Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
6662/09.6TBVFR.P2
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CORREIA PINTO
Descritores: ACÇÃO POPULAR
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
VÍCIOS
APRECIAÇÃO DA PROVA
CAMINHO PÚBLICO
APROPRIAÇÃO
AUTARQUIA LOCAL
Nº do Documento: RP201611216662/09.6TBVFR.P2
Data do Acordão: 11/21/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º 637, FLS.259-282)
Área Temática: .
Sumário: I - O objeto da ação popular, materializada, em termos de legislação comum, na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, consubstancia-se na defesa de interesses difusos, interesses da comunidade, designadamente o domínio público, aqui se incluindo o reconhecimento de que o outrora caminho depois transformado em estrada é uma via pública.
II - O alheamento do tribunal relativamente ao teor de um documento, não lhe dando a relevância que era devida, não configura omissão de pronúncia geradora de nulidade, mas antes vício na apreciação da prova, suscetível de apreciação a esse título em sede de recurso.
III - Desde que se prove que um caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público, pertencente àquela entidade pública, ou seja, que estamos em presença de um bem dominial possuído pela autarquia, como tal insuscetível de apropriação particular, inalienável e imprescritível, independentemente da sua afetação ao uso direto e imediato do público nada ter de imemorial.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 6662/09.6TBVFR.P2
5.ª Secção (3.ª Cível) do Tribunal da Relação do Porto

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil):
I - O objeto da ação popular, materializada, em termos de legislação comum, na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, consubstancia-se na defesa de interesses difusos, interesses da comunidade, designadamente o domínio público, aqui se incluindo o reconhecimento de que o outrora caminho depois transformado em estrada é uma via pública.
II - O alheamento do tribunal relativamente ao teor de um documento, não lhe dando a relevância que era devida, não configura omissão de pronúncia geradora de nulidade, mas antes vício na apreciação da prova, suscetível de apreciação a esse título em sede de recurso.
III - Desde que se prove que um caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público, pertencente àquela entidade pública, ou seja, que estamos em presença de um bem dominial possuído pela autarquia, como tal insuscetível de apropriação particular, inalienável e imprescritível, independentemente da sua afetação ao uso direto e imediato do público nada ter de imemorial.
Acordam, no Tribunal da Relação do Porto:
I)
Relatório
1. b… e c… intentaram na comarca de Aveiro, instância local de Santa Maria da Feira, a presente ação popular, sob a forma de processo ordinário, contra d…, todos melhor identificados nos autos.
1.1 Os autores alegam que são donos e legítimos proprietários de prédio rústico no lugar de …, freguesia de …, sendo a ré dona de dois prédios contíguos, um urbano e outro rústico; outrora, os prédios que hoje ladeiam a Travessa … do lado do prédio dos autores e um prédio hoje urbano que fica no início da Travessa mas do lado direito, sentido poente/nascente, eram terrenos dos avós da autora; o caminho antigo entre as propriedades desde o lugar de … até atingir o prédio hoje dos autores era estreito e foi aberto pelos referidos antecessores, ficando com uma largura de cerca de 2 metros que dava para passar um carro de bois.
Entretanto, em 1984, a Junta de Freguesia de … quis alargar tal caminho, solicitando aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno, no que foi atendida, tendo o pai da autora, anterior dono do prédio antes mencionado, cedido cerca de 1,5 metros de largura em toda a extensão da sua confinância sul com o referido caminho e a ré cerca de 2 metros do lado oposto defronte à confinância do prédio dos autores; a autarquia realizou obras no caminho, transformando-o em estrada com a largura de 7 metros, reduzida para cerca de 6 metros de largura na parte final do troço, depois do portão de entrada no prédio dos autores, passando nessa estrada, entretanto denominada Travessa de …, quaisquer pessoas para acederem à povoação de …. e outra.
No ano de 1989, essa estrada foi asfaltada e dotada de ramal de energia e iluminação pública, tendo sido novamente asfaltada pela autarquia em 1999, constituindo acesso direto a prédios urbanos e estabelecendo ligação à povoação, sendo considerada tal via pela autarquia local como pública.
A ré, em 2005, espetou espigões em ferro no chão da estrada, concretamente antes de atingir a confrontação com o prédio dos autores, no sentido poente/nascente e colocou um portão fechado com aloquete em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo e os autores de acederem ao seu prédio com qualquer viatura, meio de transporte de bens ou trator para agricultar o terreno, estando forçados a ter o mesmo inculto.
Este comportamento da ré, para além de ser um facto público e notório, foi expressamente participado junto das entidades autárquicas e assunto levado a Assembleia Municipal e sujeito à apreciação da Câmara Municipal; com posições ambíguas, quer a Junta de Freguesia, quer sobretudo a Câmara Municipal, nada fizeram em defesa dos bens do domínio público e da livre circulação de pessoas e bens, para que a ré retire o portão da via pública, o que legitima a intervenção dos autores – invocando estes o disposto no artigo 52.º da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 12.º da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular), conjugados com o artigo 26.º-A do Código de Processo Civil, na redação anterior à Lei n.º 41/2013, de 26 de junho, artigo 31.º na atual redação.
Terminam pedindo que se declare que os autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1.º da petição inicial; se declare que o outrora caminho referido supra depois transformado em estrada, melhor descrito nos itens 13.º a 56.º, é uma via pública; se condene a ré a reconhecer a pública dominialidade dessa via com o nome de Travessa …, a qual se inicia junto ao entroncamento com a rua … e termina junto à entrada da casa da ré, concretamente junto a um espigueiro ali existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de sensivelmente 7 metros; se condene a ré a retirar o portão que colocou nessa via pública, Travessa …, tal como consta das fotos juntas e a que se referem os artigos 59.º a 61.º da petição inicial, deixando a via livre e totalmente desimpedida de obstáculos, bens ou outra qualquer coisa, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e mormente o acesso dos autores ao seu prédio confinante com a via pública.
1.2 A ré contestou, começando por arguir, a título de exceção, a ineptidão da petição inicial (por alegada contradição do pedido com a causa de pedir), bem como a existência de caso julgado (alegando já ter sido o caminho em litígio objeto de outra ação e de procedimento cautelar), em que foram partes os ante possuidores e nas quais sempre referiram tal caminho como de servidão.
Impugnou ainda os factos alegados pelos autores e concluiu que a ação deve ser julgada totalmente improcedente, com a consequente absolvição integral do pedido.
1.3 Os autores apresentaram réplica, defendendo a improcedência das invocadas exceções de ineptidão da petição inicial e de caso julgado.
1.4 Foram citados a Freguesia … e o Município …, nos termos do disposto no artigo 15.º, n.ºs 1 e 2, da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.
O Município … veio declarar não pretender intervir nos autos a título principal nem ser neles representado pelos autores.
Procedeu-se ainda à citação edital dos habitantes de …; nenhum teve intervenção nos autos.
1.5 Proferido despacho saneador, aí se julgaram improcedentes a arguição da ineptidão da petição inicial e a exceção de caso julgado, nos termos de fls. 185 a 192.
Considerando que o estado do processo permitia, sem necessidade de mais provas, a apreciação do mérito da causa, foi proferida sentença, julgando a ação improcedente, por não provada, com a consequente absolvição da ré, por se entender não existirem no articulado inicial factos que permitissem concluir no sentido da demonstração do requisito da imemoriabilidade, na caracterização de caminho público.
Interposto recurso pelos autores, foi o mesmo julgado improcedente pelo Tribunal da Relação do Porto, que confirmou a decisão recorrida (fls. 372); em posterior recurso de revista excecional para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 491 e seguintes), foi proferido acórdão que decidiu “revogar o acórdão recorrido, com a consequente anulação da decisão que ele confirmou, ordenando-se o prosseguimento dos autos, com a seleção dos factos assentes e organização da base instrutória, seguindo-se os demais termos processuais até sentença final”.
No prosseguimento do processo e concluída a produção de prova e a audiência de discussão e julgamento, o tribunal proferiu sentença, terminando com a seguinte decisão:
«Pelo exposto, e ao abrigo das referidas disposições legais, julgo a presente ação provada e nessa medida procedente, e em consequência:
- Declaro que os Autores são donos e legítimos possuidores do prédio identificado em 1.º desta p.i.
- Declaro que o outrora caminho referido depois transformado em estrada, melhor descrito nos itens 13.º a 56.º da p.i., é uma via pública.
- Condeno a Ré a reconhecer a pública dominialidade dessa via com o nome de Travessa …, a qual se inicia junto ao entroncamento com a Rua … e termina junto à entrada da casa da Ré, concretamente junto a um … ali existente, tendo em toda a sua extensão uma largura de sensivelmente 7 metros.
- Condeno a Ré a retirar o portão que colocou nessa via pública, Travessa …, tal como consta das fotos juntas e a que se referem os artigos 59.º a 61.º da p.i., deixando a via livre e totalmente desimpedida de obstáculos, bens ou outra qualquer coisa, permitindo a livre circulação de pessoas e bens e mormente o acesso dos Autores ao seu prédio confinante com a via pública.
Custas (…).»
2.1 A ré, inconformada com a decisão proferida, veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição integral):
«A) Com o devido respeito por outra melhor opinião, a verdade é que se crê, não se está na
presença de uma ação popular com os requisitos determinativos do disposto na Lei 83/95 de 31 de Agosto de 1995.
B) A ser assim, os interesses difusos reclamados, e que justificam tal particular direito de ação popular, seriam os pertencentes a todos os indivíduos, ou pelo menos a um grupo alargado de indivíduos, que se encontram numa situação de contitularidade de um bem decorrente de serem membros de uma mesma comunidade, não sendo assim suscetíveis de apropriação por quaisquer um desses, e até, por natureza, serem indivisíveis.
C) O que se constata, é estar-se perante um já antigo conflito entre vizinhos, e a propósito de um eventual direito de servidão de passagem, repetido já em vários processos judicias e sempre com conclusão desfavorável aos mesmos AA. Recorridos que, tendo refinado a forma de contornar essas já proferidas decisões desfavoráveis e transitadas em julgado, agora, capciosamente, utilizam essa consagrada figura de defesa dos propalados interesses coletivos insuscetíveis de apropriação individual, pretendendo assim formalmente descaracterizar as decisões proferidas;
D) A questão ora colocada como ação popular é precisamente a mesma que os AA. formularam no procedimento cautelar que correu termos no processo n.º 3329/05.8TBVFR que correu termos no anterior 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira.
E) Ora, e salvo o devido respeito por outra melhor opinião, não respeita a ação os determinativos processuais necessários para, na realidade, se estar, materialmente, na presença de uma efetiva ação popular e na defesa de direitos intrinsecamente coletivos, até porque, visível é, pretenderem aceder a um prédio que se arrogam como tendo direito a tal acesso e que seria seu.
