Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2189/20.3T8AVR-A.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: JOÃO VENADE
Descritores: DIVÓRCIO SEM O CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
DIVÓRCIO POR MÚTUO CONSENTIMENTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ANIMAIS
REGIME PROVISÓRIO
Nº do Documento: RP202104292189/20.3T8AVR-A.P1
Data do Acordão: 04/29/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I - A partir do momento em que conste no processo que se iniciou como divórcio sem consentimento, a declaração inequívoca de que ambos os cônjuges pretendem a dissolução do casamento, os autos passam a seguir como processo de divórcio por mútuo consentimento, tenha ou não sido obtido acordo sobre aquelas questões vertidas no n.º 1, do artigo 1775.º, do C. C..
II - Não manifestando qualquer dos cônjuges vontade efetiva em residir na casa de morada de família, não estando indiciada necessidade de os mesmos aí morarem, não há motivo para se fixar um regime provisório quanto à atribuição de casa de morada de família.
III - Tendo sido provisoriamente decidido atribuir a confiança dos animais de companhia a um dos cônjuges, é equitativo determinar que as despesas com o seu sustento e saúde sejam repartidas por ambos os cônjuges.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo n.º 2189/20.3T8AVR-A.P1.
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1). Relatório.
B…, residente em Albergaria-a-Velha, propôs contra
C…, residente na Rua …, Albergaria-a-Velha,
ação de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, alegando que:
. casaram um com o outro em 29/12/1985 sem convenção antenupcial;
. do casamento não existem filhos menores;
. há mais de dois anos que não existe vida comum entre eles tendo a Autora saído de casa em 09/01/2020, sem ter o propósito de restabelecer a vida em comum.
Pede o recebimento liminar da ação e a marcação da tentativa de conciliação a que se refere o artigo 931.º, n.º 1, do C. P. C., sendo, a final, decretado o divórcio se aquela se frustrar.
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Em 01/09/2020, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«O tribunal é material e territorialmente competente e não há questões prévias a conhecer.
Atentas as limitações decorrentes do COVID19 não se designa para já a tentativa de conciliação a que se refere o art. 931º do CPCivil.
Por agora, cite o R para os termos dos autos e para informar se pretende ou pelo menos aceita divorciar-se, caso em que os autos serão convolados para divórcio por mútuo consentimento, consignando-se que, não sendo o caso, os autos prosseguirão, ainda que sem acordo, como divórcio litigioso, sem prejuízo de ser oportunamente tentada a reconciliação.».
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Por requerimento de 15/09/2020, subscrito pelo Réu e seu mandatário, aquele declarou que pretende e aceita divorciar-se, sem prejuízo do preceituado no artigo 1775.º, alíneas c), d) e f) para que o divórcio seja convolado em mútuo consentimento.
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Foi designada tentativa de conciliação para 13/10/2020.
Nessa diligência, verificou-se que:
. estavam presentes a mandatária da Autora, com procuração com poderes especiais para representar Autora, o Réu e o seu mandatário;
. o Réu reafirmou a sua declaração de que quer e aceita divorciar-se;
. a mandatária da Autora reafirmou a vontade desta em se divorciar;
. chegou-se a acordo em converter o presente divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento, nos seguintes termos:
. não há menores;
. os cônjuges prescindem reciprocamente de alimentos;
. o direito a habitar a casa que foi de morada de família é atribuído ao Réu até à partilha, que suportará as respetivas despesas;
. existem dois animais de estimação, um cão e um gato, sobre os quais ainda nada decidiram, mas que se encontram por agora com o Réu, aceitando este ficar provisoriamente com os mesmos;
. quanto à relação de bens comuns, pelos mandatários foi requerido um prazo não inferior a 15 dias para a juntar aos autos;
Mais se verificou que:
. a mandatária da Autora disse que esta se encontra a pagar uma renda de casa pelo que pretendia uma compensação/renda pelo facto do Réu estar a habitar a casa de morada de família.
. De seguida, foi proferido o seguinte despacho:
«Em face das declarações prestadas, convolo o presente divórcio sem consentimento do outro cônjuge em divórcio por mútuo consentimento.
Deferido o requerido prazo de 15 dias, para que as partes juntem aos autos a Relação de Bens, bem como sobre quem fica com os animais de estimação e ainda quanto à compensação/renda pelo uso da casa de morada de família a prestar pelo Réu à Autora.
Notifique.».
