Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
230/14.8TAVLG-G.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
REGIME LEGAL
NOTIFICAÇÃO
OPOSIÇÃO AO ARRESTO
REQUISITOS
NULIDADE
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
JUSTO RECEIO
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: RP20201125230/14.8TAVLG-G.P1
Data do Acordão: 11/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL (CONFERÊNCIA)
Decisão: PROVIDO RECURSO INTERPOSTO PELA REQUERIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Para que o requerido possa exercer o contraditório e deduzir oposição ao despacho que decretou o arresto preventivo, importa que lhe sejam facultados os necessários meios para a defesa dos seus direitos, designadamente os articulados da pretensão contra si deduzida, os documentos e outros meios de prova que a possam sustentar.
II - Contudo, embora a lei comine com nulidade a citação/notificação efetuada sem que tenham sido observadas as formalidades prescritas na lei, o certo é que essa consequência só ocorre quando a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado/notificado.
III – Porém, nos casos em que tenha sido omitida a prática de um acto legalmente obrigatório, tal como a constituição de arguido, a referida omissão constitui nulidade dependente de arguição.
IV – Apesar de a recorrente ter arguido uma tal nulidade em 1ª instância, o certo é que sobre ela não recaiu qualquer decisão do Juiz de Instrução antes da interposição do presente recurso.
V – Não estando uma tal nulidade coberta por despacho judicial, nunca poderia o tribunal de recurso dela conhecer, na medida em que jamais uma irregularidade ou uma nulidade sanável poderá constituir fundamento autónomo de recurso, posto que só a nulidade de sentença penal pode ser arguida autonomamente em sede de recurso da decisão final.
VI – A decisão que decreta o arresto preventivo, tal como qualquer ato decisório, tem de se mostrar fundamentada, encontrando-se sujeita ao regime previsto no artigo 194º, nº 6 do Código de Processo Penal.
VII – Tal nulidade, por não se encontrar tipificada como insanável, tem de ser arguida perante o tribunal de 1ª instância no prazo geral de dez dias, contado da data da notificação respetiva, só havendo recurso da decisão que conhecer da arguição da nulidade, o que, não tendo sucedido, nos remete para as implicações supra insertas no ponto V.
VIII – No arresto, tal como preventivo, são diferentes os escopos específicos da interposição de recurso ou da dedução de oposição, pois, com o primeiro pretender-se-á pôr em causa a legalidade da decisão por falta dos necessários requisitos de direito, enquanto com o segundo pretender-se-á invalidar os fundamentos de facto com base nos quais foi determinado o decretamento da providência ou obter a redução da providência aos justos limites, alegando factos ou produzindo meios de prova não considerados antes pelo tribunal.
IX – No caso em apreço, uma vez que a recorrente alega factos novos para tentar demonstrar que não se justifica a existência do direito que fundou a decisão de decretamento do arresto, os quais, não tendo sido tidos em conta pelo tribunal, constituem defesa idónea em sede de recurso, pois que constituiriam fundamento para a oposição, pelo que tais fundamentos só agora invocados estão subtraídos à possibilidade de conhecimento pelo tribunal de recurso.
X – O arresto é um procedimento cautelar que visa combater o “periculum in mora”, isto é, o prejuízo decorrente da demora do processo judicial normal e traduz-se numa apreensão judicial de bem tendente à garantia de um crédito, colocando-o na indisponibilidade do seu titular.
XI – Por isso, o decretamento do arresto preventivo depende da probabilidade da existência do crédito e do justo receio de que o devedor inutilize, oculte ou se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor.
XII – Quanto ao justo receito, e embora não seja necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efetiva, mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda virá a ocorrer, é necessário que exista um receio seja concretamente justificado, não bastando o receio subjetivo, fundado em simples conjecturas.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 230/14.8TAVLG-G.P1
1ª secção
Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto
I - RELATÓRIO
Nos autos de Inquérito que correm termos na 1ª secção do DIAP Regional do Porto com o nº 230 /14.8TAVLG, o Mº Público deduziu acusação e simultaneamente requereu o arresto preventivo, ao abrigo do disposto no artº 228º do C.P.Penal, contra os arguidos B…, C…, D…, E…, F…, G…, H…, I…, J…, K… e ainda contra L…, SA. e M….
Por decisão proferida em 10.07.2020, o Sr. Juiz de Instrução Criminal do Porto decretou o arresto preventivo de diversas contas bancárias e do prédio urbano denominado Hospital N…, sito na Rua …, nº …/…, da União das Freguesias …, Concelho de Valongo, inscrito na matriz sob o artº 9199U, descrito na Conservatória do registo Predial sob o nº 3220/20031008, Freguesia … a favor de L…, SA.
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Refere o art.º 228.º do C. Pr. Penal – coordenada fundamental nesta matéria – que, a requerimento do M. Público ou do lesado, pode o juiz de instrução criminal decretar o arresto dos bens do requerido, nos termos prescritos pelo C. Pr. Civil.
Por seu turno, e como não foi nos presentes autos determinada a prestação de caução, há que se verificar o fundado receio da perda da garantia patrimonial, conforme é determinado pelo art.º 391.º do C. Pr. Civil.
1. Dispõe o art.º 619.º do C. Civil (ex vi o art.º 228.º, n.º 1 do C. Pr. Penal) que “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor”.
Compete assim ao requerente de um arresto alegar factos que, por um lado, tornam provável a existência do crédito; e, por outro, alegar outros factos que justificam o invocado receio de perda de garantia patrimonial desse mesmo crédito – artigo 391.º, n.º 1 do C. Pr. Civil (na redação da Lei 41/13, de 26.JUN).
2. No que concerne ao primeiro requisito exigido - a existência do direito invocado – resulta da factualidade indiciariamente provada que os arguidos lograram beneficiar a sociedade L…, S.A., através do aumento do índice de construção, da redução de taxas municipais e da obtenção de um equipamento hospitalar capaz de ser integrado na Rede Nacional de Cuidados Continuados.