F) Com efeito, e desde logo, o pedido dos Recorridos é idêntico aos processos cíveis em que foi pelos Tribunais [Processo n.º 3329/05.8TBVFR, que correu termos no anterior 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Santa Maria da Feira] decidido que os AA. não têm direito a servirem-se do questionado caminho aberto pelos antepassados da Apelante, com efeito, até 1984 sempre utilizaram para agricultarem ou acederem ao prédio um outro caminho, que serviu desde tempos imemoriais diversos prédios rústicos que pertenceram aos seus anteriores donos.
G) Assim é que, de forma a ilidirem essas decisões os AA. Recorridos invocam como fator justificativo os factos alegados que ocorreram em 1984;
H) Porém, e como foi também anteriormente decidido, em face desta circunstância, não estão reunidos os necessários pressupostos, fundando-se “em errada interpretação do Direito aplicável, pois que os autores estavam convencidos que bastava para a caracterização da natureza pública de tal caminho o facto de o mesmo ter sido alargado, arranjado, melhorado e conservado desde 1984 pela respetiva junta de freguesia, a qual até lhe deu um nome toponímico e, assim possibilitou que o público em geral o utilizasse”.
I) Salienta-se entretanto que, e o que também deve ser valorado para esta perceção, a constituição de um caminho público foi levada a efeito pela Junta de Freguesia e que esta, em face dos anteriores proprietários e ante possuidores do prédio dos AA. declararem que jamais permitiriam a citada abertura, obstruindo o local com pedregulhos e vedando até uma pequena passagem que a pé os moradores utilizavam, desistia de prosseguir no local questionado o caminho público que pretendia ligar os lugares … a ….
J) Deve pois assim ser considerado como facto provado, até por o mesmo fazer fé pública, a deliberação da Junta de Freguesia de …, e decisão esta a que os AA. jamais impugnaram e demonstrativa de que no local questionado não existia nem foi levado a cabo um qualquer caminho público, ao invés do que ocorreu até ao início da colocação da questionada cancela;
K) Pois até aí, hoje, o caminho é livre, público, e pode circular por aí quem quiser, pessoas e veículos, coisa distinta é, daí em diante e na faixa de terreno que confina com os AA. pois e compreendendo-se assim as decisões judiciais proferidas, e o aceite pela Junta de Freguesia, os AA., e os seus antepassados não acediam às suas propriedades e, como tal, não podem querer agora, com base numa ação popular ilidir esta factualidade;
L) Seria até um abuso de direito que, quem obstaculizou de facto a constituição de um caminho público, e sendo abundante neste peculiar a prova dos autos, se arrogue unilateral e exclusivamente como pretendendo beneficiar do facto da Junta de Freguesia até ao limite do seu terreno ter aberto um caminho, não deixando de ser objetivamente um benefício indevido e injustificado do manifesto e grave comportamento dos AA. muito longe assim pois da razão de ser da ação popular e justificativo da Apelante desde sempre contra esta qualificação se opor.
M) Ora, é manifestamente abusivo que, quem impediu agora possa dele beneficiar pois, no tocante às obrigações que lhe estavam consignadas os AA. as cerceiam de todas as formas e feitios, mas pretendam reflexamente alegar que essa passagem é pública e, como tal, devem ter por ela acesso, crê-se que não pode existir maior contradição nesta argumentação, e que o Tribunal deve valorar naturalmente.
N) Compreende-se pois assim que, as entidades públicas, nomeadamente a Junta de Freguesia e a Câmara Municipal declarem que não têm qualquer interesse na presente ação, porque esta não tem em causa sequer o respeito por qualquer dominialidade pública, que tenha sido ofendida e de igual modo que, seja quem mais for, excluindo a irmã dos AA. hoje proprietária do terreno confinante a seguir, e pois também assim teoricamente afetada tenham vindo aos AA. aderir a esse pedido formulado.
O) O que está em causa in casu é possibilitar um acesso exclusivo aos AA. e que a ninguém mais importa ou tem interesse o deferimento dessa pretensão.
P) É incontroverso e incontrovertível que os únicos e exclusivos interessados neste processo são os Autores e que nunca se serviram por aí, cfr. de resto decisões judiciais anteriormente proferidas e que não podem deixar de ser tidas em conta.
Q) Ainda também não pode deixar de se referir (não obstante perfilhação distinta do STJ) mas que importa ter presente para a boa apreciação dos factos e decisão, que os AA. na sua matéria factual inequivocamente referem que a utilização dita como em geral desse caminho se reporta quando muito ao ano de 1984, ou seja, não se encontram preenchidos os requisitos exigidos no entendimento da jurisprudência proferida de se estar desde tempos imemoriais no uso direto e imediato do público como entenderam nas decisões anteriores sobre este peculiar.
R) Assim é que, também se não concorda com a douta sentença recorrida, pois não foi correta nem a resposta dada à matéria de facto face à prova produzida nem a aplicação do direito aquela matéria factual apurada e ao pedido e respetiva causa de pedir.
S) A Douta sentença padece de nulidade, nos termos do artigo 615.º do C.P.C., porquanto não indica quais os factos que considerou não provados, numa análise crítica das provas, com indicação das ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, contrariando, pois assim, o disposto no número 4 do artigo 607.º do Código de Processo Civil.
A1) A Exma. Juiz a quo deixou igualmente de pronunciar-se quanto ao documento junto com a contestação como documento n.º 1 (fls. 53) e que depois foi novamente junto aos autos, uma vez que a fotocópia que constava dos autos não era percetível, conforme fls. 114 e 115, correspondente à Ata n.º 03/2005, da Junta de freguesia de …, do dia trinta e um de Março de 2005, e o seu conteúdo era essencial e fundamental para a descoberta da verdade, e que não poderia a Exma. Juiz a quo deixar de apreciar.
B1) Assim sendo, verifica-se a violação do previsto nos artigos 608.º, n.º 2, 615.º, n.º 1, al. d) do CPC, tornando a Douta sentença nula.
C1) Os factos constantes dos pontos 18) (parte final), 27), 31), 32), 35), 36) e 37) dos factos dados como provados foram incorretamente julgados como tal, devendo antes ter sido considerados como não provados.
D1) Entende a Recorrente, atenta a prova produzida em sede de audiência de julgamento, ter sido mal apreciada, tendo ocorrido, salvo respeito devido por melhor opinião, manifesto erro na apreciação da prova e insuficiência para a matéria de facto provada.
E1) A decisão do tribunal recorrido sobre a matéria de facto enferma de incorreta interpretação e apreciação da prova produzida em audiência de julgamento.
F1) A Mª Juiz “a quo” realizou uma errada apreciação da prova, dando como provados e como não provados, factos que nunca o poderiam ser e por isso, contribuíram decisivamente para uma errada decisão.
G1) Entende a Recorrente, que da análise aos depoimentos supra referidos, nunca poderá resultar provado que quaisquer pessoas passavam por aquele caminho pretendendo aceder da povoação … a outra, podendo pela referida via aceder quaisquer veículos automóveis. Nem tão pouco que desde que foi asfaltada e até Abril de 2005, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de Freguesia, que executavam a limpeza em toda a Travessa … (sublinhado nosso), a qual termina junto à entrada da casa da Ré, mais concretamente junto a um Espigueiro ali existente e que com a colocação da cancela impediu a Ré a passagem de qualquer veículo.
H1) Na verdade da análise dos depoimentos ouvidos, entende a recorrente, salvo melhor opinião, que a prova produzida não permitia ao Tribunal a quo considerar como provado tais factos, antes pelo contrário, deveriam ter sido dados como não provados.
I1) Os autores, B… e esposa, intentaram a presente ação como uma ação popular, contra
D….
J1) O interesse a prosseguir deve ser suficientemente difuso e geral para não se identificar com o interesse pessoal do seu agente. Está em causa a prossecução dum interesse público, pois, é a partir da noção de coletividade política que se opera a atribuição do direito de ação popular.
K1) Como características específicas deste direito, podemos apontar ser um direito de ação judicial, de carácter excecional e taxativo, que implica desvio às regras gerais da legitimidade processual, tendo como finalidade a prossecução de interesses públicos e não pessoais, traduzindo-se num elemento de participação ativa dos cidadãos na vida política da coletividade, onde se encontram inseridos.
L1) O ator popular age em nome próprio, mas em defesa de um direito alheio!
M1) Para que os pressupostos da ação popular estivessem verificados, teríamos que estar perante um caminho ou via pública.
N1) Segundo a Doutrina fixada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 19/04/1989, com valor de jurisprudência uniformizada, “são públicos os caminhos que desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”.
O1) Todas as testemunhas (à exceção da Testemunha E…) foram perentórios a referir que aquele caminho era um caminho de servidão, um caminho de bois que só servia os campos e os proprietários, que não fazia ligação com nenhum lugar.
P1) Todas as testemunhas referiram que o caminho de bois ia apenas até à casa da Ré, que servia apenas a sua casa, e que as pessoas podiam fazer ligação com o lugar de Framil, sim, mas apenas a pé e desde que fossem autorizadas pelo Sr. F…, pois tinham que passar por terrenos seus, o que até agora acontece.
Q1) O que existia, e sempre existiu, e ainda existe, era um atravessadouro.
R1) Um atravessadouro não deixa de ser um caminho, embora alternativo e destinado a encurtar distâncias (atalho), ligando, normalmente, caminhos públicos através de prédios particulares, cujo leito faz parte integrante do prédio atravessado.
S1) Constitui, assim, uma serventia pública, não podendo ser confundido com caminho público.
T1) Não pode aquele caminho ser considerado público desde tempos imemoriais.
U1) No ano de 1984 a Junta de Freguesia de … quis alargar tal caminho, com a intenção de toda a população, querendo, aceder à povoação de … e outra.
V1) No entanto, a Junta de Freguesia de … apenas alcatroou o caminho até determinado sítio, nomeadamente até ao local onde foi colocada a cancela pela Ré, e que o restante caminho, desde o local onde se encontra a cancela e a entrada da casa da Ré, foi alcatroado a expensas da Ré e do seu irmão falecido.
W1) O caminho, agora estrada, até ao local onde se encontra a referida cancela, e que foi o construído pela Junta de Freguesia, continua a ser público, não existindo qualquer impedimento na sua passagem.
X1) O que se discute nos autos é o caminho da cancela para cima, para a entrada da casa da Ré, que, como vimos não foi construído pela Junta, logo não é, nem pode ser, caminho público.
Y1) É verdade que esse caminho, o que existe desde a cancela e a entrada da casa da Ré (e que é da sua propriedade) era para ser uma via pública, que fizesse ligação entre duas povoações, mas tal nunca chegou a ocorrer, por oposição do Sr. F…, antigo possuidor.
Z1) De facto, e porque essa ligação nunca se fez, aquele caminho nunca teve saída, logo, sem qualquer utilidade para a generalidade das pessoas, tendo utilidade apenas para os AA. e Ré.
