Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
7444/10.8TBVNG.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO DIOGO RODRIGUES
Descritores: EFEITOS DO CASO JULGADO
Nº do Documento: RP202207137444/10.8TBVNG.P1
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ANULADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: Tendo-se julgado provado, na sentença objeto de liquidação, que a colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno expropriadas, e não apenas nalguma ou nalgumas delas, e tendo-se relegado para momento ulterior a determinação do montante indemnizatório decorrente desse impacto sobre as ditas parcelas, não se pode concluir depois, no âmbito do incidente de liquidação, que a colocação das ditas linhas não teve qualquer impacto visual numa das parcelas em questão.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 7444/10.8TBVNG.P1
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Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto,

I- Relatório
1- AA, deduziu o presente incidente de liquidação de sentença contra a E..., S.A, pedindo que esta sociedade seja condenada a pagar-lhe a quantia de 186.056,00€, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a ocupação efetiva/início da constituição da servidão, até efetivo e integral pagamento.
Alega, para tanto, e em síntese, que, por sentença proferida nestes autos, foi a Ré condenada a pagar-lhe “o montante indemnizatório que se vier a liquidar em sede de execução de sentença e relativo ao impacto visual resultante da implantação da linha de alta tensão sobre as (…) parcelas” expropriadas, o que já é possível determinar, em face das considerações tecidas no relatório pericial que encomendou para o efeito e que dá por reproduzido, no qual se chegou ao valor peticionado.
2- Contestou a Ré, rejeitando o referido pedido, porquanto, em resumo, o relatório apresentado pelo A. peca pela ausência de critérios científicos e matemáticos que confiram um cálculo justo e objetivo à alegada desvalorização patrimonial das parcelas expropriadas, motivada pelo impacto visual resultante da linha elétrica já referida.
3- Terminados os articulados, foi, entre o mais, dispensada a audiência prévia, fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
4- Subsequentemente, foi ainda realizada pericial colegial, tendo o respetivo relatório sido junto aos autos.
5- Realizada a audiência final, foi proferida sentença na qual se decidiu “julgar o presente incidente de liquidação parcialmente procedente, por parcialmente provado, e, em consequência, fixar na importância de € 27.578,46, (vinte e sete mil, quinhentos e setenta e oito euros e quarenta e seis cêntimos), a atualizar, desde 1 de junho de 2007, de acordo com a evolução do indicie de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação daquelas parcelas, o valor da indemnização cuja liquidação foi relegada para momento ulterior, a pagar pela Requerida E..., S.A ao requerente AA”.
6- Inconformado com esta decisão, dela recorre o A., terminando a sua motivação de recurso com as seguintes conclusões:
“I. A Ré foi condenada a pagar ao requerente “o montante indemnizatório que se vier a liquidar em sede de execução de sentença e relativo ao impacto visual resultante da implantação da linha de alta tensão sobre as ditas parcelas, resultando dos factos provados dessa decisão, no ponto 24 que “A colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afectadas, em percentagem que não foi possível em concreto apurar.”
II. “O incidente de liquidação não pode culminar na negação de um direito anteriormente firmado por sentença. Sendo que, neste domínio, a única questão em aberto é a da medida da liquidação e nunca a existência do direito respectivo.” Ac STJ de 16/12/2021, pois constitui caso julgado formal (art. 620º do CPC).
III. A autoridade de caso julgado impede que a avaliação qualitativa do impacto visual, antes apreciada em decisão transitada em julgado, possa ser de novo submetida, em sede de liquidação, ao conhecimento do tribunal, estando os peritos nomeados no incidente de liquidação vinculados à autoridade de caso julgado formado com o trânsito em julgado da anterior sentença, não podendo discutir de novo questão que haja sido conhecida em processo anterior.
IV. Já foi fixada a avaliação qualitativa que determinou o impacto visual de todas as parcelas, conforme se constata do Relatório Pericial elaborado pelo especialista BB, em fls.441 a 443, onde se estabelece relativamente ao Impacto Visual a seguinte classificação:
A. Parcela 1 - Impacto Visual: Reduzido | Desvalorização: 10%
B. Parcela 2 - Impacto Visual: Médio | Desvalorização: 10% a 30%
C. Parcela 3 (A) - Impacto Visual: Elevado | Desvalorização: 30% a 50%
D. Parcela 3 (B) - Impacto Visual: Elevado | Desvalorização: 30% a 50%
E. Parcela 4 - Impacto Visual: Elevado | Desvalorização: 30% a 50%
F. Parcela 5 - Impacto Visual: Elevado | Desvalorização: 30% a 50%
V. O efeito positivo impõe a primeira decisão como a base, um pressuposto indiscutível da liquidação em execução de sentença.