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Em 29/10/2020, a Autora apresenta requerimento onde menciona que:
. há impossibilidade de chegar a acordo quanto ao destino dos animais de companhia e compensação/renda pelo uso da casa de morada de família a prestar pelo Réu e quanto à relação de bens;
. há dois animais de estimação, um cão e um gato;
. entende a Autora que cada um dos cônjuges deveria ficar com um dos animais, propondo-se ficar com o gato, cada um dos cônjuges ficando responsável pelas despesas do animal que lhe fica atribuído;
. a compensação/renda pelo uso da casa de morada de família deve ser fixada em 350 EUR/mês;
. está a diligenciar pela obtenção dos documentos necessários para a relação de bens, pedindo 20 dias para o efeito.
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Em 11/11/2020, o Réu responde ao requerimento que antecede nos termos que se resumem:
. os animais devem ficar juntos, devendo ficar consigo, com o pagamento de 15 EUR/mês pela Autora;
. não está na disposição de pagar qualquer quantia pelo uso da casa de morada de família onde não reside, só aí se deslocando para dar de comer aos animais;
. caso tenha de pagar alguma quantia, renuncia ao seu uso, não tendo capacidade económica para pagar qualquer quantia, devendo ser atribuída em comum a ambos os cônjuges, até à partilha.
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Em 25/01/2021 a Autora juntou relação provisória de bens.
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Em 27/01/2021, o tribunal profere o seguinte despacho:
«Notifique o R para se pronunciar expressamente quanto à proposta apresentada pela A. relativamente aos animais de estimação e contrapartida pela utilização da casa de morada de família, consignando-se que se nada disser os autos prosseguirão como divórcio sem consentimento.».
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O Réu apresenta dois requerimentos em 05/02/2021:
. um, onde impugna a relação de bens, declarando não a aceitar;
. outro, onde menciona que, sem prejuízo do que já referiu em 11/11/2020, menciona que não aceita a proposta apresentada pela Autora quanto aos animais de estimação e pagamento de renda/compensação pelo uso da casa de morada de família, devendo os autos prosseguir como divórcio sem consentimento.
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Em 09/02/2021 (despacho recorrido), o tribunal profere a seguinte decisão:
«Não obstante os autos se terem iniciado como divórcio litigioso, sempre que seja possível obter acordo das partes quanto à dissolução do casamento pelo divórcio estes devem ser convolados para divórcio por mútuo consentimento, sendo decretado o divórcio quando for possível obter acordo relativamente às matérias em que tal é exigível previstas no artigo 1775º do CCivil – alimentos recíprocos, destino da casa de morada de família, regulação das responsabilidades parentais de filhos menores e destino de animais de companhia - e junta (já não necessariamente com acordo) uma (ou duas em caso de divergência) relação de bens, pois que não exigindo a lei (como se viu) acordo quanto à relação dos bens comuns (cuja junção é meramente indicativa) as questões atinentes às divergências quanto a bens comuns são estranhas ao objecto dos autos de divórcio, devendo ser dirimidas em sede de inventário.
Assim, havendo acordo quanto ao divórcio mas não existindo acordo quanto às referidas matérias elencadas no art. 1775º nº1 c), d) e f), ou relativamente a alguma delas, os autos prosseguem mas apenas para decisão das questões em causa, após a competente (se necessária) produção de prova – ars. 931º nº4 do CPC e 1778º-A nº3, 4 e 5 (ex vi art. 1779 nº2 do CCivil).
No caso dos autos, constato que na tentativa de conciliação já realizada, resulta dos autos que A e R pretendem afinal ambos divorciar-se pelo que se determinou já por despacho subsequente à referida diligência a convolação dos autos para divórcio por mútuo consentimento tendo-se homologado acordo quanto a alimentos recíprocos, não havendo filhos menores do casal.
Assim sendo os autos prosseguirão agora mas apenas para julgamento das matérias em que a lei exige acordo não alcançado nos autos – as referentes ao destino da casa de morada de família e animais de companhia, devendo as partes indicar, de entre a prova antes indicada, aquela que versará sobre as matérias em causa e que será, por isso, a única a produzir.
De todo o modo, mesmo quanto a estas matérias as partes demonstraram na tentativa de conciliação aceitar (ao menos provisoriamente) que, por um lado ficasse o R a utilizar a casa de morada de família e que ficasse também o R com os animais de companhia. Impõe-se quanto a estas matérias fixar regime provisório de modo a prevenir conflitos desnecessários entre as partes e assegurar o bem estar dos animais em causa.
Assim sendo, ao abrigo do disposto no artigo 931º nº7 do CPC (por interpretação extensiva quanto aos animais de companhia), considerando a posição expressa pelas partes decide-se que provisoriamente:
- a casa de morada de família fica atribuída ao R que pagará à A uma contrapartida a fixar.
