Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
121/20.3T8VLG-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: MIGUEL BALDAIA DE MORAIS
Descritores: PROCEDIMENTO EXTRAJUDICIAL DE REGULARIZAÇÃO DE SITUAÇÕES DE INCUMPRIMENTO
CLIENTE BANCÁRIO
OMISSÃO
ACÇÃO EXECUTIVA
EXCEPÇÃO DILATÓRIA INOMINADA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RP20220307121/20.3T8VLG-A.P1
Data do Acordão: 03/07/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 5. ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - O Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), instituído pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro, tem aplicação obrigatória quando o cliente bancário (consumidor) incorre numa situação de mora ou de incumprimento de obrigações resultantes de contratos de crédito, nos moldes consignados pelos seus artigos 2.º, n.º 1, e 14.º, n.º 1.
II - A circunstância de o cliente bancário ter sido anteriormente integrado em PERSI já extinto não constitui obstáculo a que venha novamente a beneficiar desse regime, caso se encontrem reunidos os necessários pressupostos normativos para esse efeito.
III - Verificados esses pressupostos, a falta de integração do cliente bancário no PERSI constitui impedimento legal a que a instituição de crédito instaure ação executiva destinada a obter a cobrança coerciva de crédito abrangido por esse regime legal.
IV - Sendo a ação executiva intentada com preterição dessa obrigação, estar-se-á perante uma exceção dilatória inominada, a qual é insuprível e de conhecimento oficioso, acarretando a absolvição da instância dos executados.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 121/20.3T8VLG-A.P1
Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Valongo – Juízo de Execução, Juiz 1
Relator: Miguel Baldaia Morais
1º Adjunto Des. Jorge Miguel Seabra
2º Adjunto Des. Pedro Damião e Cunha
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SUMÁRIO
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I - RELATÓRIO

AA, BB e CC deduziram os presentes embargos à ação executiva que lhes move A..., S.A., alegando que sempre cumpriram pontualmente com o pagamento das prestações mensais a que estavam obrigados em virtude dos contratos de crédito celebrados com a Banco ..., S.A. e que após a notificação das cessões dos mesmos procederam aos pagamentos à ordem dos sucessivos cessionários, nunca tendo sido interpelados nem pela mutuante nem pelas cessionárias para regularizarem qualquer incumprimento.
Recebidos os embargos e notificada a exequente veio dizer que aquando da cessão de créditos os mesmos já se encontravam em incumprimento e que os pagamentos efetuados depois das cessões não ocorreram todos os meses nem em datas regulares, sendo que também nem sempre foi pago o valor contratualizado de €500,00.
Mais alega que, porque nos pagamentos efetuados não vinha designada a dívida a cujo cumprimento se destinava, imputou todos os valores pagos ao crédito pessoal por ser o que oferecia menor garantia, do que resulta que depois da cessão não foi feito qualquer pagamento por conta do crédito à habitação, mas tão só por conta do crédito pessoal.
A embargada foi convidada a, entre o mais, vir concretizar no tempo o incumprimento dos contratos dados à execução e esclarecer se os executados foram integrados no PERSI, sendo que em resposta veio dizer que o contrato referido em 19 do requerimento executivo entrou em incumprimento em 31 de julho de 2017, sendo o capital em dívida de €44.204,25, e o contrato identificado em 22 da mesma peça processual entrou igualmente em incumprimento em julho de 2017, sendo o capital em dívida no valor de €8.054,23, juntando cópia de uma comunicação dirigida à executada mutuária em 1 de março de 2013, dando-lhe conta dos valores em incumprimento relativos ao crédito com o nº. ... e da sua integração em PERSI e bem assim de uma comunicação dirigida à mesma (datada de 1 de junho de 2013) informando-a da extinção do PERSI “em virtude de expiração”.
Face à afirmação da exequente de que os contratos dos autos entraram em incumprimento em julho de 2017, foi a mesma novamente convidada a juntar aos autos documentos comprovativos da integração dos executados em PERSI na sequência desse inadimplemento, vindo a mesma, em resposta ao convite, remeter para os documentos já juntos aos autos e atrás referidos.
Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a ser proferida sentença que julgou os embargos procedentes, em consequência do que foram os embargantes/executados absolvidos da instância executiva.
Não se conformando com o assim decidido, a embargada/exequente interpôs o presente recurso, que foi admitido como apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Com o requerimento de interposição do recurso apresentou alegações, formulando, a final, as seguintes

CONCLUSÕES:
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Notificados os embargantes/executados apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso – cfr. arts. 635º, nº 4, 637º, nº 2, 1ª parte e 639º, nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil.
Porque assim, atendendo às conclusões das alegações apresentadas pela apelante, verifica-se que a mesma delimitou subjetiva e objetivamente o recurso, posto que apenas põe em crise a decisão recorrida no segmento em que considerou que em relação à mutuária/embargante CC e ao contrato de crédito nº ... ocorreu falta de integração em Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI). Daí que, na economia do recurso, a questão solvenda se traduza, fundamentalmente, em saber se a instauração da presente execução estava dependente da prévia promoção de um novo PERSI, apesar do anterior procedimento instaurado e já considerado extinto.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO

O tribunal de 1ª instância considerou provada a seguinte matéria de facto:
1 – Por documento particular subscrito em 27 de janeiro de 2000 a executada CC celebrou com a Banco ..., S.A. um contrato de mútuo nos termos do qual esta lhe emprestou a quantia de Esc. 2.900.000$00 (€14.465,14), destinado à aquisição de bens de consumo, pelo prazo de trinta anos, vencendo-se as prestações mensais de reembolso de capital e pagamento de juros, a primeira um mês após a assinatura do contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes.
2 – Nos termos da cláusula 9ª do referido contrato os pagamentos seriam efetuados através da conta de depósito à ordem nº. ... constituída pela parte devedora no balcão da Banco ..., S.A., obrigando-se esta a manter a conta com provisão suficiente para o efeito.
3 – Da cláusula 10ª. do mesmo contrato consta que “A Banco ..., S.A. reserva-se o direito de resolver o contrato declarando vencidas as responsabilidades dele emergentes e pode fazê-lo desde que se verifique o incumprimento pela PARTE DEVEDORA de qualquer das obrigações assumidas neste contrato”.
4 – Os executados AA e BB declararam constituir-se fiadores e principais pagadores das dívidas que para a mutuária resultassem do presente contrato, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia.
5 - Por escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca e fiança, lavradas de folhas ... a ... do Livro n.º ... do Segundo Cartório Notarial do Notarial do Porto, outorgada em 10 de fevereiro de 2000, a Banco ..., S.A. declarou conceder a CC um empréstimo Esc. 13.750.000$00 (€68.584,71) destinado à aquisição de habitação própria e permanente, valor nessa data entregue aos vendedores, de que aquela se confessou devedora, pelo prazo de trinta anos, vencendo-se as prestações de reembolso de capital e pagamento de juros, a primeira a primeira um mês após a assinatura do contrato e as restantes em igual dia dos meses seguintes e para cuja garantia do pagamento e liquidação da quantia mutuada e dos respetivos juros, constituíram hipoteca sobre a fração D do prédio descrito sob o número .... da Freguesia ....
6 - Os executados AA e BB declararam constituir-se fiadores e principais pagadores das dívidas que para a mutuária resultassem do presente contrato, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia.
7 - Nos termos da cláusula 9ª do documento complementar anexo à referida escritura os pagamentos seriam efetuados através da conta de depósito à ordem nº. ... constituída pela parte devedora no balcão da Banco ..., S.A., obrigando-se esta a manter a conta com provisão suficiente para o efeito.