VI. Servindo de base ao presente incidente de liquidação para determinar (quantificar), tornar liquido, o montante indemnizatório do impacto visual resultante da implantação da linha de alta tensão sobre as ditas parcelas.
VII. Pelo que o Relatório Pericial apresentado pelo laudo maioritário enferma à partida de erro nos pressupostos de interpretação e determinação do objecto da perícia, devendo orientar a sua quantificação dentro do espectro já determinado, ou seja, de 10% para reduzido, de 10% a 30% para médio e de 30% a 50% para elevado.
VIII. O laudo maioritário, constrói toda uma nova avaliação qualitativa do impacto ambiental nas parcelas, decidindo que,
Parcela 1: não possui depreciação;
Parcela 2: 12,54% de € 39.100,00: € 4.903,14;
Parcela 3 (A): 12,54% de € 141.702,00: € 17.769,43;
Parcela 3 (B): 12,54% de € 9.339,00: € 1.171,11;
Parcela 4: 12,54% de € 12.375,00: € 1.551,82;
Parcela 5: 12,54% de € 17.408,00: € 2.182,96.
IX. O Tribunal a quo, não pode socorrer-se do laudo maioritário, tendo a obrigação de recorrer a outros critérios de forma a alcançar o montante justo para indemnizar o expropriado pela depreciação resultante do impacto visual nas parcelas, designadamente por no processo contarem outros elementos de prova que impunham solução diversa, adoptando um dos critérios de quantificação ou determinando que os senhores peritos deveriam balizar a sua avaliação quantitativa dentro dos critérios qualitativos já determinados.
X. Assim, com o devido respeito, merece reparo aquela decisão do Tribunal a quo, pois não só viola o caso julgado ao determinar a não depreciação da parcela n.º1, bem como, ao determinar percentagens de desvalorização em parâmetros distintos dos fixados em anterior sentença (função negativa).
XI. A decisão do tribunal a quo viola a autoridade de caso julgado formal (função positiva), pois também os Senhores Peritos estavam vinculados à autoridade de caso julgado formal, estando-lhe vedada a realização de uma nova avaliação quantitativa da depreciação por impacto visual causado nas parcelas,
XII. De acordo com as disposições legais aplicáveis, a parcela expropriada deverá ser avaliada atendendo ao “valor real e corrente do bem de acordo com o seu destino efectivo ou possível numa utilização económica normal, à data da publicação da declaração de utilidade pública, tendo em consideração as circunstâncias e condições de facto existentes naquela data” – cfr, art. 23º do Código das Expropriações (CE).
XIII. Compete, à entidade expropriante e demais intervenientes no procedimento e no processo expropriativos, prosseguir o interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos expropriados e demais interessados, observando, nomeadamente, os princípios da legalidade, justiça, igualdade, proporcionalidade, imparcialidade e boa fé.
XIV. Sucede que, o laudo maioritário, como se referiu supra, baseia-se em pressupostos errados face às realidades existentes e já fixadas em sentença anterior.
XV. O laudo maioritário impõe um estudo baseado na recolha de informação produzida a montante (sem aplicabilidade à concreta situação dos presentes autos) e reclassificam todas as parcelas com um Impacto Visual reduzido, mesmo estando fixado, como já se referiu, que o Impacto Visual Reduzido na Parcela 1, Médio na parcela 2 e Elevado nas restantes parcelas, não podem agora os senhores peritos
XVI. Objetivamente, já foi apreciada e fixada pelo Tribunal, a seguinte matéria:
- O valor do metro quadrado a pagar pelos terrenos, determinada em sede da primeira decisão, que servirá de base cálculo em sede de liquidação,
- A Classificação do Impacto Visual como Reduzido (10%) na Parcela 1, Médio na parcela 2 (10% a 30%) e Elevado nas restantes parcelas 30% a 50%).
XVII. Pelo que aos peritos subsistia apenas a simples tarefa de atribuição quantitativa à classificação qualitativa já determinada, e não reclassificar ou excluir parte dos bens ou matéria apurada a montante, dos autos.