Desse modo, a sociedade L…, S.A. logrou pagar o montante de €42.893,42 a título de taxas municipais, obtendo uma redução delas - a que sabia não ter direito - no valor de €36.855,93 ao invés do que teria de pagar (€73.711,86), não fosse a ilegalmente obtida declaração de utilidade pública municipal do respetivo hospital.
Igualmente flui da prova indiciária recolhida em inquérito que a capacidade construtiva lograda ilicitamente – por terem sido invocando falsos pressupostos para o efeito - a L…, S.A. logrou obter um acréscimo patrimonial de €1.345.800,00, resultante da diferença entre o que permitia o PDM (4 pisos) e o que foi efetivamente construído (7 pisos); além disso, indicia-se igualmente que a edificação ilegal de 7 pisos permitiu à sociedade L…, S.A. obter uma capacidade instalada de camas, através da qual acedeu à Rede Nacional de Cuidados Continuados e pela qual recebeu da ARS as quantias de € 275.064,00 e de € 424.626,40.
No que concerne ao arguido B…, a prova indiciária em que assenta o imputado crime de tráfico de influência é menos direta, uma vez que assenta essencialmente no circuito da quantia de 225 mil euros que acabou em uma conta bancária por ele titulada, depois de transitar inicialmente de uma conta titulada pela L…, para outra conta titulada pelo arguido C…; depois, para outra conta bancária dos arguidos C… e O…, acionista da L….
O M. Público entende que esse montante monetário foi entregue por essa via ao arguido B…, como contrapartida da sua influência junto dos decisores públicos na C. M. de …, a solicitação do arguido C…, no interesse dele e da L…; por isso, conclui a acusação, logrou o dito arguido obter vantagem patrimonial ilegítima pelo menos no valor de €225.000,00 valor pelo qual responde solidariamente com o arguido C….
No caso em apreço, considerando os demais indícios recolhidos no inquérito, é pelo menos plausível que o arguido B… tenha desenvolvido diligências junto de decisores do município de … no sentido da aprovação do projeto da L… e, assim, que a referida quantia tenha constituído a contrapartida por essa influência assim exercida. O arguido B… não prestou declarações quando interrogado nessa qualidade; é naturalmente direito que lhe assiste.
Esse seu silêncio, todavia, não permitiu que esclarecesse o facto - documentalmente demonstrado no inquérito – da transferência, para a sua conta, da referida quantia, pese embora e em abono da verdade, não tenha sido concretamente confrontado com o referido circuito da referida quantia (fls. 2017/2021).
Ou seja, a tese vertida pelo M. Público na acusação e no presente arresto em como tal constituiu a contrapartida pela sua influência junto do município de … não foi por ele explicada quando confrontado com os factos integradores do crime de prevaricação…
Contudo, nesta sede de procedimento cautelar - em que apenas se exige o bonus fumus iuris quanto à existência do direito – pode assentar-se que indiciariamente a referida quantia possa ter resultado da prática da conduta daquele arguido subsumível ao crime de tráfico de influência.
Ora, nos termos do art.º 110.º do C. Penal, as vantagens decorrentes da comissão de um facto ilícito típico (abrangendo as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica direta ou indiretamente resultantes do facto) são declaradas perdidas a favor do Estado.
Por isso, o primeiro dos requisitos para a procedência do requerido arresto – o da existência de direito sobre os requeridos – encontra-se demonstrado: foi obtida vantagem económica por alguns dos arguidos, de modo criminalmente ilícito, pelo que o Estado e o município de … são credores do valor correspondente ao prejuízo que lhes foi causado através da conduta criminosa imputada pelo M. Público aos arguidos.
2. Demonstrado que está o primeiro dos requisitos exigidos pelo art.º 392.º, n.º 1 do Código do Processo Civil, cumpre então ponderar o segundo requisito previsto nesta norma para o decretamento de um arresto, ou seja, o justo receio de perda da garantia patrimonial.
Tal requisito exige o perigo da ocorrência de atos ou omissões que, objetivamente e em concreto, diminuam a garantia patrimonial do crédito, garantia essa que é constituída por todo o património dos requeridos.
Não bastam, pois, meras convicções, suspeitas ou desconfianças.
É necessário que sejam demonstrados factos concretos, dos quais seja possível concluir que a conduta dos requeridos seja susceptível de, objetivamente, fazer frustrar a satisfação do direito da ofendida.
3. Conforme se verteu no acórdão do Tr. da Relação do Porto, de 18.NOV.13 (pr. 1196/12.4TTBCL-A.P1), “Como refere Abrantes Geraldes, o justo receio de perda da garantia patrimonial “é o que no arresto preenche o periculum in mora que serve de fundamento à generalidade das providências cautelares.
Se a probabilidade quanto à existência do direito é comum a todas as providências, o justo receio referente à perda de garantia patrimonial é o factor distintivo do arresto relativamente a outras formas de tutela cautelar de direitos de natureza creditícia”.
Segundo o mesmo autor, este requisito “pressupõe a alegação e a prova, ainda que perfunctória, de um circunstancialismo fáctico que faça antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito” e o critério da sua avaliação “não deve assentar em juízos puramente subjetivos do juiz ou do credor (isto é, em simples conjecturas, como refere Alberto dos Reis), antes deve basear-se em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva".
Ao nível da jurisprudência, tem-se igualmente entendido que o referido “justo receio” não pode bastar-se com o receio subjetivo do credor, baseado em meras conjecturas, antes tem de assentar em factos concretos que o revelem sumariamente.
Para concretizar o “justo receio”, pode ser concretamente invocável pelo credor “qualquer causa idónea a provocar num homem normal esse receio”.