Visto que a A indicou um valor mas o R não o fez entende-se ser de fixar a mesma apenas após dada a possibilidade ao R para expressamente se pronunciar no prazo de 5 dias.
- atento o decidido quanto à casa de morada de família e atendendo a que os animais em causa (um cão e um gato) terão ali as suas «referências territoriais», os animais de estimação ficam com o R que assegurará a respectiva subsistência e cuidados de saúde, sem prejuízo de, caso entenda ser excessivo, poder entregar à A o gato para que ela deste se ocupe.
Notifique as partes do presente despacho sendo ambas para no prazo de 10 dias (prazo suspenso até cessar o regime decorrente da Lei nº4º-B/2021) indicarem prova quanto às matérias em causa – casa de morada de família e animais de companhia – e notifique o R ainda para em 5 dias (prazo não suspenso atenta a matéria cautelar em causa) se pronunciar expressamente quanto ao valor da contrapartida a fixar pela utilização da casa de morada de família.
A final, decididas em definitivo as questões ainda pendentes de julgamento referentes a animais de companhia e utilização provisória da casa de morada de família, será decretado o divórcio.» - nossos sublinhados -.
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Inconformado, interpõe o Autor recurso formulando as seguintes conclusões:
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Termina pedindo que:
. seja o despacho recorrido substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos como divórcio sem consentimento do outro cônjuge, ordenando-se a notificação do apelante para contestar querendo;
. se assim não se entender, seja o mesmo despacho recorrido revogado e substituído por outro que ordene a entrega da casa de morada de família a ambos as partes até à partilha;
. que não se ordene a notificação da A. apelada para juntar prova;
. seja considerado nulo e de nenhum efeito o despacho na parte que decide que o apelante, pagará à A. (ora apelada) uma contrapartida a fixar por manifesta falta de fundamentação, de facto e de direito (conclusões 36ª a 67);
. o despacho seja substituído por outro que, entregando os animais domésticos ao R. apelante, condene a A. apelada a pagar metade das despesas de subsistência e de saúde contra entrega de fatura, no prazo de 05 dias, ou outro que o Tribunal fixe, após notificação por aquele a esta para o efeito.».
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Não houve contra-alegações.
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As questões a decidir são:
. necessidade de o processo ter de seguir como divórcio sem consentimento;
. alteração do regime provisório fixado quanto a uso da casa de morada de família e confiança de animais de companhia.
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2). Fundamentação.
2.1). De facto.
Dá-se por reproduzido o mencionado no relatório que antecede.
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2.2). Do mérito do recurso.
A). Da revogação do despacho que ordenou o prosseguimento dos autos como divórcio sem consentimento.
Os autos principais iniciaram-se como um processo de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, regulado no artigo 1779.º, do C. C. e nos artigos 931.º e 932.º, do C. P. C..
Está em causa um pedido de dissolução do casamento que se pode sustentar nos motivos exarados no artigo 1781.º, do C. C., entre os quais e atendendo ao caso concreto, a circunstância de ocorrerem «quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.» - alínea d), do mesmo artigo -.
Conforme estabelece o artigo 931.º, n.º 3, do C. P. C., na tentativa de conciliação ou em qualquer altura deste processo de divórcio sem consentimento, as partes podem acordar no divórcio por mútuo consentimento quando se verifiquem os necessários pressupostos.
E estes pressupostos são os elencados no artigo 1775.º, n.º 1, do C. C. (divórcio por mútuo consentimento intentado na conservatória de registo civil), a saber:
. apresentação de relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores, ou, caso os cônjuges optem por proceder à partilha daqueles bens nos termos dos artigos 272.º-A a 272.º-C do Decreto-Lei n.º 324/2007, de 28 de Setembro, acordo sobre a partilha ou pedido de elaboração do mesmo;
. junção de certidão da escritura da convenção antenupcial, caso tenha sido celebrada;
. junção de certidão da sentença judicial que tiver regulado o exercício das responsabilidades parentais ou
. junção de acordo sobre o exercício das responsabilidades parentais quando existam filhos menores e não tenha previamente havido regulação judicial;
. acordo sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles careça;
. acordo sobre o destino da casa de morada de família;
. acordo sobre o destino dos animais de companhia, caso existam.
Há ainda que referir que é possível intentar uma ação de divórcio por mútuo consentimento em tribunal se, «neste caso, o casal não tiver conseguido acordo sobre algum dos assuntos referidos no n.º 1 do artigo 1775.º» - artigo 1773.º, n.º 1, parte final, do C. C. -.
