Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1423/17.1PEGDM.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: HORÁCIO CORREIA PINTO
Descritores: CRIME DE DANO
LEGITIMIDADE PARA APRESENTAR QUEIXA
Nº do Documento: RP202102101423/17.1PEGDM.P1
Data do Acordão: 02/10/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – No crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa, nos termos do artigo 113.º, n.º 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa destruída, no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada, e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afetado no seu direito de uso e fruição (assim, o acórdão uniformizador de jurisprudência n.º 7/2011)
II – Para aferir da legitimidade para apresentação de queixa pelo crime de dano, basta que se prove que o pretenso ofendido usava e fruía legitimamente a coisa, não sendo necessário provar (documentalmente ou de outro modo) a que título o fazia (como proprietário, possuidor, locatário ou por ato de mera tolerância de terceiro).
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 1423/17.1PEGDM.P1
2ª Secção Criminal- Tribunal da Relação do Porto.
Relatório.
No processo acima identificado, com sentença de 30/01/2020, depositada nesta mesma data, decidiu o Tribunal a quo, julgar a acusação parcialmente procedente e consequentemente, absolver e condenar o arguido/recorrente B…, filho de C… e D…, nascido a ...11.1983, divorciado, titular do cartão de cidadão n.º …….., residente na Rua…, .., …, nos seguintes termos:
a) Absolver da prática de um crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153, nº 1 do Código Penal.
b) Condenar na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa à taxa diária de €8,00 (oito euros), num total de €200,00 (duzentos euros) pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212, nº 1 do Código Penal, e
c) Na procedência parcial do pedido de indemnização civil, contra si deduzido por E… vai condenado no pagamento de €45,00 (quarenta e cinco euros) e absolvido quanto ao demais.

Inconformado com a decisão veio o arguido recorrer da decisão alinhando as seguintes conclusões:
1ª - A sentença recorrida julgou incorrectamente a matéria de facto que conduziu à condenação do arguido, designadamente no que se refere aos factos provados sob os artigos 11, 12 e 16 da Sentença recorrida.
2ª - Devendo os mesmos serem considerados como não provados.
3ª - Os meios probatórios constantes do processo impunham decisão diversa da recorrida.
4ª - Alheou-se o tribunal recorrido de uma realidade que era imprescindível apurar e provar.
5ª - Bastando-se com os documentos de fls. 117 (fotos) e 118 dos autos (orçamento) e com os depoimentos da ofendida e suas testemunhas.
6ª - Não cuidando de saber se a ofendida E… era efectivamente titular do invocado contrato de arrendamento, ou seja, sua arrendatária.
7ª - E se nessa qualidade, detinha título legítimo que fundamentasse o seu direito à queixa.
8ª - O que inquinou a decisão de direito que se lhe seguiu.
9ª - Como decorre do artigo 1069 do Código Civil, o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
10ª - Na falta de redução a escrito que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida por lei, nomeadamente por exibição do respectivo recibo de renda.
11ª - Não se encontra junto aos autos nem a cópia do contrato e arrendamento celebrado.
12ª - Nem qualquer recibo de renda que provasse ser a ofendida a arrendatária do mesmo.
13ª - Tendo em conta que, nos termos da Lei, a prova do arrendamento se faz por via documental.
14ª - Não podia o Tribunal recorrido concluir pela existência do contrato de arrendamento.
15ª - Por não constar dos autos o contrato de arrendamento (ou recibo de renda) que legitimaria o título legítimo do gozo da coisa.
16ª - E o consequente direito à queixa pelo crime de dano e ao pedido de indemnização cível aí formulado.
17ª - É nesse mesmo sentido que se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/2011, no âmbito do Processo nº 456-08.3GAMMV – FJ, também enunciado na decisão recorrida, ao concluir que: “No crime de dano … é ofendido (…), o proprietário (…) e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição”.
18ª - Ao decidir pela condenação do arguido, a sentença recorrida violou o artigo 410, nº2, alínea a) e 412, nº3 do Código do Processo Penal ex vi artigos 212, nº1 e 213, nº1 do Código Penal, e o artigo 1069º do Código Civil.
19ª - Deve a decisão recorrida ser revogada.