XVIII. A metodologia adoptada é desadequada ao propósito da perícia, antes de mais porque que recalcula parâmetros desnecessários e para os quais não tem competência técnica, como aliás reconhecem no seu relatório.
XIX. Os senhores peritos adaptam de forma grosseira, a realidade de um parque Eólico em envolvente florestal, a linhas de alta Tensão em núcleo urbano, num modelo que estuda a diluição de uma infraestrutura a uma escala de bacia, vale, encosta, submetida à vista do utilizador da paisagem desinteressado. Logo, a acrescer ao supra mencionado a escolha dos descritores esta desadequada.
XX. Por sua vez, o laudo do perito do expropriado é fundamentado na metodologia anterior aportada pelo perito especialista BB, não obstante considerar quociente distintos de desvalorização é proporcionalmente o que mais se aproxima dessa avaliação quantitativa, devendo ser aplicada a sua fórmula de cálculo.
XXI. Tal formula revela-se ajustada aos parâmetros fixados anteriormente:
A. parcelas 3 – desvalorização de 50%,
B. parcelas 4 (A e B) – desvalorização de 50%,
C. parcelas 5 – desvalorização de 50%.
XXII. Reconhecendo-se que deve ser reajustada ao limite máximo na A. parcela 1 – desvalorização de 10% em vez de 15%,
B. parcela 2 – desvalorização de 30% em vez de 45%.
XXIII. Em consequência deve a matéria de facto dada como provada nos pontos 3 a 7. ser alterada pois os factos foram julgados incorretamente como provados,
XXIV. Devendo a indemnização a atribuir ao expropriado pela desvalorização por impacto visual das parcelas, ser balizada pelas percentagens definidas no laudo pericial do especialista BB, nos termos do artigo 662.º do CPC.
XXV. Adoptando-se a avaliação quantitativa do laudo pericial do perito do expropriante, devidamente reajustado nos termos supra, por ser o único que se coaduna e tem aplicabilidade no incidente de liquidação, mais que não seja por recurso a juízo de equidade.
XXVI. Por último, a forma o tribunal a quo aborda a fixação do impacto visual e subsequente indemnização é, com o devido respeito, extremamente redutora, abstraindo do essencial já determinado, violando o princípio da justa indemnização, igualdade e proporcionalidade.
XXVII. Pelo que não obstante a bondade da fundamentação proferida pela Mª Juiza a quo, há muito foram abolidos os condicionalismos no cálculo da indemnização no processo expropriativo, devendo o expropriado receber aquilo que conseguiria obter pelos seus bens se não tivesse havido expropriação.
XXVIII. Pelo que a douta sentença viola o disposto nos artigos 358.º n.º2, 361.º, 607. n.º2, 609.º, 619.º, 620.º, 625., todos do Código de Processo Civil, bem como os artigos 2.º, 8.º, 23.º, 24.º do Código das Expropriações e artigo 62.ºn.º2 da CRP”.
Termina pedindo que se julgue procedente o presente recurso e que, alterando a referida matéria de facto, se altere a sentença recorrida, atribuindo “uma depreciação por impacto visual, a todas as parcelas, dentro dos intervalos definidos no laudo do perito especialista BB, adotando-se o laudo do perito do expropriado (devidamente adaptado como supra se explicou), por ser o que mais se adequa ao conceito da justa indemnização, e se outra causa não houvesse, sempre deve adoptado por recurso a juízo de equidade. Se assim não se entender, o que não se concede, sempre deve o processo regressar à primeira devendo ser ordenada nova perícia”.
7- Respondeu a Ré pugnando pela confirmação do julgado.
8- Recebido o recurso e preparada a deliberação, importa tomá-la.
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II- Mérito do recurso
1- Definição do seu objeto
O objeto dos recursos, em regra e ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente [artigos 608.º, n.º 2, “in fine”, 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 2, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC)].
Assim, aplicando este critério ao caso em apreço, verifica-se que o presente recurso se cinge a saber se:
a) Deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto;
b) E, qual o valor da indemnização a atribuir ao Apelante, pelo impacto visual resultante da implantação das linhas elétricas de alta tensão sobre as parcelas expropriadas.