AA) A própria Junta de Freguesia de … reconheceu a perda de interesse público na execução daquele projeto (de ligação entre os dois lugares), autorizando os proprietários a repor os seus prédios no estado inicial, reocupando as parcelas de terreno que naquele pressuposto haviam disponibilizado à autarquia, conforme se consegue verificar por simples leitura da Ata junta com a contestação como documento n.º 1 e que não foi tida em consideração (nem tão pouco se fez referência) na sentença proferida pelo Tribunal a quo.
BB) Ainda que não se considerasse como provado que a Junta de Freguesia só construiu a estrada até à cancela colocada pela Ré (o que não se concebe atento o depoimento das testemunhas E… e G…), a desistência da Junta em estabelecer a ligação entre os dois aludidos lugares ou povoações, utilizando para o efeito o antigo caminho particular (ou atravessadouro) e a consequente reversão das parcelas de terreno cedidas pelos proprietários confinantes, teria sempre feito perder o carácter dominial do troço do caminho existente, a dita travessa, visto que ele deixou de servir o interesse coletivo, deixando de ter utilidade pública.
CC) Sempre se verificaria, a desafetação por ato expresso da administração, ou pelo menos,
uma desafetação tácita, deixando, em qualquer caso, o dito caminho ou via, de servir o seu fim de utilidade pública.
DD) Não estamos perante a prossecução dum interesse público, mas sim de um interesse puramente particular, logo não estão verificados os pressupostos da ação popular.»
Termina afirmando que deve ser dado provimento ao presente recurso, com todas as legais consequências, designadamente alterando-se a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto, com a consequente aplicação do Direito, revogando-se a sentença recorrida.
2.2 Os autores, em resposta, concluíram nos seguintes termos:
«1) Discute-se a questão fundamental de direito que é a aquisição de caminho para o domínio público da autarquia local, fundando-se a causa de aquisição para a via pública no facto de se tratar de via produzida e legitimamente apropriada pela entidade pública, Autarquia Local, destinada e afeta ao domínio público municipal.
2) A existência de uma via pública, produzida, construída e depois conservada e melhorada pela Autarquia local, um bem do domínio público municipal, tratando-se de bem do domínio público e face a não atuação da autarquia, num estado de direito não se concebe que possam bens do domínio público ser apropriados por particulares face à inércia das entidades públicas.
3) E assim assiste aos AA., como titulares de interesse difuso, o direito de defenderem tal bem, pugnando os AA. por ver declarada a pública dominialidade do caminho e tal direito e tal legitimidade está hoje assegurada legalmente no artigo 52.º da CRP, conjugado com os artigos 1.º, n.º 2, 2.º e 12.º da Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto (Lei de Ação Popular) e com o artigo 31.º do NCPC;
4) Ações que podem ser intentadas quando existe inércia das entidades públicas, exercendo, neste tipo de ação popular, o particular, ação supletiva, que atua como se fosse órgão ocasional da autarquia em cujo nome e interesse procede.
5) Ora, provado que sendo atualmente o antigo caminho uma estrada que pertence ao domínio público, pertença da Autarquia Local, os AA. têm um interesse, não só indireto e difuso para defenderem o que é de todos, mas mesmo um interesse direto e pessoal em verem reconhecida a pública dominialidade da via, tendo em vista não lhes perturbar o acesso e a confinância direta com essa via pública e a livre circulação de pessoas e bens.
6) Das diligências feitas com a Autarquia Local, apesar de ter todos os elementos probatórios, constata-se que esta se recusa a tomar qualquer iniciativa propondo qualquer ação permitindo que a Ré se apodere de bem público.
8) Ergo, a ação intentada foi de forma legítima e por quem tem interesse em agir, nela requerendo seja reconhecida a pública dominialidade da via em causa, visando os AA., com o recurso ao tribunal, exercer uma ação supletiva atenta a inação ou negligência dos órgãos autárquicos e tal legitimidade procedimental inicial foi profusamente demonstrada em julgamento.
9) A douta sentença contém os “Factos Provados” descritos de 1 a 37 e no final destes consta O demais alegado pelas partes nos seus articulados encerra matéria puramente conclusiva, repetida e/ou de direito, razão pela qual o Tribunal não se pronuncia sobre a mesma”, pelo que expressamente toma uma posição sobre o demais alegado pelas partes.
10) O alegado pela Recorrente é absurdo porquanto:
a) Tendo a estrada sido aberta com alargamento para ambos os lados, com cedências de terrenos de todos os intestantes, desde a rua de … e terminando no espigueiro da Recorrente, ultrapassando em vários metros para além do terreno dos Autores, os quais também cederam vários metros para a estrada, passados mais de 20 anos a rua “deixava” de ser do domínio público em frente ao terreno dos Autores, estes “perdiam” o terreno que cederam para o alargamento da estrada, terreno que ficaria vedado pela recorrente para seu uso pessoal, e o prédio dos Autores ainda perdia o acesso que sempre teve à via pública!
b) E já no restante continuava a ser uma via pública, pois até foram nesses anos edificadas junto ao prédios dos Autores uma nova habitação licenciada pela Câmara Municipal, existe nessa mesma Travessa …. um estaleiro destinado à indústria, etc., ou seja, ocorria um “arranjo” por ajuste concertado entre a Recorrente e a Junta de Freguesia para prejudicar seriamente os Autores, “encravando” o seu prédio e ficando com área de terreno cedida ao domínio público e que foi apropriada para toda a via Travessa …, o que é impensável num Estado de Direito!
11) Tudo isso foi ponderado na decisão “a quo”, persistindo a recorrente em aduzir factos falsos nas suas conclusões, contra a evidência retratada na inspeção ao local, nas fotos, plantas topográficas e de toponímia, pelo que inexiste a alegada Omissão e Nulidade por falta de indicação dos factos não provados, pois tal foi contemplado na declaração expressa supra e melhor desenvolvido no juízo crítico sobre as provas e na Motivação da convicção do Tribunal para as respostas dadas à matéria de facto.
12) Sempre se dirá que o chamar à colação de outros processos judiciais e outros factos, subvertendo os factos provados e os meios de prova produzidos, é um exercício pouco correto, aludindo a processo de cessação de servidão num outro local e referente a um outro prédio, noutro local diferente da Travessa …, respeitante a outros prédios, noutro local, que nada tem a ver com a situação destes autos!
13) A alusão a uma providência cautelar sobre factos estranhos a estes autos, que apenas indiciária e perfunctoriamente se pronuncia sobre factos, num outro contexto e estranhos a esta ação, para além de não ocorrer caso julgado na providência cautelar, não haver identidade de sujeitos nem de objeto, certo é que tal alegação para além de carecer de sentido é abusiva.
14) Quanto aos Factos provados, diga-se que face à sua evidência, o Venerando Supremo Tribunal de Justiça, na apreciação do recurso de revista excecional, como consta dos autos, já teve como provados, por como tal terem sido considerados pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto em anterior recurso, tendo por base documentos e a confissão das partes.
15) O que consta dos FACTOS ELENCADOS SOB OS NÚMEROS UM (1) A VINTE E NOVE (29) DO DOUTO ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA que faz parte dos autos, o que aqui se realça.
16) Ora, sendo o prédio descrito em 1) dos factos provados inquestionavelmente pertença exclusiva dos Autores, com relevo decisivo para sorte da ação temos os factos dados como provados, que não são relevantemente sindicados ou postos em causa no recurso, e que se transcrevem:
- O prédio descrito em 1) tem acesso à via pública pelo lado da sua confrontação a sul.
- No ano de 1984, a Junta de freguesia de …, quis alargar e beneficiar tal caminho transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação, e para tanto, solicitou aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno para tal efeito.
- O pai da Autora, anterior dono do prédio descrito em 1), e à data seu dono, cedeu, para alargamento e feitura da estrada, cerca de 1,5m de largura em toda a extensão da sua confinância sul com o referido caminho que tem cerca de 14,10m.
- Incluindo nessa extensão o portão de entrada à propriedade com uma largura de cerca de 3 metros.
- A Autarquia, face a tais cedências, nesse ano de 1984, realizou obras de alargamento do caminho, para o que lá colocou máquinas por conta e procedeu ao desaterro e aterro do caminho, alargando-o à custa dos terrenos cedidos, numa extensão com cerca de 300m, desde a estrada principal, para cerca de 7m, reduzidos a 6m, na parte final depois de passar o portão de entrada no prédio descrito em 1), desembocando num largo junto à entrada da casa da Ré, junto a um Espigueiro ali existente.
- O ante possuidor do prédio descrito em 1), após o alargamento, tapou o seu prédio em relação ao caminho com muro em blocos de cimento, colocando um portão na entrada para o seu prédio na extremidade da confinância sul com a estrada Travessa ….
- Foi melhorada a iluminação pública nessa via pela qual se acede da povoação de … a outra com quaisquer veículos automóveis e passou a via a constar da cartografia municipal e por deliberação da Assembleia competente ficou a denominar-se na toponímia da freguesia de … como Travessa …..
- Foi asfaltada diversas vezes ao longo dos anos, objeto de obras de beneficiação pelas entidades públicas, dotada de ramal de energia e iluminação pública.
- Constitui acesso direto a prédios urbanos e estabelece ligação à povoação.
- A Autarquia Local faz constar da sua toponímia, nos mapas locais, tal via considerando-a do domínio público municipal com a designação de Travessa … e com a extensão, largura e descrição que os Autores logram provar.
- Desde que foi asfaltada sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de freguesia que executavam a limpeza em toda a Travessa …, e objeto de conservação pela Autarquia Municipal ao longo destes anos.
- Em 11 de Abril de 2005, a Ré espetou espigões em ferro no chão da estrada, em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo.
- A Autarquia, face a participação do assunto, discutido em Assembleia e em sede de Câmara Municipal, não age e nada fez e faz para demover a Ré a retirar o portão da via pública.
17) Por economia processual, data venia, dá-se por reproduzida a douta motivação da convicção do Tribunal, dando-se especial relevo no conjunto de documentos à topografia e cartografia digital, às fotografias, notícia do jornal, requerimentos à Autarquia e comunicações do Município, e, sobretudo à inspeção ao local antes da prestação dos depoimentos e a sua conjugação, pela Sra. Juíza, com todos os depoimentos, pelo que, a decisão sobre a matéria de facto não pode sofrer qualquer alteração.
18) Assentando a dominialidade de um caminho na prova de que foi produzido ou legitimamente apropriado por pessoa coletiva de Direito Público e que por ela é administrado, tais vias são públicas, por construídas ou mantidas a expensas públicas e que se encontram no uso direto e imediato do público.
19) No caso como o dos autos, da abertura de uma estrada pela autarquia, afetando-a ao uso do público, verifica-se adquirido o referido carácter de bem do domínio público, cuja classificação até se deduz da sua inscrição no cadastro municipal das vias rodoviárias e da toponímia local.