20ª - Absolver-se o arguido da prática do crime de dano e do pedido de indemnização cível formulado.

O recurso foi liminarmente admitido nos termos de fls. 658.
Resposta do MP:
I - Não se conformando com a Douta Sentença proferida nos apresentes autos, vem o arguido interpor recurso da mesma, alegando em síntese, que a) a prova produzida não pode conduzir à conclusão no sentido da condenação e que b) houve erro notório na apreciação da prova produzida.
II - O recorrente alega ter havido erro notório na apreciação da prova nos termos do artº 410, nº 2 alª c) do CPP, fundamento com o qual não concordamos.
III - Entendemos, porém, que não se pode qualificar como erro na apreciação da prova, erro esse que se sobreponha à própria livre apreciação da prova, uma mera discordância do recorrente em relação à forma como o tribunal recorrido terá apreciado a prova produzida, sem mais.
IV - Ora este é precisamente um caso em que o recorrente não concorda com a relevância que o Tribunal recorrido deu ao depoimento das testemunhas ouvidas em audiência e à credibilidade, isenção e idoneidade que lhe reconheceu.
V - O que não se trata, obviamente, de um erro na apreciação da prova, uma vez que apenas o julgador pode aferir os aspectos que se desenrolam perante si, em audiência de julgamento, e que vão sustentar a sua decisão, merecendo-lhe credibilidade bastante para lhe permitir ultrapassar um estado de dúvida.
VI - As razões que subjazem ao juízo do julgador recorrido, e que o levaram a dar credibilidade suficiente aos depoimentos produzidos, não são sindicáveis da forma como o recorrente o pretendem fazer, uma vez que têm origem no processo interno de formação da decisão, e não contrariam as regras da experiência a que se refere o artº 127 do Código de Processo Penal.
VII - A forma como o Tribunal chegou á conclusão da prova cabal do dolo neste caso, mediante a prova que livremente avaliou, não configura em caso algum o vício do erro notório na apreciação da prova, estando plenamente provados todos os pressupostos da prática do crime pelo qual o arguido vinha acusado.
VIII - Pelos motivos expostos, apenas podemos concluir que a decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra.

Já neste Tribunal Superior o Senhor Procurador Geral-Adjunto elaborou parecer, que parcialmente se descreve.
Seguindo a linha de raciocínio do recorrente: dispõe o artº 1069, do Cód. Civil:
(…)
Nos termos do artº 125, do CPP, são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei.
A prova testemunhal (artº 128, do CPP), a prova por declarações do assistente (artº 145, nº 1, do CPP), e a prova documental (artº 164, nº 1, do CPP) são meios de prova legalmente permitidos, sendo que, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artº 127, do CPP).
A prova do pagamento da renda não está, ao contrário do pretendido pelo recorrente, dependente da emissão de qualquer recibo.
Ora, não lhe assistindo razão quanto às invocadas necessidades de redução a escrito do contrato de arrendamento e de existência de recibo de renda, impunha-se que o recorrente, cumprindo o disposto no artº 412, nº 3, alª b), do CPP, especificasse que concretas provas impõem decisão diversa da recorrida.
Não o fazendo mostra-se definitivamente fixada a factualidade provada no artº 212 do CP.
Nos termos do artº 212, do Cód. Penal, quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa (nº 1), sendo que o procedimento criminal depende de queixa (nº 3).
Quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário, o ofendido, considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – cfr. artº 113, nº 1, do Cód. Penal. O Supremo Tribunal de Justiça uniformizou jurisprudência no sentido de que:
2 Acórdão nº 7/2011, de 27/04, in DR nº 105/2011, Série I, de 31/05/2011.
“No crime de dano, previsto e punido no artigo 212, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa «destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada», e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição”.
Ora, sendo, a assistente, arrendatária da habitação onde se encontrava colocada a caixa de correio danificada pelo arguido, possui “título legítimo” no que ao gozo da mesma concerne, cujo direito de uso e fruição viu afectado pela conduta do arguido.
Assim, é ofendida para efeito do disposto no artº 113º, nº 1, do Cód. Penal.
Termos em que se emite parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelo arguido, B….

