Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
1077/22.3JAPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: CLÁUDIA RODRIGUES
Descritores: CRIME DE HOMICIDIO QUALIFICADO
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PROVA PERICIAL
VALOR
Nº do Documento: RP202305241077/22.3JAPRT.P1
Data do Acordão: 05/24/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO PELO ARGUIDO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Só os juízos periciais, os juízos técnicos, científicos ou artísticos propriamente ditos, estão sujeitos à disciplina do art. 163º, nº 1 do Código de Processo Penal, e já não as circunstâncias fácticas que lhes serviram de fundamento
II – É lícito ao julgador divergir da matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não foi posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 1077/22.3JAPRT.P1

Acordam, em audiência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
*
1. RELATÓRIO

Após realização da audiência de julgamento no Processo Comum Coletivo nº 1077/22.3JAPRT do Juízo Central Criminal de Penafiel (J5) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, foi proferido acórdão em 10/02/2023 no qual se proferiu a seguinte transcrita:

“IV – DECISÃO
Pelo exposto, delibera este tribunal coletivo o seguinte:
Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152º, n.ºs 1, b) e 2, a) do Código Penal, na pena de 3 anos e 10 meses de prisão;
Condenar o mesmo arguido pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 26º, 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, b) do Código Penal, na pena de 19 anos de prisão (absolvendo da agravante da a. e) do n.º 2 do artigo 132º CP);
Condenar o mesmo arguido pela prática, em autoria material, de um crime de profanação de cadáver ou de lugar fúnebre, previsto e punível pelos artigos 14º, 26º e 254º, n.º 1, a) do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão;
Condenar o arguido, em cúmulo jurídico de penas, na pena única de 21 anos de prisão efetiva.

Julgar totalmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB e CC, menores representados por DD e, em consequência, condenar AA:
- a pagar-lhes, em conjunto, € 80.000,00 pelo dano da perda da vida de EE;
- a pagar-lhes, em conjunto, € 45.000,00 pelo dano do sofrimento da vítima EE;
- a pagar-lhe, a cada um dos menores, € 25.000,00, por danos não patrimoniais próprios,
- valores a que acrescem juros de mora à taxa legal desde o presente acórdão.
Julgar totalmente improcedente o pedido de indemnização civil deduzido por FF e, em consequência, absolver AA do mesmo.

Custas criminais pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC.

Custas cíveis do pedido de BB e CC pelo demandado, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.
Custas cíveis do pedido de FF pela demandante, sem prejuízo de eventual apoio judiciário.
*
O arguido manter-se-á sujeito à medida de coação de prisão preventiva.
(…)”

Inconformado com o acórdão proferido, o arguido AA interpôs recurso para este Tribunal da Relação do Porto, finalizando as respectivas motivações com as seguintes conclusões: (transcrição)

“I – O Recorrente não se conforma com o acórdão em crise, por via do qual foi condenado, entre o mais, pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado na pena de prisão de 19 (dezanove) anos, e, em cúmulo, na pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão, e, bem assim, no pagamento ao assistente de avultadas quantias a título indemnizatório;
II – O Recorrente não se conforma com o julgamento dos factos julgados provados nos pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104;
III – O julgamento de tais factos como provados contraria o relatório de autópsia e os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico-legal, conforme demonstrado na alegação supra, com a referência à sua inquirição na sessão do dia 04.01.2023, com a menção das concretas passagens em que se se funda a impugnação, e sua transcrição que aqui se dão por reproduzidas para efeito do disposto no n.º 4 do artigo 412.º do Código do Processo Penal.
III – Porquanto, nem o relatório da autópsia, nem os esclarecimentos do perito médico-legal foram capazes de esclarecer sobre a causa da morte, ou seja, no relatório de autópsia conclui-se pela indeterminação da causa da morte, aventando-se como possível a morte por homicídio, mas não se descartando a morte por qualquer outra causa, nomeadamente, por causa natural, o que foi reiterado, e, até, aprofundado, pelo perito.
IV - Dispõe o n.º 1 artigo 163.º do Código do Processo Penal, “O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.”, dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que “Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”, o que não sucedeu no caso vertente, porquanto, in casu, o que sucedeu foi a desconsideração da prova pericial, e a adesão a outros meios de prova.
V – Sustentando que “… o relatório pericial de autópsia não é meio único de prova da causa da morte.”, o Tribunal a quo passou o arguido a homicida porque também o condenou pela prática dos crimes de violência doméstica e de profanação de cadáver, ou seja, numa logicidade de de quem é capaz do menos também é capaz do mais!
VI – Contrariou o Tribunal a quo avalizada jurisprudência, nomeadamente o acórdão do STJ de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1, que dispõe que “Qualquer insuficiência de que relatório da autópsia da ofendida possa enfermar sempre terá de ser resolvida a favor do arguido, em homenagem ao princípio da presunção de inocência, consagrado no n.º 2 do artigo 32.º da CRP e o postulado “in dubio pro reo”, que lhe está associado.”.
VII – À falta de melhor prova, deveria prevalecer o princípio geral do direito penal in dubio pro reo, o qual constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, e, enquanto princípio que configura uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência contempla na primeira parte do n.º 2 do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa.
VIII - Face ao exposto, é o Recorrente de entendimento que há erro de julgamento quanto aos factos supra enunciados, os quais terão que ser julgados não provados e, consequentemente, deve a condenação pela prática do crime de homicídio qualificado ser revogada, absolvendo-se o arguido da sua prática.
IX – Sem prescindir, sempre a pena concretamente aplicada ao Arguido se afigura exagerada, não tendo o Tribunal a quo atendido ao facto de que os crimes terão sido praticados num ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral, em que apenas o arguido trabalhava, estando perfeitamente inserido profissionalmente.
X - Uma pena no caso concreto superior a metade do limite máximo constitui, com o devido respeito, uma violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade, tendo este inscrito em si uma função de controlo que emerge sempre que a protecção de interesses públicos possa entrar em conflito com os direitos fundamentais e liberdades públicas do cidadão, o que no âmbito penal ocorre com frequência.
XI - Não pode, por isso, o Recorrente conformar-se com a pena concretamente aplicada, a qual viola o disposto no artigo 71.º, n.º 1, e n.º 2, alínea d), ambos do Código Penal.
XII – O acórdão recorrido violou, entre outros que Vossas Excelências doutamente suprirão, os comandos legais supra enunciados. Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão recorrido, com a consequente sua absolvição pela prática do crime de homicídio qualificado, ou, assim não se entendendo, deve a pena concretamente aplicada ser reduzida nos termos sobreditos, assim se fazendo JUSTIÇA”

Por despacho proferido em 17.03.2023 foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao interposto e admitido recurso, sustentando que deve ser negado provimento ao mesmo e aduziu o seguinte quadro conclusivo:

“1. Não afirmando o relatório da autópsia médico-legal, de forma peremptória, que a causa de morte é natural ou violenta, e discorrendo sobre as probabilidades de uma ou outra, o Tribunal não se mostra vinculado a igual non liquet.
2. O juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos.
3. Quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, este decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o princípio in dubio pro reo.
4. Tendo o tribunal colectivo acolhido uma das hipóteses de causa da morte admitidas como possibilidade na prova pericial não se pode afirmar que, ao decidir como decidiu, violou o disposto no art. 163º, nº 1, do Código de Processo Penal.
5. A inconclusividade sobre a causa de morte da ofendida, não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida, um juízo dubitativo que não vincula o tribunal, incumbindo-lhe esclarecer a matéria de facto em que se funda, no âmbito da sua função de julgar e superar, até onde lhe for possível, aquela dúvida.
6. O Tribunal, desde logo, com base num juízo científico do Perito afasta a tese de que a vítima poderia ter falecido da queda, aventando a possibilidade muitíssimo residual de morte natural, em contraponto com a morte por asfixia perpetrada pelo arguido.
7. No cumprimento do dever de esclarecer e de procura de superação da dúvida contida no juízo do perito, o Tribunal recorreu a outros meios de prova e examinou-os à luz da experiência comum.
8. Não logra o arguido demonstrar nem uma violação do valor probatório pleno da prova pericial, nem a existência de erro de julgamento (por força da conjugação entre a prova pericial e a prova testemunhal conducente à demonstração da violência, agressividade, domínio, e consumos excessivos de álcool , o medo propalado pela vítima de que o arguido a matasse, as agressões severas anteriores, com recusa da prestação de assistência hospitalar, a forte pressão exercida sobre a vítima (que sempre procurou desculpabilizá-lo), toda a mise-en-scéne criada em torno do alegado desaparecimento da vítima), nem a existência de qualquer erro notório na apreciação da prova, na medida em que nenhum dos factos dados como provados contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.
9. A operação de determinação da medida da pena respeitou os critérios previstos no art. 71º, nº 1 do Código Penal.
10. A culpa do arguido, (enquanto reflexo da ilicitude, ou seja, como censura por o arguido ter atuado como descrito) parece-nos, na realidade, muito elevada, e estabelecendo esta o limite máximo da pena concreta, não cremos que tenha sido ultrapassada.
11. Considerando que a medida da concreta da pena, assenta na “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar, dentro da moldura penal abstrata prevista, não merece qualquer censura a pena de 19 anos de prisão cominada ao arguido, que apenas tem a seu favor a ausência de antecedentes criminais a sua inserção profissional e o bom comportamento em meio prisional.
12. Os factos provados revelam à saciedade uma personalidade violenta, sendo que, para além do mais se releva que ficou provado que o arguido tirou a vida à sua companheira sem que a vítima o tivesse provocado ou atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana, e sabia que a vítima se encontrava embriagada, conhecia a sua debilidade física face à sua compleição física e força, tornando-a praticamente incapaz de se defender da sua atuação,
13. Para além da culpa muito elevada, elevadas são também as necessidades de prevenção especial, que demandam uma pena que não se pode quedar aquém do meio da pena.
14. O arguido foi galgando uma escala de violência, de domínio e “coisificação” da vítima (como espelha a matéria de facto provada quanto a este crime), que culmina no homicídio cruel da vítima quando esta se encontrava embriagada.
15. A violência doméstica é um fenómeno criminoso que assume grandes proporções, e que não raras vezes culmina no homicídio da vítima, e por essa razão impõe-se transmitir à comunidade uma estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, ainda para mais o valor máximo e inaliável da vida em comunidade.
16. Numa pena única situada entre os 19 anos e os 23 anos e 10 meses de prisão, a sua fixação em 21 anos de prisão, cremos que se mostra conforme aos factos examinados na sua globalidade, e à personalidade do arguido vertida nos mesmos.
Termos em que:
Negando provimento ao recurso, mantendo in totum o douto acórdão recorrido, farão V. Exa. a esperada JUSTIÇA.”

O recorrente AA requereu a realização de audiência nos termos do nº 5 do art. 411º do Código de Processo Penal.
*
Foi designado dia para a realização de audiência, na qual, e após exposição sintética das questões a ser debatidas pela aqui Relatora, foram pelo Recorrente e pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta proferidas alegações, aderindo esta à fundamentação da resposta do Ministério Público em 1ª instância, e assim entendendo que deve ser negado provimento ao recurso e confirmado o acórdão recorrido.
*
2. FUNDAMENTAÇÃO

Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior. Entre outros, pode ler-se no Ac. do STJ, de 15.04.2010, disponível em www.dgsi.pt: “Como decorre do art. 412.º do CPP, é pelas conclusões extraídas pelo recorrente na motivação apresentada, em que resume as razões do pedido que se define o âmbito do recurso. É à luz das conclusões da motivação do recurso que este terá de apreciar-se, donde resulta que o essencial e o limite de todas as questões a apreciar e a decidir no recurso, estão contidos nas conclusões, exceptuadas as questões de conhecimento oficioso”.

Tendo em conta este contexto normativo, e olhando às sobreditas conclusões retiram-se as seguintes questões a dilucidar:

- impugnação da matéria de facto quanto ao crime de homicídio qualificado (pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104) e, violação do princípio geral do direito penal in dubio pro reo
e subsidiariamente,
- medida da pena do crime de homicídio qualificado

Perante as questões suscitadas no recurso, torna-se essencial - para a devida apreciação do seu mérito - recordar toda a fundamentação de facto da decisão recorrida (transcrição):

