Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
14407/13.0TDPRT-D.P3
Nº Convencional: JTRP000
Relator: LUÍS COIMBRA
Descritores: ARRESTO PREVENTIVO
CONTA BANCÁRIA
BENS COMUNS
Nº do Documento: RP2018012414407/13.0TDPRT-D.P3
Data do Acordão: 01/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL
Decisão: PROVIDO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO, (LIVRO DE REGISTOS N.º2/2008, FLS.138-148)
Área Temática: .
Sumário: I – São da exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam, as dívidas provenientes de crimes e as indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges (artº 1692º al. b) CC).
II – Presumem-se bens comuns, os saldos credores de contas de depósitos bancários, sendo o regime de bens entre os cônjuges o da comunhão de bens adquiridos e não resultando da factualidade provada que as quantias delas contantes tivessem sido trazidas para o casamento, nem que fossem resultado da alienação do bens próprios e tendo em conta a presunção legal do artº 1725º CC.
Reclamações:
Decisão Texto Integral: Processo nº 14407/13.0TDPRT-D.P3

Acordam, em conferência, na 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
I. RELATÓRIO
1. Por apenso ao Proc. nº 14407/13.0TDPRT (na altura ainda em fase de Inquérito que corria termos na 12ª Secção do DIAP do Porto), B…, com os sinais dos autos, deduziu embargos de terceiro contra o arresto, decretado em 22.01.2016, que incidiu sobre a totalidade dos saldos credores das contas bancárias, em que o C… (arguido naqueles autos) figura como titular ou co-titular, domiciliadas na D…, no E… e na F….
Invoca ter legitimidade para deduzir os embargos dado não ser parte naqueles autos, ser casada com o ali arguido C… desde 10.06.1986, no regime da comunhão de adquiridos, sempre contribuiu para o sustento e aforro do seu agregado familiar, uma vez que sempre auferiu um salário acima da média (encontrando-se na data em que se reformou a auferir um vencimento base 3.004,68€ e a sua pensão de aposentação foi fixada em 2.028,58€). Alegando ainda que além de ser co-titular com o arguido de parte das contas bancárias arrestadas, ter também a seu favor a presunção de que metade dos saldos das contas arrestadas lhe pertence por virtude do regime de bens do casamento com o arguido, a que acresce que parte das quantias nelas depositadas advêm do seu próprio rendimento, do aforro que fizeram e dos frutos desses aforros.
Concluiu pedindo que o arresto preventivo decretado apenas deveria incidir sobre a meação do arguido C…, ou seja sobre metade dos saldos credores daquelas contas bancárias, com o consequente levantamento do arresto na parte respeitante à sua própria meação (da embargante).
2. Recebidos os embargos, foi ordenada a notificação nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 348º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
3. Apresentou-se a contestar o Ministério Público, pugnando pela improcedência dos embargos e manutenção do arresto nos termos que haviam sido determinados.
4. Na normal tramitação da acção, após realização de audiência de julgamento, veio a ser proferida sentença que, julgando parcialmente procedentes os embargos de terceiro, reduziu o arresto decretado a três quartas partes dos valores constantes do mesmo.
5. Inconformada com esta decisão, a Embargante dela interpôs recurso, finalizando a respectiva motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1ª - a Requerente deduziu embargos, pedindo que fosse levantado o arresto sobre a metade dos valores credores em contas bancárias, por considerar que o mesmo, na parte em que incide sobre a sua meação, é ilegal.
2.ª - da prova produzida por documentos e das declarações da Embargante prestadas em audiência de julgamento, resultou também provado, com relevância para a boa decisão da causa, que o casal era muito poupado e que o aforro e poupança também era feito como produto do trabalho do Arguido.
3.ª -pelo que, deverá aditar-se à matéria de tacto, dois pontos, com a seguinte redacção;
8. O casal era bastante poupado.
9. Parte das quantias arrestadas resultaram também do trabalho do Arguido e do aforro que foi constituído pelo mesmo.
4ª - a Recorrente era casada com o Arguido, há mais de 30 anos, sob o regime de comunhão de adquiridos.
