Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
2410/16.2T8STS.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
SENTENÇA
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RP202101262410/16.2T8STS.P1
Data do Acordão: 01/26/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO
Área Temática: .
Sumário: I – Se a pretensão recursória consiste em conhecer do bem fundado do despacho proferido no decorrer do período de cessão do rendimento disponível, que decidiu que o valor dos subsídios (13º e 14º mês) deve ser entregue à fidúcia, a exegese, em fase de recurso, passa pelo alcance do valor fixado no despacho inicial transitado.
II - As regras gerais sobre a interpretação da declaração negocial são válidas também para a interpretação de uma sentença, valendo a declaração com o sentido que um declaratário normal dela possa deduzir – artº 236º nº1 CCiv.
III – Se o disposto no artº 239º nº3 CIRE faz englobar, no rendimento disponível para os credores, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, para lá de 1 salário mínimo nacional, os subsídios de férias e de Natal, não exceptuados na fixação do rendimento, são rendimentos disponíveis do devedor.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: ● Rec.2410/16.2T8STS.P1. Relator – Vieira e Cunha. Adjuntos – Des. Maria Eiró e Des. João Proença Costa. Decisão recorrida de 28/9/2020.

Acórdão do Tribunal da Relação do Porto

Súmula do Processo
Recurso de apelação interposto na acção com processo especial de Insolvência e incidental para Exoneração do Passivo Restante nº2410/16.2T8STS, do Juízo de Comércio de Santo Tirso.
Apelante/Insolvente – B….
Apelados – Administrador da Insolvência, C… e D…, Limited (credoras).

Nos presentes autos de Insolvência, veio a Insolvente deduzir incidente de exoneração do passivo restante.
Ao abrigo do artigo 238º CIRE foi deferido ao requerido e, nos termos do disposto no artº 239º nº2 CIRE, judicialmente determinado que, durante o período de cessão, o devedor deveria proceder à entrega ao Fiduciário de todos os valores superiores a um salário mínimo mensal.
Em cumprimento do disposto no artº 243º nº3 CIRE, o Administrador da Insolvência veio dizer, em 13/6/2020, que se encontrava em falta a entrega dos recibos (ou comprovativos dos recibos) referentes a Dezembro de 2017, até à data da informação, a declaração anual modelo 3 do IRS, dos anos de 2017 a 2019, bem como as notas de liquidação de IRS dos referidos períodos.
Foi proferido, em 9/7/2020, despacho judicial, do seguinte teor:
“Atendendo a que do relatório apresentado resulta que a insolvente não forneceu ao Sr. Fiduciário informação sobre a sua situação económica, notifique a insolvente para prestar a informação solicitada e comprovar o pagamento devido sob cominação de que a exoneração do passivo restante poderá ser cessada antecipadamente, nos termos do disposto no artigo 243º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Prazo: 10 dias.”
“Notifique nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 243º/3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
“Decorrido o prazo fixado deve o Sr. Fiduciário informar os autos da prestação de informação pela insolvente, pronunciar-se sobre o teor do requerimento de 20.05.2020 e complementar o relatório apresentado.”
Por requerimento nos autos, o Fiduciário confirmou que a devedora procedeu à entrega do montante apurado a título de rendimento indisponível, referente ao ano de 2017, não tendo apresentado os recibos de vencimento desde Fevereiro de 2018.
Mais informou que os documentos apresentados não eram bastantes para apurar o rendimento disponível, desconhecendo-se se a Insolvente recebeu 14 meses de remunerações, ou 12 meses, e quais os valores líquidos, correndo-se ainda o risco de penalizar a devedora, se o rendimento for dividido por 14 meses.
Opôs-se a Insolvente, invocando que o valor do salário mínimo deve ser calculado por 14 vezes, pelo que, a final, nada tinha que ter entregue ao Fiduciário.
Foi então proferido o despacho recorrido, do seguinte teor:

“É dever da devedora fornecer atempadamente todos os documentos solicitados pelo Sr. Fiduciário referentes à sua situação económica.”
“No que se refere ao rendimento indisponível, como resulta do despacho inicial proferido, considera-se o mesmo mensal e reportado a 12 meses, ou seja, os valores recebidos a título de 13º e 14º mês, devem ser tidos como rendimento disponível, e, assim, adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário. Neste sentido, Ac. da Relação do Porto de 15.09.2015 e de 24.03.2020.”
“Pelo exposto, atendendo a que do relatório apresentado resulta que a insolvente não procedeu a pagamento de quantias em dívida à fidúcia nem forneceu todos os documentos solicitados pelo Sr. Fiduciário referentes à sua situação económica, notifique a mesma para, em 1º dias, entregar os documentos solicitados e proceder ao pagamento em falta ou apresentar plano de pagamento em prestações, sob cominação de que a exoneração do passivo restante poderá ser cessada antecipadamente, nos termos do disposto no artigo 243º/1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
“Decorrido o prazo fixado deve o Sr. Fiduciário informar os autos do cumprimento do determinado pela insolvente e complementar o relatório apresentado.”