8 - Da cláusula 11ª. do mesmo documento complementar anexo consta que “A Banco ..., S.A. reserva-se o direito de resolver o contrato considerando o crédito imediatamente vencido se o imóvel hipotecado for alienado, arrendado ou de qualquer forma cedido ou onerado sem o seu consentimento por escrito, se lhe for dado fim diverso do estipulado e, ainda, nos casos de falta de cumprimento pela PARTE DEVEDORA de qualquer das obrigações assumidas neste contrato”.
9 - Com data de 27 de dezembro de 2018, a Banco ..., S.A., como vendedora e a M..., como comprador outorgaram uma escritura denominada de “Cessão de Créditos” relativa a uma carteira de créditos de que era titular a Banco ..., S.A. na qual se incluem os créditos emergentes dos contratos referidos em 1. e 5., incluindo a transmissão de todos os direitos e garantias acessórios, designadamente hipotecas constituídas para sua garantia, tendo sido comunicada aos executados.
10 - Com data de 12 de abril de 2019, a M... como vendedora e a A..., S.A., como compradora outorgaram uma escritura denominada de “Cessão de Créditos” relativa a uma carteira de créditos de que era titular a Banco ..., S.A. na qual se incluem os créditos emergentes dos contratos referidos em 1. e 5., incluindo a transmissão de todos os direitos e garantias acessórios, designadamente hipotecas constituídas para sua garantia, tendo sido comunicada aos executados.
11. A transmissão do crédito resultante do contrato referido em 5 e garantia do mesmo foi averbada na descrição da fração junto da Conservatória do Registo Predial ..., a favor da M... pela Ap. ... de 2019/06/04 e a favor da A..., S.A. pela Ap. ... de 2019/08/07.
12 – Em 1 de março de 2013 a Banco ..., S.A. enviou à executada CC uma comunicação informando-a que havia sido integrada em PERSI em virtude do incumprimento do contrato 030.20...., desde 10 de fevereiro de 2013 e de que estava em dívida a quantia de €393,79 a título de capital, €335,75 a título de juros e €252,92 relativo a encargos associados à mora, solicitando-lhe o envio da documentação aí referida com vista à “solução adequada para o incumprimento registado, bem como para outros que se venham a verificar,”.
13 – Em 1 de junho de 2013 a Banco ..., S.A. enviou à executada CC uma comunicação dando-lhe conta da expiração do PERSI, informando-a ainda que poderia “exercer o direito de resolver o(s) contrato(s) celebrado(s), recorrendo à via judicial para recebimento dos montantes em dívida”.
14 – Em 30 de novembro de 2013 os contratos referidos em 1 e 5 mostravam-se regularizados.
15 – Em 27 de dezembro de 2018 a Banco ..., S.A. enviou ao executado AA uma comunicação dando-lhe conta de ter cedido à M... o crédito nº. 030.27.... e de que a partir da receção da referida carta os pagamentos deverão ser efetuados para a conta com o IBAN PT.....
16 – Até à comunicação atrás referida os pagamentos das quantias devidas por força dos contratos referido em 1 e 5 eram feitos por débito na conta ....
17 – Após a cessão referida em 9) os executados fizeram os seguintes pagamentos por conta dos contratos dos autos:
- 08/02/2019 €500,00
- 06/03/2019 €500,00;
- 10/04/2019 €300,00;
- 03/05/2019 €500,00;
- 03/06/2019 €499,99;
- 09/07/2019 €500,00;
- 09/08/2019 €500,00;
- 10/09/2019 €500,00;
- 09/10/2019 €500,00;
- 11/12/2019 €500,00;
- 17/01/2020 €500,00;
- 30/01/2020 €400,00;
- 12/02/2020 €500,00;
- 31/03/2020 €500,00;
- 14/04/2020 €500,00;
- 14/05/2020 €500,00;
- 16/06/2020 €500,00;
- 09/07/2020 €500,00;
- 12/08/2020 €400,00;
- 08/09/2020 €500,00;
- 10/11/2020 €500,00;
- 27/11/2020 €500,00;
- 27/11/2020 €500,00;
- 10/12/2020 €500,00;
- 11/01/2021 €500,00;
- 09/02/2021 €500,00;
- 09/03/2021 €500,00;
- 09/04/2021 €500,00.