5ª - ambos trabalhavam, auferindo vencimentos acima da média e que eram poupados, sendo aliás, a poupança, uma preocupação acrescida por parte do Arguido.
6ª - A Recorrente fundou a sua pretensão por um lado no aforro feito pelo casal ao longo dos anos, com o produto do vencimento de ambos (e a partir de 2009, da reforma de aposentação dela) e por outro lado, com base na presunção legal.
7ª - o artigo 1724.°, nº 1, do Código Civil estabelece que fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges, pelo que, tais verbas são sempre comuns, independentemente de quem as aufere.
8ª- como tal, todas as verbas auferidas pelo casal - e não apenas as verbas auferidas pela Recorrente - devem ser consideradas como um bem comum e compondo, por metade, a meação de cada um dos cônjuges, pelo que erradamente andou a decisão recorrida ao basear-se apenas nos ganhos e poupanças referentes à parte da Embargante.
9ª- consequentemente, por força do regime matrimonial e do artigo 1724.º, resulta feita a demonstração da titularidade, por parte da Embargante, sobre metade dos valores arrestados.
10ª - acresce que, independentemente do regime matrimonial, existe uma presunção legal, plasmada nos artigos 516.º do Código Civil e 780º, n.º 5, do Código de Processa Civil.
11ª - tratando-se de uma presunção legal, incumbia a quem impulsionou o arresto desses bens e direitos, a demonstração de que tal presunção não tem aplicação, isto é, de que a presunção foi afastada mediante a alegação e demonstração de factos contrárias.
12ª - tal alegação e demonstração não existe nos autos, nem se verifica da decisão recorrida qualquer fundamentação concreta e efectiva de tal afastamento da presunção.
13ª - tal questão ficou aliás decidida de forma exemplar e clara no douto acórdão preferido no processo 14407/13.0TDPRT, apensa D – ou seja, também um apenso dos autos principais.
14ª - na decisão recorrida conclui-se pela aceitação de que, uma quarta parte dos valores arrestados pertence à Embargante.
15ª - mas, a única justificação que é dada para a fixação de tal quota-parte é a de que se tratou de uma «ponderação cauteloso e que se julga adequada»,
16ª - tal fundamentação é por demais subjectiva, nada tem de concreto e impede a Embargante de alcançar o raciocínio e a sustentação da justeza, ou não da, decisão, o que equivale a falta de fundamentação.
17ª - também quanto a custas se errou na decisão recorrida, ao determinar que a Embargante é responsável por 3/4 das custas, quando deveria ter sido condenada, a manter-se a decisão inalterada, apenas em metade.
18ª - ao decidir-se como se decidiu, ficaram violadas as normas legais constantes dos artigos 516.º e 1724.º n.º 1, do Código Civil e os artigos 607º nºs 3, 4, 5 e 6, 615º, nº 1, alínea b) e 780º, nº 5, do Código de Processo Civil, pelo que a decisão é nula ou, pelo menos, ilegal e deverá ser revogada.
TERMOS EM QUE, deve o presente recurso ser admitido, por fundado e provado e por via dele, ser alterada a decisão sobre a matéria de facto, acrescentando-se os pontos 8 e 9 acima elencados; sem prescindir, deve a decisão ser declarada nula, pelo menos em parte, por falta de fundamentação e, em qualquer dos casos, ser declarada ilegal, revogando-se a mesma e julgando-se os embargos procedentes, em consequência do que deve ser declarado o levantamento do arresto sobre metade dos valores e direitos constantes das contas bancárias referidas nos autos, mais se absolvendo a Embargante das custas, assim se fazendo inteira e sã Justiça!!”

3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 265.
4. O magistrado do Ministério Público, junto da 1ª instância (a fls. 269 a 277), respondeu ao recurso, concluindo no sentido da sua improcedência e manutenção da decisão recorrida.
5. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto (a fls. 396 a 399) sufragando a resposta apresentada pelo Ministério Público de 1ª instância, emitiu parecer no sentido de que o recurso será de julgar não provido e manter inalterada a decisão impugnada.
6. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal, não foi apresentada resposta.
7. Foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Poderes cognitivos do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso
Constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação apresentada, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
No caso vertente, vistas a conclusões de recurso, seguindo uma ordem de precedência lógica, as questões suscitadas pela recorrente são as seguintes:
1ª - Saber se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação
2ª – Se, à matéria de facto dada como provada, deve ser aditado o seguinte:
“ 8. O casal era bastante poupado.
9. Parte das quantias arrestadas resultaram também do trabalho do Arguido e do aforro que foi constituído pelo mesmo.”
3ª – Se, em face da matéria de facto apurada, o arresto deve ser reduzido a metade dos saldos credores daquelas contas bancárias domiciliadas na D…, no E… e na F…, em que o arguido C… figura como titular ou co-titular.
4ª - Como devem ser repartidas as custas pelos sujeitos processuais.
2. Decisão recorrida
Definida as questões a tratar, vejamos, desde já, o que na sentença recorrida consta quanto à factualidade que foi dada como provada, sua motivação e, bem assim quanto ao direito aplicado àquela factualidade para, com base nisso, ali ter sido concluído no sentido da redução do arresto a ¾ partes dos saldos credores das contas em causa (transcrição):
“(…)
Dos documentos juntos aos autos (fl.s 12/19, 40 e 49/50), bem como dos depoimentos das testemunhas inquiridas (fl.s 34/37) resulta indiciado que:
1. A embargante é casada com o arguido C… desde 10.JUN.86.
2. Exerceu até 2009 as funções de professora do ensino primário.
3. Quando se aposentou, a embargante auferia a remuneração base de €3.004,68 e a pensão de reforma foi fixada em €2.028,50.
4. Foram arrestados nos autos principais saldos credores das contas correntes da qual a embargante é co-titular com o arguido nos autos principais, bem como dos depósitos a prazo, títulos mobiliários, aplicações financeiras e acções, em que aquele figure como titular ou co-titular, desde que domiciliadas na F…, no E… e na F….
5. Parte das quantias assim arrestadas resultaram do rendimento do trabalho da embargante e do aforro que logrou fazer desse rendimento.
6. O património financeiro do casal não sofreu alterações significativas desde 2009.
7. O arguido C… foi constituído arguido nos autos principais a 14.JAN.16.
*
Estes os factos.
Pretende a requerente dos presentes embargos que seja levantado o arresto que incidiu sobre os saldos credores das contas correntes da qual é co-titular com o arguido nos autos principais, bem como dos depósitos a prazo, títulos mobiliários, aplicações financeiras e acções, em que aquele figure como titular ou co-titular, desde que domiciliadas na D…, no E… e na F….
Argui que metade desses montantes são sua propriedade, não só por que resultaram da poupança que efectuou ao longo dos anos e porque se presume legalmente essa titularidade.
Dos documentos juntos aos autos (fl.s 13), bem como dos depoimentos das testemunhas inquiridas (fl.s 32/33) e da própria embargante (fl.s 182/183) resulta que, com efeito, a embargante B… é casada com o arguido C….
Igualmente se indicia que a mesma exerceu actividade profissional remunerada (fl.s 14/18 e 47/122), encontrando-se presentemente aposentada e que os rendimentos declarados pelo agregado familiar resultam, em partes praticamente iguais, da requerente e do marido.
Igualmente se apurou que a requerente é titular da conta com o n.° ………. da F1… (agência de F2…) e de contas domiciliadas na D… e no E… (fl.s 127/129).
Ora, considerando todos estes factos, é forçoso concluir, com a requerente, que se presume ser titular de metade das quantias, aplicações financeiras e similares que foram arrestadas.
Com efeito, e logo por apelo ao regime de bens do seu casamento com o arguido (art.° 1730.°, n.° 1 do C. Civil) se alcançava tal conclusão.

A mesma sai reforçada quando se analisam os documentos juntos aos autos, e se verifica que a embargante, além de auferir rendimentos do trabalho, contribui com sensivelmente metade para os proventos do agregado familiar, conforme flui das declarações de IRS que se acham juntas aos autos.
Assim, e não sendo a requerente arguida nos autos principais, é licito supor que o arresto decretado atingiu parte do seu património.