O arguido respondeu ao parecer reiterando a argumentação expendida no recurso e alegando que o bem não foi afectado, pois a caixa do correio continuou operacional.

Cumpriu-se o artº 417 nº 2 do CPP.

Colhidos os vistos legais foram os autos submetidos a conferência.
Mantem-se a regularidade da instância.
Nada obsta ao conhecimento do mérito.
Fundamentação.
Da decisão recorrida.
Factos provados.
(…)
11. O arguido B…, desferiu, então, uma pancada com tal objecto na caixa de correio, amolgando-a na parte frontal esquerda.
12. Com tal conduta causou à assistente E…, que era a arrendatária daquela habitação, um prejuízo no valor de 45,00€.
13. Agiu o arguido B… de forma livre, consciente e voluntária, com a intenção concretizada de danificar propriedade alheia, sabendo que a sua conduta configura ilícito penal.
(…)
Motivação:
Prova Documental:
(…)
- Foto de fls. 117 e orçamento de fls. 118, dando nota do estado em que ficou a caixa do correio e do custo da sua reparação.
(…)
Prova por declarações (breve síntese):
Arguido/assistente B….
Referiu ter recebido um SMS de um amigo a alertá-lo que a mãe estava em dificuldades perante a sua ex-mulher e a família desta. Por isso, arrancou imediatamente do seu local de trabalho para a casa da sua ex-mulher e, aí chegado, e vendo a mãe cercada, pegou num tubo metálico que trazia consigo porque, segundo disse, é mecânico e tem aquele tipo de instrumentos no carro, tendo vibrado com o mesmo na caixa do correio daquela para produzir barulho e fazer-lhes notar que parassem de molestar a sua mãe.
Arguida E….
(…)
Algum tempo depois chegou o arguido B… a perguntar o que é que estavam a fazer à sua mãe, insultando-as e ameaçando-as e, depois disso, batendo com um bastão na caixa do correio. Enquanto lá esteve, a mãe do arguido tentou acalmá-lo. Quando a queixosa disse que ia chamar a polícia, o arguido ausentou-se do local.
Negou terminantemente ter insultado o ex-marido e a mãe deste.
Arguida F….
Referiu que a irmã lhe ligou a dizer que a ex-sogra lhe tinha tocado à campainha, tendo decidido ir ao local para a ajudar se tal fosse necessário. Interveio na discussão que se gerou com a mãe do arguido, dizendo-lhe para deixar a irmã em paz. Assistiu à chegada do ex-cunhado, tendo relatado o comportamento deste, nomeadamente as ameaças que lhe dirigiu e à irmã e a pancada com o ferro na caixa do correio.
(…)
Assistente D….
(…)
Assentiu que o seu filho deu com um tubo na caixa do correio, “talvez por nervos”, disse.
Prova Testemunhal (breve síntese):
G….
Mãe das arguidas E… e F….
Assomou a casa da primeira por aquele lhe ter ligado a dizer que a sua ex-sogra estava a tocar à campainha. Deu conta da discussão que se gerou, e de o seu ex-genro ter dado com um ferro na caixa do correio e ter ameaçado as suas filhas.
O mesmo já não sucede, porém, no que concerne ao facto de o arguido ter batido com um ferro na caixa do correio da casa habitada pela sua ex-mulher.
Tal facto foi referido por todos quantos estavam presentes no local e depuseram em audiência e está também documentado numa das fotografias acima enunciadas, pelo que assoma incontroverso.
Não ficou o Tribunal convencido, porém, que o arguido só assim tivesse agido para chamar a atenção de quem estava a molestar a sua mãe. Desde logo porque até esta referiu não ter sido agredida ou fisicamente incomodada. Depois, porque seja a sua ex-mulher, sejam a irmã e mãe desta, todas referiram que aquela pancada surgiu já num momento avançado da presença do arguido e não logo que o mesmo assomou ao local. Aliás, a sua mãe chegou até a referir que o mesmo teria atuado dessa forma por causa dos nervos.
Assim, tendo o mesmo admitido tal facto e não se tendo provado as circunstâncias eventualmente justificativas pelo mesmo invocadas, considerou-se provado este trecho da acusação e não provado aquilo que o mesmo referiu seja na sua acusação particular seja na contestação.