II – FUNDAMENTAÇÃO
De relevante para a decisão da causa, o tribunal considerou provada a seguinte matéria de facto:
Da acusação
1) EE e o arguido AA viveram como se de marido e mulher se tratassem desde o ano de 2020, residindo na mesma habitação e aí partilhando cama e mesa diariamente.
2) EE tem dois filhos menores, de 13 anos e 10 anos, fruto do seu casamento com DD, de quem se divorciou, os quais estão aos cuidados do progenitor.
3) O arguido é de nacionalidade espanhola, tendo também uma filha que está aos cuidados da progenitora e residente em Espanha.
4) EE conheceu o arguido em Espanha no início do ano de 2020, na cidade de Santiago de Compostela, num espaço de restauração e bebidas.
5) Passaram a partilhar cama, mesa e habitação em ..., Santiago de Compostela, em morada não concretamente apurada.
6) Em meados de Outubro de 2020, mudaram-se para Andorra, visto que o arguido tinha a avó que lá morava e que precisava de apoio familiar por estar com a saúde debilitada.
7) Em data não concretamente apurada, mas em meados de Novembro de 2020, no interior do hotel onde estavam a pernoitar, após uma discussão entre ambos, o arguido deu uma bofetada no rosto de mão aberta do lado esquerdo da EE.
8) De seguida, agarrou-lhe os braços, atirou-a para o chão, colocou-se em cima dela e agarrou o pescoço desta com as duas mãos e apertou-o.
9) Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido dizia: “Sua vaca, sua puta!”, tendo terminado quando um funcionário do hotel entrou no quarto devido a outros clientes terem alertado na receção do que se estava a passar.
10) EE foi assistida no local e transportada para uma unidade hospitalar e o arguido foi transportado pela polícia local onde permaneceu detido pelo menos uma noite, tendo no dia seguinte sido presente a um Juiz.
11) Na unidade hospitalar onde deu entrada, EE foi informada que tinha perdido o feto, motivo pelo qual ficou bastante transtornada.
12) Em meados de Janeiro de 2021, EE deslocou-se na companhia do arguido a Portugal, para estar presente no velório de um primo, que tinha sido vítima de homicídio.
13) Durante esta pequena estadia em Portugal, o arguido e EE acordaram vir viver para Portugal, tendo o pai desta encontrado uma empresa de construção civil para o arguido trabalhar, e, por isso, em meados de Fevereiro de 2021, mudaram-se ambos para Portugal, ficando a residir durante três a quatro meses na habitação do pai de EE, sita na Rua ..., ..., Penafiel.
14) Em 26 de Abril de 2021, EE começou a trabalhar para a empresa A... e como a maior parte dos colegas de trabalho eram de sexo masculino, o arguido, sabendo disso, começou a controlar e a questionar, via SMS, “Onde estás?”, “Onde andas?”, “Com quem estás?” e a ligar constantemente.
15) Uns dias depois, EE resolveu ir passar uns dias a casa de um amigo, sita no centro da cidade de Penafiel, onde passou dois dias.
16) Quando voltou a casa do seu pai no dia 28 de Abril de 2021, ao início da noite, constatou que o arguido tinha queimado toda a sua roupa numa fogueira que o próprio fez na horta da casa do pai de EE onde então residiam.
17) Na verdade, no referido dia 28.04.2021, o arguido fez uma fogueira no quintal da habitação do progenitor de EE, onde então residiam, nela queimando quase todas as roupas dela, inclusive os pijamas.
18) Em inícios de Junho de 2021, EE e o arguido mudaram-se ambos para uma habitação, sita na Avenida ..., ..., R/C, em ..., neste concelho de Penafiel e no dia 1 de Outubro de 2021 EE e o arguido mudaram-se para a habitação sita na Rua ..., n.º ..., Casa ..., em ..., Penafiel.
19) A EE foram prescritos medicamentos para a epilepsia, para dormir e relaxantes musculares.
20) Pelo menos nessa última habitação, o arguido, por várias vezes, em diferentes datas, quando se ausentava para o trabalho, obrigava EE a tomar medicamentos além dos prescritos por forma a que EE ficasse em casa a dormir até o mesmo chegar ao fim do dia.
21) Quando saía de manhã, o arguido trancava a porta de acesso ao exterior, levando a chave com ele, impossibilitando que EE se ausentasse de casa, já que a mesma não tinha chave de casa.
22) No dia 03.12.2021, pelas 22:00 horas, quando estavam na sala, na companhia de GG, a dado momento, o arguido começou a discutir com EE, elevando ambos o tom de voz.
23) Após esta perguntar ao arguido “Que foi? Vais bater-me?”, o mesmo levantou-se e abeirou-se dela para logo encostar a cabeça dele à cabeça dela.
24) No dia 7 de Dezembro de 2021, cerca das 24:00 horas, EE deslocou-se ao estabelecimento “B...”, em ... (Lousada) com o arguido, a fim de assistirem a um espetáculo de karaoke.
25) Após terminar tal espetáculo, EE convidou GG, amigo deles e promotor do espetáculo, para ir a casa de ambos, para conviverem um pouco.
26) Pela 01:00 hora do dia 08.12.2021 já na referida habitação, sita na Rua ..., n.º ..., Casa ..., em ..., Penafiel, encontrando-se na companhia de GG e no espaço da casa dedicado à cozinha, o arguido envolveu-se em discussão com EE, por esta o ter questionado por que motivo o telefone de casa se encontrava com as chamadas a serem reencaminhadas para o telefone do arguido. 27) No decurso de tal discussão e após EE dizer “Tens medo que ande com amantes ou és tu que andas com alguma amante?”, o arguido pegou num telemóvel e no telefone de casa e partiu ambos contra a mesa da cozinha, deixando-os completamente inutilizados.
28) Ato contínuo, o arguido abeirou-se de EE e desferiu-lhe uma bofetada na cara do lado esquerdo, que a atingiu na bochecha e na orelha, provocando de imediato uma hemorragia no ouvido, de onde começou logo a sangrar de forma algo abundante.
29) Ao mesmo tempo, aos gritos, o arguido, dirigindo-se àquela, apelidou-a de “filha da puta”, “vaca” e “puta”.
30) Isto mesmo na presença de GG.
31) Como o arguido estava na cozinha a preparar uma refeição, mantinha na mão uma faca de cozinha com cerca de 20 a 25 centímetros de comprimento.
32) A troca de palavras continuou e, a dado momento, EE acusou o arguido de noutras ocasiões já a ter agredido, dizendo: “Tu bateste-me. Bate-me agora. Bate-me mais. Está aqui o GG”.
33) Ato contínuo, o arguido começou a agredi-la com vários murros, atingindo-a com violência na face, o que levou GG a intervir para tentar pôr cobro às agressões, mas sem sucesso, até porque, a dado momento, EE caiu para o chão e, nessa altura, o arguido começou a agredi-la com vários pontapés na zona da barriga e das costas.
34) Após tal agressão, GG conseguiu auxiliar EE a levantar-se do chão, mas logo após a mesma ter dito que ia chamar a polícia, o arguido voltou a abeirar-se dela, agarrou com a mão direita e apertou com força o pescoço da mesma, forçando-a a deitar-se no sofá da sala enquanto continuava a agarrar-lhe e apertar-lhe o pescoço.
35) EE voltou a dizer que ia chamar a polícia e o arguido voltou novamente a abeirar-se dela e agarrou-a com a mão direita na zona da boca (o polegar sobre a bochecha direita e os restantes dedos sobre a bochecha esquerda), apertando com uma violência tal que quase instantaneamente EE começou a sangrar pela boca.
36) Já com EE muito abalada e quase a perder os sentidos, a mesma tentou em desespero alcançar e fugir pela janela da sala (localizada num rés-do-chão), mas quando estava a abrir a persiana, o arguido correu atrás dela e puxou-a com força por trás pelos cabelos, provocando com tal gesto a queda dela para o chão.
37) Seguidamente, o arguido deslocou-se para a cozinha, regressando instantes depois à sala, trazendo com ele uns comprimidos que queria que EE ingerisse, ao que a mesma logo reagiu dizendo: “Ele quer-me drogar. Ele anda-me a drogar. Ele dá-me medicamentos de manhã e à noite”.
38) Ato contínuo, o arguido agarrou-a pelos maxilares para a forçar a ingerir esses comprimidos.
39) Instantes depois, HH, vizinho de EE e do arguido, bateu à porta e o arguido foi abrir a porta e quando ele abriu a porta, o mesmo perguntou-lhe o que se estava a passar, ao que o mesmo respondeu: “Ela está tola da cabeça outra vez. Tenho que lhe dar uns comprimidos para a acalmar”.
40) GG aproveitou esse momento para se encaminhar para a porta e se dirigir para o exterior, mas assim que EE se agarrou ao braço dele para também ela sair daquele local, o arguido agarrou-a pelos cabelos e atirou-a para o chão, começando de seguida a agredi-la outra vez com vários murros por várias partes do corpo.
41) Assim que GG saiu da referida habitação, o arguido fechou-lhe a porta e este nada mais viu.
42) Encontrando-se sozinho com EE, o arguido pegou nela ao colo e levou-a para a cama, de seguida desferiu-lhe bofetadas, fazendo-a cair ao chão, tendo nessas circunstâncias partido a cama de casal.
43) No dia 9 de Dezembro de 2021, de manhã, antes de se ausentar de casa para o trabalho, o arguido trancou mais uma vez a porta, deixando a companheira EE mais uma vez fechada em casa sem poder sair pela porta para o exterior.
44) Porque se tivesse queixado a GG que estava com muitas dores devido às agressões que tinha sofrido, EE foi por este auxiliada a sair pela janela da cozinha e, após se deslocar ao Posto da Guarda Nacional Republicana de Penafiel, foi receber tratamento médico-hospitalar ao Centro Hospitalar ..., E.P.E, onde deu entrada no respetivo Serviço de Urgência pelas 15:30 horas do referido dia 09.12.2021 e de onde teve alta pelas 18:14 horas do mesmo dia.
45) Pelas 18:45 horas do dia 09.12.2021, após ter recebido tratamento médico no Centro Hospitalar ..., E.P.E..
46) Por temer voltar a ser agredida pelo arguido, EE já não regressou para junto do denunciado e foi morar com o pai.
47) Como consequência direta e necessária da atuação do arguido acima descrita, a mencionada EE sofreu dores, desconforto e lesões, concretamente:
— Fenómenos dolorosos: referidos na face, pescoço, costelas à direita, necessitando de medicação analgésica;
— Outras queixas a nível funcional: não consegue comer adequadamente;
— Face: equimose periorbital bilateral, arroxeada; escoriação no dorso do nariz à esquerda, com 0,5 centímetros de comprimento; dor à palpação da mandíbula bilateralmente e na ATM, com dificuldade em abrir a boca; dor ao toque na orelha esquerda, que apresenta vestígios de sangue seco no seu interior, com aspeto avermelhado em comparação com a orelha contrária;
— Pescoço: múltiplas equimoses avermelhadas dispersas na face anterior e lateral esquerda do pescoço, ténues, dolorosas à palpação;
— Ráquis: contractura paracervical à direita, condicionando diminuição de mobilidade cervical;
— Tórax: Dor à palpação da grelha costal lateral à direita, não se observando lesão traumática; pela observação por raio X da grelha costal, fraturas do 7.º ao 9.º arcos costais direitos;
— Membro superior esquerdo: equimose avermelhada na face posterior do cotovelo esquerdo, com mobilidades mantidas;
Lesões pelas quais teve necessidade de receber tratamento médico e que demandaram 35 dias para a consolidação médico-legal, sendo a data da consolidação médico-legal das lesões fixável em 12.01.2022, tendo as lesões descritas resultado de traumatismo contundente, não tendo resultado quaisquer consequências permanentes.
48) No sábado, dia 11 de Dezembro de 2021, cerca das 11:30 horas, após ter voltado a manter contacto com o arguido, EE aceitou voltar para a casa que ambos partilhavam em ..., Penafiel.
49) Para o efeito, o arguido chamou o táxi conduzido por II, que a levou à residência comum do casal, tendo ambos voltado a viver juntos na referida Rua ..., n.º ..., Casa ..., ..., Penafiel.
50) Quando ali chegaram, o arguido ajudou EE a sair do táxi, tendo pegado nela ao colo, após pagar ao taxista o valor do serviço de táxi, no montante de €23,00.
51) Quando entraram naquela habitação, o arguido transportou-a ao colo até à cama, deitou-a e deu-lhe dois comprimidos para as dores.
52) De seguida, o arguido saiu de casa, deixando mais uma vez a porta de entrada fechada à chave e levando a chave com ele.
53) Quando o arguido regressou e ali se dirigiram o vizinho HH e JJ a indagar se EE ali se encontrava com ele, o arguido respondeu-lhes que não, que desconhecia o seu paradeiro e que a mesma se encontraria em casa do pai.
54) Por ter sido contactada, a Guarda Nacional Republicana deslocou ali uma patrulha, tendo os militares da Guarda Nacional Republicana KK e LL abordado o arguido, o qual, inicialmente, referiu a estes desconhecer o paradeiro de EE.
55) Após aqueles militares da Guarda Nacional Republicana terem questionado se poderiam ali entrar, o arguido respondeu que sim, acabando por dizer que EE se encontrava no quarto a dormir.
56) Questionada por aqueles militares da Guarda Nacional Republicana se ali pretendia ficar, EE disse que não, que queria ir para casa do pai, tendo sido então de imediato transportada para casa do pai por JJ, onde esteve a residir durante algum tempo.
57) Todavia, poucos dias depois, EE voltou para a residência do casal, sita na Rua ..., n.º ..., Casa ..., em ..., Penafiel, onde residiu até à data da sua morte, no dia 17.02.2022.
58) Os desentendimentos entre ambos mantiveram-se, uma vez que EE consumia habitualmente substâncias estupefacientes e bebidas alcoólicas em excesso e, para angariar quantias em dinheiro, mantinha relações sexuais com outros indivíduos, nomeadamente com MM, factos que eram do conhecimento do arguido.
59) No dia 16.02.2022, à noite, o arguido e EE deslocaram-se ao restaurante C..., sito na Rua ..., em ..., Penafiel, sendo que ali também se encontrava NN.
60) Cerca das 21:16 horas, EE encaminhou NN para a casa de banho das mulheres do referido estabelecimento, onde manteve relações sexuais com aquele a troco da quantia de €20,00, tendo ali permanecido até às 21:22 horas.
61) Enquanto EE estava na casa de banho do referido estabelecimento com NN, o arguido dirigiu-se mais do que uma vez à zona da casa de banho, chegando a bater à porta e chamando por ela, tendo esta respondido “estou a cagar”.
62) Após EE sair da casa de banho, cerca das 21:30 horas, esta e o arguido foram para casa no veículo de HH.
63) Ali chegados, EE ainda se dirigiu a casa dos seus vizinhos HH e OO, tendo-se esta apercebido que aquela se encontrava alcoolizada.
64) Nessa ocasião, EE disse a OO que lhe queria dar um anel como forma de agradecimento, tendo esta aceitado, por ver EE alcoolizada, pensando devolvê-lo no dia seguinte.
65) Pelas 22:30 horas do dia 16.02.2022, o arguido e EE regressaram à sua residência.
66) De regresso a casa, na noite de 16 para 17 de Fevereiro de 2022, o arguido e EE mantiveram relações sexuais, no decurso das quais o arguido decidiu tirar a vida e matar a sua companheira EE.
67) De facto, nessa madrugada, no interior da referida residência, o arguido usando a sua superior força física ocluiu totalmente a boca e o nariz de EE por forma não concretamente apurada, até que a mesma deixasse de respirar, conseguindo, assim, tirar-lhe a vida, o que quis e conseguiu.
68) Após a ter matado, o arguido retirou toda a roupa que EE possuía em casa e nos seus objetos pessoais (à exceção do desodorizante, escova de cabelo, escova dos dentes, champô e gel de banho que eram de uso exclusivo da vítima) e foi despejá-los no contentor do lixo que se situa a cerca de 50 metros da habitação onde ambos residiam.
69) O arguido pegou ainda no corpo desnudado de EE e envolveu-o numa manta de cor cinzenta, colocando-o em cima da cama do segundo quarto da referida habitação em posição de decúbito dorsal.
70) O arguido desligou o telemóvel que habitualmente usava, com o n.º ..., pela 01:03 horas do dia 17.02.2022.
71) Cerca das 06:45 horas do dia 17.02.2022, o arguido foi trabalhar para a zona de Guimarães, tendo levado consigo o telemóvel de marca Samsung ..., com o IMEI ..., com o cartão de telemóvel com o n.º ..., utilizado habitualmente por EE.
72) Após a morte da EE, o arguido resolveu engendrar um plano para encobrir a sua morte, relatando a quem conhecia que ela tinha abandonado a residência levando todos os seus pertences.
73) Assim, quando chegou a casa vindo do trabalho, no dia 17.02.2022, o arguido dirigiu-se à sua residência e um ou dois minutos depois, deslocou-se à casa dos seus vizinhos OO e HH (também seu colega de trabalho) dizendo “Ó HH, a EE se foi, a EE marchou”, tendo-lhes pedido que entrassem na sua residência e levou-os ao quarto onde lhes mostrou o guarda-fatos sem roupa de mulher, não tendo levado aqueles nem à sala nem ao outro quarto da referida residência, onde ainda se encontrava o corpo sem vida de EE.
74) Porque instado pelos seus vizinhos nesse sentido, o arguido não ligou para o telemóvel da EE, dizendo que “não tinha saldo ou ela a ele não lhe atendia”, tendo a testemunha OO tomado a iniciativa de ligar para o número ..., que não deu sinal.
75) Porque os referidos vizinhos insistiam que tentasse ligar para EE, o arguido, utilizando o telemóvel desta acima referido, fingiu ligar-lhe, dando sinal de desligado.
76) Às diversas pessoas a quem comentava o desaparecimento da EE, o arguido foi dando justificações diferentes para o seu desaparecimento, ora dizendo que sabia que a mesma tinha voltado para Espanha para um anterior companheiro, ora dizendo que a mesma estava em casa da sua mãe em Castelo de Paiva, ora dizendo que tinha inclusivamente pago a quantia de €450,00 para esta ir a um “bruxo”, para fazer um tratamento.
77) Posteriormente, o arguido veio a dizer às diversas pessoas que o contactavam que EE se tinha ido embora sem levar o seu telemóvel, que, aliás, se encontrava na sua posse, logo na manhã do dia 17.02.2022 e que consigo levou para o seu local de trabalho.
78) Como o arguido não tinha qualquer veículo na sua posse, desde logo resolveu engendrar um plano para se conseguir desfazer do corpo da sua companheira.
79) No dia 19.02.2022, sábado, o arguido esteve a trabalhar e no final do dia de trabalho, pediu ao seu patrão, PP, que lhe emprestasse um veículo porque precisava de ir buscar uns móveis, tendo este acedido, emprestando-lhe uma carrinha de marca Ford, modelo ..., com a matrícula ..-..-ZS, que tinha as particularidades de ter a matrícula na parte traseira do lado esquerdo, os vidros de trás escurecidos, a luz de travão traseira do lado direito fundida e não tinha o tampão do local de abastecimento de combustível.
80) Nesse dia, pelas 17:30 horas, o arguido ficou na posse do referido veículo.
81) No dia seguinte de manhã, entre as 11:20 e as 11:26 horas, dando execução àquele plano previamente traçado de se desfazer do cadáver da falecida EE, pegou no seu corpo envolvido na manta de cor cinzenta, colocou-o no lugar de carga da referida viatura, tendo-se dirigido com a mesma até a um trilho existente junto à Rua ..., em ..., Penafiel, depositando o cadáver da vítima numa zona de mato florestal.
82) Nesse percurso, o arguido ainda danificou a referida viatura que apenas devolveu pelas 23:00 horas do referido dia 20.02.2022 ao funcionário do seu patrão que lha havia emprestado.
83) Para ali chegar o arguido percorreu cerca de 16 quilómetros, passando pelo Posto de Abastecimento de Combustível ... sito na Rua ..., em ... e na Avenida ..., em ..., onde a referida viatura foi vista a passar nas câmaras de vídeo-vigilância da sociedade “D..., Unipessoal, Lda.”.
84) Tanto assim foi que o corpo da falecida apenas foi encontrado pela testemunha QQ no dia 28.02.2022.
85) Quando o cadáver da vítima foi encontrado, ao nível do hábito externo verificou-se que, depois de aberta a manta, o cadáver apresentava já sinais evidentes de putrefação com uma exuberante mancha esverdeada que se estendia das fossas ilíacas para o abdómen. As pontas dos dedos estavam bastante desidratadas e as unhas cianosadas, sendo que as da mão esquerda estavam, aparentemente, mumificadas e existia uma grande massa larvar na zona genital, indiciando que a vítima estivesse morta há vários dias. A rigidez cadavérica estava já totalmente desinstalada constatando-se, logo de imediato, que os livores não eram compatíveis com o posicionamento em que o corpo foi encontrado. Observados os livores que se encontravam fixados, verifica-se que o seu assentamento teria decorrido encontrando-se o cadáver da vítima numa posição de decúbito dorsal. Existiam também marcas de compressão na parte posterior do cadáver (Zona lombar e nádegas) que são coincidentes com o assentamento dos livores numa posição de decúbito dorsal e, muito possivelmente, quando já envolto ou em cima da manta, considerando que as marcas de compressão existentes na zona lombar parecem ter sido produzidas por pregas de tecido. Para além disso, o cadáver da vítima apresentava poucas escoriações que indiciassem o arrastamento do corpo, apresentando-se os pés desnudados também eles íntegros, o que, considerando a flora autóctone existente no local onde o cadáver foi depositado, com várias plantas com espinhos punctiformes, tal não seria possível, tendo o mesmo sido carregado e não arrastado e pousado de forma cuidadosa no local onde foi encontrado. Voltado o corpo, verificou-se que o mesmo apresentava sinais de putrefacção especialmente revelados nas duas manchas esverdeadas que se estendiam das fossas ilíacas até à região abdominal, na cavidade oral e grande massa larvar na zona genital. A cabeça não apresentava lesões ao nível do crânio verificando-se duas manchas equimóticas por cima da sobrancelha esquerda na região frontal da cabeça. A cavidade oral também apresentava sinais de putrefacção encontrando-se a língua no interior da arcada dentária. Os globos e os lábios encontravam-se já bastante desidratados, sendo que a pele dos lábios estava já a escamar. Era visível uma pequena escoriação de forma circular no lábio inferior do lado esquerdo e uma ténue escorrência nasal da narina esquerda. Ao nível do pescoço verificavam-se de ambos os lados ligeiras equimoses de tom avermelhado, assim como na zona frontal mas mais ténues. Os membros superiores apresentavam duas escoriações na parte anterior do braço direito. O antebraço da mão direita e a palma da mão estava limpo, verificando-se uma pequena escoriação no dorso da mão e o que aparenta ser uma pequena infiltração sanguínea no polegar da mão direita. As unhas desta mão estão cianosadas e a pele interior muito desidratada. Na zona posterior do braço esquerdo eram visíveis várias manchas e aparência equimótica, assim como uma escoriação já com alguma massa larvar. Na parte interna do antebraço verificavam-se três cicatrizes.
86) Do exame ao hábito externo da vítima, foram observadas as seguintes lesões:
— Equimoses avermelhadas ao nível da cabeça (fronte e região infra-ocular), áreas de coloração rosada no pescoço, equimose rosada figurada no tórax (perimamilar, compatível com mordedura), escoriações avermelhadas no dorso da mão direita, equimoses azul-arroxeadas no braço esquerdo, escoriação avermelhada no braço esquerdo, escoriação avermelhada na perna direita e equimoses arroxeadas na coxa e perna esquerdas. Estas lesões traumáticas são compatíveis com traumatismo de natureza contundente;
— Escoriações alaranjadas e desidratadas no tórax, região ano-genital, membro superior direito, membro inferior direito e membro inferior esquerdo. Estas lesões são compatíveis com lesões ocorridas no período post-mortem.
87) Ao nível do Hábito Interno foram observadas as seguintes lesões:
— Tradução nos tecidos moles, com infiltração sanguínea, da equimose na região frontal esquerda descrita no exame do hábito externo, medindo 2 por 1 cm de maiores dimensões; Hemorragia subaracnoideia ligeira, essencialmente a nível dos lobos parietais, sendo mais evidente à esquerda; Ausência de lesões traumáticas ósseas cranianas ou de outras lesões traumáticas encefálicas; Tradução nos tecidos celulares subcutâneos, com infiltração sanguínea, da equimose figurada perimamilar descrita no exame do hábito externo; Congestão generalizada dos órgãos; Sufusões hemorrágicas dispersas pela mucosa laríngea; Sufusões hemorrágicas dispersas pela superfície pulmonar, bilateralmente; Presença de calo ósseo nos arcos posteriores da 9.ª à 11.ª costelas, à direita, compatível com fracturas não recentes, consolidadas.
88) O estudo toxicológico revelou-se:
— Positivo para a pesquisa de etanol, na concentração de 1,98 ± 0,25 g/L;
— Positivo para a pesquisa de substâncias medicamentosas, nomeadamente 7-aminoclonazepam (metabolito activo do clonazepam), diazepam, nordiazepam (metabolito activo do diazepam) e trazodona, todos em doses consideradas não tóxicas.
89) Relativamente às amostras remetidas ao Serviço de Genética e Biologia Forenses do INMLCF, I.P. para pesquisa de material biológico:
— Foi confirmada a presença de sémen nas zaragatoas vaginal e da cavidade oral, bem como no cobertor que envolvia a vítima.
— Foi confirmada a presença de material biológico de origem masculina nas zaragatoas vaginal, anal, subungueais bilateralmente, oral, peri-vulvar, bem como no cobertor que envolvia a vítima, coincidente com o perfil genético do suspeito.
— Com exceção dos perfis genéticos da vítima e do suspeito, não foram encontrados outros perfis genéticos em todas as amostras colhidas.
— O facto de ter sido detetado sémen nas zaragatoas vaginais, em quantidade suficiente para contaminar o cobertor onde a vítima se encontrava envolvida, sugere a ocorrência de relações sexuais (coito vaginal) entre a vítima e o arguido num curto período de tempo prévio à morte.
— O exame anátomo-patológico às amostras colhidas de coração, pulmão, rim, fígado, encéfalo e vulva, remetidas para o laboratório de Anatomia Patológica desta Delegação para processamento, detetaram: “Congestão multivisceral. Lesões difusas de necrose aguda tubular renal”.
90) Fruto das lesões infligidas pelo arguido a EE, com a oclusão de ambas as vias respiratórias, o arguido, de forma direta, adequada e necessária, provocou-lhe dores e a morte, o que quis e conseguiu.
91) A vítima não apresentava qualquer lesão de defesa nas mãos, braços ou antebraços.
92) O arguido sabia que as expressões por si dirigidas à mencionada EE eram profundamente ultrajantes e lesivas da sua honra e da consideração pessoal que lhe é devida, mas não obstante essa cognição, agiu com o propósito, conseguido, de a ofender na sua honra e consideração.
93) Sabia igualmente que os anúncios acima referidos eram adequados a afetar a sua liberdade de determinação e a provocar-lhe medo e inquietação e a criar nela angústia e sentimentos de insegurança e de dependência em relação a si, aterrorizando-a, o que igualmente quis e conseguiu.
94) Ao atuar da forma acima descrita, quis também, como conseguiu, molestar e maltratar o corpo e saúde da mencionada EE e atingi-la na sua integridade física.
95) Sabia ademais que os seus atos acima descritos afetavam a dignidade pessoal da mencionada EE, sua companheira, bem como o seu equilíbrio psicológico e emocional.
96) Fê-lo sem qualquer motivo justificativo e com o fim exclusivo de fazer valer a sua vontade pelo recurso à violência física e psíquica, bem sabendo que da forma descrita atingia física e psicologicamente a mencionada EE e lhe infligia maus-tratos físicos e psíquicos, o que lhe foi indiferente por ser querida tal conduta.