18 A execução de que estes autos são apenso foi interposta em 31 de dezembro de 2019 e os executados citados para os respetivos termos em 6 de fevereiro de 2020.
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O Tribunal de 1ª instância considerou ainda não provados os seguintes factos:
- que todos os pagamentos devidos em resultado da celebração dos contratos dos autos tenham sido efetuados pelo executado fiador, AA, até ao dia 8 de cada mês;
- que os executados, para além do referido em Factos Provados 12 e 13, tenham sido interpelados para regularizarem os incumprimentos verificados nos contratos dos autos.
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IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

Como se deu nota, em resultado da delimitação subjetiva e objetivamente operada pela apelante nas suas conclusões recursórias, a questão que é trazida à apreciação deste Tribunal de Recurso é a de saber se a instauração da presente execução, em relação à executada/mutuária CC e ao contrato de crédito nº ..., estava, ou não, dependente da prévia promoção de um PERSI, apesar do anterior procedimento instaurado e já considerado extinto.
A essa questão respondeu o tribunal a quo de forma afirmativa, em consequência do que absolveu (todos) os executados/embargantes da instância executiva.
A apelante rebela-se contra esse sentido decisório, argumentando, na essência, que tendo a executada mutuária sido anteriormente integrada em PERSI e mostrando-se o mesmo extinto, não haverá lugar ao desencadeamento de um novo PERSI relativamente ao mesmo contrato de crédito caso ocorra novo incumprimento contratual.
Que dizer?
Como é sabido, o PERSI foi instituído pelo Decreto-Lei n.º 227/2012, de 25 de outubro[1] (que entrou em vigor no dia 1 de janeiro de 2013) tendo por escopo, como consta do seu art. 1º, “estabelecer princípios e regras a observar pelas instituições de crédito na prevenção e na regularização das situações de incumprimento de contratos de crédito pelos clientes bancários, na qualidade de consumidores e criar a rede extrajudicial de apoio a esses clientes bancários no âmbito da regularização dessas situações.
Com esse desiderato, indica no seu preâmbulo, como medida essencial, a definição de um PERSI “no âmbito do qual as instituições de crédito devem aferir da natureza pontual ou duradoura do incumprimento registado, avaliar a capacidade financeira do consumidor e, sempre que tal seja viável, apresentar propostas de regularização adequadas à situação financeira, objetivos e necessidades do consumidor”.
O mencionado diploma veio, deste modo, obstar que as instituições bancárias confrontadas com situações de mora ou incumprimento relativamente a contratos de crédito celebrados, possam, de imediato, recorrer aos procedimentos judiciais com vista à satisfação dos seus créditos relativamente a devedores enquadráveis no conceito legal de “consumidor”, visando, com isso, e através dos mecanismos nele previstos, a proteção dos que, na relação contratual da qual emergiram aqueles contratos, têm uma posição mais enfraquecida e menos protegida.
De acordo com o respetivo regime legal, o PERSI constitui uma fase pré-judicial, em que se almeja a composição do litígio por mútuo acordo, entre credor e devedor, mediante um procedimento que comporta três fases: a fase inicial; a fase de avaliação e proposta; a fase de negociação (artigos 14º, 15º e 16º)[2].
Na fase inicial, a instituição, depois de identificar a mora do cliente, informa-o do atraso no cumprimento e dos montantes em dívida, desenvolvendo diligências no sentido de apurar as razões subjacentes ao incumprimento registado; persistindo o incumprimento, integra-o, obrigatoriamente, no PERSI entre o 31º dia e o 60º dia subsequente à data do vencimento da obrigação em causa (artigos 13º e 14º, nº 1).