(…)
Do direito
(…)
Dano
De acordo com o disposto no artº 212º, nº1 do CP (…)
Este tipo de crime tem como elementos subjectivos (apenas no que respeita ao caso concreto):
1. Danificar. Sendo que, “a danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição. (...) A danificação resulta em boa medida numa destruição parcial. (...) A coisa tem de mostrar agora uma deficiência tal que o seu estado actual se afasta negativamente do estado anterior”- Manuel da Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo II, p. 222 e Wolff citado na mesma obra e página;
2. Coisa alheia. Sendo que “a expressão coisa alheia (...), não é só a propriedade plena da coisa, mas também o direito ao gozo, fruição e guarda dela, pois é esse o interesse próprio do sujeito passivo do crime”- Acórdão do TRP, de 21 de maio de 1986, BMJ, 357, 448.
Neste ponto cabe dizer que, no crime de dano, previsto e punido no artigo 212, nº 1, do Código Penal, é ofendido, tendo legitimidade para apresentar queixa nos termos do artigo 113, nº 1, do mesmo diploma, o proprietário da coisa «destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada», e quem, estando por título legítimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição - vide AUJ 7/2011, publicado no Diário da República nº 105/2011, Série I de 2011-05-31.
Não releva, pois, processualmente, o facto de a ofendida ser mera arrendatária da casa em questão. Avançando.
Como ficou demonstrado, o arguido, por a ter atingido com uma barra de ferro, amolgou a caixa do correio da casa onde habita a ofendida.
Fê-lo deliberadamente, sabendo das inevitáveis consequências do seu comportamento na venalidade da coisa atingida.
O dano provocado tem uma representação económica de €45,00.
Reunidos que estão os pressupostos da incriminação em causa, terá o arguido B… de ser condenado pela prática do crime de que se encontrava acusado.
Pedido de indemnização civil.
(…)
Quanto aos danos patrimoniais:
Está provado que a conduta do arguido originou na esfera patrimonial da demandante E… um prejuízo de €45,00, correspondente ao valor necessário para a reparação da caixa do correio.
A recolocação da arguida no status quo ante não é possível através da reconstituição natural, antes apenas pela entrega de quantia equivalente (vide artº 566, nºs 1 e 2 do Código Civil).
Por isso, será o arguido condenado a pagar à demandante civil tal quantia.
(…)
Da apreciação de mérito.
O objecto do recurso define-se nas conclusões que sumariam a motivação – artº 412 nº 1 do CPP.
O recorrente não concorda com a condenação alegando insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artº 410 nº 2, alª a) do CPP). Insurge-se contra os factos narrados nos pontos nºs 11, 12 e 16 da sentença recorrida. Os meios de prova impunham decisão diversa, necessariamente uma que absolvesse o recorrente da prática do crime de dano.
O tribunal devia certificar-se se a ofendida E… é efectivamente titular de contrato de arrendamento, se é arrendatária da casa, onde se produziu o dano na caixa de correio. Aquela só tem legitimidade para exercer a queixa caso demonstre título legítimo. No fundo pretende-se alegar que a ofendida não tem legitimidade para o exercer o direito de queixa.
Objectivamente o recorrente alega um vício do texto da decisão recorrida (artº 410 nº 2, alª a) do CPP) porém, logo de imediato (ver ponto nº 18 das conclusões) invoca um erro de julgamento previsto nos termos do artº 412 nº 3 do CPP.
Erro de julgamento, como impugnação alargada da matéria de facto, precisa, para ser invocado, no cumprimento do ónus de especificação, de assinalar, os factos incorrectamente julgados e também as concretas provas, fundamento de decisão diversa, bem como as provas que devem ser renovadas. Decididamente o recorrente não cumpre este requisito, como também não cumpre o previsto no nº4 daquele artigo, referente à narrativa das passagens onde se funda a impugnação, nesta circunstância da prova suporte daqueles factos descritos na sentença e agora, alargadamente impugnados. Limita-se a mencionar os pontos nºs 11, 12 e 16. O recorrente é muito sucinto, alegando que não há prova para classificar a ofendida como arrendatária e por outro lado confunde conceitos de vício do texto da decisão recorrida, com erro de julgamento.