97) Sabia outrossim que atuava no domicílio comum e que, deste modo, coartava as possibilidades de defesa e/ou fuga da mesma e lhe infligia um maior sentimento de vergonha e de insegurança e vulnerabilidade, bem como que essas circunstâncias lhe agravavam a responsabilidade criminal.
98) Do mesmo modo, ao ocluir ambas as vias respiratórias da vítima, usando a sua superior força física e aproveitando-se do estado de embriaguez em que aquela se encontrava, o arguido sabia que podia provocar-lhe a morte, propósito que visava alcançar e que ocorreu.
99) Por via de tal oclusão das vias respiratórias, resultou para a vítima a sua asfixia, que, de forma direta, adequada e necessária, lhe provocou dores e a morte.
100) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de matar e tirar a vida à sua companheira EE, sem que a vítima o tivesse provocado ou por alguma forma atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana.
101) O arguido sabia e não podia ignorar que a vítima era sua companheira, a quem devia especial respeito e consideração.
102) O arguido sabia que a vítima se encontrava embriagada, conhecia a sua debilidade física face à sua compleição física e força, tornando-a praticamente incapaz de se defender da sua atuação.
103) O arguido sabia ainda que ao ocluir boca e nariz da vítima EE, obstruindo-lhe as vias respiratórias e impedindo-a de respirar, indispensável ao sustento da vida do corpo humano, melhor assegurava o êxito das suas intenções homicidas.
104) Tal morte, querida pelo arguido, que agiu com total insensibilidade e desconsideração pela vida e integridade física da vítima EE, ocorreu porque esta foi intencionalmente impedida de respirar, provocando, assim, a sua morte.
105) Ao colocar o corpo da vítima EE numa zona erma de mato florestal, o arguido agiu com vista a que o seu cadáver não fosse encontrado, nem fosse descoberto o crime de homicídio que havia cometido, abandonando-o com o propósito concretizado de impedir a sua descoberta, o que bem sabia não estar autorizado a fazer.
106) Ao desfazer-se do cadáver da vítima EE, o arguido agiu com total insensibilidade, bem sabendo que ofendia o sentimento moral coletivo de respeito devido aos mortos, o que quis e logrou alcançar.
107) Fê-lo, ainda, com o propósito de, dessa forma, impedir a descoberta do cadáver de EE pelas autoridades policiais e assim obstar à sua perseguição criminal, não obstante saber ter sido ele quem tinha causado a morte de EE.
108) O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas são proibidas e puníveis por lei, não se tendo, contudo, coibido de as praticar.
Do pic de BB e CC
109) BB, nascido em .../.../2009, e CC, nascida em .../.../2011, são filhos da vítima EE.
110) Os menores vivem aos cuidados do pai desde fevereiro 2019, contactando com a mãe telefonicamente e estando por vezes com a mãe quando esta estava em Portugal e os ia buscar a casa do pai.
111) A morte da vítima causou-lhes sofrimento.
112) Tiveram que passar pelo escrutínio público no meio onde vivem e até em contexto escolar.
113) Os factos tiveram cobertura pelos media, quer a nível nacional, quer local, o que levou a que tal notícia fosse comentada no meio onde os menores estão inseridos, o que lhes causou tristeza, desgosto e, quanto ao filho, revolta.
114) Na escola, sentiram-se envergonhados e amedrontados, pois sabiam que os colegas e professores tinham tido conhecimento do sucedido.
115) Nunca mais vão ver a mãe, nunca mais vão estar com ela ou falar com ela.
116) Além da dor por terem perdido a mãe, têm saudades dela.
117) As agressões físicas de que EE foi vítima causaram-lhe dores e marcas no seu corpo, o que lhe causava tristeza e vergonha, vivendo aterrorizada com as ameaças que o arguido lhe fazia, motivo que a levava a voltar sempre a viver com ele.
118) No momento em que o arguido matou a vítima, causou-lhe sofrimento quando esta sentiu quando o arguido lhe estava a “tapar” a boca e o nariz para que deixasse de respirar.
119) A vítima, à data dos factos, tinha 30 anos de idade, tendo nascido em .../.../1991.
Do pic de FF
120) FF, mãe de EE, sofreu desgosto e tristeza em virtude da morte da filha e viu-se impedida de velar o seu corpo nas suas cerimónias fúnebres.
Outros
121) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.
122) À data dos factos o arguido desenvolvia atividade como operário da construção civil. O agregado constituído por si e por EE dispunha de valor equivalente ao salário mínimo nacional, acrescido de horas extra, o que permitia fazer face às despesas fixas relativas à renda de casa, água e eletricidade, sem privações significativas no quotidiano.
123) AA tem em Espanha, para além da sua progenitora, uma filha já adulta, fruto de um relacionamento curto que manteve na juventude.
124) O arguido tinha problemática alcoólica quando viva em Espanha, nunca tendo feito tratamento para tal, encontrando-se desde a reclusão abstinente.
125) AA terá frequentado a escola na idade normal, tendo desistido após a conclusão do ensino obrigatório, iniciando atividade laboral aos 16 anos de idade, primeiro como soldador e depois como camareiro num barco.
126) Pese embora a natureza dos factos constantes da acusação seja conhecida, AA projeta uma imagem de pessoa educada no relacionamento de vizinhança, sem que seja denotada rejeição à sua presença naquele meio.
127) AA encontra-se preso no Estabelecimento Prisional ... (...) desde 31-03-2022, à ordem do presente processo. Tem revelado capacidade de adaptação ao normativo vigente, tendo obtido ocupação laboral na faxina do pavilhão até ao início da fase de julgamento; posteriormente, tendo sido caso mediatizado, foi necessário transferir o arguido para regime protegido em virtude de este temer retaliações por parte da restante população prisional.
128) Não beneficia de visitas: a mãe, por residir em Espanha, não o pode visitar e o arguido não tem em território nacional qualquer amigo e ou familiar que o faça. Beneficia, todavia, de apoio económico da progenitora que todos os meses deposita 50€ na sua conta corrente no estabelecimento prisional.
129) O arguido, assinalando como repercussão imediata do presente processo a privação de liberdade, projeta o futuro centrado no exercício de uma atividade laboral regular na área da construção civil, na mesma morada em Penafiel, sendo a habitação propriedade da empresa. Pretende, assim, permanecer em Portugal, desejando que a progenitora emigre e venha viver consigo.
*
Não resultou provado que:
A - Na residência sita em ..., EE suspeitou que podia estar grávida do arguido, tendo então efetuado um teste de gravidez na presença deste, o qual deu resultado positivo.
B - Na situação descrita em 7) e 8), o arguido desferiu vários pontapés em todo o corpo de EE, maioritariamente na barriga e costas, e disse-lhe “vou-te matar”.
C - Nas circunstâncias descritas em 10), o arguido ficou proibido de se aproximar da vítima.
D - Após três semanas decorridas do episódio atrás descrito, quando se encontrava sentada numa esplanada perto da casa dos pais do arguido, EE foi abordada por este, tendo-lhe o mesmo pedido desculpas pelo sucedido, prometendo que não voltariam a acontecer novas agressões e pedindo-lhe que reatassem a relação.
E - Devido ao facto de se encontrar sozinha sem qualquer apoio familiar e laboral, EE acabou por reatar a relação com o arguido.
F – Na circunstância descrita em 14), o arguido afirmava a EE “Estou-me a chatear, se te vejo com algum homem parto-o todo e a ti também”.
G – No dia 26-04-2021, à noite, quando EE foi à casa de banho, o arguido pegou no telemóvel, marca ..., modelo ..., no valor de €899,00, pertença desta, sem o seu consentimento, para verificar com quem a mesma falava, tendo partido o mesmo.
H – O facto descrito em 15) deveu-se ao facto de o arguido se mostrar mais agressivo nas palavras e nas respostas que dirigia a EE.
I - Em data não concretamente apurada, mas em meados de Agosto de 2021, já de noite, durante um convívio organizado pelo arguido nessa habitação, estando presentes três amigos de trabalho do arguido, este e os amigos consumiram bastantes bebidas alcoólicas e também produto estupefaciente (haxixe).
J - Nessa ocasião, devido ao excesso de fumo e cheiro decorrente do consumo de haxixe, EE chamou-os a atenção, pedindo para irem fumar para o exterior da habitação, ao que nesse momento o arguido se abeirou dela e lhe desferiu uma bofetada na face com a mão aberta.
K - Ato contínuo, EE foi para a cama e, após alguns minutos, o arguido deslocou-se ao quarto e obrigou-a a tomar vários comprimidos.
L – Para concretizar os factos descritos em 20º, o arguido, usando a força, colocava os joelhos em cima dos braços de EE para a mesma não poder resistir, com uma mão abria a boca desta apertando na zona da boca e com a outra cheia de medicamentos introduzia os mesmos na sua boca, dando-lhe água de seguida.
M – Na circunstância descrita em 22) e 23), estava presente JJ e, perante o comportamento do arguido, GG interveio e disse “Calma que eu estou aqui”, serenando os ânimos.
N – Nas circunstâncias descritas em 31), o arguido apontou a arma para EE ao mesmo tempo que dizia: “Eu mato esta filha da puta”, ao que, ao ver o arguido a avançar na direção de EE a empunhar tal faca de cozinha, GG agarrou e puxou o braço do arguido, acabando o mesmo por pousar a faca em cima da mesa da cozinha.
O – Logo após o facto descrito em 34), GG agarrou no braço do arguido e puxou-o para trás, pedindo-lhe mais uma vez para ele parar, ao que o mesmo acedeu.
P – Após o facto descrito em 42), o arguido largou-a e EE deslocou-se para outro quarto para lá pernoitar, deitando-se completamente ensanguentada, sendo abordada novamente pelo arguido que a obrigou a tomar mais comprimidos, abrindo-lhe a boca para o efeito e fazendo-a engoli-las com água.
Q - No dia 8 de dezembro de 2021, EE acordou cerca das 17:00 horas, e estando o mesmo em casa, pediu ao arguido para a transportar ao hospital, porque estava com bastantes dores, o que este não fez.
R – Aquando dos factos descritos em 45), EE recebeu uma chamada telefónica do arguido que lhe perguntou onde ela estava, mas como ela não lhe disse, o mesmo começou depois insistentemente a tentar entrar em contacto com ela.
S - Ao final do dia 10 de Dezembro de 2021, EE voltou a receber várias chamadas telefónicas realizadas por um número que começava por “91” e terminava em “11” e que sabe ser usado por um colega de trabalho do arguido, as quais não atendeu.
T – Já no interior da habitação do casal no dia 11-12-2021, o arguido deslocou-se ao outro quarto, onde foi buscar um rolo de fita cola larga, de cor castanha, e, usando tal fita, prendeu as mãos de EE atrás das costas, tendo-lhe ainda colocado fita adesiva na boca, impossibilitando-a de falar.
U - Depois, passou as suas mãos pelo cabelo dela, ao mesmo tempo que lhe disse: “Gosto muito de ti. Só te quero à minha beira… Vou sair durante uma hora para trabalhar e depois volto”.
V - EE acabou por adormecer e quando acordou o arguido já estava em casa, encontrando-se deitado junto de si e a passar-lhe as mãos pelo cabelo, acabando EE por adormecer de novo.
W – No decurso dos factos descritos em 66), e força do que havia acabado de suceder no interior do Restaurante C..., gerou-se uma discussão entre o arguido e EE, durante a qual o arguido tomou a decisão referida em 66).
X – No facto descrito em 67), o arguido agarrou com uma das mãos o pescoço de EE.
Y – A morte de EE foi imediata, tendo ocorrido assim que lhe foram ocluídas as vias respiratórias.
Z - Após a ter matado, o arguido despiu EE.
Outros factos por provar: não há.
*
Motivação
O Tribunal baseou a sua convicção na apreciação crítica da prova produzida em audiência de julgamento, pericial, testemunhal e documental, tendo por pilar os princípios de apreciação da prova ínsitos nos artigos 127º e 163º do Código de Processo Penal.
Sigamos a prova em três passos, cronologicamente organizados, concretamente antes, no momento e após o falecimento de EE.
O início do relacionamento, os filhos de relacionamentos anteriores, a mudança para Portugal e as várias moradas do casal (factos 1º a 6º, 12º 13º e 18º) foram confirmados de forma inequívoca pelo arguido e por EE, esta em declarações para memória futura ouvidas em audiência.
Dir-se-á desde já que, no seu concreto conteúdo, as declarações prestadas por EE revelaram-se de pouco interesse, ressentindo-se uma constante preocupação em desculpabilizar o arguido e em atribuir versões mais graves dos factos a falsidades de testemunhas, a que não terá sido alheio o facto de, à data da sua prestação em 17-01-2022, EE ter retomado a vivência conjugal com o arguido e ter até já recusado a colocação de dispositivo de vigilância eletrónica para sua proteção (cfr. fls. 277 dos autos apensos). Ainda assim, além de um ou outro pormenor que foi confirmando (e que infra abordaremos), foi crucial para fortalecer o depoimento, já de si esclarecedor, da testemunha GG, que EE coloca em alguns dos momentos que viveu. Cumpre dizer que EE quis passar a mensagem de que esta testemunha é que engendrou o seu depoimento inicial e a convenceu a denunciar os factos, mas, além de a primeira denúncia datar de 29-04-2021 (muito anterior à proximidade do casal com GG e pouco após a chegada de EE e do arguido a Portugal), questionada sobre qual a finalidade de GG para tal avançou que este pretendia que EE trabalhasse com ele no negócio de karaoke, o que não faz qualquer sentido, quer porque EE e o próprio arguido confirmaram que EE já tinha prestado auxílio nos espetáculos de GG pelo menos duas vezes antes da prestação das suas declarações, quer porque é totalmente contraditório com a prova produzida, nalguns casos até com confissão do próprio arguido.
Os factos 7º a 11º foram admitidos pelo arguido e EE confirmou que já em Espanha o arguido lhe tinha batido. Quer seja ou não a verdadeira a versão do arguido de que em discussão nessa situação EE o arranhou, foi só ela que careceu de assistência hospitalar após intervenção de clientes e funcionário do hotel onde se encontravam, o que é revelador da desproporção das alegadas agressões mútuas.
Os factos 14º a 17º foram assumidos pelo arguido, a própria EE viu-se confrontada, como relatou, com a falta da roupa quando regressou a casa e RR, pai dela e em casa de quem o casal à data vivia, presenciou o ato do arguido de queimar as roupas. Se o controlo se devia ou não, como quis fazer crer o arguido, ao facto de EE usar sem autorização o veículo dele ou se a queimada das peças de vestuário teve como rastilho uma alegada fuga de EE com um colega, é irrelevante: se o arguido não concordava com os comportamentos dela, seguia a sua vida sem ela.
Quanto aos factos 19º a 21º, é inequívoco que EE tomava, como prescrição médica, vários medicamentos por dia. O arguido admitiu que muitas vezes era o próprio que lhos administrava, mas a pedido dela, por vezes até mais do que a dose prescrita, ora porque EE se esquecia, ora porque estava sob a influência de substâncias estupefacientes ou álcool. A questão está no excesso ou na administração contra a vontade de EE com o fito de a manter a dormir, de que EE se queixava ao pai (como o próprio asseverou), a que GG assistiu na noite de 08-12-2021 (num momento de extrema violência) e que é reforçado pelo depoimento de FF, mãe de EE, que tomava o mesmo tipo de medicação e a quem a filha pedia caixas de medicamentos com muita frequência, às vezes de 15 em 15 dias, revelando que as caixas se esvaziavam num ápice. Estes dados associados ao facto de FF não conseguir, nos últimos meses de vida da filha, contactá-la a não ser à noite (EE não trabalhava, mas também não atendia chamadas) e ao facto de o próprio arguido assumir que a trancava em casa levam-nos a perceber que EE vivia fortemente condicionada pela ingestão de medicamentos contra a sua vontade, administrados pelo arguido (única pessoa com quem vivia), que dessa forma, aliada à impossibilidade de sair de casa, lhe controlava os movimentos.
E a desculpa avançada pelo arguido para trancar EE à chave em casa – o que foi evidente no dia 09-12-2021 quando teve que sair auxiliada pela janela da cozinha - foi absurda: só havia uma chave e, quando EE pedia, o arguido deixava-a na janela da cozinha, já que ela podia sempre sair pela janela; e o motivo pelo qual o arguido levava a chave consigo prendia-se com o facto de EE temer o seu pai, se bem que desconfiassem que este tinha uma outra chave da porta. É manifesta a falta de sentido lógico desta explicação: em primeiro lugar, o ato de trancar alguém é uma privação da liberdade qualquer que seja a explicação dada e, em segundo lugar, se a questão estava no medo de EE do pai e este podia ter uma chave extra, então EE nunca estaria protegida em casa, fito último avançado pelo arguido.
Os factos 22º e 23º foram admitidos pelo arguido.
Quanto à situação descrita em 24º a 42º foi fulcral o depoimento de GG, que não nos mereceu a menor reserva, não se descortinando uma mínima razão para que não depusesse com verdade, já que se trata de alguém alheio a vínculos familiares ou profissionais do arguido e de EE (a ajuda que esta prestou no karaoke foi pontual). Assumiu uma narrativa sentida, deixando transparecer que ficou profundamente incomodado com o que presenciou, a tal ponto que se sentiu incapaz de trabalhar no dia seguinte, preocupado que estava com a condição física de EE (preocupação espelhada no telefonema de 08-12-2021 e no auxílio prestado no dia seguinte). Acresce que o depoimento da sua esposa, JJ, igualmente isenta, reforçou-o, assim como as lesões observadas em EE no dia seguinte (factos 44º e 47º), constantes das fotografias de fls. 143-147, do registo de urgência de fls. 172 e do relatório médico-legal de fls. 257-259 e 854.
GG descreveu o episódio dessa noite com particular violência, suportado em inúmeros detalhes incompatíveis com quem não assistisse ao episódio, e confirmou a discussão por causa das chamadas reencaminhadas, insultos e provocações verbais mútuos do casal, e as ameaças e agressões provadas, tendo o arguido forçado EE a engolir comprimidos abrindo-lhe a boca e apertando-lhes os maxilares e tendo-lhe apontado uma faca ao peito; não negou esta testemunha que EE também desferiu murros aos arguido, mas o número de agressões perpetradas, até já com EE caída no chão, e a força empregue pelo arguido foram, no seu relato, de tal forma superiores que as tentativas de EE não surtiam qualquer efeito na agressividade do arguido. E tendo em conta as lesões físicas observadas em EE no dia seguinte, é manifesta a gravidade das investidas do arguido.
GG foi muito pormenorizado, o que solidificou o seu depoimento, tendo o tribunal dado como assentes os factos nos termos da acusação, mais parcos que os de GG, mas compatíveis com toda a dinâmica que o mesmo trouxe. E JJ relatou que o marido lhe ligou pelas 3:00 horas dessa noite de 08-12-2021 a pedir-lhe que o fosse buscar, logo lhe relatando em traços largos o que tinha presenciado, coincidentes com o que relatou em audiência e com o estado em que SS encontrou EE no dia seguinte, com o corpo dorido, marcas no pescoço, sangue numa orelha e os olhos pisados.
Assim se entendeu que a genérica admissão do arguido sobre estes factos foi parca, pois apenas assumiu uma discussão, insultos, bofetadas recíprocas, insinuações de amantes, a quebra dos telefones e o facto descrito em 42º, afirmando que GG saiu da habitação pouco após o início da contenda e EE seguiu-o, tendo esta saltado pela janela e embatido com o rosto no chão (assim tentando justificar as lesões na face); poucos minutos depois, segundo o arguido, GG e EE teriam voltado das traseiras de uns contentores, o arguido deu comprimidos a EE, GG foi embora e a discussão durou até EE adormecer.
EE declarou ainda menos do que o arguido, situando a presença de GG apenas na fase inicial da discussão na cozinha, onde apenas teria ocorrido uma bofetada na face perpetrada pelo arguido, que a fez cair e sangrar na zona da orelha, contrariando de forma evidente o relato exaustivo deste que abarca um período muito mais vasto e muitas agressões. Mais, EE nega, na senda da sua desculpabilização, até o que o arguido admite, a quebra do telemóvel.
Os factos 43º a 46º foram relatados de forma inquestionável por GG e JJ (e até confirmados por EE), preocupada que ficou desde o sucedido na noite de 7 para 8-12, tanto que no dia 8-12 o seu marido GG, que em audiência o confirmou, estranhou a pressa do arguido em desligar o telemóvel quando ligou para o número de EE e este o atendeu. Confirmaram os gemidos de EE, a face pisada e negra, o pedido dela de ajuda, a retirada pela janela precisamente por a porta se encontrar trancada e EE não ser possuidora da respetiva chave, e a dificuldade de EE de se locomover sozinha face às dores corporais de que se queixava.
Os factos 48º a 52º foram confirmados pelo arguido e por II (taxista que efetuou o serviço de transporte) e os factos 53º a 56º por JJ, HH, os militares KK e LL e pelo próprio arguido. Ainda quanto a estes factos, foi flagrante a intimidação de EE ao contar a sua versão absurda: de táxi teria sido levada de casa do pai à casa do casal apenas para recolha de vestuário e medicação, o arguido apenas se teria aproximado para pagar a viagem sem sequer entrar em casa, e daí voltou pela mesma via para casa do pai, não tendo regressado a ... até 05-01-2022. Obviamente, esta versão embate frontalmente com o ocorrido em 11-12-2022 perante as testemunhas supra referidas.
O regresso de EE a ... poucos dias após esse episódio (facto 57º) foi confirmado pelo arguido e por RR.
Quanto ao facto 58º - consumos de estupefacientes e bebidas alcoólicas por EE e relações sexuais desta com outros indivíduos com conhecimento do arguido – AA afirmou que EE consumia haxixe e cocaína e que era frequente ingerir bebidas alcoólicas, mas negou ter conhecimento que se envolvesse com outros homens, do que só veio a saber já em reclusão.
Quanto ao primeiro ponto, EE assumiu ter efetuado outrora desintoxicações por consumos abusivos de álcool e que teve uma recaída em novembro de 2021; e as testemunhas TT, amiga de EE e que viveu com o casal já em 2022, RR, pai e em casa de quem o casal morou, UU e VV, proprietárias do Restaurante C..., HH e OO, vizinhos do casal, e WW, cuidadora da companheira do pai de EE e que viveu uns tempos com o casal, todos confirmaram ter presenciado esses consumos, a que se soma a presença de etanol no corpo de EE com concentração expressiva aquando da autópsia e que credibiliza esses depoimentos.
Já no que concerne aos relacionamentos que EE mantinha com outros indivíduos, foi confirmado por NN e MM que mantiveram relações sexuais com EE desde que esta regressou a Portugal, este até várias vezes, e ambos lhe pagavam por esse ato. Não nos convenceu o alegado desconhecimento do arguido desses encontros, porquanto era muito notória a cumplicidade de EE com estes indivíduos e a particularidade de EE, sem rendimentos próprios, se munir de valores monetários advindos desses relacionamentos: RR relatou um episódio em 14-02-2022 em que foi com o casal e TT ao C... e viu EE a “atirar-se ao colo de um careca“ (sic) e a chamar-lhe “meu amor”, sem qualquer reação por parte do arguido; TT via EE sair muitas vezes com MM e sem o arguido, o que estranhava, tanto que EE se atirava publicamente ao seu colo e o beijava; MM conheceu-a cerca de 6 meses antes do seu falecimento e EE chamava-lhe “tio” e o arguido chegou a pedir-lhe boleias para EE, a sugerir-lhe dar-lhe a chave de sua casa e a comentar ter conhecimento que EE às vezes andava com dinheiro que alguém lhe dava; a NN, conforme o próprio e VV, EE apelidava publicamente de “meu amor”, abraçava-o e atirava-se para os seus braços, o que era presenciado pelo arguido. Ora, num relacionamento baseado no controlo e no domínio, até físico, por parte do arguido, em que EE dependia dele financeiramente, não é crível, pelas mais elementares regras da experiência comum, que o arguido aceitasse sem questionar o tratamento íntimo que EE dava a outros homens e os valores de que ela se munia, mas pelo contrário se conclui que sabia e pactuava com esses relacionamentos como forma de arrecadar meios financeiros, sendo expressiva a afirmação de MM de que tinha a sensação de que “o AA lhe entregava a mulher a troco de dinheiro”.
Os factos 59º a 65º (à exceção do 60º) foram admitidos pelo arguido e contextualizados por HH e OO (companheira deste). Já o facto 60º foi relatado em audiência por NN, que confirmou ter mantido nessa noite relações sexuais com EE no interior do quarto-de-banho do restaurante C.... Aliás, é até chocante o arguido ter afirmado desconhecer que EE se relacionava sexualmente com outros homens a troco de dinheiro e que nessa noite nem viu NN quando esta mesma testemunha afirmou, de forma credível, que nessa noite no restaurante foi o próprio arguido que lhe disse que EE queria falar consigo e o aguardava na sala das traseiras e que pagou € 20,00 a EE no final do ato, valor esse de que o arguido teve conhecimento e de que questionou, segundo o próprio, EE ainda no restaurante e que esta reconheceu ter-lhe sido emprestado por NN noutra circunstância. Ora, ao arrepio das declarações da testemunha, se o arguido não soubesse que EE tinha estado naquele momento com NN e esperasse uma contribuição monetária desse ato, por que razão ocorreria esta conversa sobre os € 20,00 à saída do quarto-de-banho?
O cenário de maus tratos, em traços mais largos, foi-nos também trazido 1) pela agressividade presenciada na casa do casal por WW, já em ..., em que ouvia discussões frequentes nas quais o arguido expulsava EE de casa e a agredia com bofetadas, 2) pelo medo que EE apregoava do arguido, nomeadamente perante GG (na noite de 08-12-2021 EE insistiu que GG fosse a casa afirmando repetidamente que o arguido ia matá-la) e OO (na noite de 16-02-2022 sentiu EE receosa, trémula, retardou voltar para casa com o arguido) e 3) pelo facto de mais do que uma vez o seu pai ter sentido a necessidade de ocupar a casa do casal com outras pessoas para, segundo o próprio, manter o ambiente controlado, como foi o caso no final do ano de 2021 da sua esposa e da cuidadora XX e já próximo do falecimento de EE de TT, a quem RR pagou para o efeito atentas as constantes queixas da filha de que o arguido lhe batia.
Não olvidamos que nas discussões também era audível pelos vizinhos da Rua ... a voz de EE, sendo ouvidos insultos mútuos (“filho da puta, vaca, boi”), portas a bater, quedas de objetos, como recontaram HH e OO, mas o nível de ofensas físicas e domínio provados era apenas protagonizado pelo arguido.
Provadas as atuações, e no que respeita à intenção que lhes estava subjacente (factos 92º a 97º), a mesma há-de retirar-se do quadro factual que se nos apresenta; sendo do conhecimento geral e do senso comum que bater, ameaçar, insultar, controlar os passos, como foi pretendido pelo arguido sobre a companheira, são aptos a humilhar, magoar, diminuir, rebaixar, amedrontar a pessoa atingida, temos que concluir que o arguido teve por intuito causar esses sentimentos em EE, com plena consciência do que fazia e da proibição dos seus atos.