Segundo Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, o periculum in mora pode “tratar-se do receio de insolvência do devedor (a provar através do apuramento geral dos seus bens e das suas dívidas) ou do da ocultação, por parte deste, dos seus bens (se, por exemplo, ele tiver começado a diligenciar nesse sentido, ou usar fazê-lo para escapar ao pagamento das suas dívidas), mas pode igualmente tratar-se do receio de que o devedor venda os seus bens (como quando se prove que está tentando fazê-lo” ou “os transfira para o estrangeiro (está, por exemplo, ameaçando fazê-lo, ou já transferiu alguns”) ou “de qualquer outra atuação do devedor que levasse uma pessoa de são critério, colocada na posição do credor, a temer a perda da garantia patrimonial do seu crédito”.
As circunstâncias normalmente referidas pela doutrina e pela jurisprudência para sustentar o receio de perda da garantia patrimonial são, por um lado, meramente exemplificativas (não estando excluídas outras que, de forma idêntica, preencham o referido requisito) e, por outro lado, não têm de se verificar de forma cumulativa (bastando que se verifique algum ou alguns para que, de acordo com as circunstâncias, o periculam in mora se ache preenchido).
No que respeita ao propósito de venda do ativo, não é necessário que os atos delapidatórios se tenham já desencadeado - sobretudo se o ativo se consubstancia na existência de um único bem (o estabelecimento comercial) -, bastando que se evidenciem manobras ou ameaças de preparação desses atos.”.
4. Ora, analisada a factualidade provada, verifica-se que os montantes monetários em questão foram recebidos, por um lado, pelo arguido B… (225 mil euros) e, por outro, pela L…, S.A. (€36.855,93 de redução de taxas; €1.345.800,00, consubstanciado na diferença entre o que permitia o PDM - 4 pisos - e o que foi efetivamente construído - 7 pisos; €275.064,00 e de €424.626,40 decorrente do que recebeu da ARS por ter acedido à Rede Nacional de Cuidados Continuados).
Por conseguinte, é lícito concluir, com o requerente, que existem indícios consistentes em como os requeridos estão em condições de dissipar o património necessário e imprescindível à garantia da satisfação do crédito do requerente, existindo, de facto, o perigo de os requeridos virem a delapidar o património ainda visível e existente, impedindo e frustrando a legítima pretensão do requerente.
5. Assim, é possível extrair a conclusão que existe efetivamente perigo concreto de perda de garantia patrimonial do crédito do requerente, uma vez que, no caso de condenação dos requeridos e sem o decretamento do presente arresto preventivo ficará impossibilitado de executar quaisquer bens dos requeridos, uma vez que os requeridos possam diminuir o seu acervo patrimonial ou atuar em detrimento dele.
6. Verifica-se, assim, em concreto, o segundo requisito exigido na lei para o decretamento do arresto, pelo que o mesmo deverá ser decretado.
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Nestes termos, julga-se procedente o presente procedimento cautelar e, em consequência, decreta-se o arresto preventivo: - do prédio urbano, denominado "HOSPITAL N…", sito na Rua …, nº …/…, da União das Freguesias do … e …, Concelho de Valongo, constituído pelo artigo 9199U, inscrito na matriz no ano de 2008, com o valor patrimonial atualizado a 2019 de €2.141.854.00 em nome L… SA, descrito na Conservatória dos Registos Civil, Predial, Comercial e Automóveis sob o nº 3220/20031008, Freguesia …;
- das contas bancárias, carteira de títulos, aplicações e seguros financeiros e produtos semelhantes dos quais seja titular, cotitular ou detenha poderes de movimentação o arguido B…, designadamente as contas bancárias já identificadas no Apenso do GRA (Vol. I, pgs 1069 e ss e apensos 7A, 7B 7C, 7D, 7E, 7F; e Vol. II do Apenso do GRA fl.s 376), ou seja:
1. Contas nºs ……….., ……….; ………, do Q…;
2. Conta nº ………., do R…;
3. Conta nº ………., do S…;
4. Contas nºs …………, ………., do T…;
5. Conta nº ………, da U…;
6. Conta nº …….., do V….
Na eventualidade de não serem encontradas nas contas bancárias supra identificadas importâncias que permitam alcançar o valor pedido no arresto (€225.000,00), autoriza-se que o GRA identifique e proceda ao arresto desse montante a partir de outras contas das quais o arguido B… seja titulares, cotitular ou disponha de poderes de movimentação.
O arresto ora decretado deverá ser efetuados pelo Gabinete de Recuperação de Ativos da Polícia Judiciária.
Custas pelos requerentes, a atender nos autos principais (art.º 539.º, nº 2 do Código de Processo Civil).
Valor: €961.546,33.
Notifique.»
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[1], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[2].
De acordo com as conclusões formuladas pelo recorrente, são as seguintes as questões que importa apreciar:
- saber se a notificação do arresto efetuada à recorrente padece de nulidade por omissão dos articulados e dos meios de prova que sustentaram a decisão e por ter sido efetuada pelo GRA em violação do disposto no artº. 228º nº 3 do C.P.P. e no artº 366º nº 6 do C.P.Civil, já que não foi notificada do arresto, nem dos meios colocados à sua disposição para sindicar a decisão;
- saber se a aplicação de uma medida de garantia patrimonial depende da prévia constituição como arguida, sob pena de nulidade da decisão que a decreta;
- saber se o despacho que decretou o arresto é nulo por falta de qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos;
- saber se os ilícitos penais que serviram de base ao arresto se encontram prescritos;
- saber se se verifica o preenchimento do ilícito penal de prevaricação, que sustentou o pedido de arresto;
- saber se inexiste a aparência do direito para o decretamento da providência de arresto;
- saber se se mostra justificado o receio de perda da garantia patrimonial;
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A) Da nulidade da notificação do arresto:
Alega a recorrente que em 20 de julho de 2020 foi notificada pelo Gabinete de Recuperação de Ativos da Polícia Judiciária para “em conformidade com ... artº 4º nº 3 da Lei nº 45/2011 de 24 de junho, pode ser requerido ao juiz de instrução, no prazo de 10 dias a ... modificação ou revogação da medida”. Ora, este preceito refere-se à apreensão de um bem, quando o documento anexo à notificação é o decretamento do arresto de um prédio urbano e, por outro lado, da notificação não constam os meios à disposição da recorrente para se opor à decisão proferida, em violação do disposto no artº. 228º nº 3 do C.P.Penal e do artº 366º nº 6 do C.P.Civil.