É o que foi sublinhado pelo ac. da Rel. do Porto, de 18.NOV.13 (pr. 888/10.7TBVRL-A.P1), quando ensina que "I- O arresto há-de incidir sobre bens próprios do devedor e não sobre bens comuns pois são aqueles que, em principio, garantem o cumprimento da obrigação.
II - A excepção prevista na parte final da alínea b) do artigo 1692º. do Código Civil só funciona se os respectivos factos constitutivos implicarem responsabilidade meramente civil: tratando-se de responsabilidade civil conexa com a criminal, já a solução é sempre a da responsabilidade exclusiva do cônjuge infractor, ainda que ele tenha actuado para ocorrer aos encargos normais da vida familiar ou em proveito comum do casal".
Por outro lado, importa sublinhar que os factos em investigação no inquérito a que os presentes embargos são apenso se estendem a datas anteriores a 2010, pelo que a alegação que a embargante verteu nos art.° 21.° a 25.° da petição de embargos não pode proceder.
Não obstante, não pode o tribunal ignorar que o marido da embargante foi acusado - e se encontra presentemente a ser julgado - pela comissão de crimes de corrupção, sendo certo que nos autos principais foram recolhidos indícios sérios, credíveis e convincentes em como praticou efectivamente tais crimes.
Igualmente se não pode olvidar que o arresto em causa nos presentes embargos teve justamente por fundamento a suspeita séria e fundada em com os activos financeiros dele objecto tiveram origem na actividade delituosa do marido da embargante...
Ou seja:
- seria excessivo e desproporcionado considerar que a totalidade dos activos arrestados são fruto da actividade criminosa do marido da embargante, uma vez que, como pretende a embargante, os rendimentos por ambos auferidos — acima da média do cidadão comum - proporcionavam alguma capacidade de aforro; por isso, não pode acolher-se a tese da total improcedência dos presentes embargos;
- seria, contudo, ingénuo e pueril entender que a presunção a seu favor invocada pela embargante não fora afastada pela demais factualidade decorrente dos autos principais, no que respeita à acusada conduta ilícita do seu marido.
Por conseguinte, numa ponderação cautelosa e que se julga adequada, é razoável supor que uma quarta parte do valor dos activos financeiros arrestados são pertença da embargante, pelo que se deverá reduzir em conformidade o perímetro do arresto.
*
Assim, pelo exposto, e nos termos do art.º 345º do C. Pr. Civil, julgam-se parcialmente procedentes os presentes embargos de terceiro deduzidos por B…, pelo que se reduz o arresto decretado a três quartas partes dos valores constantes do mesmo.
Custas pela embargante, em ¾ do valor dos presentes embargos.
(…)”
3. Apreciando
1ª Questão
Saber se a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação.
Alega a embargante/recorrente que a única justificação, que foi dada na sentença recorrida para ali se concluir, e assim se fixar, que apenas lhe pertence uma quarta parte dos saldos credores das contas bancárias arrestadas, assentou apenas numa “ponderação cautelosa e que se julga adequada”, justificação esta que, por ser por demais subjectiva, impede a embargante de alcançar o raciocínio e justeza, ou não, da decisão, o que equivale à falta de fundamentação.
Vejamos.
É inquestionável que a fundamentação (ou o dever de fundamentação) é conatural aos actos decisórios, despachos e sentenças. As decisões finais ou despachos que não sejam de mero expediente, mas com repercussão em direitos dos destinatários, só se legitimam e podem ser compreendidas com a respectiva fundamentação. Por isso se diz que o dever de fundamentação é uma garantia integrante do próprio conceito de Estado de direito democrático. Acresce que só a fundamentação possibilita o exercício de um efectivo direito de recurso.
A imposição do dever de fundamentação, tem assento constitucional no artigo 205º nº 1 da Constituição da República Portuguesa no qual é dito que: ”As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Daqui decorre que a fundamentação de um acto decisório deva estar devidamente exteriorizada no respectivo texto, de modo que se perceba qual o seu sentido, tudo isto para se conhecer, ao fim e ao cabo, o efectivo juízo decisório em que se alicerçou o correspondente despacho ou sentença, designadamente os factos que se acolheram e a interpretação do direito perfilhada, permitindo o seu controlo pelos interessados e, se for caso disso, por uma instância jurisdicional distinta daquela.