No que respeita aos factos atinentes ao momento da morte de EE e intenção subjacente (factos 66º, 67º e 98º a 104º), o tribunal analisou as declarações do arguido, o relatório da autópsia de fls. 934-962 e os esclarecimentos do seu autor em audiência, relacionando tais elementos com a conduta do arguido anterior e posterior a esses factos.
Segundo a versão do arguido – que cristaliza a data da morte: noite de 16 para 17 de fevereiro de 2022 -, quando voltaram para casa provindos do restaurante C... tiveram relações sexuais, inicialmente anais e posteriormente orais (em posição que designou como 69, pretendendo dizer que cada uma das zonas genitais estava em contacto com a boca do outro) e no momento em que se encontravam nesta última posição EE urinou sobre o arguido, este assustou-se e sacudiu-se, o que fez EE tombar no chão do lado direito da cama. Aí, o arguido chamou pela companheira, percebeu que ela não reagia e que estava morta, e passou a noite abraçado ao seu corpo sem que em momento algum procurasse socorrê-la ou solicitasse auxílio de terceiros, alegando medo de que não acreditassem em si. Na manhã seguinte, ainda segundo o próprio, foi trabalhar, deixando o corpo de EE na cama, e, quando regressou, fingiu aos vizinhos que EE tinha abandonado a residência, confessando a partir daí todos os factos provados. Quanto ao depósito no corpo, afirmou que a deixou num local especial para o casal, onde já tinham passado algumas noites dentro de um veículo automóvel.
O relatório de autópsia não é perentório quanto à causa da morte, tendo o seu autor, Dr. YY, esclarecido em audiência a existência de sinais sugestivos de asfixia com oclusão das vias aéreas ao nível da cavidade oral e nasal, como ausência de lesões traumáticas a nível cervical e presença de lesão de infiltração sanguínea da língua e de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe, não sendo esta sugestão afastada pela ausência de lesões de defesa no corpo da vítima (as equimoses nos membros que apresentava não eram sugestivas de defesa, mas seriam anteriores) tendo em conta que se encontrava sob o efeito de etanol e substâncias medicamentosas (em doses não tóxicas e, por isso, não determinantes da morte) que a relaxavam. Sustentando esta possibilidade de causa de morte, adiantou o mesmo perito que essas infiltrações sanguíneas na língua são causadas por mecanismo contundente, o que é incompatível com uma morte natural, podendo eventualmente ocorrer por uma queda posterior à morte com a língua parcialmente fora da cavidade bocal.
Não deixou o mesmo perito de afirmar que o tempo decorrido entre a morte e a data em que o corpo foi encontrado, bem como as condições climáticas a que esteve sujeito, influenciaram os sinais sugestivos da causa de morte (destruição de células, nomeadamente no tecido cardiovascular), atenuando-os caso estivéssemos perante uma morte natural, que até podia nem deixar sinais fisiológicos se adviesse de um evento arrítmico. Em todo o caso, quanto a essa última possibilidade, nada na microscopia dos órgãos, na idade da vítima, na ausência de antecedentes de doença própria e de familiares, nas profusões dispersas nos pulmões e na laringe e na lesão na língua sugeria morte por causa natural, afastando uma probabilidade séria desse cenário.
Arredou ainda, perante tese avançada pela defesa, qualquer hipótese de EE ter falecido pela ingestão de sémen do arguido, num fenómeno de engasgamento sem qualquer reflexo nos achados de autópsia.
Também afastou a possibilidade de EE ter falecido de causa violenta acidental, como uma queda da cama, pelas ténues lesões traumáticas na cabeça, bem como ausência de crânio-meningo-encefálicas mortais.
Afastada então a tese de que EE poderia ter falecido da queda, só nos restam a morte natural (relegada pelo perito nos termos expostos para uma possibilidade muitíssimo residual, mas invocada pelo arguido) e a morte por asfixia perpetrada pelo arguido.
Ora, o relatório pericial de autópsia não é meio único de prova da causa da morte. E na falta de uma conclusão arrasadora, compete ao tribunal analisar todos os elementos de que dispõe, assumindo particular relevo neste caso a conduta do arguido anterior e posterior aos factos.
Vejamos: a relação conjugal era marcada pela violência, pela agressividade, pelo domínio, pelo controlo, pelos consumos excessivos, pelo medo que EE apregoava de que o arguido a matasse; este já a tinha agredido de forma severa, mormente em 08-12-2022, pouco mais de dois meses antes do seu falecimento, tendo-lhe na altura recusado assistência hospitalar que só teve por intervenção de terceiros; exercia sobre EE forte pressão, levando-a sempre a regressar a casa e a desculpabilizá-lo dos seus atos, tendo o tribunal percebido dos depoimentos dos seus pais, do ex-marido DD e da companheira deste ZZ que EE não tinha suporte familiar consistente, saiu de casa adolescente, viveu em Espanha alguns anos sem grande contacto com a família que desconhecia o seu concreto paradeiro, tinha poucos contactos presenciais com os filhos, o que o arguido usava a seu favor.
Na noite em que EE faleceu, e assim que o arguido se apercebeu da inconsciência da vítima, não tentou reanimá-la, não procurou ajuda, não ligou ao 112, o próprio o admite esquivando-se no medo de que não acreditassem em si. Há que referir que, além desta postura perante a vítima que se lhe deparava contrariar as mais básicas regras da experiência e do senso comum de qualquer pessoa que, não o tendo causado, estivesse perante alguém a carecer imediatamente de assistência, mormente uma companheira de vida, esse medo era infundado, pois dos depoimentos prestados pelo pai de EE, por TT e pelos vizinhos HH e OO, vizinhos, quem gozava de má imagem pública era EE, por se encontrar várias vezes alcoolizada. Além da falta de assistência, o arguido logo criou toda uma mise-en-scènepara ocultar a morte de EE: recolheu toda a sua roupa e despejou-a no contentor do lixo, desligou o seu telemóvel, passou a transportar consigo o de EE, fingiu telefonemas públicos para EE do próprio telemóvel dela, avançou várias desculpas para o seu desaparecimento, levou os vizinhos a sua casa para confirmarem que EE tinha ido embora sabendo que o corpo desta estava na habitação, pediu um veículo emprestado para o transporte do corpo, conduziu-o a um monte a cerca de 15 km da sua habitação (distância trazida pelo próprio arguido, o que denota que o local foi escolhido previamente e pretendido que se distanciasse da sua habitação, curiosamente a cerca de 2 a 3 km da residência do pai de EE contra o qual pendia queixa por violação à filha) e depositou-o entre os arbustos, envolto numa manta.
É manifesto que o arguido pretendeu, com esta encenação, demarcar a sua responsabilidade na morte de EE – não há qualquer outra explicação plausível para esta atuação pós-morte -, o que advém do facto de saber ter sido o seu autor e pretender imiscuir-se de perseguição criminal. E dessa forma sabia que, até ser encontrado, o corpo se deteriorava, atenuando ou apagando sinais da causa da morte.
Neste enquadramento factual quer dos achados de autópsia, quer da conduta anterior e mormente posterior do arguido, entendemos que qualquer outra causa de morte que não a asfixia pretendida por este com o fito de matar EE está excluída. A morte natural, contra a vontade do arguido, conduziria a um apelo de auxílio que não ocorreu; a conformação imediata do arguido com a morte revela que a causou e pretendeu, é elucidativa do seu quadro mental no momento; e os atos que se seguiram confirmam-no.
Por isso, concluiu este tribunal que o arguido quis e atuou no sentido de matar a companheira, sabendo que a sua atuação era idónea a produzir esse efeito e confirmando-o após a sua produção. E sabendo, quer pelos esclarecimentos do perito, quer pelo senso comum, que a morte por asfixia não é imediata, foi dado como provado que EE se apercebeu dessa iminência e sentiu dor e pânico.

