Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2344/20.6T8PNF-B.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: FERNANDO VILARES FERREIRA
Descritores: OPOSIÇÃO MEDIANTE EMBARGOS DE TERCEIRO
LEGITIMIDADE PROCESSUAL
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
Nº do Documento: RP202111092344/20.6T8PNF-B.P1
Data do Acordão: 11/09/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I O incidente de oposição mediante embargos de terceiro, regulado nos arts. 342.º e segs. do CPCivil, constitui meio processual adequado para alguém que, não sendo parte na causa, pretenda fazer valer a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens.
IIOs embargos podem assumir caráter preventivo ou repressivo. No primeiro caso justificam-se para que o possuidor em nome próprio ou, excecionalmente, em nome alheio (mero detentor), seja mantido enquanto tal perante a iminência de qualquer turbação ou ocorrência de esbulho, e no segundo para que seja restituído à posse após ocorrência do esbulho.
III - Da legitimidade processual distingue-se a legitimidade material, também chamada substantiva ou “ad actum”, que se traduz num complexo de qualidades representativas dos pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando por isso ao mérito da causa.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: PROCESSO N.º 2344/20.6T8PNF-B.P1

[Tribunal de origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este – Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 3]

Relator: Fernando Vilares Ferreira
Adjunta: Maria Eiró
Adjunto: João Proença

SUMÁRIO:
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ACORDAM os Juízes do Tribunal da Relação do Porto:

I.
RELATÓRIO
1.
Nos autos de procedimento cautelar de arresto n.º 2344/20.6T8PNF-A, em que é Requerente B...e Requeridos C... e mulher, D..., foi pedido o decretamento do arresto sobre os seguintes bens:
“Prédio Urbano, composto de casa de rés-do-chão e andar e águas furtadas, situada na Urbanização do …, da freguesia de …, concelho de Felgueiras, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número duzentos e cinquenta e inscrito na respetiva matriz predial da freguesia de …, com o artigo mil cento e vinte e oito, bem como o recheio do referido imóvel”.
2.
Por decisão de 21.10.2020, foi decretado o referido arresto, como peticionado.
3.
No seguimento, em 17.12.2020, foi lavrado auto de arresto, no qual se fez constar, pela Sra. Agente de Execução, para além do mais: “Desloquei-me à morada do imóvel objecto do presente processo e fui recebida pela residente a Sra. E... que de imediato contactou o seu pai o Sr. F… para vir a este local pois estava prestes a sair de casa para ir trabalhar. De imediato chegou a esta morada o pai do residente que abriu as portas pelo que não foi necessário o recurso ao arrombamento de portas. A fim de evitar o arresto dos bens existentes no interior do imóvel, foi pedido pelo pai da residente o Sr. F… entregar 10.000€ (dez mil euros). O valor foi-me entregue em numerário. Este valor é por conta do pedido do processo principal” (cf. doc n.º 2 junto aos autos de arresto em 17.12.2020 – ref.ª Citius 6780030).
4.
Por apenso ao referido procedimento cautelar de arresto, vieram E... e marido, G... deduzir o presente incidente de oposição mediante embargos de terceiro, em reação à diligência judicial realizada naquele processo principal, conforme descrito no ponto que antecede.
Alegaram os Embargantes, em síntese, que confrontados com iminência de verem os seus bens removidos da sua habitação, a poucos dias do Natal, não lhes restou alternativa que não fosse a de proceder à entrega ao Requerente, por exigência deste, do montante de 10.000€ à Sra. Agente de Execução; embora no respetivo auto tenha ficado a constar que o referido montante era entregue “por conta do pedido principal”, tal ficou a dever-se a lapso, porquanto a sua única intenção foi evitar a concretização da remoção dos seus bens móveis.
Concluíram, pedindo:
a) Deve ser declarado que os embargantes são donos e legítimos possuidores dos bens móveis que recheiam a casa em que residem sita na Urbanização do …, lote .., freguesia de …, do Concelho de Felgueiras;
b) Deve ser declarado que os embargantes são terceiros em relação às partes do processo de arresto;
c) Deve ser declarado que a diligencia ordenada de arresto dos bens moveis dos embargantes, ofenderá a propriedade e posse destes, bem como que a diligencia de arresto concretizada da quantia entregue em sua substituição, ofendeu a propriedade e posse dos embargantes, pelo que deve preventivamente, ser ordenado o cancelamento do arresto dos seus bens móveis, bem como o do arresto consumado da indicada quantia de dez mil euros e, esta por isso, restituída aos embargantes.