E por isso é que no artigo 1778.º-A, do C. C. se estipula, sob a epígrafe: Requerimento, instrução e decisão do processo no tribunal:
«1 - O requerimento de divórcio é apresentado no tribunal, se os cônjuges não o acompanharem de algum dos acordos previstos no n.º 1 do artigo 1775.º.
2 - Recebido o requerimento, o juiz aprecia os acordos que os cônjuges tiverem apresentado, convidando-os a alterá-los se esses acordos não acautelarem os interesses de algum deles ou dos filhos.
3 - O juiz fixa as consequências do divórcio nas questões referidas no n.º 1 do artigo 1775.º sobre que os cônjuges não tenham apresentado acordo, como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges.
4 - Tanto para a apreciação referida no n.º 2 como para fixar as consequências do divórcio, o juiz pode determinar a prática de atos e a produção da prova eventualmente necessária.
5 - O divórcio é decretado em seguida, procedendo-se ao correspondente registo.
6 - Na determinação das consequências do divórcio, o juiz deve sempre não só promover mas também tomar em conta o acordo dos cônjuges.».
Deste modo, no que respeita a um processo de divórcio por mútuo consentimento, temos três possibilidades:
1). a ação dá entrada na conservatória de registo civil por as partes disporem de toda a documentação necessária e juntarem os acordos necessários; ou
2). dá entrada no tribunal como processo de divórcio por mútuo consentimento por as partes não terem conseguido obter acordo nas questões que são exigidas para se intentar esse mesmo tipo de ação na conservatória de registo civil; ou ainda
3). a ação dá entrada em tribunal como ação de divórcio sem consentimento e, no seu decurso, é convertida em divórcio por mútuo consentimento.
E nesta última situação:
3.1). As partes obtêm acordo em todas as questões/acordos complementares;
3.2). Esse acordo não é obtido.
Ora, a partir do momento em que conste no processo, de algum modo, a declaração inequívoca de que ambos os cônjuges pretendem a dissolução do casamento, se o processo se tiver iniciado como divórcio sem consentimento, passa a seguir como um processo de divórcio por mútuo consentimento, tenha ou não sido obtido acordo sobre aquelas questões vertidas no n.º 1, do artigo 1775.º, do C. C..
Atualmente já não está em causa, no quadro legislativo, um «divórcio-sanção», arredando a ação de divórcio a procura de culpa dos cônjuges.
O que sucede é que, não havendo um acordo firmado entre o casal para cessar o casamento, há que intentar a ação de divórcio sem consentimento nos termos do referido artigo 1779.º, do C. C..
Porém, se o(a) autor(a) pede o divórcio e o(a) ré(u) mostra que está de acordo com o divórcio, está a assentir que o casamento deve findar.
Se ambos os cônjuges pretendem que o casamento cesse, então atualmente já não há, em regra, motivo para se realizar um julgamento para decidir se o casamento se deve ou não manter pois ambos pretendem o fim do casamento.
Se antes da Lei nº. 61/2008, de 31/10, com entrada em vigor em 01/12/2008, se tinha de realizar julgamento para valorar os factos para determinação da culpa na ocorrência do divórcio, atualmente tal não tem de suceder (Tomé Ramião, O Divórcio e Questões Conexas, página 78).
Deste modo, estando as partes de acordo em que o casamento deve cessar, o processo não deve prosseguir como divórcio sem consentimento pois este consentimento existe; o que pode suceder é que ainda falte o preenchimento dos pressupostos necessários para que possa ser decretado o divórcio, mormente e in casu, falta a prolação de decisão sobre o uso da casa de morada de família e destino dos animais de companhia.
Ora, na situação em análise, aquele consentimento no divórcio existe e foi expresso em dois momentos:
. requerimento do recorrente de 15/09/2020 – declara aceitar divorciar-se, sem prejuízo do disposto no citado artigo 1775.º, alíneas c), d) e f);
. em sede de tentativa de conciliação do dia 13/10/2020, onde consta que o Réu reafirmou a sua declaração de que quer e aceita divorciar-se, constando ainda em ata os termos desse acordo (algo que será infra analisado) e o despacho a converter a ação em divórcio por mútuo consentimento.
Assim sendo, pensamos que não há dúvida que os autos, em 13/10/2020, foram corretamente convertidos para aquele divórcio consensual.
É certo que, depois de serem trazidos aos autos pelas partes alguns motivos de discórdia quanto ao uso da casa de morada de família (com ou sem pagamento de compensação) e quanto ao destino dos animais, o tribunal, em 27/01/2021, profere um despacho em que, no fundo, menciona que se o Réu não se pronunciasse sobre a proposta da Autora sobre esses dois pontos, o processo seguia como divórcio sem consentimento.