Alega ainda a recorrente que não foi notificada do requerimento apresentado pelo Mº Público e dos meios de prova relevantes para a prolação da decisão, o que constitui nulidade.
Vejamos:
Nos termos do artº 228º nº1 do C.P.Penal “Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil”, podendo o requerido deduzir oposição ao despacho – nº 3 do mesmo preceito.
O artº 393º do C.P.Civil prevê que o arresto possa ser decretado sem audiência da parte contrária, desde que se mostrem preenchidos os requisitos legais. Considerando porém que, como atrás se referiu, assiste ao requerido o direito de deduzir oposição, o respetivo despacho não pode deixar de lhe ser notificado.
O artº 376º nº 1 do C.P.Civil, por sua vez, dispõe que, com as exceções nele previstas, ao procedimento cautelar aqui em causa – arresto - são também aplicáveis as disposições constantes do capítulo I.
Assim, nos casos em que, como no presente, o requerido não for previamente ouvido e a providência for decretada, após a sua realização é o mesmo notificado da decisão que a ordenou, aplicando-se à notificação o preceituado quanto à citação – artº 366º nº 6 do C.P.Civil.

Quanto às formalidades a observar nessa notificação, há assim que atender ao disposto no artº 227º do C.P.Civil, que, sob pena de nulidade (artº 191º nº 1 do mesmo diploma) impõe a entrega ao notificando do duplicado da petição inicial e da cópia dos documentos que a acompanhem, indicando-se ainda ao destinatário o prazo dentro do qual pode oferecer a defesa. Por outro lado, nos termos do artº 219º nº 3 do C.P.Civil, a citação ou notificação é sempre acompanhada de todos os elementos e de cópias legíveis dos documentos e peças do processo necessários à plena compreensão do seu objeto.
No caso em apreço, para além de a notificação efetuada à recorrente conter apenas cópia da decisão que decretou o arresto, quando deveria ter sido acompanhada do requerimento formulado pelo Mº Público, bem como dos meios de prova em que se fundou a decisão, também foi omitida a indicação do prazo para a defesa e dos meios ao dispor do notificado para esse efeito, já que, como resulta de fls. 91, o GRA apenas deu conhecimento à recorrente da decisão judicial proferida e do auto de arresto, omitindo a indicação dos meios de defesa previstos no artº 372º nº 1 do C.P.Civil (fez referência ao artº 4º nº 3 da Lei nº 45/2011 de 24.06, que apenas alude à possibilidade de requerer a modificação ou revogação da medida de apreensão de bens).
Ora, para que o requerido possa exercer o contraditório e deduzir oposição ao despacho que decretou o arresto preventivo, importa que lhe sejam facultados os necessários meios para a defesa dos seus direitos, designadamente os “articulados” da pretensão contra si deduzida, os documentos e outros meios de prova que a possam sustentar[3].
Contudo, embora a lei comine com nulidade a citação/notificação efetuada sem que tenham sido observadas as formalidades prescritas na lei – artº 191º nº 1 do C.P.C. -, o certo é que essa consequência só ocorre quando a falta cometida puder prejudicar a defesa do citado/notificado – nº 4 do mesmo preceito.
Ora, no caso sub judice resulta do teor dos requerimentos que apresentou nos autos e das próprias motivações do presente recurso, que a defesa da recorrente não ficou de forma alguma prejudicada com as “irregularidades” praticadas, tanto mais que, tempestivamente, interpôs recurso, nele demonstrando ter tido conhecimento dos meios de prova constantes do inquérito e que serviram de base à decisão recorrida, para além de ter demonstrado no requerimento que apresentou em 29.07.2020 ser sabedora que, para além do recurso, poderia lançar mão do incidente de oposição, meios de defesa previstos no artº 372º do C.P.Civil.
Conclui-se assim pela improcedência deste fundamento do recurso.
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B) Da prévia constituição da recorrente como arguida:
Alega a recorrente que a decisão recorrida é nula, nos termos do artº 120º nº 2 al. d) do C.P.P., por ter sido proferida sem que a recorrente tenha sido previamente constituída como arguida, violando o disposto no artº 192º nº 1 e 58º nº 1 al. b) do mesmo diploma legal.
Dispõe o artº 192º do C.P.Penal:
“1. A aplicação de qualquer medida de coação depende da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 58º, da pessoa que deles for objeto.
2. A aplicação de medidas de garantia patrimonial depende da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 58º, da pessoa que delas for objeto, ressalvado o disposto nos nºs. 3 a 5 do presente artigo.
3. No caso do arresto, sempre que a prévia constituição como arguido puser em sério risco o seu fim ou a sua eficácia, pode a constituição como arguido ocorrer em momento imediatamente posterior ao da aplicação da medida, mediante despacho devidamente fundamentado do juiz, sem exceder, em caso algum, o prazo máximo de 72 horas a contar da data daquela aplicação.
4. A não constituição como arguido no prazo máximo previsto no número anterior determina a nulidade da medida de arresto, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
5. (...)
6.(...)”.
Contudo, ainda que se entenda que foi omitida a prática desse ato “legalmente obrigatório”, a referida omissão sempre constituiria nulidade dependente de arguição – artº 120º nº 2 al. d) do C.P.Penal.
E se é certo que a recorrente arguiu a referida nulidade na 1ª instância, o certo é que sobre ela não recaiu qualquer decisão do Juiz de Instrução antes da interposição do presente recurso.