20) Afetação que resulta quer do ato da administração que determinou a sua abertura, utilização, apropriação e conservação, consagrando tal via ao uso público, ordenando a sua manutenção pelos funcionários e serviços públicos da autarquia.
21) E sobretudo, pela sua construção e apropriação, há mais de vinte anos, pela autarquia, a qual a manteve, reparou e conservou, sem oposição de quem quer que fosse durante tal período de tempo superior a 20 anos, afetando a via ao interesse público em geral, passando pela via quem quer que fosse e fazendo-a constar quer do Plano Rodoviário Municipal, quer da toponímia local, identificando a via sempre com via pública.
22) Os factos alegados e provados na ação são caracterizadores da aquisição da pública dominialidade da via por força da sua construção, apropriação e afetação ao interesse público em geral, cfr. os doutos Acórdãos do STJ de 08.05.2007, do TRG de 01.06.2005.
23) Finalmente, adquirida a pública dominialidade, os bens deste tipo estão fora do comércio, não podendo, por isso, ser objeto de negócios jurídicos, que afetem a sua natureza de bens dominiais, sendo insuscetível de posse privada (cfr. artigo 202.º, n.º 2, do C. Civil).
24) Não existe uma desafetação de bem do domínio público demonstrada nos autos, quer por impossibilidade material face ao constante dos autos e à realidade predial, quer por inexistência de um ato substantiva e formalmente válido de uma tal hipótese, sendo uma invenção a alegada desafetação tácita que a recorrente deita mão num último desespero.
25) Pelo que a via em causa nos autos pertence ao domínio público, é uma via da rede rodoviária municipal e como tal foi reconhecida na douta sentença.»
Termina afirmando que, não ocorrendo os vícios e fundamentos deduzidos pela recorrente, fazendo-se na sentença prolatada pelo Tribunal “a quo” uma correta apreciação e decisão dos factos e aplicação do direito aos mesmos, deve a sentença proferida pela 1.ª instância ser confirmada na íntegra, por ser de inteira Justiça.
3. Colhidos os vistos e na ausência de fundamento que obste ao conhecimento do recurso, cumpre apreciar e decidir.
As conclusões formuladas pela apelante definem a matéria que é objeto de recurso e que cabe aqui precisar, em face do que se impõe decidir as seguintes questões:
● Os pressupostos da ação popular.
● A alegada nulidade da sentença.
● A impugnação da matéria de facto.
● A alegada insubsistência do fim de utilidade pública.
II)
Fundamentação
1. Factos relevantes.
1.1 Antes de avançar na apreciação das questões suscitadas em sede de motivação de recurso e com interesse para a decisão a proferir, importa considerar os factos que foram julgados provados e não provados na sentença que é objeto de recurso e que integralmente se transcrevem.
«A) OS FACTOS PROVADOS
1. Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Santa Maria da Feira com o n.º 828/20050113, na Freguesia de …, o prédio rústico composto por terreno de cultura, com a área de 1250 m2, denominado “…", situado no lugar de …, que confronta do norte com H…, sul com caminho, nascente F…, poente I…, correspondendo ao artigo matricial 447.º.
2. Relativamente ao prédio descrito em 1), encontra-se inscrita, correspondente à apresentação n.º 32, de 13 de janeiro de 2005, a sua aquisição, por doação, a favor dos Autores.
3. Os Autores, por si e pelos ante possuidores, há mais de 30 anos que fruem e usam tal prédio, com todas as suas pertenças, arando-o, semeando-o, cultivando-o, podando as videiras, plantando árvores, colhendo os frutos nele produzidos.
4. Pagando os impostos a ele referentes, fazendo obras de conservação.
5. Diante de toda a gente e à luz do dia.
6. Sem oposição de quem quer que fosse.
7. E na convicção perfeita de não ofenderem direitos de outrem.
8. Por todos sempre foram tidos como seus exclusivos e legítimos donos e senhores, nomeadamente pelos vizinhos.
9. A Ré é dona de dois prédios contíguos ao descrito em 1), sendo um prédio urbano composto por uma casa de lavoura com edifício destinado a habitação, com logradouro, currais de animais, anexos, …, inscrito na matriz urbana sob o artigo 66 e o outro um prédio rústico destinado a cultura, ambos sitos no lugar de …, freguesia de …, Santa Maria da Feira.
10. O prédio descrito em 1) tem acesso à via pública pelo lado da sua confrontação a sul.
11. Tal acesso era um caminho antigo em terra, entre propriedades ou de consortes, iniciando-se no lugar de … até atingir o prédio descrito em 1), era estreito, dando para passar um carro de bois, ou seja tinha cerca de 2 metros de largura.
12. Tal caminho de carro de bois foi aberto à custa de terreno dos antecessores dos Autores, aquando da construção de uma casa que fica no início da atual Travessa de …, no lado direito para quem vem no sentido … – Travessa …, sentido poente/nascente.
13. (…) e mais de vinte, trinta anos e mesmo ultrapassando a memória dos vivos sempre foi fruído pelos ante possuidores do prédio dos Autores e depois pelos Autores.
14. Diante de toda a gente e à luz do dia.
15. Cortando a vegetação que nele crescia e alisando o solo para a passagem dos carros de bois e os tratores.
16. Em qualquer dia e mês do ano e sempre que lhes aprouvesse.
17. Sempre agindo os AA. e ante possuidores do seu prédio como legítimos donos do referido caminho.
18. Caminho esse afeto ao fim específico de servir os referidos prédios e utilizado por qualquer pessoa para aceder para a parte de cima do prédio.
19. No ano de 1984 a Junta de freguesia de …, quis alargar e beneficiar tal caminho transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação, e para tanto, solicitou aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno para tal efeito.
20. O pai da Autora, anterior dono do prédio descrito em 1), e à data seu dono, cedeu, para alargamento e feitura da estrada, cerca de 1,5m de largura em toda a extensão da sua confinância sul com o referido caminho que têm cerca de 14,10m.
21. Incluindo nessa extensão o portão de entrada à propriedade com uma largura de cerca de 3 metros.
22. E a Ré cedeu também cerca de 2,00m do lado oposto defronte à confinância do prédio dos Autores.
23. Tendo os donos de prédios que ficam do lado esquerdo para quem vem no sentido …/Travessa de …, ou seja, do poente para nascente, e antes de se chegar ao prédio descrito em 1), contribuído também para esse alargamento da via, cedendo cerca de 1,5 m de terreno em toda a extensão da respetiva confinância com o caminho.
24. Tendo ainda tais donos desses prédios contribuído com dinheiro, uns com 10.000$00 e outros com 20.000$00, para fazerem a via pública.
25. A Autarquia, face a tais cedências, nesse ano de 1984, realizou obras de alargamento do caminho, para o que lá colocou máquinas por conta e procedeu ao desaterro e aterro do caminho, alargando-o à custa dos terrenos cedidos, numa extensão com cerca de 300m, desde a estrada principal, para cerca de 7m, reduzidos a 6m, na parte final depois de passar o portão de entrada no prédio descrito em 1), desembocando num largo junto à entrada da casa da Ré, junto a um Espigueiro ali existente.
26. O ante possuidor do prédio descrito em 1), após o alargamento, tapou o seu prédio em relação ao caminho com muro em blocos de cimento, colocando um portão na entrada para o seu prédio na extremidade da confinância sul com a estrada Travessa de ….
27. Por onde quaisquer pessoas passavam pretendendo aceder da povoação de … a outra, via que consta da cartografia municipal, podendo pela referia via aceder quaisquer veículos automóveis.
28. Entretanto foi construída uma moradia junto ao prédio descrito em 1).
29. Tal caminho em terra batida foi asfaltado em 1989.
30. Foram feitos melhoramentos na iluminação pública da via, tendo sido novamente asfaltado pela Autarquia em 1999.
31. Foi entretanto deliberado pela respetiva Assembleia incluí-lo na toponímia da freguesia, como Travessa ….
32. E desde que foi asfaltada e até Abril de 2005, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de Freguesia, que executavam a limpeza em toda a Travessa …, a qual termina junto à entrada da casa da Ré, mais concretamente junto a um Espigueiro ali existente.
33. Em 11 de Abril de 2005, a Ré espetou espigões em ferro no chão do referido caminho (Travessa …), imediatamente antes de a mesma atingir a confrontação com o prédio descrito em 1), para quem vem no sentido poente/nascente, ou seja, vindo do lugar de … para a Travessa de ….
34. E colocou um portão, fechado com aloquete, em toda a largura da via.
35. Impedindo a passagem de qualquer veículo, impedindo os Autores de por aí acederem ao seu prédio com qualquer viatura ou meio de transporte de bens.
36. Em consequência, os Autores desde então estão impedidos de transportar coisas e bens em viaturas para dentro do seu prédio; estão impedidos de passar com trator, máquinas agrícolas ou quaisquer viaturas para agricultar o terreno, estando forçados a ter o mesmo inculto.
37. Com manifesto prejuízo em consequência direta e necessária da atuação da Ré que mantém a cancela fechada a aloquete.
*
O demais alegado pelas partes nos seus articulados encerra matéria puramente conclusiva, repetida e/ou de direito, razão pela qual o Tribunal não se pronuncia sobre a mesma.
B) A motivação da convicção do Tribunal
Para a formação da sua convicção o Tribunal considerou e ponderou toda a prova produzida no seu conjunto e em confronto, analisada segundo as regras da experiência comum, designadamente os seguintes elementos:
- o teor dos documentos juntos aos autos, designadamente certidão matricial de fls. 24, certidão registral de fls. 25 e 26, topografia de fls. 28 e 30, fotografias de fls. 31, 33 a 34, 76, 77, cartografia digital de fls. 32, notícia de jornal de fls. 35 e 36, requerimento de fls. 37, ata de 114 e 115 (=fls. 53 e 54), certidão judicial de 116 a 136 (=fls. 55 a 75), 137 a 177, escrituras públicas de fls. 615v a 621v, todos devidamente analisados.
- no resultado da inspeção judicial, ficando o Tribunal com a perceção direta da configuração, medidas, caraterísticas, composição, confrontações e situação dos prédios de ambas as partes e do caminho em litígio.
- no depoimento de parte da Ré e Autores, nos termos da assentada constante da ata de fls. 609 e 610, cujo o seu teor se dá por integralmente reproduzido.
Em conjugação com tais elementos documentais e assentada dos depoimentos de partes, considerou-se ainda o teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas.