Mas, na nossa perspetiva, tratou-se de um erro de perceção do tribunal a colocação dessa possibilidade de assim se vir a decidir pois o processo já tinha sido convertido em divórcio por mútuo acordo e não havia qualquer motivo para se vir a reverter tal decisão, se assim fosse possível decidir.
E tanto não houve que o tribunal, por despacho de 09/02/2021 (despacho recorrido), explica o anterior percurso dos autos e como se irão desenrolar, nunca hipotisando a passagem a divórcio sem consentimento.
Aquele despacho de 27/01/2021, em que se cominava o prosseguimento dos autos como divórcio sem consentimento, não decidiu que assim ia ser mas que se perspetivava que seria esse o caminho a seguir; mas o tribunal não estava impedido, apesar dessa cominação, de decidir no despacho seguinte noutro sentido, desde que não fosse algo com que a parte não pudesse contar (sob pena de se proferir uma decisão surpresa).
No caso, o Réu já sabia (e a isso deu o seu expresso acordo, além de não ter reagido à decisão de conversão dos autos determinada pelo tribunal em tentativa de conciliação) que os autos iam seguir (como acabaram por seguir) como divórcio consensual; podia o recorrente, eventualmente ao abrigo do princípio da cooperação, ter alertado o tribunal que o processo já tinha sido convertido em divórcio consensual pelo que não poderia prosseguir, de novo, como divórcio sem consentimento.
Não o fez, optando por entender que o tribunal estava vinculado a ter de seguir uma possibilidade que (erradamente) advertiu.
Esse despacho de 27/01/2021 não ocasiona uma situação de caso julgado pois nada foi decidido.
Deste modo, foi correta a decisão do tribunal ao referir em 09/02/2021, no despacho recorrido, que os autos já tinham sido convertidos em divórcio por mútuo consentimento, não havendo qualquer razão para que prossiga agora como divórcio sem consentimento.
Improcede este argumento.
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B). Falta de pronúncia do tribunal quanto à posição do Réu/recorrente sobre o uso da casa de morada de família.
O recorrente alega que o tribunal não se pronunciou sobre a posição (mais atual) que tem sobre o uso daquela casa de morada de família.
Alega-se que, se em tentativa de conciliação, foi acordado que o uso da casa de morada de família lhe fosse atribuída até à partilha, o certo é que com o pedido de pagamento de compensação por esse uso feito pela Autora/recorrida, ainda em sede de tentativa de conciliação, o recorrente acabou por posteriormente manifestar a intenção de nada pagar e, se o tivesse de fazer, renunciava a esse uso.
Assim, pede que se profira outro despacho onde se ordene a entrega da casa de morada de família a ambas as partes até à partilha.
Vejamos.
Em primeiro lugar, tal como o tribunal menciona no despacho recorrido, não houve acordo entre as partes no que respeita ao uso da casa de morada de família. Houve um inicial entendimento de que o uso da casa era atribuído ao recorrente/Réu mas, tendo a recorrida pedido o pagamento de uma quantia por esse uso, não constando qualquer acordo sobre essa matéria entre as partes e negando o recorrente vontade nesse pagamento, então a conclusão a retirar é que não houve entendimento sobre o destino da casa de morada de família.
Se o uso do imóvel tivesse sido atribuído ao Réu até à partilha e tal constituísse o acordo sobre a casa de morada de família e não se suscitasse a questão do pagamento de compensação nos autos, então isso significava que essa compensação não tinha sido pedida e por isso não era devida.
Mencionando-se que há a atribuição daquele uso ao Réu mas pedindo a Autora um pagamento sobre o qual as partes não se entendem, então sobre esta matéria – destino da casa de morada de família - não houve acordo.
E, não havendo, estando-se perante um processo de divórcio por mútuo consentimento, o processo segue para análise dessa questão, como já referimos, nos termos do artigo 1778.º-A, nºs. 3 e 4, do C. C..
E nessa apreciação é que se vai aferir a quem deve ser atribuída, se com atribuição de indicada compensação pelo uso ou não e qual o seu valor; para o poderem fazer, as partes têm a possibilidade de se apresentar os seus argumentos e prova.
Ou seja, não tendo as partes celebrado acordo quanto a esta matéria, o tribunal só tem de se pronunciar neste processo sobre a mesma em duas possíveis situações:
. na decisão que proferir a final, prévia ao decretamento do divórcio;
. em eventual decisão provisória, nos termos do artigo 931.º, n.º 7, do C. P. C..