No que tange a todo esse circunstancialismo posterior à morte de EE (factos 68º a 83º e 105º a 107º), o arguido confessou-o de forma espontânea, à exceção de que a morte estivesse relacionada com um crime de homicídio por si cometido, facto que, como deixámos expresso, entendemos também provado. Em todo o caso, muito era o suporte testemunhal e documental que espelhava a conduta posterior do arguido, tendo o mesmo na altura espalhado várias versões sobre o desaparecimento de EE, atestadas em julgamento, mas mostrando-se o seu percurso documentado em análises de telefones e imagens de videovigilância, além do evidente empréstimo da carrinha da empresa no período do transporte da vítima confirmado por AAA, BBB e PP e o atraso na sua devolução. Nessa matéria também as inspetoras da PJ CCC e DDD trouxeram o quadro geral da atuação do arguido pós-morte, nos termos por ele confessados.
QQ encontrou o corpo e contextualizou-o em audiência (facto 84º), junto a um carreiro no monte, fora da estrada principal (a cerca de 3 metros) ladeado de arbustos altos.

Baseou-se ainda o Tribunal:
- nos relatórios de inspeção judicial ao local de aparecimento do corpo de fls. 2-40 e 161-213;
- na reportagem fotográfica à habitação da Rua ... de fls. 74-81;
- no exame ao veículo usado pelo arguido no transporte da vítima de fls. 102-110;
- no auto de visionamento do registo de imagens no restaurante C... na noite de 16-02-2022 de fls. 496-559;
- nas análises aos telemóveis do arguido e de EE de 16-02-2022 a 28-02-2022 de fls. 608-627 e 964-974;
- no auto de diligência efetuado na presença e com a participação do arguido sobre o percurso desde a sua habitação até ao local de depósito do corpo de fls. 710-715;
- no relatório pericial de criminalística biológica relativamente às amostras recolhidas no local de depósito do corpo e no veículo usado para o seu transporte de fls. 924-933;
- no relatório de autópsia de fls. 934-962 (também factos 85º a 89º e 91º); - no certificado do registo criminal do arguido de fls. 1233-1234;
- no relatório social sobre as condições de vida do arguido de fls. 1330-1332.