Justifica-se apreciar se há algum vício do texto da decisão recorrida, designadamente os enunciados no artº 410 nº2 do CPP: insuficiência, contradição ou erro na matéria de facto descrita naqueles pontos. A alínea alegada prescreve: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
O recorrente neste sentido só pode querer dizer que há uma insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito. A ofendida não tem título para declarar que é arrendatária, ou seja, nada permite ao Tribunal afirmar que a ofendida é arrendatária – com tal conduta causou à assistente E…, que era arrendatária daquela habitação, um prejuízo no valor de 45,00€ - uma vez que não foi produzida prova nesse sentido, no sentido de que é arrendatária. Este vício não se confunde com insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, circunstância bem diferente que nos levará a um erro de julgamento. Certo é que, com a denominação da ofendida como arrendatária temos matéria de facto para a decisão de direito. O que se passa é precisamente o contrário, é de saber se há uma insuficiência de prova que justifique a classificação da ofendida como arrendatária. A boa interpretação prende-se com esta prova, imbricada com a questão de direito propriamente dita.
Não há dúvida que o tribunal classificou a ofendida como arrendatária, sem que a afirmação esteja suportada por um título escrito, ou com produção de prova nesse sentido. O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito. Na falta de contrato escrito o arrendamento pode ser provado por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado … Da prova documental não figura qualquer contrato de arrendamento ou título formal (recibo ou facturas de luz/água) que demonstre esta relação contratual mas, mesmo assim, será pertinente dizer que a ofendida detém um título legítimo (?).
É imprescindível relacionar esta descrição factual com a interpretação das normas contidas no artº 212 nºs 1 e 3 do CP.
Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa (nº 1). O procedimento criminal depende de queixa (nº 3). O titular do direito de queixa é o ofendido: quando o procedimento criminal depender de queixa, tem legitimidade para apresentá-la, salvo disposição em contrário … considerando-se como tal o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação (artº 113 nº 1 do CP). O conceito de ofendido está previsto no artº 68 nº 1, alª a) do CPP: ofendidos, considerando-se como tais, os titulares que a lei especialmente quis proteger com incriminação, desde que maiores de 16 anos. Norma que repristinou o disposto no velho D/L nº 35007 – artº 4 nº 2. A este propósito vale a pena citar Beleza dos Santos – Partes Particularmente Ofendidas em Processo Criminal – RLJ, ano 57, página 2: ofendidos são … os titulares dos interesses que a lei quis especialmente proteger quando formula a norma penal. Quando prevê e pune os crimes, o legislador quis defender certos interesses: o interesse da vida no homicídio; o da integridade corporal nas ofensas corporais, o da posse ou propriedade no furto, no dano ou na usurpação de coisa alheia … os titulares dos interesses que a lei penal tem especialmente de proteger quando previu e puniu e que esta ofendeu ou pôs em perigo, são as partes particularmente ofendidas ou directamente ofendidas a infracção e que por isso se podem constituir acusadores. Apesar de ser esta a velha tradição do Direito Penal nacional na qualificação de ofendido não podemos deixar de dizer que a protecção mediata ou indirecta começa a fazer doutrina. Disso nos dá conta o Professor Faria e Costa que assinala: a lei penal não exige que o ofendido seja titular do direito protegido pela incriminação. O nº 1 do artº 113 do CP menciona expressamente o “titular de interesses”, o que significa que pode ser reconhecida legitimidade para exercício de direitos processuais do ofendido a quem represente simplesmente um interesse, sem ser titular do direitoFaria Costa – Comentário Conimbricense do CP, Tomo II, página 30 e seguintes.
Não obstante o ofendido ser titular do bem jurídico que a lei quis proteger, há que identificar o bem jurídico e verificar se a pessoa que apresentou a queixa é mesmo titular. O Acórdão de Jurisprudência Uniformizador nº 7/2011, procura responder a esta matéria partindo, precisamente do crime de dano. O ofendido num crime de dano é só o proprietário ou qualquer outra pessoa que tenha direitos sobre o bem? No crime de dano, previsto e punido no artº 212 nº 1 do CP, é ofendido quem tem legitimidade para apresentar queixa nos termos do artº 113 nº 1 do mesmo diploma, o proprietário da coisa “destruída no todo ou em parte, danificada, desfigurada ou inutilizada”, e quem, estando por título legitimo no gozo da coisa, for afectado no seu direito de uso e fruição.