A primeira ainda não foi proferida; a segunda foi-o e está agora sob recurso, questionando o recorrente que a decisão do tribunal não atentou na sua posição de que não pretende o uso da casa de morada de família se para tal tiver de pagar alguma quantia à Autora/recorrida.[1]
Questiona a decisão entendendo-a nula por não ter conhecido de questão de que devia conhecer – artigo 615.º, n.º 1, d), do C. P. C. -.
Porém, a questão que está em análise é a atribuição de casa de morada de família e essa foi apreciada; o que porventura se pode colocar em causa é que o tribunal não tenha apreciado um dos argumentos do Réu/recorrente para que a decisão fosse proferida noutro sentido: não lhe deve ser imposto qualquer pagamento e, por isso, a casa de morada de família deve ser atribuída aos dois membros do casal.
Daí que não há omissão do tribunal em apreciar o a questão que tinha de apreciar, não ocorrendo a apontada nulidade.
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Mas ainda dentro desta problemática da decisão proferida sobre o destino da casa de morada de família, o tribunal declarou que se impunha fixar um regime provisório quanto a esta matéria de modo a prevenir conflitos desnecessários entre as partes.
Na nossa opinião, questionando o recorrente a decisão tomada em sede provisória, pensamos que podemos concluir que afinal não havia motivo para se fixar um regime provisório sobre o destino da casa de morada de família, ou seja, não havia conveniência em que tal fosse determinado nos termos do artigo 931.º, n.º 7, do C. P. C..
Na realidade, a Autora em momento algum dos autos refere que pretende o uso da casa de morada de família, antes pelo contrário, aceita que seja o Réu a usá-la, recebendo uma quantia por esse facto.
O Réu, suscitando ao menos implicitamente, que aceita ser-lhe atribuído esse uso, no entanto não declara expressamente pretender o uso da casa de morada de família.
Se o pretendesse, afirmá-lo-ia sem fazer depender essa necessidade de ter de pagar algum valor por esse uso, ou seja, se necessitasse de viver naquela casa e quisesse fazê-lo, poderia questionar que tivesse de pagar alguma compensação mas não abdicava do uso.
Ao fazê-lo (renunciando ao uso da casa se tiver de pagar) demonstra que não tem vontade de aí residir. O próprio Réu o admite, mencionando que já se encontra a viver com a sua mãe, que só vai à casa de morada de família alimentar os animais e que até está na disposição de a casa ficar atribuída aos dois ainda cônjuges.
Não só há uma admissão de que não se precisa da casa de morada de família nem aí se vive como ainda há uma pretensão que se ficcione uma atribuição dessa casa ao casal só para não ter de pagar pelo seu uso já que, ambos usando a casa de morada de família ninguém teria de pagar qualquer compensação (sabendo o Réu que a Autora não manifestou qualquer vontade de aí residir, e alegando que a Autora abandonou o lar conjugal e que vive e reside com um companheiro em Ílhavo -artigos 4.º e 5.º, do requerimento de 11/11/2020).
Acresce que essa suposta vivência conjugal é apresentada sem qualquer tipo de concretização sobre como se iria processar essa vivência em comum de um casal desavindo em que um dos seus membros já vive uma outra relação afetiva.
Este tipo de pretensão do Réu e o alheamento da Autora quanto ao uso da casa de morada de família, na nossa opinião, não faz nascer a necessidade de se proferir uma decisão provisória.
Tal decisão provisoria tem na sua base a análise do sacrifício pessoal dos cônjuges em ficarem afastados da casa e aferir quem dela mais necessita, algo que no caso não se revela – nenhuma das partes aparenta ter qualquer sacrifício por não usar a casa, antes pelo contrário, o Réu alega ter um prejuízo tão elevado em usá-la que, se tiver de pagar uma compensação, declara que já vive com a mãe e que só vai à casa de morada de família para alimentar animais.
Deste modo, entendemos que não há necessidade de prolação de decisão provisória sobre a casa de morada de família por ambas as partes não revelarem uma efetiva intenção de a usarem nem necessidade de a habitarem.
Manter a atual decisão seria partir do pressuposto de que o Réu necessita e quer aí viver, podendo chegar-se a final à conclusão que para aí viver teria de pagar uma renda e, automaticamente, o Réu concretizar a sua afirmação que não a usaria, tornando sem sentido aquela decisão provisória que afinal não protegeria nenhum interesse premente dos cônjuges.
A questão será assim decidida a final nos autos principais.
Revoga-se assim a decisão provisória sobre a casa de morada de família.