Dito isto, verificamos que a sentença contém a fundamentação de facto e a fundamentação de direito.
A recorrente discorda é da argumentação que o tribunal a quo utilizou para reduzir o arresto a três quartas partes, e não a metade como ela pretendia.
Mas saber se, tem apoio legal ou não, a argumentação/justificação dada pelo tribunal para chegar à decisão a que chegou é outra coisa, tanto mais que um dos fundamentos do seu recurso assenta na (segundo a perspectiva da recorrente) errada aplicação das normas.
Ou seja, a recorrente considera existir erro de julgamento em matéria de direito, situação essa que nada tem a ver com falta de fundamentação ou deficiente fundamentação.
Só a ausência completa de fundamentação constituiria a invocada nulidade de sentença; não assim uma eventual fundamentação deficiente ou incorrecta. A discordância da recorrente sobre um diferente sentido que a decisão deveria acolher quanto ao mérito, ainda que a recorrente tenha ou tivesse razão, não é motivo de nulidade de sentença. As nulidades de sentença são vícios formais, que diferem dos juízos de procedência ou improcedência do recurso, respeitantes ao mérito.
Por isso, e sem necessidade de mais considerações, improcede esta arguida nulidade de sentença.
2ª Questão:
Em condições normais passaríamos a analisar a atrás enunciada 2ª questão que consistia em saber se à matéria de facto dada como provada deve ser aditado o seguinte:
“ 8. O casal era bastante poupado.
9. Parte das quantias arrestadas resultaram também do trabalho do Arguido e do aforro que foi constituído pelo mesmo.”
Todavia, tendo em conta que o objectivo que a recorrente visa alcançar através da presente petição recursiva se circunscreve à redução, apenas para metade, do arresto que incidia sobre os saldos credores das contas bancárias em causa, desde já adiantamos que, perante a demais factualidade que foi dada como provada, mesmo sem o aditamento fáctico pretendido, a pretensão da recorrente deverá ser merecedora de provimento.
Daí que, por se tornar totalmente inútil saber se se impunha, ou não, o aditamento daqueles factos, factos esses que até são totalmente inócuos para o desfecho do recurso, passaremos de imediato à abordagem da subsequente questão que a recorrente havia suscitado.
3ª Questão:
Se, em face da matéria de facto apurada, o arresto deve ser reduzido a metade dos saldos credores daquelas contas bancárias domiciliadas na D…, no E… e na F…, em que o arguido C… figura como titular ou co-titular.
Prevê o n.º 1 do art. 342º do C.P.C. o facto de ter sido ordenado e efectivado algum acto judicial de entrega de bens que ofenda a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência de que seja titular quem não é parte na causa, e estatui que o lesado pode fazê-lo valer através de embargos de terceiro.
Deste normativo resulta que os embargos de terceiro pressupõem que o embargante tenha a posição de terceiro, ou seja, que não haja intervindo no processo ou no acto jurídico de que emana a diligência judicial e que o mesmo tenha a posse sobre a coisa objecto dessa diligência, ou seja titular de qualquer direito sobre ela incompatível com a realização ou o âmbito da diligência.
Hoje, quer esteja em causa a posse, o direito de propriedade ou outro direito incompatível com a diligência judicial, o lesado pode defender-se através de embargos de terceiro, como expressamente justificou o legislador no preâmbulo do DL nº 329-A/95, quando referiu que “relativamente ao regime proposto para os embargos de terceiro, salienta-se a possibilidade de, através deles, o embargante poder efectivar qualquer direito incompatível com o ato de agressão patrimonial cometido, que não apenas a posse”, logo acrescentando que assim se permite “que os direitos «substanciais» atingidos ilegalmente pela penhora ou outro ato de apreensão judicial de bens possam ser invocados, desde logo, pelo lesado no próprio processo em que a diligência ofensiva teve lugar, em vez de o orientar necessariamente para a propositura de acção de reivindicação, por esta via se obstando, no caso de a oposição do embargante se revelar fundada, à própria venda dos bens e prevenindo a possível necessidade de ulterior anulação desta, no caso de procedência de reivindicação” (cfr. Prof. Lebre de Freitas, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 1º, Ed., 1999, pgs. 614 e segs). Este entendimento foi mantido na recente reforma processual operada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho.