- J…, tia dos Autores, conhecedora do local há anos, referiu que o terreno agora dos Autores pertenceu aos seus pais, sendo que tal terreno tem acesso à via pública pelo lado sul, existindo antigamente um caminho de carro de bois, que servia os campos, notando que tal caminho era utilizado para aceder aos campos aí existentes e por qualquer pessoa, que utilizava a estrada até ao campo dos Autores, e chega-se à cancela seguiam para a eira da Ré, mas neste caso era utilizado a pé. Referiu ainda que tal caminho estreito foi após transformado numa estrada até ao terreno dos Autores, tendo sido o pessoal da Junta de Freguesia que alargou o caminho, transformando em estrada até à eira da Ré, isto há mais de 20 anos. Explicou que também contribuiu para o alargamento do caminho tendo dado 20.000$00, tendo a Ré cedido terreno e o pai da Autora também cedeu terreno, ficando a estrada com cerca de 500 metros, tendo sido colocada iluminação pública pela Câmara. Por fim, referiu que entretanto a Ré colocou um portão com cadeado, fechado com aloquete, impedindo os Autores de acederem ao seu terreno com trator, apenas acedendo a pé.
- a testemunha K…, tio dos Autores, também conhecedor dos terrenos há anos, corroborou na íntegra o depoimento da primeira testemunha.
Por tais testemunhas terem conhecimento direto dos factos, terem apresentado depoimentos que nos afiguraram isentos e descomprometidos, mereceram toda a credibilidade do Tribunal.
- a testemunha L…, nascida em … há 60 anos, explicou a existência do caminho de carro bois, a utilização do mesmo pelos proprietários e por qualquer pessoa passar a pé, o acesso para o terreno dos Autores pelo lugar onde agora está o portão, o alargamento do caminho e alcatroado pela Câmara no ano de 1985 e limpeza por esta, alargamento esse que vai da casa dos seus avós (primeira testemunha) até lá em cima, notando que qualquer pessoa utilizava a cancela existente em cima para aceder à parte de cima de …, não só os proprietários dos prédios, existindo agora um portão que impede a passagem.
- M…, mora a cerca de 2 Km da Travessa de …, conhecendo os terrenos das partes, tendo sido secretário da Junta de Freguesia de … de 1986 até há 4 anos atrás, referiu que o terreno dos Autores antes da estrada agora existente, tinha um caminho de carro de bois, em terra batida, sendo que junta da casa da Ré tinha uma calçada, notando que do lado de cima tal caminho dava acesso à casa da Ré e da casa do Sr. F…, terminando tal caminho junto da casa da Ré. Referiu ainda que o alargamento do caminho de carro de bois foi por si negociado e o então Presidente da Junta junto de N… (irmão da Ré), Dª O… e o Sr. F…, tendo a Dª O… cedido mais terreno, o Sr. F… cedeu cerca de 1,5 m e do terreno da Ré cortou-se mais da parte de cima do terreno. Foram colocadas estacas, a Junta colocou as máquinas e pagou o asfalto, notando que tal alargamento era para facilitar o acesso ao terreno da Dª O… e à casa da Ré, mas notou que qualquer pessoa utilizava essa estrada, sendo que depois do alargamento era a Junta que fazia a limpeza da estrada.
- P… corroborou no essencial os depoimentos das duas primeiras testemunhas, quanto à utilização do caminho de carro de bois e o alargamento de tal caminho para a estrada.
- Q… explicou a configuração dos terrenos e a existência do caminho estreito em terra batida.
- a testemunha E… referiu que há cerca de 15 anos, foi lavrar o terreno dos Autores, caminho esse que já estava asfaltado, tendo entrado com o trator pela parte de baixo do lado esquerdo, no lugar onde tinha duas colunas uma de cada lado.
- S…, residente em …, explicou como se acedia ao terreno hoje dos Autores, através de um caminho de carro de bois com cerca de 1,80/2,00 metros, caminho esse em terra batida, a subir tinha calçada em terra, e tinha uma cancela em cima, notando que circulava-se até à casa da Ré, concretamente até à porta da sua casa. Referiu que tal caminho há cerca de 30 anos foi alargado e asfaltado pela Junta de Freguesia, e os cantoneiros faziam a limpeza, e bem assim foram alteados os postes de iluminação pública, tendo sido alargado por todos os lados, notando que o campo da Autora foi também alargado até ao …, cerca de 1 metro ou mais. Por fim, referiu que durante anos, as pessoas circulavam até ao … de carro, para inverter o sentido de marcha dos veículos, mais tarde foram colocadas pedras junto ao … e há cerca de 10/15 anos foi colocado um portão a seguir à casa do meu sobrinho T…, o qual está sempre fechado, só estando cerca de 80 cm aberto. Por fim, referiu que era intenção da Junta de Freguesia que a estrada tivesse seguimento para cima, sendo tal estrada utilizada por qualquer pessoa não só pelos proprietários dos terrenos aí existentes.
- as testemunhas U… e V… corroboraram, no essencial, os depoimentos das duas primeiras testemunhas.
- W… referiu que a Junta de Freguesia desistiu de fazer a ligação de … e ….
- o depoimento de E…, Presidente da Junta de Freguesia do período compreendido entre 1982 a 2005, foi ponderado na parte em que explicou o motivo do alargamento do caminho de carro de bois, com cerca de 1,80/2,00 metros, onde qualquer pessoa passava a pé de quem vinha de … para …, pois não havia outro acesso; explicando ainda a intenção da Junta no alargamento do caminho, a participação dos confinantes com cedência de terreno e dinheiro nesse melhoramento e as vicissitudes da não ligação de … a ….
- X…, proprietário de um estaleiro no local, confirmou a existência do caminho de carro de bois, tendo passado nesse caminho muitas vezes a pé, a cedência de terreno pelos proprietários para o alargamento do caminho, incluindo esta testemunha com cerca de 4,00/5,00 metros, tendo também contribuído monetariamente para a Junta de Freguesia.
- o testemunho de Y…, residente em …, foi ponderado na parte em que afirmou a existência do caminho de carro de bois, o alargamento do caminho, a colocação da cancela.
- o depoimento de G… foi relevante na parte em que referiu que pavimentou o caminho, colocou asfalto em cima do caminho de carro de bois, com cerca de 2 metros.
Regista-se que o Tribunal para além de ter procurado atender aos factos essenciais para a decisão da causa segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito, atendeu ainda aos factos complemento ou concretização do que as partes alegaram e resultaram da instrução da causa, tal como lhe é permitido (cfr. art.º 5.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Civil).»
2. Os pressupostos da ação popular.
O artigo 52.º, n.º 3, da Constituição confere a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de ação popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida, a preservação do ambiente e do património cultural [alínea a)] e assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais [alínea b)].
Esta norma constitucional materializa-se, em termos de legislação comum, na Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, a qual, no seu artigo 1.º, define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de ação popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infrações previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição (n.º 1); sem prejuízo dos termos desta disposição legal, são designadamente interesses protegidos pela referida lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público (n.º 2).
Daqui sobressai que o objeto da ação popular se consubstancia na defesa de interesses difusos, interesses da comunidade.
«Não há dúvidas de que sobre um determinado bem pode incidir um interesse individual, ou seja, um direito subjetivo ou interesse específico de um indivíduo, um interesse público ou interesse geral, subjetivado como interesse do próprio Estado e de outras pessoas coletivas, um interesse difuso, que é a refração em cada indivíduo de interesses da comunidade e um interesse coletivo, quando se trata de um interesse particular comum a certos grupos e categorias. E pode, assim, sobre um determinado bem recair um interesse individual, mas também um interesse difuso, nada obstando que, para a defesa de tais bens, venham os seus titulares, ou, como no caso concreto, as autarquias locais onde os mesmos residam.
Mas no âmbito daquelas estão, necessariamente, os interesses difusos (…), já que incluídos no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição: “o objeto da ação popular é, antes de mais, a defesa de
interesses difusos. A ação popular tem sobretudo incidência na tutela de interesses difusos, pois sendo interesses de toda a comunidade, deve reconhecer-se aos cidadãos uti cives e não uti singuli, o direito de promover, individual ou associadamente, a defesa de tais interesses. (...) O texto da Constituição aponta para a possibilidade de os cidadãos ou as associações poderem tomar a iniciativa (legitimidade ativa) ou intervir no processo através da ação popular, nos termos a definir pela lei, em qualquer das hipóteses acabadas de referir (...) A ação popular não tem de limitar-se aos casos individualizados no n.º 3 (defesa de saúde pública, defesa do ambiente, defesa do património cultural). A norma tem carácter exemplificativo, como decorre do seu próprio enunciado textual (nomeadamente). Ela permite dar cobertura desde logo aos casos de ação popular no âmbito do poder local” (…)» – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 20 de outubro de 2005, no processo 05B2578, disponível na base jurídico-documental do IGFEJ (www.dgsi.pt).
Este facto não impede que a motivação próxima de quem interpõe a ação popular radique no seu interesse pessoal; impõe-se no entanto que a pretensão, ultrapassando este restrito interesse, se traduza na defesa de interesses públicos difusos.
No caso dos autos, pretendem os autores que está em causa a aquisição de caminho para o domínio público da autarquia local, fundando-se a causa de aquisição para a via pública no facto de se tratar de via produzida e legitimamente apropriada pela entidade pública, a autarquia local, destinando-se a aludida via ao domínio público municipal e a este afeta. Justificam a legitimidade da sua intervenção pelo facto das autarquias locais (a Câmara Municipal e a Junta de Freguesia), apesar de disporem de todos os elementos probatórios e informações, se recusarem a tomar qualquer iniciativa e a proporem elas próprias a ação.
A ré refuta este fundamento, ainda que restrito a uma parte do caminho em discussão e que delimita com o portão que aí colocou, pretendendo no essencial que o troço a partir deste portão integra o seu prédio e já não o caminho público.
Neste enquadramento, pretendendo os autores, no essencial, o reconhecimento de que o outrora caminho depois transformado em estrada, melhor descrito nos itens 13.º a 56.º da petição inicial, é uma via pública, não se vê que haja fundamento para afirmar a inexistência dos pressupostos que legitimam a ação, não sendo esta conclusão alterada pela existência de anteriores ações e
procedimento cautelar, reportados aos prédios dos autores e da ré e do acesso aos mesmos, na certeza de que na decisão proferida no âmbito do despacho saneador e que não foi objeto de recurso se concluiu não operar a exceção de caso julgado, sem que haja razões para contrariar tal decisão e os fundamentos aí enunciados.
Conclui-se por isso que improcede a pretensão da recorrente ao questionar os pressupostos da presente ação como ação popular.
3. A alegada nulidade da sentença.
3.1 A recorrente afirma a nulidade da decisão recorrida, com referência aos artigos 607.º, n.º 4, 608.º, n.º 2, e 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil.
O juiz, na elaboração da sentença, declara na respetiva fundamentação quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência (artigo 607.º, n.º 4); deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução que tenha sido dada a outras, e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigo 608.º, n.º 2).
A sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento [artigo 615.º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo Civil].
Esta nulidade decorre do disposto nas normas antes citadas, com particular relevância no n.º 2 do artigo 608.º.
