Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
362/11.4TJPRT-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CARLOS GIL
Descritores: HERANÇA VAGA EM BENEFÍCIO DO ESTADO
LIQUIDAÇÃO
FASE EXECUTIVA
DISTRIBUIÇÃO
Nº do Documento: RP20180507362/11.4TJPRT-A.P1
Data do Acordão: 05/07/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO (LIVRO DE REGISTOS Nº 674, FLS 210-213)
Área Temática: .
Sumário: I - O processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, previsto no anterior Código de Processo Civil nos artigos 1132º a 1134º e atualmente nos artigos 938º a 940º do vigente Código de Processo Civil, tem duas fases distintas: uma fase declarativa cujo fim precípuo é o da declaração da herança vaga a favor do Estado (artigo 939º, nº 1, do Código de Processo Civil) e uma fase executiva, subsequente à fase declarativa, em que se procede à liquidação da herança (artigo 939º, nº 2, do Código de Processo Civil).
II - O requerimento do Ministério Público em representação do Estado Português em que se pretende que se processe a liquidação da herança já declarada vaga para o Estado Português, entrando o processo na fase executiva depois de ter sido julgada vaga a herança em benefício do Estado não constitui o começo de uma causa, antes constitui o prosseguimento do processo especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado, para a sua fase executiva e por isso não está sujeito a distribuição, correndo nos próprios autos em que foi declarada vaga a herança a favor do Estado.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Proc. nº 362/11.4TJPRT-A.P1

Sumário do acórdão proferido no processo nº 362/11.4TJPRT-A.P1 elaborado pelo seu relator nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil:
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Acordam os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto:

1. Relatório
Em 18 de Fevereiro de 2011, B... e C... intentaram contra o Estado Português, representado pelo Ministério Público, ação declarativa, com processo civil experimental, pedindo que seja reconhecido que são herdeiros testamentários do falecido D....
O Ministério Público contestou a ação e deduziu reconvenção pedindo que seja reconhecida a inexistência de quaisquer outros sucessíveis à herança aberta por óbito de D... e, consequentemente, que se declara a mesma vaga a favor do Estado.
O Ministério Público requereu ainda a intervenção principal provocada de incertos, chamados à sucessão da herança aberta por óbito de D..., para, querendo, contestarem o pedido reconvencional.
Por despacho proferido em 31 de janeiro de 2014, foi admitida a intervenção principal provocada de incertos requerida pelo reconvinte.
Efetuada a citação edital de quaisquer incertos para deduzirem a sua habilitação como sucessores de D..., não houve qualquer intervenção processual.
Entretanto, o Estado Português requereu o arrolamento dos bens da herança de D..., o que foi determinado por despacho proferido em 12 de Fevereiro de 2014.
Após a realização de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença
que julgou a ação procedente e, em consequência, declarou que os autores B... e C... são herdeiros testamentários do falecido D... e julgou improcedente a reconvenção deduzida pelo Estado Português e, em consequência, absolveu os autores-reconvindos e os reconvindos incertos do pedido reconvencional.
Inconformado com a decisão, o Ministério Público interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.
Tal recurso foi julgado procedente e, em consequência, por acórdão proferido em 16 de Maio de 2017, foi revogada a sentença recorrida, substituindo-se a decisão recorrida por outra que julgou a ação improcedente e julgou a reconvenção procedente, declarando que os autores B... e C... não são herdeiros testamentários do falecido D..., “cuja herança se declara vaga a favor do Estado”.
Os autores interpuseram recurso de revista deste acórdão para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual foi julgado improcedente, sendo assim confirmada a decisão do Tribunal da Relação.
Transitado em julgado o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, baixaram os autos à primeira instância e em 07 de fevereiro de 2018, com referência ao processo nº 362/11.4TJPRT, da Unidade Central da Comarca do Porto, área cível, J7, a Digna Magistrada do Ministério Público requereu a junção do seguinte requerimento:
1.º
Por acórdão do Tribunal da Relação do Porto (cf. fls. 1262 a 1267), confirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça (cf. fls. 1343 a 1362) e transitado em julgado, foi a reconvenção deduzida nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado Português julgada procedente “declarando-se que os autores B... e C... não são herdeiros testamentários do falecido D..., cuja herança se declara vaga a favor do Estado”.