Na fase de avaliação e proposta, a instituição de crédito procede à avaliação da situação financeira do cliente para apurar se o incumprimento é momentâneo ou tem carácter duradouro. Findas as diligências, apresenta ao cliente uma ou mais propostas de regularização do crédito adequadas à sua situação financeira e necessidades, se considerar que o mesmo tem condições para cumprir. Se a averiguação feita tiver revelado incapacidade do cliente bancário para retomar o cumprimento das suas obrigações ou regularizar o incumprimento, mesmo com recurso à renegociação do contrato ou à sua consolidação com outros contratos de crédito, comunica ao cliente o resultado da avaliação e a inviabilidade de obtenção de um acordo no âmbito do PERSI, o qual se extinguirá (artigo 17º nº 2 al. c)).
Por último, a fase da negociação tem por objetivo obter o acordo do cliente para a proposta ou uma das propostas apresentadas pela instituição de crédito com vista à regularização do incumprimento.
No sentido de trazer efetividade ao procedimento, durante o período que decorre entre a integração do cliente no PERSI e a extinção deste, está vedado (artigo 18º, nº 1) à instituição de crédito, nomeadamente: (i) resolver o contrato de crédito com fundamento em incumprimento; (ii) intentar ações judiciais com a finalidade de obter a satisfação do seu crédito; (iii) ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito[3].
Por via disso, a jurisprudência, praticamente una voce, tem entendido que sendo a integração do devedor no PERSI e a ulterior extinção daquele procedimento condições objetivas de procedibilidade da ação executiva, esta somente pode ser intentada verificadas as referidas condições, isto é, integração do mutuário devedor no PERSI e extinção do procedimento e a sua comunicação a este em suporte duradouro (designadamente, carta ou email).
Consequentemente, instaurada que seja execução sem que se mostrem verificadas as aludidas condições, tal virá a redundar na verificação de uma exceção dilatória inominada ou atípica que determina a absolvição do executado da instância executiva[4].
Compreende-se que assim seja porquanto, nessas circunstâncias, estaremos em presença de uma situação em que o crédito não é (ainda) exigível por incumprimento de normas cogentes, como o são inequivocamente aquelas que determinam a necessária integração do cliente bancário no PERSI e a extinção desse procedimento, sendo certo que, em sede de direito civil, a violação do impedimento legal ao exercício do direito de ação, constitui causa legal de inexigibilidade das obrigações exequendas, patologia de conhecimento oficioso (artigo 578º do Código de Processo Civil) e não suprível no processo judicial indevidamente instaurado.
Neste excurso resta referir que suscitada a exceção em sede de embargos de executado, em matéria de distribuição do ónus de prova observar-se-ão as regras gerais, cabendo, pois, ao executado/embargante a prova dos factos que invoca como fundamento de oposição à execução (cfr. nº 2 do art. 342º do Cód. Civil no qual se consagra, conforme entendimento dominante, o pensamento fundamental da teoria das normas).
Isto posto, é tempo agora de responder à questão acima enunciada, o que passa por dilucidar se a executada mutuária reunia as condições para ser integrada em novo procedimento, motivado pelo incumprimento, a partir de julho de 2017, das obrigações emergentes do contrato nº ... (a que se alude no ponto nº 5 dos factos provados), pois o PERSI instaurado em 2013 estava já extinto nessa data.
Como acima se deu nota, o procedimento apenas se aplica a certo tipo de contratos.
Com efeito, a propósito do seu âmbito objetivo, o nº 1 do art. 2.º, na sua redação originária (que é a aplicável no caso vertente[5]), preceitua que o mesmo se aplica aos “[s]eguintes contratos de crédito celebrados com clientes bancários:
a) Contratos de crédito para a aquisição, construção e realização de obras em habitação própria permanente, secundária ou para arrendamento, bem como para a aquisição de terrenos para construção de habitação própria;
b) Contratos de crédito garantidos por hipoteca sobre bem imóvel;
c) Contratos de crédito a consumidores abrangidos pelo disposto no Decreto-Lei n.º 133/2009, de 2 de junho, alterado pelo Decreto-Lei n.º 72-A/2010, de 18 de junho, com exceção dos contratos de locação de bens móveis de consumo duradouro que prevejam o direito ou a obrigação de compra da coisa locada, seja no próprio contrato, seja em documento autónomo;
d) Contratos de crédito ao consumo celebrados ao abrigo do disposto no Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de setembro, alterado pelos Decretos-Leis nºs 101/2000, de 2 de junho, e 82/2006, de 3 de maio, com exceção dos contratos em que uma das partes se obriga, contra retribuição, a conceder à outra o gozo temporário de uma coisa móvel de consumo duradouro e em que se preveja o direito do locatário a adquirir a coisa locada, num prazo convencionado, eventualmente mediante o pagamento de um preço determinado ou determinável nos termos do próprio contrato;
e) Contratos de crédito sob a forma de facilidades de descoberto que estabeleçam a obrigação de reembolso do crédito no prazo de um mês”.