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2- Fundamentação
A- Na sentença recorrida julgaram-se provados os seguintes factos:
1. Por sentença proferida a 14 de novembro de 2016, nos autos de expropriação que correm termos sob o n.º 7444/10.8TBVNG, já transitada em julgado foi determinado:
“a) fixo o valor da indemnização, a pagar pela recorrida, E..., S.A., ao recorrente, AA, relativa à constituição de servidões levada a cabo pela primeira nas supra identificadas parcelas 1, 2, 3, 4 e 5, pertença do segundo, no montante global de € 35.323,90 (trinta e cinco mil trezentos e vinte e três euros e noventa cêntimos), a atualizar, desde 1 de junho de 2007, de acordo com a evolução do índice de preços no consumidor, com exclusão da habitação, publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente ao local da situação daquelas parcelas;
b) mais condeno a recorrida ao recorrente o montante indemnizatório que se vier a liquidar em sede de execução de sentença e relativo ao impacto visual resultante da implantação da linha elétrica de alta tensão sobre as ditas parcelas.”
2. No âmbito da sentença referida em 1., foi dado como provado no facto n.º 24 que “a colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas, em percentagem que não foi possível em concreto apurar”.
3. A colocação das linhas de alta tensão não teve impacto visual na parcela n.º1, (servidão abrange uma área de 4 641 m2, afetando parte do prédio denominado “...”, com a área global de cerca de 3,4 hectares, sito na freguesia ..., Vila Nova de Gaia, inscrito na matriz sob o art.º ...; que a área da parcela em causa tinha uma ocupação florestal; que, de acordo com o P.D.M. de Vila Nova de Gaia, enquadra-se em área de transição e área não urbana de transformação condicionada; que se verifica uma tendência de evolução do dito prédio, para uso industrial; e que o prédio não tem acesso direito à via pública).
4. A colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual na parcela n.º 2, (a servidão incidente sobre a parcela n.º 2 abrange cerca de 98 m2 de um prédio denominado “...”, com a área global de 782 m2, sito na freguesia ..., concelho de Espinho, inscrito na matriz sob o art.º ...; o P.D.M. de Espinho insere este prédio em espaço urbano dominante; e é marginado por via pública pavimentada e passeios, com rede de energia elétrica, água e saneamento, linha telefónica e iluminação), em percentagem que se fixa em 12,54 %.
5. A colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual na parcela n.º 3 (A e B), (a área total do prédio é de 4.699 m2, sendo composta de 4 416 m2 do lado nascente e de 283 m2 do lado poente; a servidão constituída sobre o prédio incidiu sobre 1 176 m2 da subparcela A e sobre 79 m2 da subparcela B; o P.D.M. de Espinho inclui o mesmo prédio em espaço urbano dominante; as subparcelas identificadas são marginadas por via pública pavimentada, com saneamento, rede de energia elétrica, iluminação pública e linha telefónica), em percentagem que se fixa em 12,54 %.
6. A colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual na parcela n.º 4, (abrange cerca de 65 m2 de um prédio denominado “...”, com a área global de 374 m2, sito em ..., Espinho, inscrito na matriz sob o art.º ...; de acordo com o P.D.M. de Espinho, a parcela n.º 4 insere-se em espaço urbano dominante; e não tem acesso direto à via pública) em percentagem que se fixa em 12,54 %.
7. A colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual na parcela n.º 5, (abrange cerca de 144 m2 de um prédio denominado “...”, com a área global de 1.055 m2, sito em ..., Espinho, inscrito na matriz sob o art.º ...), em percentagem que se fixa em 12,54 %.
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B- Na mesma sentença não se julgaram provados os factos seguintes:
1. No caso especifico da parcela n.º 1, atendendo ao seu cariz florestal ou potencial de edificação industrial a mesma fica limitada sobretudo na construção em altura devendo neste caso a desvalorização do seu potencial ser afetada em 15%.
2. No caso das parcelas n.º 2, 3A, 3B, 4 e 5 tendo presente o seu potencial edificativo, a afetação visual do traçado nas parcelas, mas igualmente a sua a reconfiguração, acessibilidade e potencial de edificação e demais condicionantes anteriormente referidas aplicar uma desvalorização do seu potencial afetando-as em 45% no caso da parcela n.º 2 e 50% no caso das restantes parcelas.
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C- Análise dos fundamentos do recurso
Como vimos, começa por nele estar em causa a questão de saber se deve haver lugar à requerida modificação da matéria de facto. Mais concretamente, se os pontos 3 a 7 (inclusive) dos Factos Provados, devem contemplar as percentagens de desvalorização decorrente do impacto visual da instalação das linhas elétricas de alta tensão nas parcelas expropriadas, indicadas pelo Apelante, ou se, pelo contrário, se devem manter os resultados que aí constam. Isto, sendo certo que as ditas percentagens só foram fixadas em relação às parcelas n.ºs 2, 3, 4 e 5, e não quanto à parcela n.º 1, em relação à qual se considerou na sentença recorrida que não havia qualquer desvalorização decorrente daquele impacto.