2.º
Sendo certo que nos presentes autos houve já arrolamento de bens da herança (cf. requerimento de fls. 711 ss. e despacho de fls. 722), importa, pois, proceder à liquidação da herança aberta por óbito de D..., nos termos do art. 939.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
2.º
Os bens que constituem tal herança são os seguintes:
1. Prédio urbano composto por uma habitação no 1.º andar direito traseiras, com entrada pelo n.º ... da Rua ..., no Porto, inscrito sob o art. 6612, fração B, na matriz predial urbana da freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto sob o n.º 68/19861030-B da referida freguesia, cujo valor matricial protesta indicar.
2. Crédito no montante de € 27.594,07 indevidamente levantado da conta n.º .......-...-... do Banco E... por F... (cf. doc. n.º 11 junto com a petição inicial).
3. Bens móveis (cf. doc. 2 junto com a p.i. – fls. 27 e 28):
- Dois guarda fatos ………………..€ 20,00
- Uma cama de casal ……………. € 25,00
- Duas mesas de cabeceira …….. € 15,00
- Duas cómodas ………………….. € 40,00
- Um pechiché …………………….. € 20,00
- Uma cristaleira ………………….. € 10,00
- Um bengaleiro ………………….. € 10,00
- Uma cómoda pequena ………… € 15,00
- Uma mesa de sala ……………… € 15,00
- Nove cadeiras diversas ………… € 45,00
- Um sofá (terno) …………………. € 100,00
- Dois relógios de sala …………... € 75,00
- Uma televisão …………………… € 30,00
- Uma máquina de lavar roupa …. € 40,00
- Um frigorífico …………………….. € 20,00
- Um fogão a gás …………………. € 20,00
Termos em que se requer o prosseguimento dos autos para liquidação da herança declarada vaga para o Estado, procedendo-se à citação de credores nos termos do disposto no art. 940.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
Em 19 de Fevereiro de 2018, foi proferido o seguinte despacho[1]:
A instância encontra-se finda, nos termos do disposto no art. 277.º, al. a) do C.P.C., configurando o requerimento que antecede o começo de uma nova causa, de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, prevista e regulada no art. 938.º e segs. do C.P.C., pelo
que deve o mesmo ser autuado por apenso, o que se determina.
Em 22 de fevereiro de 2018, já no apenso 362/11.4TJPRT-A, foi proferido o seguinte despacho[2]:
Resulta do disposto no art. 206.º, n.º 1, al. a) do C.P.C. que estão sujeitos a distribuição na 1.ª instância os atos processuais que importem começo de causa, salvo se esta depender de outra já distribuída, explicitando o n.º 2 do referido normativo que as causas que por lei ou por despacho devam considerar-se dependentes de outras são apensadas àquelas de que dependam.
A presente ação configura o começo de uma nova causa, de liquidação de herança vaga em benefício do estado, a qual não depende de outra já distribuída, pelo que está sujeita a distribuição.
Porque assim, instrua a presente ação com certidão do documento n.º 11 junto com a petição inicial apresentada no processo n.º 362/11.4TJPRT, bem como de fls. 711 e segs., 722, 1262 a 1267, 1343 a 1362 do mesmo processo, e remeta a mesma à distribuição, nos termos do n.º 1 do citado art. 206.º.