Ora, como se escreveu no Ac. desta Relação de 27.05.2009[4], “não se tratando de questão de conhecimento oficioso (…), o seu conhecimento não competiria a este tribunal sem que, previamente, houvesse sido suscitada na 1ª instância. Pois, como é sabido, os recursos têm por objeto a decisão recorrida e não a questão por ela julgada; são remédios jurídicos e, como tal, destinam-se a reexaminar decisões proferidas pelas instâncias inferiores, verificando a sua adequação e legalidade quanto às questões concretamente suscitadas, e não a decidir questões novas, que não tenham sido colocadas perante aquelas. Assim, se os recorrentes pretendiam que fosse corrigido o procedimento adotado e fazer valer o direito de contraditório que lhes assistia, tinham de arguir primeiramente o vício perante o tribunal onde ele foi cometido e só depois, caso a decisão que viesse a ser proferida lhes fosse desfavorável, interpor o competente recurso, só então estando reunidas as condições para que este tribunal apreciasse a questão”.
Aliás, é neste contexto que costuma afirmar-se que «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»[5].
Não estando a apontada nulidade coberta por despacho judicial, nunca poderia este Tribunal dela conhecer, na medida em que jamais uma irregularidade ou uma nulidade sanável poderá constituir fundamento autónomo de recurso[6].
Só a nulidade de sentença penal pode ser arguida autonomamente em sede de recurso da decisão final e, portanto, em prazo superior ao prazo legal supletivo previsto no artº 105º nº 1 do C.P.P.,
De qualquer modo sempre se dirá que, não tendo a recorrente a qualidade de arguida, nem lhe tendo sido imputados na acusação já deduzida quaisquer factos que a façam incorrer em responsabilidade criminal, não teria qualquer fundamento legal a sua constituição como arguida. Aliás, a sua intervenção nos autos fundamenta-se na sua responsabilidade solidária civil e não criminal, pelo que a aplicação de uma medida de garantia patrimonial não carecia de prévia constituição como arguida, que, a ter lugar, seria manifestamente ilegal.
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C) Da nulidade da decisão recorrida por falta de qualificação jurídica dos factos imputados aos arguidos:
Alega a recorrente que na decisão recorrida o JIC não considerou que os factos dados como provados consubstanciam a prática dos crimes referidos na acusação do Mº Público, sendo que a falta de qualificação jurídica integra uma nulidade, nos termos do artº 194º nº 6 al. c), conjugado com o artº 120º do C.P.P.
A decisão que decreta o arresto previsto no artº 228º do C.P.Penal, tal como qualquer ato decisório, tem de se mostrar fundamentada, encontrando-se sujeita ao regime previsto no artº 194º nº6 do C.P.Penal, o qual dispõe:
“A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º”.
Sendo o arresto uma medida de garantia patrimonial é nos termos do artº 194º nº 1 do C.P.Penal, aplicada por despacho. E sendo um despacho, não é aplicável ao mesmo o regime da sentença previsto nos artºs. 374º nº 2 e 379º nº 1 do C.P.Penal.
A nulidade por inobservância do disposto no artº 194º nº 6, do C.P.Penal tem de ser arguida, por não se encontrar tipificada como insanável, perante o tribunal de 1ª instância no prazo geral de 10 dias (art.105.º, n.º1, do C.P.Penal), contado da data da notificação respetiva, só havendo recurso da decisão que conhecer da arguição da nulidade.
Tendo a recorrente arguido a nulidade em causa perante o Juiz da 1ª instância, mas sem que sobre a mesma tenha recaído qualquer despacho, não pode este Tribunal de recurso dela conhecer, pois, como acima já referimos, “jamais uma irregularidade ou uma nulidade sanável poderá constituir fundamento autónomo de recurso”.
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D) Da prescrição dos ilícitos penais que serviram de base ao arresto:
Sustenta a recorrente que a decisão que decretou o arresto assenta na prática de ilícitos penais, imputados ao arguido B…, que se encontram prescritos.
Vejamos:
Dispõe o artº 192º nº 6 do Cód. Penal que “Nenhuma medida de coação ou de garantia patrimonial é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal”.
Considerando que a prescrição constitui uma das causas de extinção do procedimento criminal, importa averiguar se efetivamente o procedimento criminal se encontra prescrito.
Por outro lado, importa antes de mais referir que se uma lei nova modificar, aumentando ou diminuindo, o prazo de prescrição previsto na lei antiga, a solução só pode ser a de aplicar o mais curto dos prazos em conflito, por ser o regime que concretamente se mostra mais favorável ao agente.
No caso em apreço, o crime de tráfico de influência p. e p. no artº 335º nº 1 al. a) do Cód. Penal e o crime de prevaricação p. e p. nos artºs. 1º, 2º, 3º, i) e 11º da Lei nº 34/87 de 16.07, imputados ao arguido B…, são punidos, respetivamente, com pena de prisão de um a cinco anos e com pena de prisão de dois a oito anos.
Importa, porém, esclarecer quando começa a correr o prazo de prescrição, tendo presente que, nos termos do art.º 119.º, n.º 1, do Código Penal, em regra, inicia-se na data da consumação do crime, mas nos crimes permanentes o dies a quo coincide com o dia em que cessar a consumação e nos crimes continuados o dia da prática do último ato (alíneas a) e b) do n.º 2 do mesmo artigo).
Atenta a descrição factual imputada na acusação ao arguido acima identificado, podemos concluir que a conduta criminosa se terá iniciado em 22.09.2004 (cfr. ponto 32 da acusação) e se terá prolongado até 27.02.2008 (cfr. ponto 116 da acusação), tendo nesse decurso de tempo praticado diversos atos em conjugação de esforços com os restantes arguidos, contra a entrega de uma vantagem patrimonial e abusando da sua influência junto de decisores políticos, de forma a obter destes decisões ilegais.
Por isso, essas condutas só podem ser reconduzidas à categoria dogmática da continuação criminosa, razão por que, para efeitos de prescrição, se irá atender ao dia da prática do último ato, i.e., 27.02.2008, que corresponde ao termo inicial do prazo de prescrição do procedimento criminal.