5.
Foram notificadas as partes primitivas do processo cautelar de arresto, nos termos e para efeitos do disposto no art. 348.º do Código de Processo Civil (CPCivil)[1].
6.
Contestou o Embargado B…, excecionando desde logo a ilegitimidade processual ativa, alegando para tanto não ter ocorrido qualquer ato de apreensão de bens e, por isso, qualquer ofensa da posse ou outro direito dos embargantes incompatível com o arresto.
7.
Responderam os Embargantes, pugnando pela improcedência da exceção de ilegitimidade.
8.
Foi prolatado despacho saneador, no qual se fez constar, para o que aqui releva:
[A legitimidade processual das partes é um pressuposto processual que, doutrinalmente, se pode definir como o poder de dirigir a pretensão deduzida em juízo ou a defesa contra ela oponível.
A parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do demandado, admitindo que a pretensão existe; e terá legitimidade como réu, se ela for a pessoa que juridicamente pode opor-se à procedência da pretensão, por ser ela a pessoa cuja esfera jurídica é directamente atingida pela providência requerida.
Na discussão de questões acerca da legitimidade das partes importa ter presente o disposto no art. 30º do CPC. Aí se dispõe no n.º 1 que “O autor é a parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse em contradizer”. “O interesse em demandar – estabelece o n.º 2 – exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha”. O n.º 3 dispõe, por último, que “Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Neste dispositivo legal estabelece-se o critério de determinação da legitimidade singular e directa, tendo o legislador optado pela tese formulada por Barbosa de Magalhães, nos termos da qual tal o pressuposto processual determina-se em função da relação material controvertida, tal como é delineada pelas afirmações do autor na petição inicial.
Actualmente a legitimidade aferir-se-á, em termos residuais, pela titularidade da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor, nos termos do art. 30°, n.º 3, do CPC.
No caso dos embargos de terceiro, só tem legitimidade para os intentar o possuidor dos bens penhorados ou dos bens objecto de acto material de apreensão judicialmente ordenado, como por exemplo o arresto, ou a pessoa que sobre os referidos bens tenha um direito incompatível com a realização daquele acto (cfr. art. 342º do CC).
A ilegitimidade é pois uma excepção dilatória (art. 577°, al. e) do CPC), que obsta ao conhecimento do mérito da causa e determina a absolvição da instância (cfr. arts. 576°, n.º 2, e 278°, n.º 1, al. d), todos do CPC).
No caso concreto, os embargantes pretendem deduzir embargos a uma diligência de arresto ocorrida em 17 de Dezembro de 2020, no âmbito do processo de arresto (processo principal), em que é Requerente B… e são Requeridos C... e mulher D....
Pretendem reagir contra o arresto de bens móveis, alegadamente compostos pelo recheio da sua residência, sita na Urbanização …, lote .., Freguesia de …, do Concelho de Felgueiras.
Porém, compulsado o referido auto de arresto contata-se que, como os próprios embargantes reconhecem, o arresto dos bens móveis que compunham residência, sita na Urbanização …, lote .., Freguesia de …, do Concelho de Felgueiras, não foi concretizado.
Nesse auto do arresto, o Sr. Agente de Execução exarou, entre outras coisas, o seguinte: “A fim de evitar o arresto dos bens existentes no interior do imóvel, foi pedido pelo pai da residente o Sr. F... entregar 10.000,00. O valor é por conta do pedido do processo principal”.
Daqui resulta que o recheio daquela residência não foi arrestado, sendo que a ordem judicial de arresto incidia sobre esse recheio.
Mais resulta que a entrega da quantia de €10.000,00 foi da iniciativa de F..., que o fez de forma voluntária.
Assim, em relação à quantia de €10.000,00 não houve nenhuma ordem judicial de arresto.
Deste modo, dúvidas não existem que os embargantes não têm legitimidade processual para intentar os presentes embargos.
No que respeita aos restantes argumentos utilizados pelos embargantes, em relação à quantia de €10.000,00, não tendo esta sido objecto de nenhum acto judicialmente ordenado de apreensão, não só os mesmos não conferem legitimidade processual aos embargantes, como os embargos não são o meio processual próprio para o seu conhecimento.
Conclui-se, pois, pela procedência da excepção de ilegitimidade processual arguida pelo embargante, a determinar a sua absolvição da instância.
III. Decisão
Pelo exposto, decide-se julgar a excepção de ilegitimidade activa dos embargantes arguida pelos embargado totalmente procedente e, em consequência, decide-se absolver o embargado da presente instância.