Por seu turno, no que tange ao seu âmbito subjetivo, o mesmo tem aplicação quando as mencionadas operações negociações sejam celebradas entre instituições de crédito e um cliente bancário, conceito este que, nos termos da al. a) do art. 3º, é definido como “[o] consumidor, na aceção dada pelo nº 1 do artigo 2º da Lei de Defesa do Consumidor, aprovada pela Lei 24/96 de 31 de julho, alterada pelo DL 67/2003 de 08 de abril, que intervenha como mutuário em contrato de crédito”.
Tendo em conta o que adrede resultou provado, dúvidas não se colocam que o ajuizado contrato assume natureza de contrato de crédito garantido por hipoteca sobre bem imóvel (cfr. ponto nº 5 dos factos provados), integrando-se, nessa medida, no âmbito de aplicação do diploma, quanto ao conteúdo, atenta a previsão das alíneas a) e b) do transcrito art. 2º.
De igual modo verifica-se que a executada mutuária reúne a qualidade de consumidor à luz da definição legal acolhida no n.º 1 do artigo 2.º da Lei 24/96, de 31 de julho[6] (na redação que lhe foi aportada pelo DL nº 67/2003, de 8.04), posto que o mútuo em causa foi contraído para aquisição da sua habitação própria e permanente.
Como assim, o mencionado contrato estaria, primo conspectu, em situação de ser submetido ao PERSI, por se enquadrar no âmbito (objetivo e subjetivo) de aplicação previsto na lei.
É facto que – como emerge da materialidade apurada - em resultado de inadimplemento contratual registado houve integração em PERSI em março de 2013, procedimento esse que foi extinto por comunicação transmitida à mutuária em junho desse mesmo ano, sendo que no final de 2013 o “contrato mostrava-se regularizado”.
Ora, ao invés do que advoga a apelante, a circunstância de o cliente bancário ter sido anteriormente integrado em PERSI já extinto não constitui entrave a que venha novamente a beneficiar desse regime, caso se encontrem reunidos os necessários pressupostos normativos para esse efeito.
Na verdade, o texto legal (art. 14º, nºs 1 e 2) não consente qualquer interpretação restritiva no sentido de se considerar existir um limite de integração do mesmo cliente bancário e do mesmo contrato de crédito no PERSI, sendo que o elemento racional (ou teleológico) da interpretação aponta precisamente em sentido diverso, posto que, na economia do diploma, se visa primordialmente proteger o cliente/consumidor em situação de mora ou incumprimento de obrigações decorrentes desse tipo de contrato, o qual é visto como parte frágil na relação e, por isso, carecido de especial proteção, deixando a cargo da contraparte (uma entidade de crédito) especiais deveres de informação, esclarecimento e proteção.
Tal é, aliás, o entendimento sustentado pelo Banco de Portugal[7], que se vem pronunciado no sentido de não ser estabelecido limite à integração no PERSI, procedendo-se à inclusão sempre que se reúnam as condições para tal, mesmo que decorram do mesmo contrato de crédito. Assim, a instituição de crédito está obrigada a integrar o cliente bancário sempre que se verifiquem os requisitos para aplicar o referido procedimento.