Há que ponderar, porém, que desde a data em que se consumou a conduta criminosa, o prazo de prescrição do procedimento criminal pelo crime de tráfico de influência p. e p. no artº 335º nº 1 al. a) do Cód. Penal que correspondia a 10 anos (artº 118º nº 1 al. b), passou a ser de quinze anos (al. a) do mesmo preceito) por força da redação que lhe foi introduzida pela Lei nº 30/2015 de 22.04. Assim, tendo em conta que o regime anterior se mostra mais favorável ao arguido, teremos de considerar o prazo de prescrição de dez anos – artº 118º nº 1 al. b) do C. Penal. Também o crime de prevaricação punível com pena de dois a oito anos de prisão prescreve no prazo de dez anos – artº 118º nº 1 al. b) do C.Penal.
Esse prazo, porém, não corre continuamente, pois, como se sabe, há causas de suspensão e causas interruptivas, previstas nos artigos 120.º e 121.º do Código Penal.
Quando ocorre uma causa de suspensão, o período de tempo decorrido até à sua verificação conta para o cômputo do prazo de prescrição, adicionando-se ao tempo decorrido após a cessação da causa de suspensão.
Já quando ocorre uma causa de interrupção, o tempo decorrido antes da sua verificação fica sem efeito, é inutilizado e começa a correr novo prazo de prescrição por inteiro depois de cada interrupção (art.º 121.º, nº 2, do Cód. Penal).
No caso que se aprecia, o procedimento criminal iniciou-se e continuou sem qualquer obstáculo até que o arguido B… foi como tal constituído em 18.12.2017.
Esse ato (constituição de arguido) é causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal, pelo que, nessa data, o prazo de prescrição voltou a correr por inteiro (art.º 121.º, n.º 1, al. a), do Cód. Penal).
Entretanto, a acusação terá sido notificada aos arguidos e também este ato constitui causa de interrupção da prescrição do procedimento criminal (al. b) do mesmo preceito.
Mas a lei impõe um limite máximo para o alargamento do prazo da prescrição em resultado da verificação de causa interruptiva: o prazo normal é acrescido de metade (art.º 121.º, n.º 3. do Cód. Penal), ressalvando-se o prazo de suspensão da prescrição do procedimento criminal.
Ora, a notificação da acusação, além de causa de interrupção, tem efeito suspensivo da prescrição (art.º 120.º, n.º 1, al. b), do Cód. Penal).
Mas também aqui a lei impõe um limite máximo para o alargamento do prazo da prescrição: a suspensão não pode ir além de três anos (art.º 120.º, n.º 2).
Significa tudo isto que, no caso, ao prazo normal de 10 anos acrescem 5 anos havendo que descontar o período de 3 anos de suspensão, o que perfaz o prazo máximo de dezoito anos contados desde o dia da prática do último ato.
Daqui decorre que, tendo como referência o termo inicial de 27.02.2008, aquele prazo máximo só se esgotará em 27.02.2026.
Conclui-se assim que esta causa de extinção do procedimento criminal (por não verificada) não obstava à aplicação da medida de garantia patrimonial em referência.
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E) Do não preenchimento do ilícito penal de prevaricação, que sustentou o pedido de arresto e da inexistência de aparência do direito para o decretamento da providência:
Alega a recorrente que o arresto não podia ter sido decretado em virtude de:
- a quantia entregue ao arguido B… resultar de um mútuo nesse valor por parte da recorrente L… e que este já terá devolvido à recorrente;
- à data em que foi decretado o arresto, o imóvel construído pela recorrente já se encontra em conformidade com o PDM desde 12.02.2015, retroagindo os seus efeitos à data da construção do edifício, pelo que não existia qualquer ilegalidade ou vantagem patrimonial pela recorrente;
- o Mº Público carece de legitimidade para, em representação do Município de …, reclamar o pagamento de taxas devidas, o mesmo acontecendo relativamente à ARS.
Nos termos do artº 372º do C.P.Civil - aplicável ao arresto por força do disposto no artº 376º nº 1 do mesmo diploma -, “quando o requerido não tiver sido ouvido antes do decretamento da providência, é-lhe lícito, em alternativa, na sequência da notificação prevista no nº 6 do artº 366º:
a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;
b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinem a sua redução, aplicando-se com as adaptações necessárias, o disposto nos artºs. 367º e 368º.”
São, assim, diferentes os escopos específicos da interposição de recurso ou da dedução de oposição, pois, com o primeiro pretender-se-á pôr em causa a legalidade da decisão por falta dos necessários requisitos de Direito (quando, fundando-se em razões puramente jurídicas, o recorrente entenda que, face aos elementos apurados, a providência não devia ter sido deferida), enquanto com o segundo se pretenderá invalidar os fundamentos de facto com base nos quais foi determinado o decretamento da providência ou obter a redução da providência aos justos limites (alegando factos ou produzindo meios de prova não considerados antes pelo tribunal).
No caso em apreço, com a interposição do recurso, pretende a recorrente demonstrar que não existem factos que justifiquem a existência do direito que fundou a decisão de decretamento do arresto, alegando, porém, factos novos que não foram tidos em conta pelo tribunal, nomeadamente o contrato de mútuo que alegadamente celebrou com o arguido B… e que nem sequer por este havia sido aventado no inquérito. Ora, assim sendo, deveria ter lançado mão da dedução de oposição, uma vez que tal não constitui meio de defesa idónea em sede de recurso, antes constituindo fundamento para a oposição.
Pelo exposto, os fundamentos invocados estão subtraídos à possibilidade de conhecimento por este tribunal de recurso.
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F) Da verificação do justo receio de perda da garantia patrimonial:
Sustenta a recorrente que o Sr. Juiz recorrido concluiu que a recorrente pode dissipar os seus bens, sem indicar um único facto que suporte tal conclusão.