Ora, é justamente por causa desta última conclusão e por se terem considerado, em relação às demais parcelas, percentagens de desvalorização diversas das que foram adotadas no laudo pericial especificamente elaborado (na fase anterior) para determinar o referido impacto, que o Apelante reage. Mais concretamente, refere o Apelante que tendo nesse laudo sido fixada uma desvalorização de 10% para a parcela n.º 1, 10% a 30%, para a parcela n.º 2 e 30% a 50%, para as demais parcelas (fls. 443), não mais estes parâmetros poderiam ser desconsiderados, como se fez, no fundo, no laudo maioritário, elaborado neste incidente, e na sentença recorrida. Isto porque, a seu ver, essas referências são vinculantes quer para os peritos, quer para o Tribunal, visto que sobre elas recaiu sentença já transitada em julgado, ou seja, a sentença que, agora, está a ser objeto desta liquidação e, nessa medida, tinham de ser respeitadas neste incidente.
Mas, não é assim.
Com efeito, em parte alguma dessa sentença se refere que o aludido impacto visual teve semelhante expressão percentual.
Pelo contrário, o que nela se afirmou e se julgou provado é que esse impacto teve uma dimensão que não foi possível em concreto apurar. Mais especificamente, julgou-se demonstrado na sentença objeto desta liquidação que “[a] colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas, em percentagem que não foi possível em concreto apurar” (ponto 24 dos Factos Provados). E, por isso mesmo, aliás, é que se relegou para momento ulterior a liquidação do montante indemnizatório correspondente.
Como tal, deste ponto de vista, não há qualquer ofensa do caso julgado.
Mas, há, sob outro ponto de vista.
Na verdade, tendo sido julgado provado, como vimos, que “a colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas”, e não apenas nalguma ou nalgumas delas, não se pode concluir depois, como se concluiu na sentença recorrida, que a colocação das ditas linhas “não teve impacto visual na parcela n.º1”.
Não ignoramos, com isto, que foi esse o resultado do laudo pericial maioritário. Mas, nem esse laudo podia partir de um pressuposto de facto contrário ao já estabelecido na sentença que está a ser objeto desta liquidação (já transitada em julgado), nem sobretudo a sentença recorrida podia ter sancionado semelhante resultado.
É que, como resulta do disposto no artigo 619.º, n.º 1, do CPC, “[t]ransitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 792.º”. Isto é, como ensinava Manuel Andrade[1], “[o] caso julgado material (ou interno) vincula e obriga não só dentro mas também fora do processo em que foi proferida a respectiva decisão, impedindo uma nova e diversa apreciação – no mesmo ou em novo processo – da relação ou situação jurídica concreta sobre que ela versou (imutabilidade substancial)…”.
A regra, portanto, é a de que as decisões judiciais, transitadas em julgado, são imutáveis e vinculantes. São imutáveis porque a situação jurídica substantiva por elas definida não mais pode ser jurisdicionalmente reapreciada[2]. A exceção do caso julgado, prevista e caracterizada nos artigos 576.º, n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º, do CPC, tem, justamente, esse efeito. É o chamado efeito negativo ou impeditivo. E, por outro lado, as ditas decisões são também vinculantes, na medida em que, devido ao seu caracter impositivo, se tornam obrigatórias, nomeadamente para os tribunais, funcionando como condicionantes para a apreciação de outros objetos processuais em ações judiciais subsequentes. É o chamado efeito positivo ou vinculativo[3]/[4].
Ora, na sentença recorrida, a nosso ver e pelas razões já apontadas, não se respeitaram estes efeitos.
É verdade que na parte decisória da sentença liquidanda não se discriminam as parcelas afetadas pelo impacto visual em análise neste incidente. Mas é justamente por isso e porque na fundamentação dessa sentença já se tinha julgado provado, como vimos, que “[a] colocação das linhas de alta tensão teve impacto visual nas parcelas de terreno afetadas”, sem qualquer distinção entre elas, que não se pode, depois, introduzir essa distinção, afirmando que só apenas em quatro delas é houve desvalorização pelo apontado motivo e não numa delas.