O recorrente amarra-se ao conceito de título legítimo para veicular uma perspectiva documental, formal. Já vimos que o conceito de ofendido é bastante amplo (titular de interesses) sugerindo apelo ao bem jurídico protegido na incriminação: relação contratual, propriedade, posse ou mero acto de tolerância… Sabemos que E… habitava esta casa regularmente, sem que saibamos, concretamente, a que título. Certamente é um título que lhe permite fruir da casa, como arrendatária, possuidora ou por acto de mera tolerância de terceiro, do seu legítimo proprietário, na certeza de que está a fruir da habitação, com o inerente dever de proteger esta propriedade.
A ofendida ocupa a casa com um título legítimo que pode ser como mera arrendatária ou como titular do bem, na posse do imóvel, independentemente do conhecimento se lá está na base de uma relação obrigacional ou real. É ela quem zela pela propriedade e por isso tem o dever de a defender. Titular de interesse que a lei quis especialmente proteger com a incriminação. Nesta perspectiva não estamos muito empenhados em salientar se o contrato é escrito ou informal, ou se ocupa o imóvel a título de posse ou como mera titular de um direito real menor, na certeza porém que o ocupa por título legítimo no gozo da coisa, pelo que, se for afectada no seu direito de uso e fruição, pode exercer direito de queixa. Tem legitimidade.
Como é do conhecimento de todos os intervenientes processuais, ninguém colocou em causa a legitimidade da ofendida para ocupar a habitação mas, sim para se saber se houve ameaça, injúria ou dano. Ninguém se lembrou de dizer que, a ofendida nada tinha a ver com a caixa do correio. Por isso o argumento formal utilizado em recurso é irrelevante já que não há notícia nos autos de que lá esteja contra vontade de alguém ou de forma ilegal.
O Direito Processual Penal tem uma grande amplitude em matéria de prova (artº 125 do CPP) o que permite ao Tribunal formar uma convicção livre, segundo critérios previstos na lei (artº 127 e 374 nº 2, ambos, do CPP).
A descrição do ponto nº11 da rubrica factos provados, pode não ser a mais feliz porque, não temos uma certeza absoluta se a ofendida ocupa o imóvel na qualidade jurídica de arrendatária, porém beneficia de meios processuais para defender a posse da coisa, consequentemente tem legitimidade para defender o bem jurídico que o legislador quis proteger com a incriminação. O facto devia ter sido escrito de forma mais abrangente: com tal conduta causou à assistente E…, que detinha aquela habitação, um prejuízo no valor de 45,99€, em vez de que era arrendatária daquela habitação. Mesmo assim a palavra deter ou estar na posse não exclui a possibilidade de a ofendida habitar aquela casa com a qualidade de arrendatária. Por ser irrelevante para a decisão de direito decidimos não modificar a matéria de facto como permite o artº 431 do CPP.
Concluímos que a ofendida está no gozo, uso e fruição da coisa por meio de título legítimo e consequentemente é titular de um interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação – crime de dano.
Improcede o recurso.

Acordam os juízes que integram, a 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto, em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido B…, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC,s.

Registe e notifique.

Nos termos dos D/L nº 10-A/2020 e D/L nº 20/2020 de 1 de Maio – artºs 3 (aditamento ao artº 15-A daquele D/L) e 6 – a assinatura dos outros juízes que, para além do relator, tenham intervindo em tribunal colectivo, nos termos previstos no nº 1 do artº 153 do CPP, aprovado pela lei nº 41/2013, de 26 de Junho, na sua redacção actual, pode ser substituída por declaração escrita do relator atestando o voto de conformidade dos juízes que não assinaram.
Nestes termos atesto o voto do Juiz Desembargador Adjunto em conformidade com a decisão.

Porto, 10 de Fevereiro de 2021.
Horácio Correia Pinto.
Moreira Ramos.