Antes de mais, importa distinguir o arresto preventivo previsto no artº 228.º do C.P.Penal, enquanto mecanismo de garantia patrimonial que opera no âmbito da denominada perda clássica, do arresto previsto pela Lei nº 5/2002, de 11.01, aplicável no domínio da perda alargada e que se destina a garantir a preservação do valor a declarar perdido a favor do Estado da vantagem presumida em que se traduz o património incongruente do agente.
“O arresto com vista à perda alargada é decretado pelo juiz se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1.º da Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro. Para além disso, embora a lei não o refira diretamente, parece-nos apodíctico que devem também ser exigidos fortes indícios da desconformidade do património do arguido.
À semelhança das restantes medidas de garantia patrimonial, também o arresto para garantia da perda alargada está sujeito aos princípios da necessidade, da adequação, subsidiariedade, precariedade e proporcionalidade. O único requisito que o Ministério Público está dispensado de demonstrar é um periculum in mora substancial”[7].
No caso em apreço, o arresto não foi decretado ao abrigo da Lei nº 5/2002, de 11.01, pese embora um dos crimes imputados ao arguido B… (crime de tráfico de influência) se inclua nos crimes do catálogo consagrado no artº 1º da citada Lei.
Tendo o arresto sido requerido e decretado ao abrigo do disposto no artº 228º do Cód. Proc. Penal, importa analisar se estão preenchidos, ou não, os requisitos previstos neste preceito.
Dispõe o artº 228º do C.P.Penal, sob a epígrafe “arresto preventivo”:
“1 – Para garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial.
2 - O arresto preventivo referido no número anterior pode ser decretado mesmo em relação a comerciante.
3 - A oposição ao despacho que tiver decretado arresto não possui efeito suspensivo.
4 - Em caso de controvérsia sobre a propriedade dos bens arrestados, pode o juiz remeter a decisão para tribunal civil, mantendo-se entretanto o arresto decretado.
5 - O arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta.
6 - Decretado o arresto, é promovido o respectivo registo nos casos e nos termos previstos na legislação registal aplicável, promovendo-se o subsequente cancelamento do mesmo quando sobrevier a extinção da medida.”
O artº 227º nº 1 do C.P.Penal [caução económica], para que nos remete o citado nº 1 do artº 228º, estabelece: “O Ministério Público requer prestação de caução económica quando haja fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias:
a) Do pagamento da pena pecuniária, das custas do processo ou de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime;
b) Da perda dos instrumentos, produtos ou vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente.”
A jurisprudência que reputamos maioritária tem entendido a remissão do artº 228º do C.P.Penal para as normas do C.P.Civil como “genérica” pois o legislador enunciou as exceções que considerou dever fazer em relação ao regime do C.P.Civil, como é o caso da situação a que se refere a parte final do nº 1 do artº 228º do C.P.Penal, em que se presume que a não prestação da caução, só por si, integra e consubstancia o “…fundado receio de perda da garantia patrimonial…”, ou a situação expressamente prevista nº 2, com a admissibilidade do arresto preventivo em relação ao comerciante.
Neste sentido se pronunciou o Ac. do T.C. n.º724/2014, de 28/10/2014, referindo que “(…) os requisitos de que depende o decretamento do arresto, também em processo penal por força da remissão consignada no artº 228º, nº 1, do CPP, respeitam tão só à aparência do direito de crédito e ao perigo da dissipação do património (cfr. artº 391º e 392º, do CPC)”,
Os fundamentos do arresto são, pois, os do artº 391º nº 1 do C.P.Civil, de acordo com o qual “o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor.” E cabe ao requerente alegar e provar factos que tornem provável a existência do crédito e justificam o receio invocado, relacionando os bens que devem ser apreendidos, nos termos do art. 392º, n.º 1, do C.P.Civil.
O arresto é um procedimento cautelar que visa combater o “periculum in mora”, isto é, o prejuízo decorrente da demora do processo judicial normal e traduz-se numa apreensão judicial de bem tendente à garantia de um crédito, colocando-o na indisponibilidade do seu titular.
Por isso, o decretamento do arresto preventivo depende da probabilidade da existência do crédito e do justo receio de que o devedor inutilize, oculte, se desfaça dos seus bens, que em princípio integram a garantia do credor.
Constituem, assim, requisitos para o pedido e decretamento do arresto:
- a probabilidade de existência de um crédito do requerente;
- o justo receio ou perigo de insatisfação desse direito de crédito,
No caso vertente, quanto à existência do direito de crédito, atentos os factos alegados pelo Ministério Público, concretamente por referência para a acusação, está demonstrada a probabilidade da existência de um crédito por parte do Estado em relação aos arguidos e aos responsáveis civis, entre os quais a recorrente, traduzido nas vantagens obtidas por aqueles com a alegada prática dos crimes pelos quais estão acusados.
Assim, está igualmente indiciado que o Estado é lesado, no montante alegado pelo Ministério Público, na medida em que as referidas vantagens poderão vir a ser declaradas perdidas para o Estado.
Analisemos, agora, a existência de fundado receio de perda da garantia patrimonial:
Para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial é necessário que se aleguem e provem factos concretos, objetivos, que demonstrem que o alegado receio é objetivamente fundado.
O justo receio de perda da garantia patrimonial verifica-se sempre que o devedor tenha o propósito de adotar ou adote uma conduta, indiciada por factos concretos, relativamente ao seu património suscetível de fazer temer pela sua solvabilidade do devedor para satisfazer o direito do credor.
Como defende Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, vol. II, 7ª ed., pág. 465, nota 1, “não basta a alegação de meras convicções, desconfianças, suspeições de carácter subjetivo. É preciso que haja razões objetivas, convincentes, capazes de explicar a pretensão drástica do requerente, que vai subtrair os bens ao poder de livre disposição do seu titular”.
Como decidiu o Ac. da R.Coimbra de 30/4/2002, proc. nº 1448/02, in www.dgsi.pt, “O justo receio de perda da garantia patrimonial do credor tem que assentar em factos reais, em índices apreensíveis pelo comum das pessoas, que mostrem que o alegado receio é objetivamente fundado. Para que seja decretado o arresto é indispensável que o devedor tenha praticado atos ou assumido atitudes que inculquem a suspeita de que ele pretende subtrair os seus bens à ação dos credores.”