Deste modo, a mutuante Banco ..., S.A., em virtude de se encontrarem verificados os pertinentes requisitos, deveria ter integrado (a partir de setembro de 2017) a mutuária em novo PERSI, o que, todavia, não fez.
É certo que, como resulta do substrato factual que logrou demonstração, o ajuizado crédito foi cedido (em 27 de dezembro de 2018) pela mutuante à “M...” que, por sua vez, o cedeu à ora exequente.
Ora, como deflui das considerações supra tecidas, quando a mutuante efetuou a cessão de créditos já estava em situação de inobservância do descrito regime imperativo.
Como anteriormente se deu nota, no período compreendido entre a data de integração do cliente bancário no PERSI e a extinção deste procedimento, a instituição de crédito está impedida de ceder a terceiro uma parte ou a totalidade do crédito ou transmitir a terceiro a sua posição contratual (als. c) e d) do nº 1 do art. 18º).
Porém, nos termos do n.º 2 do citado normativo, a instituição de crédito pode ceder créditos para efeitos de titularização (al. b)) ou ceder créditos ou transmitir a sua posição contratual a outra instituição de crédito (al. c)); neste último caso, sendo exigível que a cessionária seja outra instituição de crédito, “fica esta obrigada a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual” (n.º 3).
Como a este respeito escreve ANDREIA SOFIA ENGENHEIRO[8], a razão de ser desta última exceção – permitir a cedência ou a transmissão do crédito de cliente bancário integrado em PERSI –, justifica-se “desde que seja possível dar continuidade à aplicação do referido procedimento – o que poderá ser vantajoso em situações em que o cliente bancário consiga melhores condições com outra instituição de crédito –, pois caso contrário a cedência ou a transmissão poderia importar uma desvirtuação do regime, na medida em que se o cessionário não for uma instituição de crédito abrangida pelo âmbito de aplicação do Regime Geral não estaria obrigado a dar cumprimento ao PERSI”.
Significa isto, pois, que a mutuante não podia ter cedido o crédito dos autos sem ter previamente cumprido as mencionadas exigências legais, incumprimento esse que - por se comunicar à cessionária (cfr. art. 585º do Cód. Civil) - não pode deixar de condicionar a posição jurídica da ora exequente/apelante que, por via disso, não poderia ter instaurado a presente execução por falta – como se assinalou - de uma condição objetiva de procedibilidade. A entender-se de outro modo estaria encontrada uma via expedita para as instituições de crédito se subtraírem à obrigatória sujeição ao regime decorrente do DL n.º 227/2012, bastando para o efeito que, em violação do estatuído nesse diploma, se abstivessem de integrar obrigatoriamente o cliente bancário no PERSI e cedessem o seu crédito a um terceiro, o que permitiria que este (cessionário) não ficasse sujeito às proibições ou impedimentos elencados no art. 18º e pudesse obter de imediato a satisfação do crédito cedido.
Registe-se, por último, que embora nas suas conclusões recursivas a apelante não suscite, de forma concludente, a questão do abuso de direito, cabe, ainda assim (face às referências que ao mesmo faz na conclusão N, em extrato de acórdão que cita), equacionar se, no caso, a exceção dilatória em causa pode ser neutralizada pelo recurso a esse instituto.
A resposta a essa questão terá de ser negativa por duas ordens de razões: desde logo porque tal exceptio foi suscitada e conhecida oficiosamente pelo decisor de 1ª instância; depois porque a materialidade que logrou demonstração (e que não foi alvo de impugnação em sede recursória) não permite (mormente por ausência de referência factual ao período que mediou entre o termo do anterior PERSI e julho de 2017) suportar conclusão no sentido de que, in concreto, a sua procedência excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, como é suposto pelo art. 334º do Cód. Civil.
Por conseguinte, dada a concreta inexigibilidade do crédito exequendo, impõe-se a improcedência do presente recurso, com a consequente confirmação do ato decisório sob censura.
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V - DISPOSITIVO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo da apelante.

Porto, 7 de Março de 2022
Miguel Baldaia de Morais
Jorge Miguel Seabra
Pedro Damião e Cunha
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[1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem.