In casu, num enquadramento prévio, importa referir que o arresto dos saldos credores das contas bancárias em causa foi determinado, expressamente, "atenta a existência de fumus boni iuri e o periculum in mora, (…), de modo a acautelar que a vantagem da actividade criminosa aqui em investigação, assim como as garantias de pagamento de eventuais penas pecuniárias e outros créditos, se dissipem (…) ex vi das disposições conjugadas nos arts. 111.°, nºs 2, 3 e 4, do C. Penal, 228.° do Código de Processo Penal e 391.° a 393.° do C. Pr. Civil." (cfr. despacho determinativo do arresto, cuja certidão consta a fls. 350 a 353 do 2º Volume Anexo).
Trata-se, por conseguinte, de um arresto preventivo (artigo 228º, 1, do Código de Processo Penal), de acordo com a legislação processual penal geral e observando o disposto na lei processual civil.
Esse enquadramento legal plasmado na decisão que ordenou o arresto preventivo não se confunde com o robusto regime (especial) de perda ampliada (arts. 7.° e seguintes da Lei n.° 5/2002, de 11 de Janeiro), regime este que não foi invocado, nem serviu como argumento por parte do Ministério Público aquando da petição do arresto.
Por isso, a decisão que decretou o arresto dos saldos credores das contas bancárias em causa nos presentes autos – umas co-tituladas pela embargante e outras apenas tituladas pelo arguido C… - fê-lo nos termos da lei processual penal geral e da lei processual civil.
No recurso em apreciação, a embargante reclama que o arresto do saldo das contas bancárias em causa (sejam tituladas pelo arguido ou co-tituladas entre si e o arguido) apenas deveria ter incidido na meação do arguido, e não em três quartas partes desse saldo, como acabou por decidir o tribunal a quo.
Desde já adiantando, perante a factualidade que veio a ser dada como provada, assiste inteira razão à recorrente.
Aliás, pela leitura da decisão recorrida, verifica-se que o Sr. Juiz a quo, depois de considerar que por virtude do regime de bens de casamento a embargante se presume ser titular de metade das quantias existentes naquelas contas bancárias arrestadas, em vez de refectir na decisão a tutela jurídica desse direito próprio da embargante (que seria a redução do arresto apenas ao equivalente à meação do arguido), inflecte o raciocínio e, com base em critérios de oportunidade, entende manter a afectação pelo arresto do direito da embargante numa percentagem que, quiçá com base na equidade, acaba por fixar em metade do direito desta.
Ora, a decisão judicial que cabe nos embargos de terceiro para tutela do direito reconhecido ao embargante não pode assentar em critérios de oportunidade e/ou equidade, mas apenas de legalidade estrita.
Dito isto, analisemos a questão.
Consabido que tendo a providência cautelar de arresto a finalidade de conservar a garantia patrimonial do credor, que se consubstancia no património do devedor – se o responsável exclusivo pela dívida a terceiro for apenas um dos cônjuges, apenas o património deste deverá responder pela dívida, cfr. arts. 601º e 1696º, do Código Civil, e já não o do seu cônjuge - não poderão ser arrestados bens de terceiros que não partes no procedimento que motivou o arresto, ainda que estes sejam co-titulares de uma conta, conjunta ou solidária, com o devedor. Ao arresto, previsto nos arts. 619º do Código Civil e 391º e ss., do Código de Processo Civil, aplicam-se as normas relativas à penhora, em tudo o que não contrarie o regime especifico do arresto, de acordo com o art. 391º, nº2, do Código de Processo Civil.
Por outro lado, decorre do art. 1692º al. b) do Código Civil que são de exclusiva responsabilidade do cônjuge a que respeitam, as dívidas provenientes de crimes e as indemnizações, restituições, custas judiciais ou multas devidas por factos imputáveis a cada um dos cônjuges.
Ora, no que às contas bancárias co-tituladas pelo arguido C… e a aqui embargante sua esposa, e sem sequer ter em atenção de que entre os mesmos vigora o regime de comunhão de bens adquiridos, na falta de prova acerca da propriedade ou proveniência dos valores que atingiram os saldos dessas contas, vigora a presunção legal de que ambos os co-titulares comparticiparam em partes iguais para o atingimento desses saldos credores (cfr. art. 516º do Código Civil).
Lendo a factualidade provada, verifica-se que não existe facto algum que nos permita concluir que o dinheiro depositado nessas contas é bem próprio do arguido ou foi exclusivamente aforrado por este, seja em resultado de que actividade fora; bem pelo contrário, foi demonstrado que esse dinheiro é resultado do esforço comum de ambos os cônjuges, do aforro que ambos conseguiram fazer do rendimento do trabalho de ambos.
Por isso, tendo em conta que da factualidade dada como provada não resulta minimamente ilidida essa presunção iuris tantum, é de concluir que o dinheiro reflectido nos saldos credores de tais contas, titulados por um ou por ambos os cônjuges, é um bem comum do casal, de modo que cada um dos membros do casal é titular, sobre esse dinheiro, de um direito à respectiva meação, ou seja, em termos meramente ideias, um direito próprio sobre o equivalente a metade dos saldos.
Esta ideia vale nos preciso termos também para as contas bancárias tituladas apenas pelo arguido C…. Com efeito, sendo o regime de bens do casamento a comunhão de bens adquiridos, e não resultando da factualidade dada como provada que as quantias naquelas constantes tivessem sido por ele trazidas para o casamento, nem que fossem resultado da alienação de seus bens próprios e tendo ainda em atenção a presunção legal decorrente do art. 1725º do Código Civil, os saldos credores daquelas constas (como bens móveis que se tratam) presumem-se igualmente bem comum. Nessa decorrência, o arresto dos saldos credores de tais contas na parte em que excedeu a metade do arguido surge lesiva do direito à meação da embargante recorrente, pelo que a esta tem toda a legitimidade de lhe ver reconhecido tal direito.
Cabia ao Ministério Público, como sujeito processual que nos autos principais requereu o arresto, o ónus da prova de que a parte sobrante daquela presumida meação do arguido também a este pertencesse ou fosse resultante dos proventos ou vantagens decorrentes da prática dos actos delituosos em investigação naqueles autos.
Não tendo o Ministério Público logrado fazer prova disso, é inevitável que pelo facto do arresto ter incidido também sobre uma quota parte de bens não pertencentes ao arguido, ou seja sobre a metade que pertencia à embargante/recorrente, deverá o mesmo ser levantado em relação a essa quota parte de metade que pertence à embargante.
Em suma: impõe-se a redução do arresto a metade dos saldos credores das contas bancárias tituladas ou co-tituladas pelo arguido, e não a três quartas partes como decidira o tribunal a quo.
Merece, assim, provimento o recurso quanto a esta questão.
4ª Questão:
Como devem ser repartidas as custas pelos sujeitos processuais
A resposta a esta questão é bem simples.
As custas dos embargos de terceiro e do presente recurso não são da responsabilidade da embargante/recorrente porque a mesma obtém vencimento.
E sendo o Ministério Público o requerente do arresto levantado, o mesmo está isento de custas (cfr. art. 4º nº 1 al. a) do Regulamento das Custas Processuais).
Assim sendo, não há lugar a tributação em custas.
III. DISPOSITIVO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso interposto pela embargante e, em consequência, decidir:
a) Alterar a decisão recorrida, no sentido de se julgarem procedentes os embargos de terceiro deduzidos por B…, reduzindo-se o arresto decretado a metade dos saldos credores das contas bancárias em causa tituladas e co-tituladas pelo arguido C… e, consequentemente, ordenar o levantamento do arresto na proporção da outra metade.
b) Sem custas (quer nos embargos de terceiro quer no recurso).
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(Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos signatários)
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Porto, 24 de Janeiro de 2018
Luís Coimbra
Maria Manuela Paupério