Custas a cargo dos embargantes].
9.
Inconformados com aquela decisão, os Embargantes interpuseram o presente recurso de apelação, com subida nos próprios autos e efeito devolutivo.
10.
Com o requerimento de interposição do recurso, os Apelantes apresentaram alegações, com as seguintes
CONCLUSÕES:
1.ª - Os Apelantes impugnam a falta de prova de matéria de facto e direito da fundamentação, existindo falta de fundamentação, falta da prova e falta de concretização, violando a sentença o disposto nos art 615 nº1 a.l c) e d, e art 608º nº 2 do CPC.
2.ª - Uma vez que, os factos alegados pelos embargantes, bem como os documentos juntos, corroboram o seu interesse em demandar nos termos do art 30º do CPC, bem como a posse e probidade dos bens moveis, e conforme o constante em 1º, 2º,3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º, 15º, 16º, 17º, 18º, 19º e 20º da sua p.i;
3.ª - Com ausência total das razões de facto ou de direito porque decidiu daquela maneira.
4.ª - Pelo que houve falta de fundamentação e pronúncia sobre questões que não devia apreciar sem prova em audiência de julgamento, violando o disposto no art 608 nº 2 do CPC e, consequentemente, deverá a sentença de que se recorre ser declarada nula.
5.ª - Refere a sentença “No que respeita aos restantes argumentos utilizados pelos embargantes em relação a quantia de €10.000,00€…”, há falta de concretização desses argumentos, bem como das razões de facto e direito, para daí concluir que os embargantes não têm legitimidade processual e de que os embargos não seriam o meio processual próprio para o seu conhecimento.
6.ª - Os embargantes alegaram factos e juntam documentos que deveriam constar como matéria de prova em sede de julgamento e do seu interesse em demandar e da sua legitimidade enquanto partes- art 30 nº 1 do CPC, que não foram objeto de apreciação em sede de julgamento, nomeadamente, o facto dos 10 mil euros quantia dos embargantes, ter sido entregue por estes apenas e só para evitar a remoção do recheio da sua habitação e nunca por conta de um processo no qual não são partes, desconhecem e não são devedores;
7.ª - Pelo que, a ordem de arresto ofende a posse e propriedade dos embargantes, ora Apelantes, sendo estes partes legítimas para deduzir os embargos.
8.ª – Foi ainda alegado pelos Apelantes e não sujeito a prova em audiência de julgamento, que os dez mil euros eram propriedade dos embargantes e que tinham sido entregues pelo Sr F… a pedido destes para evitar o arresto dos seus bens móveis;
9.ª - Ao não sujeitar a prova em julgamento destes factos e documentos juntos a Juiz a quo violou o disposto no art 615 nº 1 d).
10.ª - Assim, a sentença a quo não foi o resultado do que os documentos e prova testemunhal junta aos autos ditariam, não fazendo o Tribunal a quo a correcta adequação dos factos e do direito.
11.ª - O julgador deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido á sua apreciação, nos termos do disposto nos arts 608 nº 2 e 615 nº 1 al d) do CPC,
12.ª - Padecendo a sentença de vicio de omissão determinado nos termos do disposto na al.d) do art 615º CPC- crf Ac. Relação de Lisboa de 12/10/2017;
13.ª - Pelo que, a sentença a quo é nula: “A nulidade só aparece quando se verifique um destes casos: a) quando a lei o expressamente o determine; b) quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou decisão da causa, i.é, quando se repercute na sua instrução, discussão ou julgamento”.- cfr Lebre de Freitas, CPC anotado, 3ª Ed. 2014, pag. 381.
14.ª - Devendo ser declarada nula, por violação do disposto nos art 609º, 608 nº 2, 615º nº 1 al. d) e com as consequências do disposto no art 662º nº 1 e 2 do CPC.
15.ª - Com esta sentença e sem mais prova, não reunindo o processo elementos suficientes para a decisão, foi ofendido o constante do art 595º do CPC.
16.ª - Padecendo de vício de omissão determinada nos termos do disposto no nº 1 al d)do CPC- cfr Ac. Relação de Lisboa de 12/10/2017.
17.ª - E, consequentemente nula, por violação do disposto no art 615º nº 1 al. d) e art 608 nº 2 do CPC, o que se requer.
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Rematou pedindo a declaração da nulidade da sentença.
8.
Contra-alegou o Embargado, pugnando pela negação da apelação, assente nas seguintes CONCLUSÕES:
1.ª - Resulta do artigo 576º nº 2 do CPC que as exceções dilatórias obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância (nosso sublinhado) ou remessa do processo para outro tribunal.
2.ª - É, portanto, desprovido de qualquer sentido a alegação dos recorrentes quando afirmam que os factos por si alegados bem como os documentos juntos não foram objeto de prova pelo Tribunal a quo.
3.ª - No caso, não está em causa a discussão do mérito, trata-se de uma exceção dilatória que foi suscitada pelo recorrido e, uma vez suscitada, deve o Tribunal conhecer dessa exceção ao abrigo do disposto no artigo 595º nº 1 al. a) do CPC.
4.ª - A ilegitimidade é uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, isto é, mesmo que o embargado não tivesse suscitado tal exceção, o Tribunal podia dela conhecer.
5.ª - E, portanto, entendendo o Tribunal estarmos perante uma ilegitimidade dos embargantes, a consequência sempre será a impossibilidade do Tribunal conhecer do mérito da causa e que resultará na absolvição da instância, cfr. artigo 278º nº 1 al. d), 576º nº 2, 577º al. e), 595º nº 1 al. a), todos do CPC.
6.ª - A exceção de ilegitimidade ativa dos recorrentes foi julgada totalmente procedente e absolvendo o recorrido da instância.
7.ª - Bem andou o Tribunal na decisão e nenhuma critica se pode apontar à mesma, já que o Tribunal tem o dever de conhecer das exceções dilatórias suscitadas pelas partes (artigo 595º do CPC), dando cumprimento ao disposto no artigo 278º nº 1 al. d) do CPC.
8.ª - Acresce que, ainda que se entendesse não se tratar de uma ilegitimidade ativa, sempre se dirá que não estão verificados os pressupostos para a instauração da petição de embargos de terceiro.
9.ª - Cfr dispõe o artigo 342º nº 1 do CPC se a penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro.
10.ª - Resulta, desde logo, do normativo legal, como requisitos para a instauração da petição de embargos, que haja um ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens que ofenda a posse ou outro direito incompatível com a realização da diligência.
11.ª - Não houve qualquer ato de apreensão de bens, outrossim, houve uma entrega livre e voluntária com o objetivo de evitar o arresto do recheio existente no imóvel arrestado.
12.ª - O que lograram, já que com a entrega da referida quantia, a AE não levou a cabo a diligência de arresto.
13.ª - E, portanto, inexistindo qualquer ato de apreensão de bens, não se encontram verificados os pressupostos para a instauração dos presentes embargos.
II.
OBJETO DO RECURSO
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de questões nelas não incluídas, salvo se forem de conhecimento oficioso (cf. artigos 635.º, n.º 4, 637.º, n.º 2, 1.ª parte, e 639.º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPCivil).
Assim, em face das conclusões formuladas, são as seguintes as questões estruturais submetidas à nossa apreciação:
a) Se a decisão recorrida enferma de vício de nulidade, por falta de fundamentação, de prova, de concretização e de conhecimento de questões que devesse apreciar, nos termos do art. 615.º, n.º 1;
b) Se ocorre ou não exceção dilatória de ilegitimidade ativa.
III.
FUNDAMENTAÇÃO
1.
OS FACTOS
A factualidade a considerar reconduz-se aos atos processuais documentados nos autos, decorrendo do relatório deste acórdão o que de essencial constitui o seu teor.
2.
OS FACTOS E O DIREITO
2.1.
Da questão da nulidade da decisão
Como bem lembra o Recorrido em sede de contra-alegações, as exceções dilatórias, como é o caso da ilegitimidade processual, “obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa e dão lugar à absolvição da instância” (art. 576.º, n.º 2).
Ora, no caso dos autos, tendo o Tribunal de que vem o recurso afirmado a verificação da ilegitimidade processual dos Embargantes, ficou naturalmente impedido de conhecer do mérito causa, o que vale por dizer que não se lhe impunha conhecer quaisquer outras questões, não ocorrendo, por isso, nulidade nos termos do preceituado no art. 615.º, n.º 1, al. d).
Por outro lado, a decisão que conheceu da questão da ilegitimidade processual ativa apresenta-se suficientemente fundamentada de facto e de direito e com inteligibilidade bastante, pelo que não é merecedora de censura à luz do disposto no art. 615.º, n.º 1, als. b) e c).
Saber se a decisão aplicou bem ou mal o direito é já questão de mérito, da qual cuidaremos de seguida, mas que nada tem a ver com questões de nulidade formal, como são todas as que se mostram elencadas no cit. art. 615.º.
Improcede, pois, nesta parte, o recurso, por não ocorrer a invocada nulidade da decisão recorrida.
2.2.
Da questão da exceção dilatória de ilegitimidade ativa
O conceito de legitimidade processual encontra entre nós previsão no art. 30.º, do qual decorre, para além do mais, que: “o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar”; “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação”; e “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Da legitimidade processual distingue-se a legitimidade material, também chamada substantiva ou “ad actum”, que se traduz num complexo de qualidades representativas dos pressupostos da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoque ou que lhe seja atribuído, respeitando por isso ao mérito da causa[2]”.
No caso dos autos, defendem os Apelantes que os factos que alegaram na petição de embargos corroboram o seu interesse em demandar, nos termos do art. 30.º do CPCivil.
Por sua vez, a decisão recorrida, com o apoio dos Embargados, defende que não tendo sido concretizado o arresto de bens móveis, conforme havido sido pedido e determinado nos autos, e resultando, por sua vez, que o montante de 10.000,00€ foi entregue voluntariamente ao Embargado, ou seja, que não radica em qualquer ordem judicial de arresto, não têm os Embargantes legitimidade processual para intentar os presentes embargos.
Vejamos.
O incidente de oposição mediante embargos de terceiro, regulado nos arts. 342.º e segs. do CPcivil, constitui meio processual adequado para alguém que, não sendo parte na causa, pretenda fazer valer a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou o âmbito da diligência de penhora ou qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens (cf. n.º 1 do cit. artigo).
Os embargos podem assumir caráter preventivo ou repressivo. No primeiro caso justificam-se para que o possuidor em nome próprio ou, excecionalmente, em nome alheio (mero detentor), seja mantido enquanto tal perante a iminência de qualquer turbação ou ocorrência de esbulho, e no segundo para que seja restituído à posse após ter ocorrido esbulho.
Analisada a pretensão dos Embargantes, à luz do pedido e respetiva causa de pedir, o que se impõe concluir é que os embargos assumem no caso dupla natureza: preventiva e repressiva. Preventiva quanto ao arresto determinado pelo tribunal sobre bens móveis correspondentes a recheio de habitação; e repressiva quanto à alegada entrega do montante de 10.000,00€ em substituição do efetivo arresto sobre os bens móveis, e tão somente com o intuito de evitar a concretização no momento do dito arresto.
Ora, configurada em tais termos a oposição pelos Opositores/Embargantes, e pressupondo a existência do direito que invocam, dúvidas não temos de que se apresentam como parte legítima, porquanto o seu interesse em embargar se exprime inequivocamente pela procedência dos embargos, quer no segmento de manutenção na posse dos bens móveis, quer no segmento de restituição da posse do montante 10.000,00€.
Saber se o direito invocado existe é já, reafirmamos, questão que contende com o mérito do pedido, podendo o respetivo conhecimento depender ou não de produção de prova, tudo dependendo da factualidade que se possa considerar assente findos os articulados.
Concluímos, pois, pela legitimidade processual dos Embargantes, o que vale por dizer pela procedência do recurso e, consequentemente pela necessidade de revogação da decisão recorrida, devendo o Tribunal recorrido determinar o prosseguimento dos Embargos para conhecimento do respetivo mérito, conhecimento que não se mostra possível de ser levado a cabo desde já por este Tribunal de 2.ª instância, nos termos do preceituado no art. 665.º, n.º 2, por não dispormos de todos elementos necessários.
2.3.
As custas do recurso são da responsabilidade do Recorrido B... (art. 527.º, nºs 1 e 2, do CPCivil).
IV.
DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, julgamos o recurso procedente e decidimos:
a) Revogar a decisão recorrida, declarar os Embargantes parte legítima e determinar que o Tribunal de 1.ª instância dê andamento aos ulteriores termos do processo, tendo em vista o conhecimento de mérito da pretensão dos embargantes.
b) Condenar o Recorrido B...no pagamento das custas do recurso.
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Tribunal da Relação do Porto, 9 de novembro de 2021
Os Juízes Desembargadores,
Fernando Vilares Ferreira
Maria Eiró
João Proença
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[1] São deste código todos os preceitos legais doravante citados sem menção em contrário.
[2] Cf. Ac. do STJ de 18.10.2008, relatado por BERNARDO DOMINGOS no processo 5297/12.0TBMTS.P1.S2, acessível em www.dgsi.pt.