No ensinamento do Prof. Alberto dos Reis – que permanece atual, apesar do tempo decorrido e das alterações legislativas que entretanto se verificaram –, não enferma da nulidade a sentença “que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito (…). São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão” – “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, 1984, páginas 142 e 143.
3.2 A recorrente, ao arguir a nulidade da sentença, invoca duas razões: por um lado, não se indica quais os factos considerados não provados, em violação do disposto no artigo 607.º, n.º 4; por outro, deixou de se pronunciar quanto ao documento junto com a contestação como documento n.º 1, a fls. 53 e 54, com nova cópia, mais legível, a fls. 114 e 115.
Relativamente ao primeiro fundamento, verifica-se – da transcrição que acima se deixou feita – que a sentença recorrida, depois dos factos que julgou provados, afirma que o demais alegado pelas partes nos seus articulados encerra matéria puramente conclusiva, repetida e/ou de direito, razão pela qual o Tribunal não se pronuncia sobre a mesma.
Quanto ao segundo fundamento, afirma-se na sentença e em trecho igualmente transcrito que o tribunal, para a formação da sua convicção considerou e ponderou toda a prova produzida no seu conjunto e em confronto, analisada segundo as regras da experiência comum, o teor dos documentos juntos aos autos, explicitando diferentes documentos, incluindo a ata aqui em questão, com cópia a fls. 53/54 e nova cópia a fls. 114 e 115, relevando ainda o resultado da inspeção judicial, os depoimentos de parte da ré e dos autores e, em conjugação com tais elementos, o teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas.
Analisados os elementos em questão, afigura-se que, em qualquer dos casos, não opera a pretendida nulidade por omissão.
No que concerne à alegada omissão dos factos não provados, compreende-se o motivo pelo qual o tribunal nada acrescentou aos factos que julgou provados, entendendo que toda a restante matéria alegada encerra matéria puramente conclusiva, repetida e/ou de direito. Obviamente, pode discutir-se este entendimento e até discordar do mesmo, o que se evidencia em relação à recorrente, ainda que não suscite a questão diretamente na impugnação da matéria de facto, mas na parte em que argumenta as razões da procedência do recurso.
Este facto não impede no entanto a apreciação em sede de recurso, sem necessidade de outras formalidades, tendo presente o disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil e o facto de a ré/recorrente ter questionado em sede de recurso essa factualidade, ainda que no enquadramento referido e os autores terem respondido à motivação do recurso. Assim, esta matéria será objeto de apreciação em momento ulterior.
Quanto ao documento que constitui fls. 114 e 115 e como resulta da fundamentação que se deixou transcrita, a sentença afirma em termos gerais a ponderação do teor do mesmo, em conjugação com os restantes elementos de prova, incluindo outros documentos, bem como o resultado da inspeção judicial que permitiu ao Tribunal a perceção direta da configuração, medidas, caraterísticas, composição, confrontações e situação dos prédios de ambas as partes e do caminho em litígio e os depoimentos das testemunhas inquiridas.
Apesar da referência breve e genérica que é feita, não pode afirmar-se o alheamento do tribunal ao teor do referido documento. De qualquer modo, mesmo que se admitisse que o tribunal se alheou totalmente do teor do documento ou não lhe deu a relevância que era devida, não estaríamos propriamente perante omissão de pronúncia sobre questão que devesse apreciar e por isso geradora de nulidade, mas antes perante vício na apreciação da prova suscetível de apreciação a esse título em sede de recurso – e que, como acima se mencionou, será objeto de apreciação.
Assim, não opera a pretendida nulidade da sentença recorrida, dado que não se verifica omissão de pronúncia relativamente a questão que devesse ser apreciada.
4. A impugnação da matéria de facto.
4.1 Resulta dos artigos 662.º e 639.º do Código de Processo Civil, na redação atual, que a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados em audiência, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 640.º, a decisão que com base neles foi proferida.
Importa ter presente a prevalência do princípio da liberdade de julgamento, consagrado no artigo 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto controvertido; não invalida a convicção do tribunal o facto de não existir uma prova direta e imediata da generalidade dos factos em discussão, sendo legítimo que se extraiam conclusões em função de elementos de prova, segundo juízos de normalidade e de razoabilidade, ou que se retirem ilações a partir de factos conhecidos.
Por isso, a alteração da matéria de facto pela Relação deve ser realizada ponderadamente, em casos excecionais e pontuais; só deverá ocorrer se, do confronto dos meios de prova indicados pelo recorrente com a globalidade dos elementos que integram os autos, se concluir que tais elementos probatórios, evidenciando a existência de erro de julgamento, sustentam, em concreto e de modo inequívoco, o sentido pretendido pelo recorrente.
“A efetivação do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não implica a repetição do julgamento pelo tribunal de 2.ª instância – um novo julgamento, no sentido de produzir, ex novo, respostas aos quesitos da base instrutória –, mas, apenas, verificar, mediante a análise da prova produzida, nomeadamente a que foi objeto de gravação, se as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, ou se, pelo contrário, a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir” – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21 de junho de 2007 (disponível em www.dgsi.pt, processo 06S3540).
Assim, as disposições em causa não visam propriamente a concretização de um segundo julgamento que inclua a reapreciação global e genérica de toda a prova, tendo antes em vista um segundo grau de apreciação da matéria de facto, de modo a colmatar eventuais erros de julgamento, nos concretos pontos de facto que o recorrente assinala.
4.2 Importa apreciar, à luz deste breve enquadramento, a discordância da recorrente relativamente às respostas dadas à matéria de facto.
4.2.1 É pacífico que os autores e a ré são os atuais donos de prédios contíguos e que confrontam com um caminho situado a sul do prédio dos autores e que dá acesso à via pública. Este era um caminho antigo em terra, entre propriedades ou de consortes, iniciando-se no lugar de … até atingir o prédio dos autores; era estreito, com cerca de 2 metros de largura, dando para passar um carro de bois; foi aberto à custa de terreno dos antecessores dos autores; ultrapassando a
memória dos vivos sempre foi fruído pelos ante possuidores do prédio dos autores e depois pelos próprios autores, diante de toda a gente e à luz do dia, cortando a vegetação que nele crescia e alisando o solo para a passagem dos carros de bois e os tratores, em qualquer dia e mês do ano e sempre que lhes aprouvesse, sempre agindo os autores e ante possuidores do seu prédio como legítimos donos do referido caminho, afeto ao fim específico de servir os referidos prédios.
Entretanto, no ano de 1984, a Junta de Freguesia de … quis alargar e beneficiar tal caminho transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação; para tanto, solicitou aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno; o pai da autora, F…, então dono do prédio, cedeu uma faixa com cerca de um metro e meio de largura em toda a extensão que confina a sul com o referido caminho e a ré cedeu também uma faixa com cerca de dois metros de largura, do lado oposto; os donos de outros prédios que confinavam com o caminho contribuíram também para esse alargamento da via, cedendo faixas com cerca de um metro e meio de terreno em toda a extensão que confina com o caminho, contribuindo ainda com dinheiro para se fazer a via pública. A autarquia, face a tais cedências e ainda nesse ano de 1984, realizou obras de alargamento do caminho, à custa dos terrenos cedidos, numa extensão com cerca de trezentos metros, com a largura de cerca de sete metros, reduzida a seis metros na parte final, depois de passar o portão de entrada no prédio dos autores e desembocando num largo junto à entrada da casa da ré, daqui resultando que o alargamento do caminho pela autarquia se efetuou não só até ao local onde a ré veio a instalar (cerca de vinte e um anos depois) o portão que deu origem ao presente processo, mas ultrapassando este ponto, até à casa da ré, ao largo aí existente e onde existe e já então existia um espigueiro.
Este caminho, em terra batida, foi asfaltado em 1989; em 1999 foram feitos melhoramentos na iluminação pública da via e foi novamente asfaltado pela autarquia.
Está em causa o teor dos parágrafos 18 (parte final do mesmo), 27, 31, 32, 35, 36 e 37, que acima se deixaram transcritos, pretendendo a recorrente que, ponderados os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência e o teor dos documentos, particularmente o documento de fls. 114 e 115, estes factos devem julgar-se não provados, explicitando que nunca pode resultar provado que quaisquer pessoas passavam por aquele caminho pretendendo aceder da povoação de … a outra via que consta da cartografia municipal, podendo pela referida via aceder quaisquer veículos automóveis, nem tão pouco que, desde que foi asfaltada e até Abril de 2005, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de Freguesia, que executavam a limpeza em toda a Travessa de …, a qual termina junto à entrada da casa da ré, mais concretamente junto a um espigueiro ali existente e que com a colocação da cancela a ré impediu a passagem de qualquer veículo.
A ponderação dos relatos das diferentes testemunhas inquiridas, assinalados pela recorrente, evidencia que ao longo do tempo se registaram expressivas alterações no espaço a que se reportam os autos. O que era inicialmente o espaço que integrava terrenos pertencentes a poucos proprietários, com um caminho estreito, com cerca de dois metros de largura e que permitia a passagem de carros de bois e de tratores e o acesso aos terrenos, não deixando apesar disso de ser qualificado como via pública nomeadamente por J… (05m:30) e por E…, presidente da Junta de Freguesia entre 1982 e 2005 (09m:57s), veio a transformar-se em área integrando terrenos pertencentes a um maior número de proprietários, justificando um arruamento de acesso que não se restringisse a um caminho estreito de terra batida, o que se concretizou com a intervenção das autarquias locais, sobretudo a Junta de Freguesia, visando o alargamento da via e a sua ligação a outro arruamento, com o respetivo alcatroamento.
Não se concretizou no entanto um dos objetivos, o de efetuar a ligação desta via a outro arruamento. Resulta de diferentes depoimentos que a não concretização deste objetivo se ficou a dever a oposição de F…, pai da autora e então proprietário do terreno, ainda que sem inteira concordância em relação às razões que por este foram invocadas e com a afirmação de que a sua oposição se reportava à concreta proposta que lhe foi apresentada e que ele próprio apresentou alternativa que não foi aceite.
J… relatou que a via, depois da intervenção da Junta de Freguesia, com o alargamento e alcatroamento, passou de “caminho” a “estrada” (09m:20s), e assim foi até “à beira do …” (estrutura também denominada “espigueiro”), implantado no prédio da ré, não se concretizando a ligação para além deste e até à outra estrada por oposição do referido F…, cunhado da testemunha.
As testemunhas S… (06m:50s) e U… (15m:50) confirmam como impedimento à ligação de vias
a oposição de F…, sendo concordante o relato da testemunha M… (23m:40s).
E… (16m:20s; 18m:00s; 24m:00s), dando conta de que se pretendia fazer a ligação entre … e … e confirmando a oposição de F… ao traçado pretendido para além do caminho já existente, afirmou que o mesmo se dispunha a aceitar a ligação por outra via, que o depoente considerou no entanto ilógica e que não foi aceite, inviabilizando a pretendida ligação. Esta afirmação relativiza a oposição de F…, na certeza de que não se evidenciam as razões de cada uma das partes e os concretos fundamentos que justificam a qualificação como ilógica.