No que respeita à matéria constante dos factos PICS (109º a 119º e 120º), além da circunstância de que a morte de uma filha e de uma mãe causa sempre sofrimento pela inversão do curso natural da vida e da perda de figura de referência, FF frisou-o - se bem que ressaltou do seu depoimento que a filha saiu ainda na adolescência da habitação materna, viveu em Espanha em cidades de que a mãe não tinha conhecimento e pouco contacto presencial tinham desde que EE voltou a Portugal -, assim como DD, ex-marido de EE, e principalmente ZZ, companheira deste, que, quanto ao BB e à CC, esclareceram que desde a separação de EE e DD em 2012 os filhos viveram uns meses com a avó materna, daí foram para a Suiça com o pai, passaram quase dois anos na Alemanha com um tio paterno e voltaram à guarda do pai até hoje, tendo regressado a Portugal em 2019.
Quanto à ligação dos menores à mãe, referiram que os contactos eram essencialmente por telefonemas e videochamadas, quase todas as semanas, e que desde que EE regressou a Portugal em 2021, para morada que o ex-marido e os filhos desconheciam, só os visitou 3 vezes. Ambos os notavam inicialmente tensos e receosos nesses contactos.
Sobre a reação dos menores aquando da notícia do falecimento da mãe, ZZ e EEE, tia deles, afirmaram que o BB se exaltou, revoltou e chorou, já a CC manteve-se sem reação até hoje. Recorreram a ajuda psicológica na escola, onde eram abordados sobre o tema e sobre pormenores relacionados com o estado do corpo encontrado, o que os ajudou a serenar e estabilizar, bem como ao rendimento escolar de BB afetado à data dos factos, também pela cobertura mediática do caso.
Também ambas frisaram que os menores têm muita cumplicidade e proximidade com o pai, mas nunca foram muito próximos da mãe, assumindo ZZ esse papel.
No que respeita aos factos não provados em A) a V), resultou quer da não admissão por parte do arguido, quer da não confirmação por EE ou qualquer uma das testemunhas, não sendo possível extraí-los de qualquer outro elemento probatório.
Não foi também feita prova da ocorrência de uma discussão prévia ou contemporânea da decisão do arguido de matar EE; o próprio não o referiu e a razão que lhe estava subjacente na acusação – o relacionamento sexual de EE e NN nessa noite – não se nos afigura plausível, já que demos como provado que o arguido era sabedor desses relacionamentos; daí a ausência de prova do facto W.
O relatório de autópsia exclui a possibilidade de a morte de EE se ter devido a compressão do pescoço por ausência de lesões nessa zona corporal (X)).
Uma vez que da oclusão das vias respiratórias até à perda de sentidos decorre naturalmente um hiato temporal, não demos como provado que a morte de EE foi imediata (Y)).
E, tendo o ato de matar ocorrido no decurso de relações sexuais, sendo percecionada no decurso da autópsia a presença de sémen nas zaragatoas vaginal, vaginal, anal e peri-vulvar, e sem que o arguido o tenha referido, não podemos assumir que, após a ter matado, o arguido despiu EE, levantando-se a forte probabilidade de a mesma se encontrar despida aquando do falecimento (Z)).”

Apreciação do recurso:

Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas no recurso:

- impugnação da matéria de facto quanto ao crime de homicídio qualificado (pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104) e, violação do princípio geral do direito penal in dubio pro reo

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento; e pela impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
De acordo com o disposto no art. 428º, nº 1 do CPP, as Relações conhecem de facto e de direito e preceitua o art. 431º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada, nos termos do nº 3, do artigo 412º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.”
Assim, no 2º caso – impugnação ampla - a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzida em audiência (se documentada) mas com os limites decorrentes do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do aludido art. 412º, nos termos dos quais:
3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas;
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº 2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…)
6. No caso previsto no nº4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Porém, tal recurso não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, mas constitui tão só um remédio para eventuais erros ou incorreções da decisão recorrida (erros in judicando ou in procedendo) na forma como o tribunal recorrido apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, pelo que não pressupõe a reapreciação total dos elementos de prova produzidos em audiência e que fundamentaram a decisão recorrida, constituindo uma reapreciação autónoma sobre a bondade e razoabilidade da apreciação e decisão do tribunal recorrido quanto aos “concretos pontos de facto” que o recorrente especifique como incorretamente julgados.
Para essa reapreciação o tribunal verifica se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida e em caso afirmativo avalia-os e compara-os de molde a apurar se impõem ou não decisão diversa - cf. Ac. do STJ 14.3.07, Proc. 07P21, e de 23.5.07, Proc. 07P1498, acessível in www.dgsi.pt.
Donde, para além da indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, tem o recorrente de indicar o conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova, com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, e havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, e dentro destas tem o recorrente de indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação.
E tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada um deles as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Mas, e ainda no que à reapreciação da prova gravada se refere, como assinala o STJ no Ac. de 2/6/08, no proc. 07P4375, acessível in www.dgsi.pt. sofre as limitações que decorrem:
- da necessidade de observância pelo recorrente do ónus de especificação, restringindo como assinalado o conhecimento aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, e
- da falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações, postergando-se assim a “sensibilidade” que decorre de tais princípios; e resultam
- de a análise e ponderação a efectuar pela Relação não constituir um novo julgamento, porque restrita à averiguação ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros indicados pelo recorrente; e de
- o tribunal só poder alterar a matéria de facto impugnada se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº 3 do citado art. 412º) - cfr. também o Ac. do TRL de 10.10.07, no proc. 8428/07, em www.dgsi.pt/jtrl, e não apenas a permitirem.
Isto porque, a reapreciação da prova na 2ª instância, limita-se a controlar o processo de formação da convicção decisória da 1ª instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação/ fundamentação da decisão, e neste recurso de impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação não vai à procura de uma nova convicção - a sua - mas procura saber se a convicção expressa pelo tribunal recorrido na fundamentação tem suporte adequado na prova produzida e constante da gravação da prova por si só ou conjugados com as regras da experiencia e demais prova existente nos autos (documental, pericial etc..) e, em face disso, obviamente o controlo da matéria de facto apurada tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, mas não pode subverter ou aniquilar a livre apreciação da prova do julgador, construída, dialecticamente, na base da imediação e da oralidade, na medida em que, como refere Figueiredo Dias, in Direito Proc. Penal, 1º Vol. Coimbra ed. 1974, pág. 233/234, só aqueles princípios da imediação e da oralidade “… permitem …avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações pelos participantes processuais”.
Tal significa que sem dispor da apreciação directa e imediata da prova, ao tribunal de recurso cabe apenas averiguar se existe o erro de julgamento na fixação da matéria de facto, por se evidenciar que as provas valoradas pelo tribunal recorrido eram provas proibidas ou o foram com violação das regras sobre a apreciação da prova, e nomeadamente o principio da livre apreciação, do princípio in dubio pro reo ou prova vinculada, ou as regras da experiencia ou ainda se a convicção formada pelo tribunal a quo não era possível, pois se for uma das possíveis não pode o tribunal de recurso interferir nessa apreciação.
Porém, essa dimensão do recurso não constituiu um novo julgamento do objeto do processo, como se a decisão da 1ª instância não existisse, mas sim, e apenas, remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente Ac. do S.T.J. de 17/05/2007, Proc. nº 071397, acessível em www.dgsi.pt.
Compulsada a motivação apresentada, verifica-se que o recorrente concretiza os pontos de facto que reputa de incorretamente julgados: pretende a modificação da decisão de dar como provados os factos constantes dos pontos 66, 67, 90, 98, 99, 100, 103 e 104 dos factos provados, passando todos para o elenco dos não provados. Encontra-se, então, respeitado o ónus imposto pela al. a) do nº3 do art. 412º do CPP.
Vejamos então se as provas invocadas pelo recorrente impõem decisão diversa da recorrida.
São os seguintes os pontos da matéria de facto que impugna o recorrente.
66) De regresso a casa, na noite de 16 para 17 de Fevereiro de 2022, o arguido e EE mantiveram relações sexuais, no decurso das quais o arguido decidiu tirar a vida e matar a sua companheira EE.
67) De facto, nessa madrugada, no interior da referida residência, o arguido usando a sua superior força física ocluiu totalmente a boca e o nariz de EE por forma não concretamente apurada, até que a mesma deixasse de respirar, conseguindo, assim, tirar-lhe a vida, o que quis e conseguiu.
90) Fruto das lesões infligidas pelo arguido a EE, com a oclusão de ambas as vias respiratórias, o arguido, de forma direta, adequada e necessária, provocou-lhe dores e a morte, o que quis e conseguiu
98) Do mesmo modo, ao ocluir ambas as vias respiratórias da vítima, usando a sua superior força física e aproveitando-se do estado de embriaguez em que aquela se encontrava, o arguido sabia que podia provocar-lhe a morte, propósito que visava alcançar e que ocorreu.
99) Por via de tal oclusão das vias respiratórias, resultou para a vítima a sua asfixia, que, de forma direta, adequada e necessária, lhe provocou dores e a morte.
100) O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de matar e tirar a vida à sua companheira EE, sem que a vítima o tivesse provocado ou por alguma forma atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana.
103) O arguido sabia ainda que ao ocluir boca e nariz da vítima EE, obstruindo-lhe as vias respiratórias e impedindo-a de respirar, indispensável ao sustento da vida do corpo humano, melhor assegurava o êxito das suas intenções homicidas.
104 ) Tal morte, querida pelo arguido, que agiu com total insensibilidade e desconsideração pela vida e integridade física da vítima EE, ocorreu porque esta foi intencionalmente impedida de respirar, provocando, assim, a sua morte.