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C). Determinação do tribunal no sentido das partes serem notificadas para apresentarem prova.
Na decisão recorrida, de 09/02/2021, o tribunal, depois de fixar um regime provisório relativamente à casa de morada de família e destino dos animais de companhia, determinou o prosseguimento dos autos para julgamento dessas duas matérias; determinou ainda que as partes fossem notificadas para em 10 dias indicarem prova quanto a tais questões.
Pensamos que a decisão foi correta.
Como já acima mencionamos, nos termos do artigo 1778.º-A, n.º 4, do C. C., o processo de divórcio por mútuo consentimento segue para o efeito de se determinarem as consequências do divórcio na parte em que não foi atingido acordo.
Menciona-se na parte final do n.º 3 e no referido n.º 4, do mesmo artigo 1778.º-A, do C. C. que:
. as questões são tratadas como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges;
. o juiz pode determinar a prática de atos e a produção da prova eventualmente necessária.
Não encontramos qualquer ilegalidade na decisão de notificar as partes para apresentarem prova.
O referir-se que a fixação da atribuição de casa de morada de família é tratada como se se tratasse de um divórcio sem consentimento, para nós, significa que essa situação é apreciada como um litígio (que é, na realidade) entre os cônjuges, circunscrito a uma determinada questão, no âmbito de um processo que, na essência, é consensual.
Ou seja, num divórcio consensual há, no caso, duas questões, que têm de ser apreciadas como litigiosas, tal como sucede num processo de divórcio sem consentimento e em especial se neste tipo de processo for pedida a atribuição da casa de morada de família.
Note-se que neste tipo de divórcio sem consentimento não se aprecia esta questão da casa de morada de família a não ser que alguma das partes o peça nos termos do artigo 990.º, n.º 1, do C. P. C., pelo que o decidir como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges transporta a ideia de ocorrer uma falta de consenso e a necessidade de se proferir uma decisão que vai suprir a falta de acordo.
E daí que para fixar as consequências do divórcio, o juiz pode determinar a prática de atos e a produção da prova eventualmente necessária (o que mostra a necessidade de decisão) e na determinação das consequências do divórcio, o juiz deve sempre não só promover mas também tomar em conta o acordo dos cônjuges (o que revela que o tribunal só intervém para suprir a falta de acordo) – nºs. 4 e 6, do artigo 1778.º-A, do C. C. -.
Por isso, pensamos que não é necessário que, em divórcio com mútuo consentimento, quando é preciso fixar aquelas consequências, essa apreciação tenha de ser feita por apenso tal como sucede, no caso, em relação ao pedido de atribuição de casa de morada de família previsto no artigo 1793.º, do C. C. e regulado no artigo 990.º, do C. P. C..
Este é um processo específico a ser pedido ou na vigência de um processo de divórcio ou após este ter findado e percebe-se que deva correr por apenso pois:
. se o processo de divórcio está pendente, não convém perturbar o andamento desse processo que só visa dissolver o casamento, enxertando na sua tramitação um incidente;
. se o processo está findo, não faria sentido renascer o processo que já tinha atingido a sua finalidade.
No divórcio com consentimento dos cônjuges que «só» prossegue para fixar aquelas consequências, não há qualquer inconveniente em que no processo, que já só tem como finalidade decidir tais consequências, determinar que as mesmas sejam decididas a título incidental pois no incidente acabam por se ir decidir as únicas questões em falta para depois se poder decretar o divórcio por mútuo acordo.
Daí que foi, para nós, correta a decisão do tribunal em determinar, que as partes indicassem os meios de prova que entendessem para depois, certamente, se atuar em conformidade com o disposto nos artigos 294.º e 295.º, do C. P. C..[2]
Como correta seria também a decisão de as partes serem notificadas para indicarem quais dos meios de prova que já tivessem apresentado inicialmente para uma ação de divórcio sem consentimento é que serviriam de meio probatório para a fixação daquelas consequências.
Sucede que o tribunal não decidiu assim (apesar de o mencionar que o faria) pelo que essa referência acaba por ser inócua, valendo o que foi decidido: as partes foram notificadas para apresentar prova o que, como dissemos, é correto.
Nem há contradição entre se determinar que as partes apresentem prova e antes se referir que deveriam indicar que prova já apresentada queriam produzir no incidente em questão. A decisão teria sempre de ser para as partes apresentarem a prova que entendessem pelo que houve não uma contradição mas antes uma decisão que deu uma maior oportunidade às partes do que porventura o tribunal tenha antes pensado dar.
Se antes refere que as partes iriam indicar que prova apresentada iam produzir, acaba por (corretamente) dar uma maior amplitude, conferindo a possibilidade de apresentarem prova nos autos que antes até poderiam não ter apresentado.
Mais uma vez se refere que aquele primeiro pensamento acaba por ser inócuo, não produzindo qualquer efeito sobre a validade da decisão.
Nada há a alterar assim nesta parte do despacho recorrido.
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D). Da confiança dos animais de companhia.
Nos termos do artigo 1793.º-A, do C. C., os animais de companhia são confiados a um ou a ambos os cônjuges, considerando, nomeadamente, os interesses de cada um dos cônjuges e dos filhos do casal e também o bem-estar do animal.
O tribunal recorrido confiou provisoriamente um cão e um gato ao Réu/recorrente.
Essa decisão provisória, aplicável em situação semelhante à que se adota em relação à decisão provisória quanto à regulação das responsabilidades parentais quanto aos filhos em processo de divórcio (artigo 931.º, n.º 7, do C. P. C.), deve assim também ponderar os interesses dos cônjuges e o bem-estar do animal.[3]
Ora, vivendo os animais em causa juntos e aparentando que assim sucedia antes da separação do casal, afigurando-se existir uma coexistência pacífica e saudável, também pensamos que devem manter-se juntos, não havendo necessidade de lhes causar sofrimento com a sua separação.
Ora, não se opondo o Réu que os animais lhe sejam confiados (cuidando dos mesmos, deslocando-se à casa de morada de família para o efeito como alega) e «só» aceitando a Autora que lhe seja confiado o gato, pensamos que para promover a continuação do bem-estar dos animais, devem assim ser confiados provisoriamente ao Réu.
E concordamos com o recorrente no sentido de que deve haver uma repartição das despesas pelos cônjuges pois tratam-se de dois animais em relação aos quais ambas as partes têm responsabilidade, pelo menos até ser decidida a sua confiança a título definitivo.
Não se nos afigura que atente no bem-estar dos animais o ficarem confiados, em conjunto, ao Réu e se este entender, a qualquer momento, que tal é excessivo, entregar um deles (gato) à Autora/recorrida pois isso implica a separação que pode ser evitada se ambos os cônjuges contribuírem para o seu sustento.
Nada havendo que demonstre que deva existir outro tipo de repartição, por razões de equidade, deve a contribuição ser repartida em partes iguais.
Deste modo, mantém-se a confiança provisória dos animais de companhia na pessoa do Réu/recorrente, devendo a Autora/recorrida suportar metade do valor das despesas do seu sustento e saúde que aquele comprove que teve.
Essa contribuição será paga pela Autora/recorrida em 10 dias após a apresentação do comprovativo por parte do Réu/recorrente.
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3). Decisão.
Pelo exposto, decide-se:
1). Alterar a decisão recorrida nos seguintes termos:
1.1). Revogar a decisão provisória sobre o uso da casa de morada de família.
1.2). Alterar a decisão provisória sobre a confiança dos animais de companhia, determinando que os dois animais fiquem confiados provisoriamente ao Réu, devendo a Autora suportar metade das despesas tidas com o sustento e saúde dos animais, mediante pagamento do respetivo valor, nos dez dias seguintes à entrega de comprovativo da despesa pelo Réu.
Mantém-se a parte restante da decisão recorrida.
Custas do recurso a cargo de recorrente e recorrida, na proporção de 1/3 e 2/3, respetivamente.
Registe e notifique.

Porto. 29 de abril de 2021
João Venade
Paulo Duarte Teixeira
Amaral Ferreira
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[1] Já que alega que não estava a utilizar a referida casa, à qual só ia para dar comer ao cão e ao gato - já que se encontrava a viver, inclusive comer e dormir, em casa da mãe.
[2] Referindo que a questão deve ser tratada como incidente, Ac. da R. G. de 03/05/2018; mencionando que o pode ser tratada como incidente mas que deveria ser como um processo apenso, Ac. da R. P. de 27/03/2014, ambos em www.dgsi.pt
[3] Bem-estar que pode ser definido como o estado de equilíbrio fisiológico e etológico de um animal, atendendo nomeadamente a ser-lhe fornecida água e alimentação adequada, possibilidade de exercício e ter condições para não fugir, além de não lhe causar dor, sofrimento ou angústia – artigos 3.º e 4.º da Convenção Europeia 13/93 para a proteção de animais de companhia (https://gddc.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/instrumentos/dec13-1993.pdf), transporta para o direito interno pelo Decreto-Lei n.º 276/2001, de 17/10, sendo definido bem-estar do animal no artigo 2.º, alínea h).