Conclusões do Recurso de Apelação da Insolvente:
I.O despacho recorrido determinou que o “rendimento indisponível, como resulta do despacho inicial proferido, considera-se o mesmo mensal e reportado a 12 meses, ou seja, os valores recebidos a título de 13º e 14º mês, devem ser tidos como rendimento disponível, e, assim, adstritos ao pagamento dos credores, através da sua entrega ao fiduciário”.
II. Por seu turno, o despacho de deferimento inicial da exoneração referia que “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, determina-se que o rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional será cedido ao Exmo. Administrador de Insolvência que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário.”
III. Fazendo-se referência ao valor duma retribuição mínima garantida, engloba-se a remuneração mínima mensal garantida recebida 14 vezes no ano, ou seja, apuradas as contas anuais, é a insolvente obrigada a entregar à fidúcia tudo o que exceda o valor do salário mínimo mensal - €635,00 – a multiplicar por doze e acrescido dos subsídios.
IV – O rendimento disponível apenas pode ser determinado anualmente, verificando se os rendimentos auferidos pelo insolvente num determinado ano fiscal é superior ao valor do rendimento disponível para um ano.
V – A determinação efetuada pelo Tribunal de primeira instância do que é o valor disponível não especificou qualquer quantia mensal, apenas referindo um vencimento mínimo nacional, conceito que integra as retribuições e subsídios, pelo que, desde início se quis incluir estes montantes.
VI – Ainda que assim não fosse, o valor mínimo necessário ao sustento minimamente digno não deverá ser inferior à remuneração mínima anual, englobando as retribuições mensais e subsídios, pois é esse o valor da remuneração mínima necessária a uma vida condigna, assim se definindo por conjugação dos arts. 263 e 264, n.º 2, do Código do Trabalho com o art. 3.º do DL 158/2006, de 8 de agosto.
VI – Desta feita, deverá o Despacho recorrido ser revogado na parte que refere que o valor dos subsídios (13º. e 14º. mês) deverá ser entregue à fidúcia, substituindo-se por um outro que determine que o valor do rendimento disponível será aferido anualmente e tendo que ser entregue apenas o montante que exceda o salário mínimo anual, integrando o valor das retribuições mensais acrescidas dos subsídios.
VII – A decisão recorrida violou, por erro de interpretação e aplicação, o disposto no artigo dos arts. 263 e 264, n.º 2, do Código do Trabalho, o art. 3.º do DL 158/2006, de 8 de agosto e o art. 239º. do CIRE, devendo ser revogado tendo em conta as conclusões anteriores.

Factos Provados
Encontram-se os factos supra descritos, relativos à tramitação processual e ao teor dos requerimentos e despachos judiciais, designadamente o despacho judicial recorrido.