Como já se adiantou, o arguido limita o recurso à condenação pelo crime de homicídio qualificado, por entender que está insuficientemente sustentada na prova carreada para os autos, posto que o julgamento dos mencionados pontos da matéria de facto provada contraria o relatório de autópsia e os esclarecimentos prestados em audiência pelo perito médico-legal. Estes meios de prova, sustenta, revelaram-se incapazes de esclarecer sobre a causa da morte, ou seja, no relatório de autópsia conclui-se pela indeterminação da causa da morte, aventando-se como possível a morte por homicídio, mas não se descartando a morte por qualquer outra causa, nomeadamente, por causa natural, o que foi reiterado, e, até, aprofundado, pelo perito.
Assim, argumenta que foi desconsiderada a prova pericial, aderindo-se a outros meios de prova e diz que o tribunal a quo passou o arguido a homicida porque também o condenou pela prática dos crimes de violência doméstica e de profanação de cadáver, porque antes do falecimento da companheira a relação do casal era pautada por episódios de violência doméstica mútua, e, após a morte, o arguido ocultou o facto, mentindo sobre o seu desaparecimento, e depositou o corpo daquela numa mata, ainda que devidamente embrulhado num edredon e junto à berma, de modo a ser encontrado rapidamente, como efetivamente sucedeu; ou seja, numa logicidade de quem é capaz do menos também é capaz do mais.
E, remata que à falta de melhor prova deveria prevalecer o princípio geral in dubio pro reo; há erro de julgamento quanto aos factos supra enunciados, devendo ser absolvido da prática do crime de homicídio qualificado.
As provas que o recorrente entende imporem decisão diversa são, pois, o relatório de autópsia, em que se conclui pela indeterminação da causa de morte e os esclarecimentos adicionais do perito médico-legal em audiência de julgamento, provas essas que não se mostraram capazes de esclarecer a causa da morte.
Nesta decorrência retenham-se as conclusões insertas no debatido relatório de autópsia de 08.06.2022:

“1. Face aos achados necrópsicos, à informação circunstancial facultada, ao resultado dos exames complementares de toxicologia, anátomo-patológico e de criminalística biológica, bem como ao anteriormente exposto no capítulo da Discussão, a morte de EE é de causa indeterminada, sendo que das hipóteses analisadas, a mais corroborável é a de etiologia médico-legal homicida. -------------------------------------------------------
2. As lesões traumáticas ante-mortem descritas são compatíveis com traumatismo de natureza contundente, ou como tal atuando, não sendo passíveis de causar a morte da vítima. -------------
3. O exame toxicológico às amostras de sangue cardíaco para rastreio e quantificação de etanol, drogas de abuso e substâncias medicamentosas revelou-se positivo paraetanol (1,98± 0,25g/L),
7-aminoclonazepam (metabolito ativo do clonazepam), diazepam, nordiazepam (metabolito ativo do diazepam) e trazodona, estando todos os fármacos em doses consideradas não tóxicas.-
4. O local onde o corpo da vítima foi encontrado não corresponde ao local onde ocorreu a sua morte. ----------------------
5. A análise dos fenómenos cadavéricos não permite excluir que a morte de EE tenha ocorrido entre as 22h48 de 16/02/2022 e 06h45 de 17/02/2022.----“
(….)
No ponto H, esclarece-se:
“No que concerne à causa de morte de EE, na ausência de lesões traumáticas mortais, bem como de processos fisiopatológicos patognomónicos da causa de morte, os Peritos assumem que a causa de morte da vítima é de causa indeterminada. Contudo, no presente momento, existem elementos que permitem explicitar algumas das hipóteses diagnósticas relacionadas com esta morte: ------------------------------
- Na hipótese de morte de causa natural, esta teria ocorrido devido a um processo arritmogénico. Esta hipótese é contrariada pela idade da vítima, pela ausência de histórico de morte súbita cardíaca familiar (ambos os pais vivos), pela ausência de alterações histológicas cardiovasculares e pela ausência de história compatível com esta patologia (segundo a informação facultada pelo suspeito à Polícia Judiciária). ----------------------------
- Na hipótese de morte de causa violenta de etiologia acidental, conforme descrito pelo suspeito (“quando estava já em sua casa e mantinha relações sexuais com a sua companheira (…) esta tinha caído da cama e falecido em virtude dessa queda”), esta teria de ter ocorrido por uma depressão do sistema nervoso central e consequentemente da drive respiratória por associação a intoxicação alcoólica aguda (1,98 ± 0,25 g/L) e presença de benzodiazepinas (7- aminoclonazepam, diazepam, nordiazepam e trazodona). Esta hipótese é contrariada pelas ténues lesões traumáticas apresentadas na região da cabeça (pele e tecido celular subcutâneo), pela ausência de lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas mortais (e que justificariam a morte imediatamente após o TCE), pelas concentrações dos fármacos detetados (cujas concentrações não atingiu valores tóxicos), pela concentração de etanol detectado (que na altura do óbito seria ligeiramente inferior, uma vez que algum aumento terá sido contribuição da fermentação pela fauna cadavérica). Esta hipótese também é contrariada pela descrição do evento realizada pelo suspeito à Polícia Judiciária, uma vez que, nesta hipótese descrita, a morte da vítima não seria súbita, permitindo que o suspeito tivesse tempo para acionar os meios de emergência médica para socorro da vítima. -------------------------------------------------------------
- Na hipótese de morte de causa violenta de etiologia homicida, esta teria de ser causada por asfixia com oclusão das vias aéreas ao nível da cavidade oral e nasal. Esta hipótese é corroborada pela ausência de lesões traumáticas a nível cervical compatíveis com compressão extrínseca do pescoço, pela lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico), e pela sequência de eventos após a morte (nos quais o suspeito tentou ocultar de forma propositada o cadáver de EE, segundo informação policial facultada). A ausência de lesões de defesa no corpo da vítima poderá ser justificada pela depressão do sistema nervoso central provocada pelas substâncias encontradas no exame toxicológico. Não existem achados patognomónicos associados a este tipo de morte que permitam afirmar a presente hipótese de forma certa e segura. ------------------------------------
- Existe ainda a possibilidade de morte de causa violenta de etiologia acidental, na hipótese de morte durante a atividade sexual com recurso a um componente asfíxico. Esta hipótese é corroborada pela presença de sémen do suspeito colhido na vagina da vítima, pela ausência de lesões de defesa no corpo da vítima, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e laríngeas. Contudo, esta hipótese é contrariada pela história facultada pelo suspeito à Polícia Judiciária relativamente ao óbito de EE, bem como a tentativa de ocultar o seu cadáver.”
Aclaremos:
A Lei nº 45/2004, de 19 de agosto estabelece o Regime jurídico das perícias médico-legais e forenses e concretamente no seu art. 18º, nº 1, esclarece em que circunstâncias tem lugar a autópsia médico-legal – em situações de morte violenta ou de causa ignorada – tratando-se de uma perícia tanatológica. Como tal, não há incerteza que está sujeita ao regime do art. 163º do CPP que estatui: “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador.
2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”
A regra ali contida afasta por isso o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.
Estabelece-se uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. Ou seja, a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (nº 2 do art. 163.º)
Tal como se escreve no Ac. desta Relação de 26.01.2022 proferido no Proc. nº 2136/13.9TAMTS.P1 acessível em www.dgsi.pt “quando no nº 2 daquele mesmo normativo se prevê a possibilidade de divergir do parecer dos peritos, desde que tal seja devidamente fundamentado, pretende-se significar que uma tal divergência poderá assentar em perícia ou parecer similar de sinal contrário ou diferente, que comprometa o primitivamente existente, ou, então, derivar da não prova dos factos em que tal parecer se estribava, retirando-lhe actualidade ou, se quisermos, suporte fáctico alicerçante”.
E isto porque é consabido que “A perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 197), cuja utilização é recomendada sempre que a investigação seja confrontada com obstáculos de apreensão ou de apreciação de factos não removíveis através dos procedimentos e meios de análise de que normalmente dispõe. No fundo, a prova pericial permite ao juiz suprir a sua falta de específicos conhecimentos científicos ou artísticos, auxiliando-o na apreensão realidades não directamente captáveis pelos sentidos – cfr. aresto citado que por sua vez transcreve sumário do acórdão do TRC datado de 01/07/2015 extraído da anotação ao artigo 163º do Código de Processo Penal anotado inserto na base da PGD Lisboa.
Regressando ao caso que examinamos, o recorrente argumenta que o tribunal recorrido violou ostensivamente a mencionada disciplina contida no antedito art. 163º do CPP por ter tomado uma decisão em sede de matéria de facto estribada à revelia daquela prova pericial vinculativa.
Porém, cumpre desde já sublinhar que, tal como se retira do antedito, só os juízos periciais, os juízos técnicos, científicos ou artísticos propriamente ditos, estão sujeitos à disciplina do art. 163º, nº 1 do Código de Processo Penal, e já não as circunstâncias fácticas que lhes serviram de fundamento, tal como de resto o Ministério Público na reposta ao recurso, sustenta.
Por seu turno, o juízo pericial, tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos. Por isso, quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, este decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o princípio in dubio pro reo - veja-se neste sentido o Ac. do STJ de 27.04.2011, proferido no proc. nº 693/09.3JABRG.P2.S1, e desta Relação de 27.01.2010, no proc. nº 45/06.7PIPRT.P1, ambos in www.dgsi.pt. podendo ler-se no sumário deste último “Um resultado pericial inconclusivo não conduz necessariamente a uma dúvida insanável: por não agregar um verdadeiro juízo pericial mas antes um estado dubitativo, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto.”
Neste conspecto, o posicionamento actual do Código de Processo Penal vem de posição defendida por Figueiredo Dias, para quem os dados de facto do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – “que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer” – enquanto o juízo científico expendido só é passível de crítica “igualmente material e científica”. Excepções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência – Direito Processual Penal, I, 209, vide ainda, Maria do Carmo Silva Dias, Revista do CEJ, 2.º semestre de 2005, n.º 3, 219. Assim, a prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
Quanto à validade, deve-se aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais (…)
Também fica a cargo do julgador examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.
Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não foi posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria. (sempre sublinhado nosso)
Esta é, portanto, a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163º do CPP, atenta a sua função de mero auxiliar do julgador, a quem incumbe a função de fixação dos factos, para que dispõe dos adequados conhecimentos jurídicos e da experiência da vida –cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 01.07.93, Proc. n.º 44431 e de 09.05.95, in CJ, STJ, III, T2, 189.”
Ora, na presente situação, o que sucedeu foi que o tribunal recorrido acolheu uma das hipóteses de causa da morte admitidas como possibilidade na prova pericial (e, como se viu com diferentes graus de probabilidade) – que a morte da vítima se deveu o oclusão total da boca e nariz da vítima, perpetrada pelo arguido por forma não concretamente apurada, com o uso de força física – “hipótese corroborada pela ausência de lesões traumáticas a nível cervical compatíveis com compressão extrínseca do pescoço, pela lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico), e pela sequência de eventos após a morte”.
Daí que se possa afirmar com segurança que no caso posto à nossa consideração, não se retirou eficácia à prova pericial existente, e deste modo a decisão tomada em sede de facto não colide com as regras atinentes ao valor da prova pericial consagrados no antedito art. 163º do CPP, não se podendo dizer que ultrapassou os limites de divergência ali impostos, pelo que, inexiste erro de julgamento.
E quanto à controvertida inconclusividade sobre a causa de morte da ofendida, não agrega em si um juízo pericial, mas um estado de dúvida, um juízo dubitativo que não vincula o tribunal, incumbindo-lhe esclarecer a matéria de facto em que se funda, no âmbito da sua função de julgar e superar, até onde lhe for possível, aquela dúvida.
Ou seja, nada se conclui, num sentido ou noutro, o que de resto se ficou a dever a várias razões que dificultaram o exame do cadáver da vítima e de que o Sr. Perito dá conta (mormente o tempo decorrido entre a morte e a data em que o corpo foi encontrado, bem como as condições climáticas a que esteve sujeito, que “o cadáver apresentava já sinais evidentes de putrefação com uma exuberante mancha esverdeada que se estendia das fossas ilíacas para o abdómen” e “a cavidade oral também apresentava sinais de putrefação (…)” (cfr. ponto 85 da matéria de facto provada).
Reafirma-se, não se mostra violado o disposto no art. 163º, nº 1, posto que e tal como se referiu verificado tal condicionalismo de dúvida, inexistindo um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, antes e tão só uma probabilidade, uma opinião, uma manifestação de estado de estado de dúvida, se devolveu plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, de acordo e apenas sujeito ao princípio da livre apreciação da prova. Nessa situação, tal como refere o Supremo Tribunal de Justiça no aresto que citamos, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria, competindo-lhe tomar posição, julgar e remover, se for caso disso, a dúvida, fixando os necessários factos, não se contrariando, por essa via, qualquer juízo pericial científico, por falta dele.
Pelo que, e face a tal quadro (in)conclusivo da perícia não está o tribunal constrangido a meramente reproduzir, no plano da valoração da prova e da fixação dos factos, a inconclusividade do resultado do exame. Ou seja, um resultado inconclusivo não tem necessariamente de conduzir a uma dúvida insanável por parte do tribunal, determinante do apelo ao princípio in dubio pro reo.
Pelo que, se tivesse sido produzido relatório com um resultado conclusivo quanto à causa de morte, isto é, de certeza sobre a etiologia da morte da vítima, é que juízo teria que ser necessariamente acolhido a não ser que fundamentação especial sustentasse a divergência, abrigado no nº 2 do artº 163º.
De resto, a convicção do tribunal a quo a respeito da autoria e da causa de morte está bem fundamentada e tem também sustentação no referido relatório, já que neste se afasta a morte por causa natural e outrossim a versão apresentada pelo arguido (queda da cama), considerando-se como causa mais corroborável a de etiologia médico-legal homicida, apresentando-se a da asfixia como uma das hipóteses.
Com efeito, o tribunal, desde logo, com base num juízo científico do Perito - nada na microscopia dos órgãos, na idade da vítima, na ausência de antecedentes de doença própria e de familiares, nas profusões dispersas nos pulmões e na laringe e na lesão na língua sugeria morte por causa natural, afastando uma probabilidade séria desse cenário, sendo certo que arredou, também a hipótese avançada pela defesa de engasgamento por ingestão de sémen do arguido, bem como a possibilidade de ter falecido de causa violenta acidental (queda da cama), afastada pelas ténues lesões traumáticas na cabeça, bem como ausência de lesões crânio-meningo-encefálicas mortais – afasta a tese de que a vítima poderia ter falecido da queda, aventando a possibilidade muitíssimo residual de morte natural, em contraponto com a morte por asfixia perpetrada pelo arguido.
Não podemos deixar de trazer à liça neste particular, os contributos do Guia de Perícias Médico-legais de Carlos Ribeiro da Silva Lopes, 6ª edição, 1977, pág. 292, o qual, debruçando-se sobre as causas de morte violenta, concretamente as asfixias de origem mecânica que se dividem em típicas ou puras e atípicas ou impuras, esclarece que, de entre as primeiras, se inclui a sufocação por oclusão dos orifícios ou dos canais aéreos, revelada pelos seguintes sinais: sinais externos: congestão ou cianose da face, sufusões sanguíneas da pele e das mucosas e livores cadavéricos abundantes e escuros, já como sinais internos aponta sufusões sanguíneas, congestão visceral principalmente dos pulmões e fluidez e cor escura do sangue.
No caso que temos em mão, e como ressalta do relatório pericial, alguns desses sinais ocorrem “lesão de infiltração sanguínea da língua, pela congestão multivisceral, pela presença de sufusões hemorrágicas pleurais e na laringe (achados necrópsicos sugestivos de mecanismo asfíxico”, o que inegavelmente corrobora a tese ali aventada e a que o tribunal recorrido aderiu, e que nos merece total concordância.
Depois, e no cumprimento do dever de esclarecer e de procura de superação da dúvida contida no juízo do perito, recorreu o tribunal a quo a outros meios de prova e examinou-os à luz da experiência comum como bem se patenteia no acórdão: “a relação conjugal era marcada pela violência, pela agressividade, pelo domínio, pelo controlo, pelos consumos excessivos, pelo medo que EE apregoava de que o arguido a matasse; este já a tinha agredido de forma severa, mormente em 08-12-2022, pouco mais de dois meses antes do seu falecimento, tendo-lhe na altura recusado assistência hospitalar que só teve por intervenção de terceiros; exercia sobre EE forte pressão, levando-a sempre a regressar a casa e a desculpabilizá-lo dos seus atos, tendo o tribunal percebido dos depoimentos dos seus pais, do ex-marido DD e da companheira deste ZZ que EE não tinha suporte familiar consistente, saiu de casa adolescente, viveu em Espanha alguns anos sem grande contacto com a família que desconhecia o seu concreto paradeiro, tinha poucos contactos presenciais com os filhos, o que o arguido usava a seu favor.
Ponderou ademais o tribunal que na noite em que a vitima faleceu, e assim que o arguido se “apercebeu” da inconsciência da vítima, não tentou reanimá-la, não procurou ajuda, não ligou ao 112, o que admitiu, pretextando medo de que não acreditassem em si. O que de acordo com as regras da lógica e normalidade não convence que alguém a carecer imediatamente de assistência, mormente uma companheira de vida, não tivesse assim actuado.
E para além da incompreensível falta de assistência, o arguido logo criou todo o descrito cenário para ocultar a morte da sua companheira, tendo recolhido toda a sua roupa e grande parte dos objectos pessoais e despejou-os no contentor do lixo, desligou o seu telemóvel que passou a transportar consigo, fingiu telefonemas públicos para a falecida, avançou várias desculpas para o seu desaparecimento, levou os vizinhos a sua casa para confirmarem que EE tinha ido embora sabendo que o corpo desta estava na habitação, pediu um veículo emprestado para o transporte do corpo, conduziu-o a um monte a cerca de 16 km da sua habitação e depositou-o entre os arbustos, envolto numa manta.
Ora toda esta encenação e atuação pós-morte, segundo critérios de normalidade e pelas regras da experiência não tem qualquer outra explicação plausível que não demarcar a sua responsabilidade na morte da companheira. Atrasou desta forma a descoberta do corpo que, até ser encontrado, se foi deteriorando, dificultando os vestígios da causa da morte, o que seguramente não desconhecia.
Daí que, perante o acervo de factos vindos de referir, aliados ao factualismo da perícia, entendeu o coletivo, e bem, que qualquer outra causa de morte que não a asfixia está excluída.
Pelo que neste contexto podemos concluir que o tribunal a quo não divergiu do juízo contido no relatório pericial, por forma a que tivesse de fundamentar tal divergência (nº 2 do art. 163º do CPP), já que seguiu até a causa mais provável ali apontada.
Por isso, não logrando o arguido demonstrar nem uma violação do valor probatório pleno da prova pericial, nem a existência de erro de julgamento (por força da conjugação entre a prova pericial e a prova testemunhal conducente à demonstração da violência, agressividade, domínio, e consumos excessivos de álcool, o medo propalado pela vítima de que o arguido a matasse, as agressões severas anteriores, com recusa da prestação de assistência hospitalar, a forte pressão exercida sobre a vítima (que sempre procurou desculpabilizá-lo), toda a mise-en-scéne criada em torno do alegado desaparecimento da vítima), nem a existência de qualquer erro notório na apreciação da prova, na medida em que nenhum dos factos dados como provados contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, improcede esta questão recursiva.
*
Passando para a questão da medida da pena do crime de homicídio qualificado:

O recorrente reputa a pena que lhe foi aplicada pela prática do crime de homicídio qualificado de excessiva, devendo ser atenuada.
Para o efeito, alega que o tribunal a quo não atendeu ao facto de que tais crimes terão sido praticados num ambiente social e familiar de submundo, pautado por violência mútua, álcool e substâncias psicotrópicas, desvalor social e moral, em que apenas o arguido trabalhava, estando perfeitamente inserido profissionalmente.
Nessa medida, atenta a moldura penal, que prevê pena de prisão de 12 a 25 anos, a pena concretamente aplicada é manifestamente exagerada, pois é superior a metade do limite máximo e constitui uma violação dos princípios da necessidade e da proporcionalidade.
A pena concretamente aplicada viola o disposto no artigo 71.º, n.º 1, e n.º 2, alínea d), ambos do Código Penal, remata o recorrente.
Como se vê, o recorrente não ataca a medida da pena única (senão pela via, subsidiária, da redução da pena parcelar do crime de homicídio, que poderia conduzir a um abaixamento da pena única). Insurge-se apenas contra a pena aplicada de 19 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado, cuja moldura penal abstracta se situa entre os 12 e os 25 anos.
Vejamos então.
É sabido as finalidades da pena são, nos termos do art. 40º do Código Penal, a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E diz-nos Anabela Rodrigues in “O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena” in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), p. 155, “O art. 40º do Código Penal condensa em três proposições fundamentais, o programa político-criminal – a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.
Nos termos do art. 71º, nºs 1 e 2, do citado Código, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Neste âmbito, ensina Figueiredo Dias in Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Noticias, 1993, p. 72, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”
E na mesma obra, o citado Autor a fls. 214 explica que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”, referindo ainda no artigo “Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29, que “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…)
A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial – nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.
Em suma, a medida concreta da pena fixar-se-á com vista a permitir a satisfação das exigências de prevenção geral, salvaguardando as expectativas da comunidade na validade e manutenção/reforço da norma violada – o que constitui o seu limite mínimo, abaixo do qual não estão a ser cumpridas as finalidades da punição –, embora sem ultrapassar a medida da culpa - que funciona como limite máximo da medida da sanção, sob pena de ser posta em causa a dignidade da pessoa do delinquente -, e a medida encontrada deve corresponder ao necessário e suficiente para a reintegração do agente, aí sendo realizado o juízo de ponderação das exigências de prevenção especial.
Descendo ao caso vertente, importa para já conferir a fundamentação da decisão recorrida neste capitulo:
“Natureza e medida das penas
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido importa agora determinar a natureza e medida das penas a aplicar.
Apenas o crime de profanação/ocultação de cadáver prevê pena alternativa de prisão ou multa. Segundo o artigo 70º do Código Penal “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” que são, segundo o artigo 40º, n.º 1 do mesmo diploma, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
No caso que nos move, numa visão global da factualidade, não cremos que a aplicação de uma pena de multa seja equacionável, já que o crime de profanação/ocultação foi o culminar de uma atuação particularmente censurável do arguido, com fito de se imiscuir da responsabilidade do homicídio e de abreviar a degradação do corpo, assim procurando apagar os vestígios do seu crime. Será, também quanto a este crime, condenado em pena de prisão.
Quanto à medida das penas, preceitua o artigo 71º, n.º 1 do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”, atendendo, nomeadamente, às circunstâncias que depuserem a favor do agente ou contra ele constantes do n.º 2 do mesmo artigo.
A culpa estabelece o limite máximo da pena concreta que não poderá em caso algum ser ultrapassado e que se revele ainda compatível com as exigências da dignidade da pessoa, tendo em conta o disposto nos artigos 1º, 13º, 40º, n.º 2, todos do Código Penal, e 25º da Constituição da República Portuguesa.
Dentro do limite máximo permitido pela culpa, e tendo em atenção como limite mínimo a defesa do ordenamento jurídico e a reposição da confiança da comunidade na validade das normas, será determinada a medida da pena de acordo com considerações de prevenção geral e especial.
No caso que nos ocupa, há a considerar que:
- agiu com dolo direto, na expressão máxima da culpa, em todos os crimes;
- o grau de ilicitude dos factos é muito elevado em todos os crimes; a violência doméstica abrange uma panóplia de comportamentos censuráveis e estende-se no tempo; o homicídio é cruel, sem motivo imediato; a ocultação do corpo foi preparada, premeditada, o arguido muniu-se de meios que não tinha, encenou tentativas de contactos, avançou desculpas falsas para o desaparecimento de EE, nem sequer a vestiu; o grau de ilicitude quanto ao crime de homicídio é o mais elevado, enquanto violador do direito à vida, bem suporte de todos os outros bens da tutela jurídica;
- não foi provada qualquer discussão, qualquer acontecimento prévio ao homicídio que tivesse espoletado uma reação por parte do arguido a qualquer provocação da vítima, o que revela um ato frio e imoral;
- o arguido mantinha relacionamento amoroso com EE há cerca de 2 anos, pessoa que escolheu para sua companheira, sabendo que era mãe, o que em momento algum o inibiu de a agredir e, posteriormente, de lhe tirar a vida;
- as agressões foram graves, EE necessitou mais do que uma vez de assistência hospitalar, as fotografias das suas lesões visíveis da ocorrência de 08-12-2021 são esclarecedoras;
- EE vivia amedrontada, receava e afirmava publicamente que o arguido lhe batesse e a matasse, não tinha retaguarda familiar, o que o arguido sabia;
- a atuação do arguido revela uma personalidade que não respeita os valores humanos, dominadora, o que intensifica as exigências de prevenção geral; é, aliás, na punição do crime de homicídio que as exigências de prevenção geral atingem a maior necessidade e intensidade dissuadora “pois que ninguém se sentirá seguro, nem haverá sociedade que subsista se a punição das actuações homicidas ficar aquém da necessidade, forem inadequadas ou desproporcionais ao âmbito de protecção da norma na defesa e salvaguarda da vida humana”. – Acórdão do STJ de 26-09-2019, disponível em www.dgsi.pt;
- o comportamento posterior ao homicídio espelha a sua frieza e calculismo e o desprendimento em relação aos valores básicos da vida em sociedade: não procura auxílio à vítima, deixa o seu corpo em casa enquanto se mune dos meios necessários para a sua remoção, encena o seu desaparecimento, pede emprestada uma carrinha para o transporte do corpo, escolhe um local ermo e distante da sua habitação, deposita-a totalmente despida envolta numa manta entre a vegetação e aí a deixa;
- o arguido sabia que os atos causariam um rasto de sofrimento, mormente aos filhos de EE, ainda menores, que conheceriam a forma como a mãe faleceu e como o corpo apareceu;
- a confissão foi parcial;
- a seu favor, não tem antecedentes criminais, estava à data profissionalmente inserido e tem mantido bom comportamento em meio prisional.
Perante estes dados, entendem-se adequadas as seguintes penas:
- 3 anos e 10 meses de prisão pelo crime de violência doméstica agravado;
- 19 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado;
- 1 ano de prisão pelo crime de profanação/ocultação de cadáver.”

Desta feita, anota-se que o tribunal fixou a pena em análise ligeiramente acima do meio da medida da pena (que se situa em 18 anos e 6 meses), e, não sendo esta tarefa uma mera operação aritmética, podemos com segurança afirmar que a operação de determinação da medida da pena respeitou os apontados critérios estipulados no sobredito art. 71º, nº 1 do Código Penal.
A decisão recorrida explanou os parâmetros considerados, mormente o grau acentuado de ilicitude já que foi violado o bem primeiro e mais elevado da tutela jurídica (a vida); o dolo revestiu a forma mais grave (dolo direto), e no que respeita aos sentimentos manifestados no cometimento do crime, destaca-se a ostensiva indiferença pela vida humana.
Dos factos provados extrai-se uma personalidade violenta, pois ficou provado (ponto 100) que o arguido tirou a vida à sua companheira sem que a vítima o tivesse provocado ou atentado contra a sua integridade física, denotando um total, pérfido e gratuito desrespeito pela vida humana, e (ponto 102) sabia que a vítima se encontrava embriagada, conhecia a sua debilidade física face à sua compleição física e força, tornando-a praticamente incapaz de se defender da sua atuação.
E se a motivação para a conduta do arguido ficou por determinar, já que não se apurou o que impulsionou o arguido a matar EE, qual o motivo concreto, qual o rastilho, já em termos de conduta posterior merece particular censura o facto de não procurar auxílio para a vítima, deixa o seu corpo em casa enquanto se mune dos meios necessários para a sua remoção, encena o seu desaparecimento, pede emprestada uma carrinha para o transporte do corpo, escolhe um local ermo e distante da sua habitação, deposita-a totalmente despida envolta numa manta entre a vegetação e aí a deixa.
E não logrou o arguido demonstrar auto censura nem arrependimento, face à sua postura em tribunal, concretamente em relação ao crime de homicídio colaborando pouquíssimo para a descoberta da verdade, tentado a sua desresponsabilização.
Donde, não nos merece qualquer censura a pena de 19 (dezanove) anos de prisão cominada ao arguido, que apenas tem a seu favor a ausência de antecedentes criminais a sua inserção profissional e o bom comportamento em meio prisional, e de resto foram factores considerados pelo tribunal a quo.
Para além da culpa muito elevada, elevadas são também as necessidades de prevenção especial, e no que diz respeito às necessidades de prevenção geral, não podem deixar de se ter acutilantes ligadas à satisfação do interesse público de defesa da sociedade que, pela natureza e gravidade dos factos, sente uma necessidade acrescida de ver restabelecida a confiança nas normas infringidas.
Não podemos esquecer que o homicídio da vítima ocorre num claro contexto de violência doméstica, sendo o escalar definitivo desta. O arguido foi superando uma escala de violência, de domínio e “coisificação” da vítima (como espelha a matéria de facto provada quanto a este crime), que culmina no homicídio da vítima quando esta se encontrava embriagada.
Impõe-se assim ademais transmitir à comunidade uma estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, ainda para mais o valor máximo e inaliável da vida em comunidade.
Já os argumentos que o recorrente convocou, nada acrescentam e/ou alteram o raciocínio empreendido, já que, quer ao nível das necessidades de prevenção especial quer geral, nenhum reparo nos merece a decisão recorrida, que analisou e ponderou equilibradamente as circunstâncias relevantes in casu. Sequer se sobrepõem às exigências preventivas supra referenciadas e às finalidades da punição que, em concreto, se fazem sentir e que de resto foram atendidas no exercício efectuado pelo tribunal recorrido, como se deu conta. Neste contexto, dir-se-á que as condições pessoais favoráveis ou positivas plasmadas na factualidade provada que o recorrente invocou e que foram, reafirma-se, devidamente acolhidas não constituem fatores idóneos a mitigar os aspetos negativos da sua conduta.
Donde, analisados todos os ponderados factores, não se reconhece fundamento para redução da apontada pena de 19 (dezanove) anos de prisão fixada, pelo que será de manter.
É que tendo presente a sobredita moldura abstrata, respeitados que foram os apontados critérios que norteiam a aplicação das penas, e relembrando-se que nesta matéria existe sempre alguma margem de subjetividade do julgador, pelo que as penas só poderão ser alteradas nos casos em que, apesar de respeitados os subjacentes critérios legais, é ostensivo o seu exagero ou desproporção, tal como decorre do elucidativo Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto, datado de 02.06.2010 aresto proferido no âmbito do processo nº 60/09.9GNPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt, onde se sustentou que “Observados que se mostrem os critérios de dosimetria concreta da pena, sobra uma margem de atuação do julgador dificilmente sindicável”, entendimento que sufragamos, desrespeito que aqui não sucedeu, manifestamente como já se deu conta.
E porque a cominada pena de prisão aplicada não se mostra exagerada, desproporcionada e/ou injusta, deve, por isso, manter-se.
Em conformidade, nada cumpre alterar em relação ao decidido pela 1ª instância, improcedendo a pretensão recursiva.
Consequentemente, improcede o recurso na totalidade.
*
*
3. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo recorrente AA confirmando integralmente a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UCs.

Notifique e comunique de imediato à 1ª instância.

(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

Porto, 17 de maio de 2023
Cláudia Rodrigues
João Pedro Pereira Cardoso
Raúl Cordeiro
Borges Martins