Ou ainda como se lê no Ac.R.Lisboa de 4/11/2009, processo n.º3944/08.8TDLSB-B.L1-5, “(…) para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial a que aludem os art. 619º nº 1 do C.Cv. e 406º nº 1 do C.P.C. (atual art.391.º do C.P.Civil) é necessário que se alegue e prove que o devedor já praticou ou se prepara para praticar atos de alienação ou oneração, relativamente ao seu património que, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita de que se prepara para subtrair os seus bens à ação dos credores”.
Como, impressivamente, se refere no Ac. deste Tribunal da Rel. Porto de 25.11.2010, Proc. nº 93/10.2TBMAI.P1, disponível in www.dgsi,pt “(...) Não são as convicções do credor, nem os seus próprios e meros receios ou as conjecturas que porventura formule, nem os demais juízos subjetivos que sustente, nem a mera recusa de cumprimento da obrigação, nem mesmo os juízos subjetivos do Juiz que têm virtualidade para sustentar a existência do justo receio de perda da garantia patrimonial, mas antes a alegação e prova, ainda que indiciária, de factos ou de circunstâncias, que, de acordo com as regras da experiência, façam antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do provável crédito já constituído.”
Com efeito, como bem se refere no Ac. deste Tribunal da Relação do Porto de 01.04.2020, Proc. nº 328/14.2TELSB-C.P1, Des. Maria Luísa Arantes, disponível in www.dgsi.pt, “embora não seja necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efetiva mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda virá a ocorrer, não basta qualquer receio, sendo necessário, no dizer da própria lei, que o receio seja justificado. Significa isto que o requerente tem de alegar e provar factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjetivo, fundado em simples conjecturas, antes devendo basear-se “...em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautelar imediata como factor potenciador da eficácia da ação declarativa ou executiva.”
Revertendo ao caso em apreço, não resulta que o requerente do arresto tenha alegado e provado factos positivos e concretos que, apreciados pelo tribunal no seu verdadeiro valor objetivo, façam admitir como razoável a ameaça de perda próxima da garantia patrimonial do crédito, que o receio invocado é justificado e que a providência é necessária.
Segundo a decisão recorrida, que nesse aspeto remete para os fundamentos constantes do requerimento de arresto, «Por conseguinte, é lícito concluir, com o requerente, que existem indícios consistentes em como os requeridos estão em condições de dissipar o património necessário e imprescindível à garantia da satisfação do crédito do requerente, existindo, de facto, o perigo de os requeridos virem a delapidar o património ainda visível e existente, impedindo e frustrando a legítima pretensão do requerente. Assim, é possível extrair a conclusão que existe efetivamente perigo concreto de perda de garantia patrimonial do crédito do requerente, uma vez que, no caso de condenação dos requeridos e sem o decretamento do presente arresto preventivo ficará impossibilitado de executar quaisquer bens dos requeridos, uma vez que os requeridos possam diminuir o seu acervo patrimonial ou atuar em detrimento dele».
No requerimento de arresto, alegara o Mº Público: «os arguidos e a sociedade demandada L…, SA. e M…, despertos pela acusação supra e pelo valor da perda de vantagens deduzida, poderiam facilmente dissipar o seu património, impedindo o confisco de bens provenientes da sua prática criminosa».
Não é alegado qualquer facto concreto suscetível de permitir extrair a conclusão de que a recorrente praticou ou se preparava para praticar atos com vista ao extravio ou delapidação do seu património de forma a subtrair os seus bens, designadamente o imóvel cujo arresto se requereu, à ação do credor Estado. O que se alega não passa de afirmações conclusivas, meras conjeturas, sem qualquer alicerce factual.
Aliás, decorrendo o presente inquérito já desde o ano de 2014, tendo sido inquiridos os arguidos e produzidas as demais provas, sendo há muito a recorrente sabedora da investigação em curso, poderia, se fosse essa a sua intenção, ter celebrado um qualquer contrato promessa de venda do seu prédio urbano ou tê-lo onerado com uma hipoteca, de forma a tornar difícil ou mesmo impossível a cobrança do crédito que o Mº Público reclama. Porém, nada disso lhe é imputado.
Conclui-se, assim, que não se mostra preenchido o requisito do justo receio de perda da garantia patrimonial, imprescindível para o decretamento do arresto preventivo requerido pelo Mº Público, impondo-se por isso o levantamento do arresto relativamente à recorrente.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela requerida L…, SA. e, em consequência, ordenam o levantamento do arresto decretado relativamente ao bem imóvel da recorrente – prédio urbano denominado Hospital N…, sito na Rua …, nº 243/273, da União de Freguesias de … e …, Concelho de Valongo, inscrito na matriz sob o artº 9199U e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 3220/20031008, freguesia de ….
Sem custas.
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Porto, 25 de novembro de 2020
(Elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários)
Eduarda Lobo
Castelo Rio
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[1] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 2ª ed., pág. 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[2] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[3] Cfr., neste sentido, Ac.RL de 03.05.2012, CJ, XXXVII, T.III, pág. 147.
[4] Relatado pela Des. Maria Leonor Esteves e disponível em www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, vol. II, pg. 507 e ss.; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pg. 183.
[6] Neste sentido, cfr. a título meramente exemplificativo, embora no âmbito do Proc. Civil, os acórdãos da Relação de Lisboa, de 2007.06.21, José Eduardo Sapateiro, www.dgsi.pt.jtrl, proc. 3609/2007; e da Relação de Coimbra, de 2007.07.10, Ferreira Barros, www.dgsi.pt.jtrc, proc. 270/04.5TBVNO-A.C1.
[7] Cfr. João Conde Correia, Da proibição do confisco à perda alargada, INCM, pág.186/187.