Fundamentos
A pretensão resultante do presente recurso de apelação consiste em conhecer do bem fundado do despacho recorrido, designadamente face à quantia ainda em dívida, por parte do Insolvente, relativamente ao rendimento indisponível que tinha sido fixado no despacho liminar, e se deverá o despacho recorrido ser revogado na parte que refere que o valor dos subsídios (13º e 14º mês) deve ser entregue à fidúcia (se antes cabe determinar que o valor do rendimento disponível será aferido anualmente, tendo que ser entregue apenas o montante que exceda o salário mínimo anual, integrando o valor das retribuições mensais acrescidas dos subsídios).
Vejamos pois.
I
Comece por se constatar que a diligência que nos é exigida se não situa logo no momento do despacho inicial, ou no recurso desse despacho – portanto, apodicticamente, fixando à partida um rendimento indisponível diverso ou que, como tal, não pode deixar de ser interpretado – como nos Ac.R.P. 22/5/2019, pº 1756/16.4T8STS-D.P1, relatado pela Desª Mª Cecília Agante, e Ac.R.L. 27/2/2018, pº 1809/17.1T8BRR.L1-7, relatado pela Desª Higina Castelo, ambos citados nas doutas alegações de recurso, e isto pese embora as referências incidentais, constantes dos doutos arestos, à “existência condigna do devedor”, acolhida pelo CIRE, ou ao “sustento mínimo do devedor”.
A exegese dos presentes autos radica antes no alcance do valor fixado no despacho anterior, que não na atribuição do próprio valor indisponível.
Nesta matéria, não pode deixar de se levar em linha de conta que as regras gerais sobre a interpretação da declaração negocial são válidas também para a interpretação de uma sentença, valendo a declaração com o sentido que um declaratário normal dela possa deduzir – artº 236º nº1 CCiv.
II
O despacho que deferiu liminarmente a concessão da exoneração do passivo restante decidiu, em substância, que, “nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 239º do CIRE, determina-se que o rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional será cedido ao Exmo. Administrador de Insolvência, que neste ato se nomeia para exercer as funções de fiduciário.”
Do citado artº 239º nº3 al.b)i) CIRE decorre que integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor com exclusão, além do mais, do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional”.
Esta exclusão radica na protecção constitucional da dignidade humana e o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador.
Todavia, por outro lado, como alude o Ac.S.T.J. 2/2/2016, pº 3562/14.1T8GMR.G1.S1, relatado pelo Consº Fonseca Ramos, "jogam-se no art.º 239.º, n.º 3, b)-i), do CIRE - cessão do rendimento disponível - dois interesses conflituantes: um, aponta no sentido da protecção dos credores dos insolventes/requerentes da exoneração; outro, na lógica da "segunda oportunidade" concedida ao devedor, visa proporcionar-lhe condições para se reintegrar na vida económica quando emergirem da insolvência, passado o período de cinco anos a que ficam sujeitos com compressão da disponibilidade dos seus rendimentos."
Na ponderação do equilíbrio entre o interesse do credor à prestação e o interesse do devedor consistente no direito à manutenção de um nível de subsistência digno, tal como dissemos, deve ter-se por valor de referência mínima o salário mínimo nacional.
Por sua vez, o montante mensal retido para o Insolvente no período da cessão não visa assegurar o mesmo padrão de vida que este tinha antes da situação de insolvência, uma vez que ele terá de ajustar a sua situação sócio-económica à condição especial em que se encontra, designadamente à máxima defesa dos interesses patrimoniais dos credores.
Resta saber se os subsídios de férias e de Natal integram o conceito de rendimento disponível, devendo cumular-se com os demais rendimentos do insolvente.
Desde logo, os subsídios de férias e de Natal não podem ser analisados à luz das regras laborais e, por inerência, considerados como integrantes na retribuição e vencendo-se progressivamente em cada mês do ano.
O direito insolvencial, à luz do qual foi proferido o despacho liminar, é um ramo especial do direito privado que regula os mecanismos de satisfação dos direitos dos credores em caso de insolvência do devedor, através da repartição dos seus bens ou da aprovação de um plano de insolvência.
Direitos insolvencial e laboral constituem áreas do direito autónomas entre si, não havendo qualquer fundamento jurídico para entender aplicáveis as regras jurídicas especiais privativas de uma das áreas, à outra.
Os subsídios de férias e de Natal constituem assim um complemento de retribuição do trabalho, com a função de auxiliar as despesas potencialmente acrescidas nas épocas de férias de Verão ou no período do Natal e a forma de contabilização dos respectivos valores, para efeitos de cessão do rendimento disponível, foi decidida à luz da teleologia e dos interesses em jogo no incidente de exoneração do passivo restante.
Na verdade, o disposto no artº 239º nº3 CIRE faz englobar, no rendimento disponível para os credores, todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor – com excepção do rendimento indisponível a ponderar.
Assim, desde que não exceptuados na fixação desse rendimento, os subsídios de férias e de Natal são rendimentos disponíveis do devedor e deverão, por inerência, ser cedidos ao fiduciário nos meses em que são processados e na medida em que ultrapassam o montante mensal fixado para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar.
Este tem sido o entendimento da jurisprudência desta secção – em recursos nos quais o ora relator foi adjunto (citamo-la, desde logo e acima do mais, por razões de justiça distributiva) – Ac.R.P. 24/3/2020, pº nº 971/17.8T8STS.P1, Ac.R.P. 16/6/2020, pº 3294/19.4T8OAZ.P1, ambos publicados e relatados pela Desª Lina Castro Baptista (também subscritos pelo ora relator), e Ac.R.P. 16/6/2020, pº 2039/14.0T8VNG.P1, relatado pela Desª Alexandra Pelayo, inédito, igualmente subscrito pelo ora relator.
No mesmo sentido, vão os Ac.R.C. 11/02/14 e 13/5/2014, respectivamente nos pºs 467/11.1TBVND-C.C1, relator: Des. Carlos Moreira, e pº 1734/10.7TBFIG-G.C1, relator: Des. Luís Cravo.
Portanto, a decisão proferida também não poderia deixar de ser interpretada como aludindo ao “rendimento do devedor que ultrapasse o equivalente a 1 salário mínimo nacional”, não englobando na excepção quaisquer montantes fruídos a título de subsídios que excedessem esse referido salário mínimo.
Por vida disso, cabe a confirmação do douto despacho recorrido.

Concluindo:
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Deliberação (artº 202º nº1 CRP):
Na improcedência do recurso de apelação, confirma-se o douto despacho recorrido.
Custas pela Apelante, sem prejuízo do Apoio Judiciário.

Porto, 26/1/2021
Vieira e Cunha
Maria Eiró
João Proença