Em 09 de março de 2018, inconformada com as duas decisões que antecedem, a Digna Magistrada do Ministério Público interpôs recurso de apelação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1.ª No âmbito do processo principal foi admitido o seguinte pedido reconvencional formulado pelo Ministério Público: “Ser reconhecida a inexistência de quaisquer outros sucessíveis à herança aberta por óbito de D... e, consequentemente, declarar-se a mesma vaga a favor do Estado”
2.ª No decurso do processo foram realizados os atos processuais próprios do processo de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, nomeadamente a citação dos interessados incertos (art. 938.º do CPC), bem como arrolamento dos bens da herança;
3.ª Por decisão de Tribunal da Relação do Porto, transitada em julgado, foi a herança em causa declarada vaga a favor do Estado;
4.ª O processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado é composto por duas fases distintas e subsequentes: uma, primeira, de natureza declarativa, que culmina com a declaração de herança vaga a favor do Estado, e outra, segunda, de natureza executiva, tendo por finalidade a liquidação da herança;
5.º O despacho proferido no processo principal (ref.ª 389759171) e o despacho proferido no apenso A (ref.ª 389889854), ao determinarem a autuação por apenso do requerimento de liquidação e, de seguida, a sua remessa à distribuição, formam uma única decisão que visa separar definitivamente a liquidação da declaração de herança vaga já proferida nos autos, o que viola o caso julgado (decisão constante do acórdão do Tribunal da Relação do Porto) e a lei, nomeadamente o art. 939.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Não foram oferecidas contra-alegações.
Atenta a natureza estritamente jurídica das questões decidendas e a sua relativa simplicidade, com o acordo dos restantes membros do coletivo, dispensaram-se os vistos, cumprindo apreciar e decidir.
2. Questões a decidir tendo em conta o objeto do recurso delimitado pela recorrente nas conclusões das suas alegações (artigos 635º, nºs 3 e 4 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, na redação aplicável a estes autos), por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3º, nº 3, do Código de Processo Civil
As questões a decidir são a de saber se deve ser autuado por apenso e remetido à distribuição requerimento para liquidação de herança declarada vaga para o Estado Português, quando, em sede reconvencional, foi já proferida decisão nos autos de que estes foram extraídos a declarar vaga para o Estado Português a herança cuja liquidação ora se peticiona.
3. Fundamentos de facto
Os fundamentos de facto necessários para a dilucidação das questões decidendas constam do relatório deste acórdão e resultam destes autos bem como do processo principal apenso, não se reproduzindo por evidentes razões de economia processual.
4. Fundamentos de direito
Deve ser autuado por apenso e remetido à distribuição requerimento para liquidação de herança declarada vaga para o Estado Português, quando, nos autos de que estes foram extraídos, foi já proferida em sede reconvencional decisão a declarar vaga para o Estado Português a herança cuja liquidação ora se peticiona?
O recorrente pugna pela revogação das decisões recorridas afirmando que as mesmas violam o caso julgado já formado nos autos, pois que o requerimento cuja autuação foi determinada por apenso e que se pretende seja objeto de distribuição, a pretexto de constituir o início de uma nova causa, corresponde apenas à fase executiva do processo especial de liquidação de herança em benefício do Estado.
Cumpre apreciar e decidir.
O processo especial de liquidação da herança vaga em benefício do Estado, previsto no anterior Código de Processo Civil nos artigos 1132º a 1134º e atualmente nos artigos 938º a 940º do vigente Código de Processo Civil, tem duas fases distintas: uma fase declarativa cujo fim precípuo é o da declaração da herança vaga a favor do Estado (artigo 939º, nº 1, do Código de Processo Civil) e uma fase executiva, subsequente à fase declarativa, em que se procede à liquidação da herança (artigo 939º, nº 2, do Código de Processo Civil)[3].
A fase executiva segue-se à fase declarativa, nos mesmos autos, apenas sendo necessário instaurar outras ações para cobrança de dívidas ativas da herança declarada vaga (artigo 939º, nº 3, do Código de Processo Civil).
A circunstância da liquidação da herança poder implicar a venda de bens (veja-se que os fundos públicos e os bens imóveis apenas são vendidos quando o produto dos outros bens não chegue para o pagamento das dívidas), não implica a necessidade de instauração de ação executiva para o efeito, devendo ter-se em atenção que por força do disposto no nº 2, do artigo 549º do Código de Processo Civil, essa diligência se processa neste processo especial pelas formas estabelecidas para o processo de execução, sendo os credores da herança citados nos termos previstos no nº 1, do artigo 940º, do Código de Processo Civil, incumbindo ao oficial de justiça a prática dos atos que, no âmbito do processo executivo, são da competência do agente de execução.
Nos termos do disposto na alínea a), do nº 1, do artigo 206º do Código de Processo Civil, estão sujeitos a distribuição na primeira instância os atos processuais que importem começo de causa, salvo se esta depender de outra já distribuída.
O requerimento oferecido pelo Ministério Público em 07 de fevereiro de 2008 é um ato processual que importa o começo de uma causa?
É ostensivo que não tem essa natureza, visando apenas o prosseguimento da pretensão reconvencional admitida nos autos e julgada procedente, pretendendo que se processe a liquidação da herança já declarada vaga para o Estado Português, entrando o processo na fase executiva depois de ter sido julgada procedente a pretensão reconvencional na fase declarativa.
Neste contexto processual, trata-se da continuação do processo especial de liquidação de herança vaga a favor do Estado, cuja cumulação com o processo experimental foi admitida ao ser admitida a reconvenção deduzida pelo Estado.
Neste momento, há que respeitar o caso julgado formado e dar seguimento, nos próprios autos, ao requerimento do Estado Português no sentido de se proceder à liquidação dos bens da herança declarada vaga a favor do Estado.
Por isso, ao contrário do que se decidiu no despacho proferido em 19 de fevereiro de 2018, a instância não está finda, já que ainda não se atingiu o desiderato último do processo especial de liquidação de herança vaga a favor do Estado, devendo a liquidação requerida pelo Ministério Público prosseguir nos próprios autos, tal como previsto no nº 2, do artigo 939º, do Código de Processo Civil.
Assim, devem ser revogados os despachos proferidos em 19 e 22 de fevereiro de 2018, devendo o expediente que foi mandado autuar por apenso ser incorporado no processo a que pertence (processo nº 362/11.4TJPRT), ficando sem efeito a ordem de distribuição indevidamente determinada, porque não está em causa um papel que dê início a uma causa.
Sem custas, atenta a isenção do recorrente e a inexistência de oposição (artigo 527º, nº 1, do Código de Processo Civil e 4º, nº 1, alínea a), do Regulamento das Custas Processuais)[4].
5. Dispositivo
Pelo exposto, os juízes abaixo-assinados da quinta secção, cível, do Tribunal da Relação do Porto acordam em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelo Estado Português e, em consequência revogam-se os despachos proferidos em 19 e 22 de fevereiro de 2018, devendo o expediente que foi mandado autuar por apenso ser incorporado no processo a que pertence (processo nº 362/11.4TJPRT), ficando sem efeito a distribuição judicialmente determinada.
Sem custas.
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O presente acórdão compõe-se de sete páginas e foi elaborado em processador de texto pelo primeiro signatário.

Porto, 07 de maio de 2018
Carlos Gil
Carlos Querido
Correia Pinto
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[1] Não notificado ao Ministério Público.
[2] Notificado ao Ministério Público em 23 de Fevereiro de 2018.
[3] Além destas duas fases, também tem na fase declarativa um “enxerto” cautelar, nos termos previstos no nº 1, do artigo 938º do Código de Processo Civil. Na jurisprudência, referem-se a estas duas fases o acórdão da Relação de Coimbra de 23 de abril de 2013, relatado pelo então Juiz Desembargador Artur Dias, no processo nº 1060/09.4TBFIG-A.C1 e o acórdão da Relação do Porto de 12 de outubro de 2017, relatado pelo Juiz Desembargador Carlos Portela, no processo nº 1117/15.2T8VNG.P1, decisões acessíveis na base de dados da DGSI.
[4] Sobre a problemática das custas no processo especial de liquidação de herança vaga em benefício do Estado veja-se o parecer do Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República de 29 de março de 2007, com o nº convencional PGRP00002864, relatado pelo Sr. Procurador-Geral-Adjunto Fernando Bento, acessível na base de dados da DGSI.