[2] Cfr., para maior desenvolvimento, PAULO CÂMARA, Crédito bancário e prevenção de risco de incumprimento: uma avaliação crítica do novo Procedimento Extrajudicial de Regularização de Situações de Incumprimento (PERSI), in II Congresso de Direito de Insolvência, 2014, Almedina, págs. 321 e seguintes, FILIPA CONCEIÇÃO, O novo regime da negociação extrajudicial de créditos bancários, in Revista Portuguesa de Direito do Consumo, n.º 73, págs. 19 e seguintes e ANDREIA SOFIA ENGENHEIRO, O Crédito bancário: a prevenção do risco e gestão de situações de incumprimento, artigo acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/16176/1/Engenheiro_2015.pdf.
[3] A lei (nº 2 do referido normativo) contempla, todavia, a possibilidade de cedência do crédito (ou da posição contratual) por banda da instituição de crédito, sendo que, nesse caso, a instituição de crédito cessionária está obrigada, nos termos do seu nº 3, “a prosseguir com o PERSI, retomando este procedimento na fase em que o mesmo se encontrava à data da cessão do crédito ou da transmissão da posição contratual”.
[4] Cfr., por todos, acórdãos do STJ de 16.11.2021 (processo nº 21827/17.9T8SNT-A.L1.S1) e de 9.02.2017 (processo nº 194/13.5TBCMN-A.G1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 4.11.2021 (processo nº 9509/15.0T8ALM-A.L1-6,), de 21.10.2021 (processo nº 12205/18.3 T8SNT-A.L2-2) e de 7.05.2020 (processo nº 2282/15.4T8ALM-A.L1-6) e acórdãos desta Relação de 23.02.2021 (processo nº 8821/19.4T8PRT-A.P1) e de 9.05.2019 (processo nº 21609/18.0T8PRT-A.P1), acessíveis em www.dgsi.pt.
[5] A redação do referido normativo veio a ser posteriormente alterada pelo Decreto-Lei nº 70-B/2021, de 6 de agosto, nova redação essa que, por mor do disposto no nº 1 do art. 12º do Cód. Civil, não tem, contudo, aplicação no caso, porquanto a situação que determinaria a inclusão do contrato no PERSI ocorreu em data anterior à entrada em vigor desse diploma.
[6] Onde se dispõe que se considera “consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios”.
O transcrito inciso, conforme entendimento majoritário [cfr., inter alia, na doutrina, CALVÃO DA SILVA, in Venda de bens de consumo, 4ª edição revista, aumentada e atualizada, Almedina, págs. 70 e seguinte, JANUÁRIO GOMES, in Cadernos de Direito Privado, nº 21 (2008), págs. 3 e seguinte e FERREIRA DE ALMEIDA, in Direito do Consumo, Almedina, 2005, págs. 30 e seguinte; na jurisprudência, acórdãos da Relação de Lisboa de 22.05.2018 (processo nº 13213/15.1T8LSB.L2-1), de 11.02.2020 (processo nº 491/11.4TVLSB.L1-1) e de 12.10.2017 (processo nº 6776/15.3T8ALM.L1-8) e acórdão desta Relação de 14.09.2009 (processo nº 542/2001.P1), acessíveis em www.dgsi.pt] consagra, assim, o conceito restrito de consumidor, abrangendo, tão-somente, as pessoas singulares que adquiram a fornecedor profissional bens ou serviços para uso não profissional, com exclusão, pois, das pessoas jurídicas ou pessoas colectivas, as quais adquirem bens ou serviços no âmbito da sua actividade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais, plasmado no artigo 160º do Código Civil e no artigo 6º do Código das Sociedades Comerciais.
[7] Cfr., brochura sobre Prevenção e Gestão do Incumprimento (Incumprimento de contratos de crédito - Prevenção e regularização do incumprimento por clientes bancários particulares), acessível em www.bportugal.pt.
[8] Op. citada, pág. 56.