A nosso ver, a letra da dita sentença não o consente. Nem na parte decisória, nem na fundamentação. E, como se refere Ac. do STJ de 03/02/2011[5], “sendo as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo e implicando uma «objectivação» da composição de interesses nelas contida – temos como seguro que se tem de aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº2 -, tem identicamente, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer igualmente para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial)”.
É este, no fundo, o método para determinar a extensão objetiva do caso julgado material e a sua força vinculativa[6].
De modo que, aplicando esse método e conjugando a fundamentação da sentença objeto desta liquidação com o que consta da sua parte decisória, temos como certo, como já adiantámos, que não se pode concluir neste incidente que a colocação das linhas de alta tensão não teve qualquer impacto visual na parcela n.º1.
Pois bem, dito isto, logo se vê que a redação constante do ponto 3 dos Factos Provados não se pode manter como está. Mas também não lhe podemos introduzir diversa redação, quantificando a desvalorização determinada pelo impacto visual decorrente da colocação das linhas de alta tensão na referida parcela, porque a prova produzida, a esse respeito, é insuficiente. Na verdade, só o perito nomeado pelo Apelante quantificou essa desvalorização e, mesmo assim, em percentagem superior àquela que o Apelante defende neste recurso.
De modo que há manifesta necessidade de ampliar a matéria de facto, para determinar essa quantificação. E isso, dada a natureza da matéria em questão, tendo em conta o disposto no artigo 388.º, n.º 1, do Código Civil, não pode deixar de ser antecedido de pronúncia dos peritos nesse sentido; ou seja, no sentido de, partindo do princípio de que a parcela expropriada n.º 1 sofreu, nalguma medida, desvalorização pela colocação das linhas elétricas em questão, quantificarem essa desvalorização. Só depois pode ser tomada posição jurisdicional sobre o assunto.
Em resumo, portanto, a sentença recorrida será anulada com este objetivo, nos termos previstos no artigo 662.º, n.º 1, al. c), do CPC, e o conhecimento dos demais fundamentos deste recurso fica, para já, prejudicado.
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III- Dispositivo
Pelas razões expostas, delibera-se anular a sentença recorrida e determinar que, após a realização de prova pericial, se amplie a matéria de facto, quantificando o coeficiente de desvalorização sofrido pelo impacto visual decorrente da colocação das linhas elétricas de alta tensão na parcela expropriada n.º 1, decidindo-se, depois, em conformidade.
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- Em função deste resultado e porque a Apelada/Expropriante se bateu pela improcedência da ofensa do caso julgado que determinou esta anulação, as custas deste recurso serão pagas por ela própria (Apelada) - artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.

Porto, 13/7/2022
João Diogo Rodrigues
Anabela Miranda
Lina Baptista
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[1] Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra Editora, págs. 138 e 139.
[2] Ressalvada a hipótese de revisão (artigos 696 a 792.º do CPC).
[3] Como defendia Castro Mendes, em “Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil”, citado no Ac. STJ de 19/01/2016, Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt, a “a eficácia do caso julgado – não apenas a fundamentação da respectiva excepção – pode traduzir-se em duas ordens de efeitos: pode impedir a colocação no futuro da questão decidia ou pode impedir a adopção no futuro da solução que a decidiu. Os fenómenos são diferentes e não apenas nos fundamentos - são formas distintas de eficácia do caso julgado. Com efeito, tal eficácia pode consistir num impedimento, proibição de que volte a suscitar-se no futuro a questão decidida - e estamos perante aquilo a que nós chamamos função negativa do caso julgado; ou pode consistir na vinculação a certa solução - e estamos perante a função positiva.”
[4] No mesmo sentido se pronuncia Teixeira de Sousa, quando refere que “A excepção do caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contraria na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção do caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (...), mas também a inviabilidade do Tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (...).Quando vigora como autoridade do caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade do caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva a repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão antecedente (“O objecto da sentença e o caso julgado material”, BMJ 325, pág.171 e segs.) [citação extraída do Ac. RC de 28/09/2010, Processo n.º 392/09.6TBCVL.C1, consultável em www.dgsi.pt].
[5] Proferido no Processo n.º 190-A/1999.E1.S1, consultável em www.dgsi.pt.
[6] Cfr. neste sentido também o Ac. STJ de 19/01/2016, Processo n.º 126/12.8TBPTL.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt