como consequência do sinistro dos presentes autos o mesmo sofreu na sequência de uma ecografia ao ombro que revelou Heterogenicidade difusa no tendão supraespinhoso em relação com tendinose, sendo identificada no seu interior área sonolucente medindo 11x5mm em provável relação com a rotura parcial do tendão supraespinhoso.”
7. O Foi submetido de urgência a tratamento reabilitação funcional com medicina física e reabilitação.
8. Somente após o julgamento da matéria de facto, nomeadamente a discussão dos circunstancialismos que envolveram a ocorrência do acidente dos autos, é que o Tribunal de primeira instância poderia (ou não) concluir pela existência de culpa do condutor do proprietário do estabelecimento comercial e em função de tal, qualificar o crime de ofensa à integridade física como simples ou grave.
9. Sendo que o apuramento de tal factualidade é fundamental para a definição do prazo prescricional aplicável como sendo o de três, cinco ou de dez anos.
10. É manifesto que o douto despacho saneador, ao julgar já e antecipadamente pela procedência da prescrição invocada, foi precipitado, pois deveria ter relegado o conhecimento da excepção de prescrição para a decisão final, após apuramento dos factos que conduzissem á graduação do tipo legal de crime como grave ou negligente.
11. Ao fazê-lo violou o disposto no artigo 510.º n.º 1, alínea b) do Código Processo Civil e n.º 3 do artigo 498.º do Código Civil.
Sem prescindir,
12. Caso não se entenda que o conhecimento da excepção da prescrição deva ser relegada para final, ainda assim, os factos invocados pelo Autor na Petição inicial são em si mesmo consubtanciadores da prática de crime de ofensa à integridade física grave, nos termos do artigo 144.º alínea b) e d) do C.P.
Factos esses que correspondem à afectação, de maneira grave, da capacidade de trabalho da autora, tendo perdido o emprego.
13. Pelo que, a entender-se conhecer agora a excepção da prescrição, atento o prazo de prescrição aplicável pela pratica do crime de ofensa à integridade física grave, qual seja de 10 anos, a acção não está prescrita, o que se requer seja decretado nestes autos, revogando-se a douta sentença prolatada.
Termos em que concedendo-se provimento ao presente recurso deverá ser revogado o douto despacho saneador na parte em que julgou procedente a excepção de prescrição invocada pela ré, relegando-se para final tal conhecimento, ou, caso assim não se entenda julgar-se desde já a excepção de prescrição improcedente, prosseguindo a acção os seus termos legais.
Pede a V/ Ex.ª Deferimento.
*
Já quanto às contra alegações da ré E…, S.A. é o seguinte o teor das respectivas conclusões:
1. O contrato de seguro invocado nos presentes diz respeito a um seguro “Multirrisco Estabelecimento”, o qual não consubstancia um contrato de seguro obrigatório, posto que inexiste qualquer norma legal que o imponha ao respectivo tomador.
2. A legitimidade processual da recorrida, para ser demandada judicialmente pelo lesado em virtude do contrato de seguro aqui em apreço, regem os n.º 2 e 3 do artigo 140º do DL 72/2008 de 16 de Abril (Lei do Contrato de Seguro).
3. O contrato de seguro aqui em apreço não prevê o direito do lesado demandar directamente a aqui recorrida, pelo que devia o recorrente ter alegado e provado que, no caso em apreço, tinha ocorrido o início de negociações directas entre esta última e aquele.
4. Porém, o recorrente não os alegou nos autos, nem os mesmos jamais ocorreram como, aliás, melhor decorre da correspondência dirigida pela aqui recorrida ao recorrente, datada de 28 de Abril de 2014, junta aos autos pela recorrida e que aquele não pôs em causa.
5. Seja por via legal, seja por via contratual, a aqui recorrida não possui legitimidade processual para ser directamente demandada nos presentes autos pelo recorrente, que sobre ela não tem qualquer direito.
6. É, pois, incontroverso, que no caso dos autos se verifica a excepção de ilegitimidade da recorrida, tal como esta aduziu na sua contestação de fls…, situação que – como é sabido – constitui uma excepção dilatória que obsta a que o Tribunal conheça de mérito, nos presentes autos, relativamente à recorrida e conduz sua absolvição da instância.
7. Deste modo, caso venha a proceder o presente recurso de apelação, por que não se concede, nem se concebe, deve a excepção de ilegitimidade passiva invocada pela aqui recorrida ser julgada procedente e, por via disso, ser esta última absolvida do pedido.
Termos em que, julgando improcedente o presente recurso de apelação farão Vossas Excelências um acto de inteira Justiça.
Quando assim não se entenda, deve ser conhecida a ampliação do objecto do recurso, tal como requerido supra, julgando Vossas Excelências procedente a excepção da ilegitimidade passiva deduzida pela Recorrida na sua contestação de fls.., absolvendo-a da instância, com as necessárias consequências legais.
*
Perante o acabado de expor resulta claro que são as seguintes as questões colocadas nestes dois recursos:
1º) No recurso do autor:
A necessidade relegar a apreciação da excepção peremptória da prescrição para a decisão final.
2º) No recurso da ré E…:
A procedência da excepção dilatória da ilegitimidade passiva.
Para apreciar e decidir as questões agora suscitadas nos autos importa considerar o circunstancialismo que constam dos autos e que ficou melhor descrito no ponto I. deste acórdão o qual, nos seus pontos mais relevantes, não deixaremos de voltar a considerar quando se afigurar necessário.
Assim sendo e iniciando a nossa análise pela primeira das referidas questões, o que cabe dizer é o seguinte:
Como bem se afirma na decisão recorrida, “no que se refere à excepção peremptória da prescrição do direito invocado pelo autor, são os seguintes. No essencial e com relevo para a questão a decidir, os factos por si alegados e/ou que importa tomar em consideração:
- No dia 11.10.2012, por volta das 17 horas, no interior do estabelecimento da primeira ré, quando se dirigia ao balcão para pagar a sua despesas, em consequência de o chão se encontrar molhado e escorregadio, o autor escorregou e caiu, embatendo com a cabeça e ombro no balcão, ocasionando-lhe os danos que se descreve na petição inicial;
- No local não havia qualquer sinalização de que o chão se encontrasse molhado e escorregadio;
- A presente acção deu entrada em juízo no dia 17.11.2015.”.
Ora já todos vimos quais as razões nas quais o Tribunal “a quo” fundou a decisão aqui recorrida e na qual foi julgada procedente a excepção peremptória da prescrição invocada pela segunda ré e, consequentemente, a sua absolvição dos pedidos contra si formulados pelo autor.
Mas sem razão, como já de seguida veremos.
De acordo com o nº1 do artigo 498º do Código Civil, o direito de indemnização derivado da responsabilidade civil extracontratual prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, mas se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável (nº3).
Segundo o autor/recorrente, deve ser aplicável ao caso o prazo de prescrição mais alargado de 5 anos (o prazo previsto no art.º 118º, nº 1, alínea c) do Código Penal), porque o facto ilícito imputado á ré/apelada C… Lda., integra a prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144º do Código Penal, alíneas b) e d), conforme foi por si alegado no seu articulado inicial.
Ora os factos alegados no referido articulado, a provarem-se, são susceptíveis de integrar o crime de “Ofensa à integridade física grave” previsto e punido pelo referido art.º144º, alínea c) do Código Penal, segundo o qual, “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a (…) Provocar-lhe perigo para a vida (alínea d) é punido com pena de prisão de dois a dez anos, cujo prazo de prescrição é de 5 anos nos termos do art.º 118º, nº1, alínea c) do mesmo diploma legal.
Isto por se tratar de crime punível com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a um ano, mas inferior a cinco anos.
Neste ponto, temos como certo que foram alegados factos suficientes para a integração do alegado ilícito praticado no tipo legal de crime invocado.
Mas também temos de concordar com o tribunal recorrido, segundo o qual, à ré C… Lda., enquanto pessoa colectiva, não pode ser imputada a prática daquele tipo legal de crime, - crime de ofensas corporais -, pois de acordo com o art.º 11°, nº 1 do Cód. Penal a regra é a de que apenas as pessoas singulares são susceptíveis de serem penalmente responsáveis, o que vale dizer que, apenas estas, em princípio, podem cometer crimes, sendo a própria lei a estabeleceras situações ou tipos de crime em que a responsabilidade penal pode ser assacada a pessoas colectivas – as elencadas no nº 2 do art.º 11° do Cód. Penal (nelas não se incluindo o tipo legal de crime previsto no art.º 144º.).
Concordamos pois com a seguinte afirmação:
“O art.º 148º do Código Penal, disposição legal que, eventualmente, seria chamada à colação nos presentes autos, não se insere nas disposições legais que permitem imputar como criminosa a actuação de pessoas colectivas.”.
Mas já não concordamos com o que é dito logo a seguir, e que é o seguinte: “Razões pelas quais não pode, no presente caso, o autor invocar para si, o prazo mais alargado do art.º498º, nº3 do Código Civil.”.
E tudo porque entendemos que a leitura que se tem de fazer do disposto no art.º 498º nº 3 do CC – quando esteja em causa a responsabilidade civil das pessoas colectivas – é a de que o que releva para efeitos de prescrição é o facto ilícito em si, a sua natureza criminal, e não a entidade que o pratica – no pressuposto de que a pessoa colectiva demandada está a sê-lo enquanto entidade responsável pelos actos praticados pelos seus subordinados (neste sentido e entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães de 27.04.2017, no processo 1508/16.1T8CHV.G1, em www.dgsi.pt).
Assim, também no presente caso, não se suscitam dúvidas de que a responsabilidade penal em causa – imputada pelo Autor à pessoa colectiva em questão -, seria também imputável às pessoas físicas responsáveis pela limpeza e manutenção das instalações da ré C…, Lda.
Ou seja, embora o Autor demande apenas esta Ré, a quem imputa a prática do ilícito penal, pode subentender-se da sua alegação que alguém foi responsável pela omissão dos “especiais deveres de protecção, quanto à higiene e segurança das suas instalações, que fazem parte do conteúdo das normas da actividade da segurança provada dos estabelecimentos abertos ao público, onde se inclui o dever de limpar e secar o piso dos respectivos estabelecimentos” (cf. art.º31º da petição inicial).
Em suma, à luz do que vem alegado pelo A., o facto ilícito praticado (pelos responsáveis da referida Ré) constitui crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelo artigo 144.º do Código Penal, cujo prazo de prescrição é de 5 anos (nos termos previstos no art.º 118º, nº1, c) do Código Penal).
Assim sendo, tal alegação é suficiente para ser aplicado ao caso o disposto no nº3 do art.º 498º do Código Civil.
Procedem, assim, as conclusões do recurso do autor/apelante, com a necessária revogação da decisão recorrida.
Assim sendo e uma vez que carece ainda o mesmo autor de provar os factos por si alegados – susceptíveis de integrar a previsão legal do art.º 144º do Código Penal – factos que foram impugnados pela ré Companhia de Seguros D… S.A. (hoje E… S.A.), (cf. os artigos 15º e seguintes da contestação), os autos devem prosseguir para ser conhecida a final, a excepção invocada.
Já quanto à ampliação do objecto do recurso formulado pela ré E… S.A. o que cabe dizer é o seguinte:
Todos sabemos que o requisito da legitimidade é, com efeito, entre nós, um pressuposto processual, tendo sido afastado como condição de fundo desde o Código de Processo Civil de 1876 (cf. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, II, Coimbra, 1982, 175, 180).
A legitimidade exprime a posição pessoal do sujeito em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que aquele sujeito possa ocupar-se em juízo desse objecto do processo (neste sentido cf. Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, 153).
Também Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, 82, explica que a legitimidade não é uma qualidade pessoal das partes, “mas uma certa posição delas face à relação material que se traduz no poder legal de dispor dessa relação, por via processual”.
Com o requisito da legitimidade tem-se em vista que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, apresentando-se, por isso, um reflexo do princípio da autonomia da vontade, já que é o titular do interesse o único que pode prossegui-lo, em juízo ou fora dele, salvo quando a lei disponha diversamente (cf. Castro Mendes, ob. cit., II, 157).
Para que a causa seja julgada perante os verdadeiros e principais interessados na relação jurídica, necessário se torna que estejam em juízo, como autor e réu, as pessoas que são titulares da relação jurídica em causa.
Nos termos do artigo 30º, nº1 do C.P.C., autor e réu são partes legítimas quando têm interesse directo, respectivamente, em demandar e em contradizer, interesse esse que se afere, de acordo com o nº 2 daquele mesmo preceito legal, pela utilidade derivada da procedência da acção ou pelo prejuízo que daí advém.
No entanto, confrontado com as dificuldades que decorrem da aplicação prática de tal critério, não deixou por isso o legislador de fixar o nº3 do mesmo art.º26º, uma regra supletiva na determinação da legitimidade.
Assim e como refere Miguel Teixeira de Sousa, B.M.J., 292, p. 107 , “o n.º 3 foi justificado pela necessidade de fornecer um critério prático que pudesse superar as tradicionais dificuldades sentidas na matéria e orientar o juiz na tarefa de determinar se as partes têm ou não interesse directo em demandar e em contradizer.”.
Deste modo, segundo o citado nº 3 do preceito em análise "na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade, os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.".
Ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram essa causa de pedir.
No caso vertente propôs, a autora, como se viu, acção contra o alegado lesante e a respectiva seguradora.
Estamos pois claramente perante uma situação de litisconsórcio passivo.
Como é sabido, o litisconsórcio caracteriza-se pela existência de um processo com unidade de pedido e pluralidade de partes.
Verifica-se a hipótese de litisconsórcio necessário quando a lei ou o contrato exijam expressamente a presença em juízo de vários interessados na relação jurídica ou, quando a natureza desta reclame tal presença para que a decisão final produza o efeito útil normal (v. artigo 33º e 34º do CPC).
Diversamente, o litisconsórcio será voluntário, quando a lei ou o contrato consintam que o direito comum seja exercido por um só dos interessados ou que a obrigação comum só a um dos interessados seja exigível (cf. o art.º 32º do CPC).
O litisconsórcio diz-se simples, quando visa apenas estender o âmbito subjectivo do caso julgado. E, será conveniente quando procura assegurar a produção de certos efeitos.
Importa, portanto, analisar se a 2ª ré, na qualidade de seguradora, com a qual a 1ª ré havia celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil, vinculando-se ao pagamento dos danos causados a terceiros ocorridos no seu estabelecimento sito na Rua …, pode ser considerada titular da mesma relação jurídica invocada pela autora ou de relação jurídica com ela conexa a ponto de se poder aceitar que a seguradora seja admitida a intervir como parte principal, defendendo um interesse igual ao da 1ª ré, ou se, pelo contrário, poderia, sim, intervir na causa, mas apenas como parte acessória, auxiliando a 2ª ré na sua defesa.
Todos sabemos que esta questão, não tem tido um tratamento unívoco nem na jurisprudência, nem na doutrina, sendo frequentemente convocada sobretudo quando se analisa qual o tipo de incidente susceptível de fazer intervir na acção a seguradora, obviamente, em situações para as quais inexiste seguro obrigatório.
Assim, para uns, o contrato de seguro celebrado entre o alegado lesante e a respectiva seguradora apenas confere a esta um interesse processual secundário, podendo, é certo, a mesma intervir na própria acção de responsabilidade civil na qual o lesado é demandado, mas apenas por via do incidente de intervenção acessória.
Segundo esta corrente, terá de se entender que a seguradora não é contitular da relação material controvertida, mas sim sujeito passivo de uma relação jurídica (contrato de seguro) que é conexa com a relação material controvertida, razão pela qual, inexistindo qualquer interesse litisconsorcial necessário ou voluntário entre a ré/lesante e a sua seguradora, não poderia esta ser demandada como parte principal, nem poderia ser admitido o incidente de intervenção principal provocada previsto no artigo 321º do CPC, por forma a desencadear uma situação de litisconsórcio sucessivo, apenas se justificando a intervenção acessória da seguradora, à luz do mesmo artigo, como auxiliar da alegada ré/lesante, com vista a uma futura acção de regresso contra a mesma, e por forma a ser indemnizada pelos prejuízos que venha a sofrer com a perda da demanda.
Já outros defendem que, para apurar se a seguradora tem, em relação ao objecto da causa, uma posição igual à do demandado lesante, e não estando em causa qualquer obrigação em que, por lei ou negócio, se exija a intervenção do segurado e da seguradora, há que ponderar sobre as vinculações decorrentes do contrato de seguro.
É que, o contrato de seguro tem como efeito, a transferência para a seguradora, mediante o pagamento de um prémio, os danos do segurado pela ocorrência de riscos, ou as obrigações do segurado decorrentes de responsabilidade extracontratual em que venha a incorrer perante terceiros, por virtude das actividades definidas no contrato.
No caso de seguro de responsabilidade extracontratual assume relevância o facto de o seguro ser ou não obrigatório.
Assim, na primeira hipótese, o terceiro que for lesado tem, desde logo, uma expectativa relevante e juridicamente protegida, de beneficiar desse direito de crédito e da garantia nele contida embora contratada pelo segurado sem a sua intervenção.
É o caso, por exemplo, da lei do seguro automóvel obrigatório – Decreto-Lei nº 522/85, de 31.12 – que, no seu artigo 29º, nº 1 veio determinar que a acção do lesado será sempre proposta contra a seguradora, estabelecendo, por outro lado, um fundo em benefício dos lesados atingidos, nomeadamente, por situações de falta do seguro obrigatório.
Mas, quando o seguro for facultativo, o terceiro-lesado que sofreu a lesão e exige a responsabilidade do lesante-segurado, poderá receber da seguradora deste a prestação devida pelo lesante. Aqui está em causa um contrato a favor de terceiro, ainda que possa ser designado de impróprio, por não existir aquisição de um crédito autónomo pelo terceiro-lesado.
Defende, por isso, esta segunda corrente que, se o eventual segurado-lesante celebrou um contrato no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário, até determinada quantia, o cumprimento das obrigações daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário é só uma, podendo a mesma ser exigida, por força do contrato, tanto ao segurado como à seguradora (neste sentido cf. José Vasques, Contrato de Seguro, 258 e 259).
Daqui decorre que o terceiro lesado, como ocorre nos autos, sempre teria possibilidade de demandar o alegado lesante e a sua seguradora, em litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32º do CPC.
Sendo esta a orientação que para nós merece acolhimento, resulta evidente a improcedência dos argumentos recursivos agora aqui trazidos pela ré E… S.A.
*
Sumário (cf. art.º663º, nº7 do CPC):
1.A previsão legal do nº3 do art.498º do Código Civil pode ser aplicada mesmo quando a pessoa colectiva em apreço não pode ser responsabilizada penalmente e quando na acção proposta não foram individualizadas as pessoas físicas sobre as quais deve recair a censura pela omissão causadora do acidente e dos danos (tal como foram descritos na petição inicial).
2.Nos casos em que o segurado-lesante celebrou um contrato de seguro (não obrigatório) no qual a seguradora se obrigou a garantir a um terceiro beneficiário até determinada quantia, o cumprimento das obrigações que decorrem daquele, a prestação a exigir pelo beneficiário sendo só uma, pode, no entanto e por força do mesmo contrato, ser exigida, tanto ao segurado como à seguradora, pelo que o terceiro lesado sempre teria possibilidade de demandar o alegado lesante e a sua seguradora, em litisconsórcio voluntário, nos termos do artigo 32º do CPC.
*
III. Decisão:
Pelo exposto, decidem-se do seguinte modo os recursos aqui interpostos:
1º) Procedente o recurso interposto pelo autor B…;
2º) Improcedente o recurso interposto pela ré E…, S.A.
Face ao acabado de referir, revoga-se a decisão recorrida, determinando-se que nos termos sobreditos, seja relegado para a sentença final o conhecimento da excepção peremptória da prescrição.
*
Custas do primeiro recurso pela parte vencida a final e do segundo a cargo da ré E… S.A. (cf. art.º527º, nºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*
Porto, 9 de Novembro de 2017
Carlos Portela
José Manuel de Araújo Barros
Filipe Caroço