A transformação da via (alargamento e alcatroamento) consolidou a sua qualificação como arruamento, permitindo uma utilização da via em termos anteriormente impossíveis.
A testemunha M… (29m:20s), esclarecendo que então já não integrava a Junta de Freguesia, confirma a deliberação de atribuir nome à via a que se reportam os autos. Este facto não retira credibilidade ao seu relato, onde expressa conhecimento efetivo dos factos; acresce que, além de não se suscitar a existência de elementos que contrariem o relato em causa, há elementos que o confirmam, nomeadamente os documentos de fls. 28 e 29 (levantamento topográfico) e 30 (mapa desdobrável da Freguesia …), onde consta explicitamente assinalada a “Travessa …”, correspondendo ao traçado do arruamento a que se reportam os autos, entroncando no limite poente na Rua … e desenvolvendo-se a partir daí de poente para nascente, até junto da entrada da casa da ré, próximo de um espigueiro aí existente.
Também não prejudica a qualificação como arruamento e a atribuição de topónimo o facto de se tratar de uma via sem ligação a outro arruamento numa das suas estremas.
Assim, não se vê razão válida para excluir dos factos provados o parágrafo 31 (“Foi entretanto deliberado pela respetiva Assembleia incluí-lo na toponímia da freguesia, como Travessa …”).
4.2.2 Esta conclusão é extensível à matéria do parágrafo 18, parte final.
Na verdade, diferentes testemunhas relatam a passagem de pessoas a pé, sem prejuízo de serem essencialmente os proprietários dos terrenos confinantes os principais utilizadores da via.
A testemunha J… afirma a passagem de pessoas a pé (09m:50s).
A testemunha M… (09m:40s), evidenciando alguma dúvida, admite a passagem de pessoas a pé, salientando a existência de um carreiro; E… (08m:20s; 09:58s) afirma a passagem de pessoas a pé, pela via que a Junta de Freguesia considerava um caminho público.
A testemunha S…, relatando que a deslocação em viatura automóvel não passava para além do terreno da ré, até junto do espigueiro onde termina o alargamento da via, afirma a passagem de pessoas a pé (27m:05s).
Y… (08m:55s; 11m:40s) e X… (26m:50s) afirmam igualmente a passagem de pessoas a pé, o que é também relatado por K… (04:00s), ainda que salientando que eram sobretudo as pessoas dos terrenos.
Também aqui não se vê que haja uma prova consistente que desacredite os relatos que se deixam referenciados e que justifique a alteração do parágrafo 18 dos factos provados. Não tem essa virtualidade o facto da testemunha L…, instada a identificar uma concreta pessoa que passasse na aludida via, não o ter feito ou da testemunha Q… não o saber.
4.2.3 No parágrafo 32 dos factos provados consta que a via a que se reportam os autos, desde que foi asfaltada e até Abril de 2005, sempre foi limpa pelos cantoneiros da Junta de Freguesia, que executavam a limpeza em toda a Travessa …, a qual termina junto à entrada da casa da ré, mais concretamente junto a um espigueiro ali existente.
Também aqui a recorrente pretende que a prova produzida impõe que se julgue este facto não provado.
A testemunha M…, que como se disse foi secretário da Junta de Freguesia, o que se verificou desde 1985 e durante dois mandatos, afirmou que até ao alcatroamento a autarquia não limpava o terreno, “até lá não mexeu uma palha” (10m:08s); esclareceu no entanto que, depois do alcatroamento, a Junta começou a limpar, tal como fazia com a generalidade das demais vias (31m:30s).
Este relato mostra-se compatível com o que foi declarado pelas testemunhas J… (06m:25s), K… (04m:30s) e U… (08m:25s), afirmando que antes do alargamento e alcatroamento cada um limpava à sua frente, reportando-se aos proprietários dos diferentes terrenos por onde passava o caminho.
Com alguma divergência, a testemunha L… (05:08) afirma que mesmo antes do alcatroamento da via já era a Junta que limpava o caminho, mencionando que era o “Sr. Z…” quem concretamente o fazia. A testemunha parece reportar-se ao período entre o alargamento da via (em que a autarquia teve intervenção efetiva e que ocorreu em 1984) e o alcatroamento (alguns
anos depois, em 1989).
A testemunha S… (04m:50s; 22m:00s) relata também que a Junta não limpava até ao alcatroamento da via, sendo esse trabalho feito pelos donos dos prédios que com ela entestavam, passando a limpar depois do alcatroamento.
A ponderação destes elementos não evidencia divergência relevante de relatos e legitima a convicção afirmada pelo tribunal recorrido, relativamente a este facto, pelo que também em relação ao parágrafo 32 não se justifica a pretendida alteração, não se verificando erro de julgamento.
4.2.4 A recorrente, relativamente ao alcatroamento, pretende que a Junta de Freguesia … apenas alcatroou o caminho até determinado sítio, nomeadamente até ao local onde foi colocada a cancela pela ré, e que o restante caminho, desde o local onde se encontra a cancela e a entrada da casa da ré foi alcatroado a expensas desta e do seu irmão entretanto falecido.
Relativamente à comprovação deste facto remete para os depoimentos de E… e G….
É certo que o primeiro, presidente da Junta de Freguesia de 1982 a 2005, relatou (35m:25s) que o alcatroamento feito pela Junta foi até ao local onde veio a ser instalada a cancela pela ré, resultando a partir daí do entendimento da ré e de seu irmão com o empreiteiro. Este, G…, afirmou (06m:20s; 07m:10s) que um troço do alcatroamento foi pago pela Junta e a partir da cancela pela ré; em qualquer dos casos, não se mostram esclarecidas as concretas condições do alegado acordo.
Este facto também não se mostra confirmado por outros meios de prova, nomeadamente pelo relato de M… (21m:10s) que, à data, integrava a Junta de Freguesia.
Conforme resulta da matéria de facto provada, a via em causa foi alcatroada em duas ocasiões distintas, inicialmente em 1989 e depois em 1999, sem que também aqui se veja esclarecido o alcatroamento alegadamente assumido pela ré e seu irmão.
Por outro lado, não se vê comprovado – nomeadamente por via documental – esse alegado acordo e pagamento por parte da ré, o que seria normal perante o tipo de negócio e as respetivas circunstâncias.
Finalmente, este facto não se mostra alegado nos articulados.
Conclui-se por isso que não há uma razão válida para fazer, a este propósito, aditamento aos factos provados.
4.2.5 A ré/recorrente pretende que, ainda que não se considerasse como provado que a Junta de Freguesia só construiu a estrada até à cancela colocada pela ré, sempre seria relevante a desistência da Junta em estabelecer a ligação entre os dois aludidos lugares ou povoações, utilizando para o efeito o antigo caminho particular (ou atravessadouro) e a consequente reversão das parcelas de terreno cedidas pelos proprietários confinantes, dado que teria sempre feito perder o carácter dominial do troço do caminho existente, a dita travessa, visto que deixou de servir o interesse coletivo, deixando de ter utilidade pública.
Como anteriormente se assinalou, não se concretizou um dos objetivos do alargamento do caminho e respetivo alcatroamento, o de efetuar a ligação desta via a outro arruamento, resultando de diferentes depoimentos que a não concretização deste objetivo se ficou a dever a oposição de F…, pai da autora e então proprietário do terreno, ainda que sem inteira concordância em relação às razões que por este foram invocadas, mencionando E… que o mesmo se dispunha a aceitar a ligação por outra via, que considerou no entanto ilógica e que por isso não aceitou, com a ressalva que acima se assinalou a este propósito; a testemunha M…, ex-secretário da Junta, relatou que, depois de um acordo inicial com N…, irmão da ré e entretanto falecido, o dito veio a ser dado como não dito (26m:55s), impedindo a plena concretização do projeto inicial.
Este facto não obstou, no entanto, a que se tenha concretizado o alargamento do caminho e o seu repetido alcatroamento, salientando-se que o alargamento ocorreu em 1984 e o alcatroamento em 1989, vindo a ser efetuado em 1999, isto é, dez anos depois do primeiro, um novo alcatroamento pela Junta de Freguesia e apesar de subsistir então a situação de impedimento à ligação de arruamentos e a sua inexecução.
A ré alega na respetiva contestação que, perante esse reiterado propósito que obstava à ligação de arruamentos, a Junta de Freguesia de … comunicou aos moradores que desistia daquele propósito e, desta sorte, estavam autorizados a repor no estado inicial os respetivos prédios e, consequentemente, a reocupar a parcela de terreno que cada um dos confinantes havia disponibilizado nesse pressuposto.
Reporta-se para o efeito ao documento de fls. 114 e 115 (cópia de “Acta n.º 3/2005”), relativo a
reunião da Junta de Freguesia de …, ocorrida em 31 de março de 2005, na qual, apreciando pretensão formulada pela ré e perante a subsistência da situação que impedia a ligação de arruamentos, se considerou que “o terreno em causa passará a ser novamente propriedade da senhora D…, retomando a mesma a respetiva posse, até porque nunca do ponto de vista formal, existiu qualquer aceitação por parte desta Junta de Freguesia”.
Aí se consigna que, “depois de discutido o assunto, o mesmo foi aprovado por unanimidade pelos membros desta Junta de Freguesia”, sendo lavrada ata, “assinada pelos membros da Junta que nesta participaram”, mostrando-se assinada pelo “presidente: E…”, pelo “secretário: W…” e pelo “tesoureiro: AB…”.
E… relatou em audiência de julgamento que esta deliberação, em que participou, foi feita porque era o que tinham combinado com a casa do Carvalho (reporta-se ao prédio da ré, conhecido com essa denominação), “se a rua não fosse até ao fim, eles retomarem aquela parte” (37m:35s).
W… reconheceu a sua letra na redação da ata (04m:18s), confirmando a deliberação que aí consta e esclarecendo que foi tomada a partir de informação do presidente da Junta (07m:50s), não sabendo ele próprio a concreta parte do terreno em questão, nem tal foi esclarecido pelo presidente da Junta (08m:20s). Afirmou que nada foi dito aos restantes proprietários dos terrenos (08m:50s), não se demostrando por outros meios a existência de qualquer comunicação.
A ponderação destes elementos não permite afirmar – como pretende a recorrente – que a Junta de Freguesia de … tenha comunicado aos moradores que desistia daquele propósito e, desta sorte, estavam autorizados a repor no estado inicial os respetivos prédios e, consequentemente, a reocupar a parcela de terreno que cada um dos confinantes havia, nesse pressuposto, disponibilizado.
Apenas resulta que em 31 de março de 2005 a Junta de Freguesia deliberou que o terreno em causa passaria a ser novamente da ré, retomando a mesma a respetiva posse, entendendo que do ponto de vista formal nunca existiu qualquer aceitação por parte da Junta.
Esta deliberação não se reporta à generalidade dos prédios que entestam com o caminho que constitui a Travessa …; por outro lado, não se evidencia que tenha sido por qualquer modo comunicada aos respetivos proprietários.
Assim, apenas se prova que, em 31 de março de 2005, o presidente, o secretário e o tesoureiro da Junta de Freguesia … apreciando pretensão formulada pela ré e invocando a subsistência da situação que impedia a ligação de arruamentos, considerou que o terreno em causa passaria a ser novamente propriedade da ré, retomando a mesma a respetiva posse.
4.2.6 A recorrente pretende ainda que há erro de julgamento em relação aos parágrafos 27 e 35 a 37, acima transcritos, defendendo que os factos aí enunciados devem julgar-se não provados.
A ponderação de tudo o que antes se deixou enunciado não permite a pretendida alteração.
X…, proprietário de estaleiro de madeiras a que se acede pela Travessa …, assinalou as diferenças da via entre o momento atual e aquele em que adquiriu o terreno, salientando que, quando comprou, a via não permitia o acesso a camiões e que, no estado atual, os mesmos passam por essa estrada e acedem às instalações (02m:00s; 03m:45s).
A testemunha M… relata que o caminho em questão é que servia, quer à ré, quer aos autores, para acesso ao respetivo terreno (08m:42s); as alterações entretanto efetuadas, nomeadamente os muros construídos nos prédios que agora pertencem aos autores e aos réus, foram feitas com o consentimento da Junta de Freguesia que procedeu ao respetivo alinhamento (16m:40s); a situação atual já não o permite, salientando a testemunha que, se todos os proprietários confinantes que cederam terreno o reocupassem, não conseguiriam passar carros (32m:38s).
A testemunha J… confirma que a cancela instalada pela ré impede a passagem para o terreno da autora, permitindo apenas a passagem a pé (14m:06s), o que é confirmado pela observação dos documentos fotográficos de fls. 33 e 34, onde é visível o portão colocado pela ré e também o portão de acesso ao prédio dos autores (fls. 34).
A testemunha E… relatou conhecer o terreno pertencente aos autores e a que se reportam os autos, já depois do alargamento e alcatroamento da via, tendo lavrado e fresado o referido terreno; confirmou o acesso ao terreno dos autores, pela via a que se reportam os autos (01m:30s; 04m:00s).
Q… afirmou conhecer a Travessa …, onde se desloca de vez em quando; sendo fornecedor de farinhas à ré, aí se desloca para esse efeito, assinalando que agora a ré tem que vir abrir o portão, ele descarrega e vai-se embora (01m:20s; 09m:15s), o que confirma o impedimento de ultrapassar o portão; relatou que ainda antes do alargamento e alcatroamento da via foi lavrar o terreno que agora é dos autores, sem que então existisse qualquer cancela ou restrição para aceder ao mesmo, resultando do seu relato que acedeu pelo caminho a que se reportam os autos, entrando no terreno que agora é dos autores pelo local assinalado no documento fotográfico de fls. 34, sem que existissem então quer o muro e portão que agora delimitam o prédio dos autores, quer a cancela implantada pela ré (02m:20s; 06m:05s).
Os restantes elementos de prova não parecem contradizer os factos em apreciação, donde se conclui que não há razão válida para contrariar a convicção afirmada pelo tribunal recorrido relativamente aos parágrafos em referência (27 e 35 a 37).
5. A alegada insubsistência do fim de utilidade pública.
Na sentença recorrida considerou-se que, perante a matéria de facto provada, “podemos concluir que o caminho em questão é utilizado desde tempos imemoriais, pela generalidade das pessoas, e não só pelos proprietários dos terrenos, mesmo após o alargamento e melhoria do caminho, que passou a via a denominar-se Travessa …, podendo pela referida via aceder quaisquer veículos automóveis, só deixando de o ser após a Ré ter colocado espigões em ferro no chão do referido caminho (Travessa …), imediatamente antes de a mesma atingir a confrontação com o prédio descrito em 1), para quem vem no sentido poente/nascente, ou seja, vindo do lugar de … para a Travessa de … e colocou um portão, fechado com aloquete, em toda a largura da via, impedindo a passagem de qualquer veículo, e bem assim impedindo os Autores de por aí acederem ao seu prédio com qualquer viatura ou meio de transporte de bens.
Temos, pois, provados os dois pressupostos, dos quais depende a qualificação de um caminho como pertença do domínio público, a saber o uso direto e imediato pelo público, bem como a imemoriabilidade de tal uso.
Por outro lado, face à interpretação restritiva que foi dada ao Assento de 19/04/1989, torna-se ainda necessário que o fim visado com a utilização de tal caminho não seja a soma de um conjunto de interesses individuais, mas relevante e comum à generalidade dos seus utilizadores, de modo a que se possa concluir pela afetação pública.
Ora, resultou da matéria fáctica que que o referido caminho não era apenas utilizado pelos proprietários dos prédios confinantes, mas também utilizado por quaisquer pessoas, que pretendiam aceder da povoação de … a outra, via que consta da cartografia municipal, podendo pela referida via aceder quaisquer veículos automóveis.
Perante todo este circunstancialismo fáctico, concluímos assim que o caminho em causa está afeto a um interesse coletivo, comum à generalidade dos respetivos utilizadores, qual seja a ligação da povoação de … a outra.
Por conseguinte, conclui-se que o caminho, com as caraterísticas e localização dadas como provadas, é pertença do domínio público, porquanto trata-se do exercício do poder de facto pelo público em geral, desde tempos que se perderam na memória dos homens, sem que tenha sido posta em causa e havido oposição”.
Conclui-se perante isso pela total procedência da ação.
Mas mesmo considerando que, perante a matéria de facto provada, não se pode concluir no sentido da sentença recorrida, quanto à utilização do caminho desde tempos imemoriais, e apenas se pode afirmar que a dominialidade resulta da intervenção de entidade pública, no caso, a Junta de Freguesia, a conclusão não é diferente.
Como se afirma no acórdão proferido nos presentes autos pelo Supremo Tribunal de Justiça, reportando-se ao acórdão de uniformização de jurisprudência de 19 de abril de 1989, onde se conclui que “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público”, não pode o mesmo interpretar-se «no sentido de excluir a dominialidade de um caminho que, tendo sido construído ou legitimamente apropriado, em data recente (portanto estando ausente o requisito da imemoriabilidade) por pessoa coletiva de direito público (por ex. pelo Município ou Junta de Freguesia), foi por ela afetado ao uso público, servindo o interesse coletivo que lhe é inerente.
Nestes casos, desde que se prove que o caminho foi construído ou foi legitimamente apropriado por uma autarquia, que exerce sobre ele, jurisdição, administrando-o, melhorando-o e conservando-o, não pode duvidar-se que se trata de um caminho público, pertencente àquela entidade pública, ou seja, que estamos em presença de um bem dominial possuído pela autarquia, como tal insuscetível de apropriação particular, inalienável e imprescritível, independentemente da sua afetação ao uso direto e imediato do público nada ter de imemorial».
No caso dos autos e como resulta do que antes se mencionou, o caminho em discussão
sobrepõe-se a um caminho pré-existente e que, até 1984, não ultrapassava os dois metros de largura. Nesse ano, a Junta de Freguesia de … quis alargar e beneficiar tal caminho transformando-o numa via mais larga e com melhores acessos para a circulação e para tanto solicitou aos donos dos prédios confinantes a cedência de terreno, o que foi correspondido pela generalidade dos donos dos prédios que confinavam com o caminho, incluindo o pai da autora (que cedeu uma faixa com cerca de um metro e meio de largura em toda a extensão que confina a sul com o referido caminho) e a ré (que cedeu também uma faixa com cerca de dois metros de largura, do lado oposto).
Como resulta do que antes se mencionou, havia ainda o propósito de obter a ligação desta via (Travessa …) a outra via, pela estrema nascente, o que não se concretizou pelas razões anteriormente mencionadas.
Apesar disso e sempre pela intervenção da Junta de Freguesia, tendo sido alargada logo em 1984, a via foi alcatroada em duas datas distintas (1989 e 1999), daí resultando uma diferença de utilização da aludida via.
Pretende a recorrente que perante os obstáculos à ligação de arruamentos, a Junta de Freguesia de … comunicou aos moradores que desistia daquele propósito e, desta sorte, estavam autorizados a repor no estado inicial os respetivos prédios e, consequentemente, a reocupar a parcela de terreno que cada um dos confinantes havia disponibilizado nesse pressuposto.
Não se demonstra este facto, dado que apenas se prova que foi efetuada comunicação nesse sentido à ré. E bem se compreende que assim seja, na medida em que não está apenas em causa a ligação de vias, mas também a beneficiação da via existente, importando também salientar que esta realidade (o alargamento e alcatroamento da via) levou a alterações em diferentes prédios, tendo aqui especial relevância o prédio dos autores, em que o então possuidor, perante o alargamento da via, tapou o seu prédio em relação ao caminho com muro em blocos de cimento, colocando um portão na entrada para o seu prédio na extremidade da confinância sul com a estrada Travessa ….
Importa também salientar que, mesmo que se admitisse como legítima a colocação do portão, por parte da ré, impedindo o acesso ao troço final da referida travessa, sempre a concreta implantação não corresponde ao que seria a reposição da situação anterior à intervenção da Junta de Freguesia, com a ampliação da via e alcatroamento. Na verdade, impunha-se que, nesse caso, se tivesse em consideração a largura de cerca de dois metros correspondente ao caminho anteriormente existente e a largura de cerca de um metro e meio correspondente ao recuo do prédio que agora pertence aos autores, em toda a extensão da confinância sul com o referido caminho, com cerca de 14,10 metros, incluindo a largura do portão. A simples observação dos documentos fotográficos de fls. 33 e seguintes evidencia que tal não se verificou, ocupando o portão praticamente toda a largura da via, fechado com aloquete, unicamente com um pequeno espaço no lado oposto ao da estrema do prédio dos autores e que apenas permite passagem a pé.
Perante estes elementos, não se vê fundamento consistente para legitimar a ação da ré, com a consequente improcedência do recurso.
III)
Decisão:
Pelas razões expostas, acordam os juízes desta secção nos seguintes termos:
a) Aditar aos factos provados o parágrafo 38, com a seguinte redação:
«Em 31 de março de 2005, o presidente, o secretário e o tesoureiro da Junta de Freguesia de … apreciando pretensão formulada pela ré e invocando a subsistência da situação que impedia a ligação de arruamentos, consideraram que o terreno em causa passaria a ser novamente propriedade da ré, retomando a mesma a respetiva posse».
b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão proferida e que é objeto de recurso.
Custas a cargo da ré/recorrente.
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Porto, 21 de novembro de 2016.
Correia Pinto
Ana Paula Amorim
Manuel Domingos Fernandes